eutanásia: algumas considerações

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EUTANÁSIA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Wanderlei José dos Reis*
BREVE INTRÓITO
Tem o homem o direito de dispor de sua própria vida? Podem os
familiares deliberar pelo destino de um de seus entes em estado terminal?
Quando acaba a vida? Legalmente, no Brasil, decidimos que a vida acaba
com a morte cerebral? A morte é um preço que merece ser pago para o alívio da dor? Eis a polêmica questão envolvendo o direito de matar e morrer
que muita discussão tem suscitado ao longo da história.
No ano em que se discutiu no Brasil, já em nível de nossa Suprema
Corte de Justiça, o uso de células embrionárias em pesquisas científicas,
defendendo-se, de um lado, que tais células eram as que possuíam o maior
potencial terapêutico já descoberto até hoje, e, de outro, que o uso de
células-tronco embrionárias feriria de morte o mais fundamental dos direitos – a vida –, foi amplamente divulgado pela mídia internacional o caso
da francesa Chantal Sébire que lutou na Justiça de seu país pelo direito
de escolher como morrer, suicidando-se no momento que quisesse e com
a assistência de um médico.
Ela sofria de uma doença incurável, estando com o rosto já deformado por causa de um tumor, que atingia a cavidade nasal, o que lhe causava
dores terríveis. Teve seu pedido negado pela Justiça francesa e poucos dias
depois foi encontrada morta em casa, segundo noticiado pela imprensa. O
código penal francês distingue a eutanásia ativa da passiva, sendo a primeira considerada homicídio, enquanto que a passiva é tida como omissão
de atendimento. Não se confundindo, também, ortotanásia (descontinuar
*
Ex-delegado de Polícia de Mato Grosso (1º colocado no concurso). Juiz de Direito em Mato
Grosso (1º colocado no concurso). Graduado em Matemática. Especialista em Educação pela
UFRJ. Especialista em Direito Público Avançado e Processo Civil Avançado. Doutorando em
Direito pela UCSF/Argentina. Cursa MBA em Judiciário pela FGV. Membro da Academia Matogrossense de Letras (Cadeira 5).
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um tratamento em um paciente terminal) com a administração ativa de
drogas que provocam a morte do paciente (eutanásia ativa).
O caso serviu para reacender a chama em torno do tema eutanásia,
não só na França, mas em todo o mundo.
DESENVOLVIMENTO
A eutanásia é um assunto que diz respeito à medicina, aos costumes, à moral, às religiões e ao Direito. Etmologicamente, eutanásia vem do
grego e significa “morte doce, morte calma”. Apresenta inúmeros conceitos
similares como homicídio consensual, homicídio caridoso, homicídio piedoso, homicídio caritativo, homicídio compassivo, morte suave, morte boa
e honrosa e alívio da dor.
O art. 5º, caput, de nossa Carta Política, prescreve que “todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
A teoria da eutanásia jamais foi admitida pela legislação brasileira.
Recordo-me que, na Constituinte de 1988, o tema foi amplamente analisado e debatido com bastante vigor pelos parlamentares e com a participação
de vários segmentos da sociedade, sendo, por fim, sua adoção rechaçada.
No nosso ordenamento jurídico não há eutanásia e os atos praticados em seu nome são taxativamente rotulados de homicídio, pouco
importando para a lei se o crime fora cometido contra alguém de doença
incurável ou que tivesse poucos minutos ou segundos de vida. Pesará,
tão-só, o fato de o agente ter praticado a conduta com a vontade livre e
consciente de matar – o animus necandi.
Em diversos diplomas legais vê-se essa preocupação do legislador
brasileiro em resguardar a vida humana. Inaugurando a parte especial de
nosso Estatuto Repressivo, tem-se a previsão no art. 121 do delito de homicídio (“matar alguém”), pena de 6 a 20 anos de reclusão. Consabido que
aí o bem juridicamente tutelado é a vida, denotando a preocupação do
legislador em resguardá-la, punindo quem contra ela atentar, pois trata-se
de um direito indisponível, inegociável e irrenunciável. Assim, pelo Código
Penal, ressai que a eutanásia pode ser tida como uma espécie de homicídio
privilegiado, com a pena de 6 a 20 anos, reduzida de 1/6 (um sexto) a 1/3
(um terço), isso numa interpretação judicial da norma subsumida ao caso
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concreto. Alguns Tribunais já têm reconhecido essa causa de diminuição
de pena do homicídio privilegiado, mas o assunto ainda não foi enfrentado
pelas cortes superiores – o Tribunal da Cidadania ou o Pretório Excelso.
No delito seguinte, art. 122, tem-se a previsão do crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, tipo penal que não se confunde
com a prática da eutanásia. Assim, o suicídio não é crime, ao passo que
quem induz, instiga ou auxilia ao suicídio comete crime.
O art. 129 do mesmo Codex, ao tratar do crime de lesão corporal, é
peremptório ao prescrever: “Ofender a integridade corporal ou a saúde de
outrem”. Detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano. A autolesão ou lesão
autoinfligida não é punível em nosso ordenamento jurídico por não constituir ilícito, ou seja, quando o agente ofender a própria integridade corporal
ou sua saúde não comete crime, salvo se o fizer com o fito de haver indenização ou valor de seguro, respondendo aí, neste caso, por estelionato
previsto no art. 171, § 2º, V, do Código Repressivo.
O Código Penal tipifica, também, o constrangimento ilegal, prevendo-o no seu art. 146, com a exceção de seu § 3º, inciso I, que estabelece
que a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente
ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida,
não constitui constrangimento ilegal. Ressaindo daí, mais uma vez, que dos
bens da vida, a vida está no patamar mais elevado daqueles juridicamente
tutelados pelo Estado.
Os Códigos de Ética médica, por sua vez, também prescrevem que o
médico deve utilizar-se de todos os recursos para salvar a vida das pessoas
que são o alvo de toda a sua atenção e atividade. Assim como os profissionais do Direito, os médicos, em regra, realizam uma atividade de meio
e não de fim, ou seja, comprometem-se em utilizar-se de todos os seus
conhecimentos técnicos em prol do tratamento do paciente independentemente dos resultados (exceto, é claro, os casos de cirurgiões plásticos, v.g.,
em que o compromisso é com resultados).
Perscrutando, ainda, nas Sagradas Escrituras, encontramos inúmeras passagens de onde se depreende que a vida nos foi concedida por
Deus e somente Ele poderia dela dispor:
“Não matarás.” Ex. 20:13
“O Senhor é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz subir.”
1. Sm 2:6
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“Porquanto, aquele que disse: Não adulterarás, também ordenou: Não
matarás. Ora, se não adulteras, porém, matas, vem a ser transgressor da
lei.” Tg 2:11.
Nossa literatura, por seu turno, apesar de parca sobre o tema,
demonstra uma ligeira inclinação à admissão da eutanasia entre nós,
sem reservas, para alguns, ou com a observância de algumas condições
pré-fixadas em lei, como muito bem observado pelo prof. José Ildefonso Bizatto:
Entretanto, para a efetivação da aplicação da eutanásia deverão ser seguidos alguns trâmites legais, tais como:
Autorização por escrito do paciente ou de seu representante legal, devendo
a autorização ser feita por instrumento público, em qualquer dos casos;
A existência de um laudo médico composto por uma junta de, no mínimo,
três profissionais, com laudos individuais e de distintas especialidades;
Parecer do Ministério Público que aprecia a legalidade do pedido, sem aterse ao mérito da doença, pois este é da competência da junta médica.
Se possível, a presença de um laudo feito pela assistência social, que
relatará tudo o quanto a família tem e vem sofrendo, bem como disporá
quanto à situação financeira da família.1
Um dos fortes argumentos utilizados pelos defensores da eutanásia
ativa é o de se evitar que o doente venha a cometer o suicídio, o que
geraria grande sofrimento para a família. Em países como a Suíça, Holanda e Bélgica há permissivo legal para a eutanásia ativa – aquela em
que há a prática de atos que conduzem à morte do paciente terminal. Já
a ortotanásia, que consiste no desligamento de aparelhos ou retirada de
medicamentos do paciente, cessando-se o uso de recursos que prolongam
artificialmente a sua vida quando não há mais chances de recuperação, é
autorizada em países como a França e a Alemanha.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A eutanásia é um assunto que tem, ainda hoje, suscitado um grande espaço na mídia internacional, sobretudo quando surge um novo caso
1
BIZATTO, José Ildefonso. Eutanásia e Responsabilidade Médica. Porto Alegre: Sagra, 1990, p. 55.
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a lhe dar alento, sendo, sem dúvida, um tema palpitante e polêmico, que
apresenta fortes controvérsias, acirradas discussões, possuindo, dessarte,
várias frentes para ser enfocado. Havendo aqueles que defendem a sua
adoção com entusiasmo e adversários acirrados que, também, inúmeros
argumentos expendem no sentido diametralmente oposto, verificandose na questão que há uma evidente colidência entre o direito à vida e o
direito à morte.
Concordamos sim que o direito à vida é inerente ao ser humano,
devendo ele ser protegido por lei e ninguém poderá ser arbitrariamente
privado de sua vida (Pacto de San José da Costa Rica – Art. 4º e Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos – Art. 6º, adotados pelo Brasil),
tendo nossa Lei Fundamental consagrado tal direito em seu art. 5º, caput,
já citado alhures. Ocorre que o direito à vida não é absoluto, há de se considerar sua relativização, como se vê com frequência em diversos institutos
do Direito Penal.
Parece-nos que, diante de relatos de médicos que revelam ser a
eutanásia, apesar de não disciplinada em lei, uma prática habitual em UTIs
do país, no exato momento histórico em que nossa Suprema Corte manifestou-se acerca da constitucionalidade da chamada Lei de Biossegurança,
bem como nossa Carta Mater completa seus vinte anos de promulgação, o
nosso legislador, de lege ferenda, deveria volver ao tema, que é delicado,
mas demanda uma manifestação, estabelecendo-se critérios e condutas éticas para uma morte sem dor, pois, apesar de cada caso ser um caso, temse que o sofrimento do paciente e da família, a ausência de expectativa de
recuperação, a irreversibilidade da situação e vários outros aspectos, quase
sempre são comuns.
Em contrapartida, por derradeiro, há de se considerar, a priori,
também, se nosso Estado possuiria aparato físico e humano ou teria
condições de providenciá-lo a fim de implementar e fiscalizar um eventual permissivo legal nessa área, ilidindo-se abusos ou burlas, sobretudo quando se vê, à guisa de exemplo, o descalabro existente no
sistema prisional brasileiro, onde suas mazelas estão expostas há longa
data, apesar da existência de uma verdadeira Lei de Execução Penal de
primeiro mundo.
Considerando que a legislação vem na esteira do fato social, sopesando, concluímos que urge sim uma reabertura de discussão legislativa
em torno do tema eutanásia no Brasil.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BIZATTO, José Ildefonso. Eutanásia e Responsabilidade Médica. Porto Alegre: Sagra, 1990.
FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. São Paulo: Fundo Editorial Byk Procienx, 1975.
HUNPHRY, Derek. A Solução Final. Justificativa e Defesa da Eutanásia. Tradução
de Ênio Silveira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1994.
RODRIGUES, Paulo Daher. Eutanásia. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.
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