o “entrecruzamento cultural” e as políticas públicas na

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O “ENTRECRUZAMENTO CULTURAL” E AS POLÍTICAS PÚBLICAS
NA ESCOLA: UMA ABORDAGEM SOBRE O TRABALHO DOS
PROFESSORES NUMA PERSPECTIVA DISCURSIVA
BRITTES, Letícia Ramalho - UFSM
[email protected]
FERREIRA, Liliana Soares – UFSM
[email protected]
Eixo temático: Políticas Públicas e Gestão da Educação
Agência Financiadora: Não contou com financiamento
Resumo
Pretende-se com o presente estudo, propor uma discussão sobre trabalho dos professores enquanto
produção de um discurso pedagógico no espaço-tempo da aula, bem como analisar aspectos
relevantes das políticas que regulam e organizam a escola, a fim de se chegar a um entendimento
sobre a crise da educação contemporânea, principalmente no que diz respeito à imposição da
aquisição de uma cultura homogênea através de um discurso autoritário. Para isso, inicialmente,
discorrer-se-á sobre o conceito de duas categorias que embasam esta pesquisa, a saber, trabalho e
cultura respectivamente, tendo como referencial teórico, Pérez Gómez, nas discussões concernentes
à cultura, e em relação ao estudo sobre trabalho, Marx. Nessa perspectiva, o trabalho do professor
remete-se ao planejamento e condução da aula em si e, portanto, momento de produção de um
discurso pedagógico, já que a aula se realiza mediada pela linguagem e sob a influência da(s)
cultura(s) dos sujeitos envolvidos nesse processo. Dessa maneira, entende-se que a escola é um
lugar de entrecruzamento cultural. Este trabalho foi desenvolvido a partir de estudos e participação
no Kairós - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Trabalho e Políticas Públicas, no âmbito
da UFSM, que desenvolve projetos com o apoio PIBIC/Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e
FIPE Júnior da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), além de ser Pólo/RS do
HISTEDBR e integrar esta rede de pesquisa. Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo que tem
por procedimento a pesquisa bibliográfica. Com base na pesquisa realizada, destaca-se a
necessidade de romper com a educação atualmente vigente na escola, pois esta continua atendendo
aos interesses da classe dominante através do discurso pedagógico dos professores com marcas de
autoritarismo, em conformidade com a regulação das políticas públicas que delimitam a produção
dos discursos, tornando a escola um lugar de assimilação da cultura privilegiada.
Palavras-chave: Trabalho. Cultura. Políticas Públicas. Discurso Pedagógico.
Introdução
8971
Percebe-se, neste início de século e de milênio, um tempo de profundas contradições
entre valores, crenças e comportamentos, tempo em que se observa uma crise da modernidade
que se reflete nas mais diversas áreas do conhecimento, desestruturando assim, as relações
humanas. Não obstante, a dominação dos meios de produção e de comunicação pela
burguesia subjugou às demais classes sociais, repercutindo em um processo de reificação1: o
ser humano torna-se objeto, um bem de mercado explorado através de sua força de trabalho; e
os meios de produção parecem adquirir valor vital nas relações sociais, impondo o estilo de
vida capitalista, limitando e homogeneizando a diversidade cultural dos povos.
Nesse contexto de subordinação ao capitalismo, insere-se a escola atual, alicerçada nas
políticas públicas educacionais que se apresentam teoricamente democráticas, porém tornam e
escola burocratizante e tecnicista, a serviço da sociedade detentora do capital. No que diz
respeito ao trabalho do professor (enquanto produção da aula mediada por um discurso),
percebe-se uma inércia profissional, uma postura de submissão e conformismo às políticas
educacionais, atendendo-se assim, aos interesses da classe dominante. No que diz respeito ao
espaço - tempo da aula, o que se observa é a produção de um discurso autoritário por parte
do professor, a fim de que se mantenha a ordem e a disciplina em sala de aula. Assim sendo, o
professor permanece reproduzindo uma relação autoritária com os estudantes: o professor
como detentor do saber e os estudantes aqueles que nada sabem.
É preciso explicitar, inicialmente, o uso feito das categorias trabalho e cultura, com o
propósito de delimitar as bases a partir das quais é organizado o texto.
Segundo Ferreira, “trabalho é toda a ação humana no meio, transformando-o em
acordo com as demandas e os anseios. É essencialmente de caráter ativo e visa ao alcance de
um objetivo”. Trata-se de uma atividade que exige uma demanda de esforço, tempo,
dedicação e conhecimento a fim de que se produza um resultado.
Marx em seus estudos filosóficos, concebe o trabalho como a “essência do ser
humano”, para ele as ações humanas relacionam-se com o trabalho, e através dele surgem as
relações sociais. Da mesma forma, é pelo trabalho que se compreende a história da
humanidade, pois cada ser humano e cada formação societária constrói sua historicidade, na
medida em que produz, através do trabalho. Marx (1968), relendo a relação entre capitalistas
1
Reificar traduzido à letra é transformar, por uma operação mental , conceitos abstratos em realidades
concretas ou objetos. No caso do Marxismo o conceito abstrato é uma sociedade pacífica, democrática e sem
classes. A operação mental seria como aplicar esses ideais utópicos à realidade, ou seja, como é que
economicamente, militarmente, socialmente e politicamente se pode transformar uma sociedade real numa
sociedade marxista.
8972
e assalariados, revendo diversas etapas da história da humanidade, mostrou que as formações
societárias e os discursos são permeados por uma ideologia que sustenta a dominação de uma
classe social sobre outras, tendo como fundo as relações de trabalho. Dada a importância de
seus escritos para a compreensão das relações econômicas e sociais, é preciso considerar,
inicialmente, o conceito de trabalho que apresenta em sua obra O Capital:
(...) trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em
que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu
intercâmbio material com a natureza. (…) Põe em movimento as forças naturais de
seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da
natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. (MARX, 1968, p. 202)
Nesta perspectiva social proposta por Marx, entende-se que o trabalho dos professores é a
produção do conhecimento sua e dos estudantes, continuamente, também através da aula,
prática social que lhe é atribuída. Esta produção, que só acontece na interação mediada pela
linguagem, atribui forma ao discurso pedagógico que circula na escola, evidenciando assim,
que tipo de educação se realiza na escola. Orlandi refere-se ao discurso pedagógico como um
“discurso circular, isto é, um discurso institucionalizado sobre as coisas, que se afirma ,
garantindo a instituição em que se origina e para qual tende a escola”. (2001, p. 21).
Com base nesses pressupostos, para entender o trabalho dos professores, Ferreira
(2006) define que “os professores, constituídos por sua historicidade, pelos processos de
educação para a profissão, pelo desejo e pela relação que estabelecem com o conhecimento,
são sujeitos da ação pedagógica”, mesmo que sofram influências advindas das políticas que
regem a escola, esses profissionais são responsáveis pela produção do discurso que proferem,
e é através dele que irão definir a educação que praticam.
Cabe destacar ainda, que é na escola e através dela que se mediam os significados,
sentimentos, condutas da comunidade social e o desenvolvimento particular das novas
gerações. Sabe-se que o trabalho do professor tem por lócus o ambiente escolar, e devido à
pluralidade cultural manifestada nesse âmbito, considera-se necessária uma abordagem sobre
o conceito de cultura na escola. A esse respeito, Pérez Gómez discorre, em sua obra A cultura
escolar na sociedade neoliberal, sobre a diversidade entre as manifestações culturais
presentes no cotidiano escolar. Para isso, o autor afirma ser “imprescindível entender a escola
como um cruzamento de culturas que provoca tensões, aberturas, restrições e contrastes na
construção de significados” (2001, p.12). Segundo o autor a cultura é definida como
8973
(...) um conjunto de significados, expectativas e comportamentos compartilhados
por um determinado grupo social que facilita e ordena, limita e potencia os
intercâmbios sociais, as produções simbólicas e materiais e as realizações
individuais e coletivas dentro de um marco espacial e temporal determinado.
(GÓMEZ, 2001, p.12)
Considerando a escola um local de cruzamento de culturas, Pérez Gómez irá discorrer
na referida obra, sobre como se articulam as culturas que estão presentes na escola2, as quais
interferem e influenciam o trabalho do professor. Para o autor, essas culturas são criadas e
desenvolvidas de acordo com os costumes, hábitos, rotinas e as interações entre os indivíduos
que constituem o contexto escolar. Dessa maneira, a heterogeneidade e a singularidade desses
contextos são confirmadas e concebidas como importantes ao se discernir o trabalho dos
professores.
Além disso, o autor afirma que, a cultura, por ser resultado da construção social,
depende das condições materiais, sociais e espirituais que dominam um espaço e um tempo,
definindo assim as realizações individuais e coletivas no âmbito escolar, por isso, é
imprescindível o desenvolvimento de uma estrutura de participação do aluno no
entrecruzamento dos diversos tipos de cultura na sala de aula e na escola. Esse
desenvolvimento pode ser provocado pelo ensino que Pérez Gómez denomina de ensino
educativo. Para ele, ensino educativo é aquele que acontece como processo de comunicação
humana com a intencionalidade de provocar a reconstrução consciente e o enriquecimento das
formas de pensar, sentir e atuar incorporadas pelo estudante em sua cultura experiencial.
No que diz respeito ao ensino educativo enquanto modalidade de ensino socialmente
significativa, pois insere nesse processo a cultura empírica dos estudantes, cabe ainda
salientar a importância da produção do discurso dos professores a fim de que se garanta a
almejada produção do conhecimento que atue funcionalmente para, de acordo com as
palavras de Pérez Gómez,
(...) discernir os caminhos subterrâneos, tácitos e inconscientes, os propósitos
pretendidos e aos não-previstos, os interesses e expectativas do professor e dos
estudantes, à direção vertical da comunicação entre docente e estudante e à direção
horizontal da comunicação entre os indivíduos e grupo de estudantes, o currículo
oficial e o currículo oculto, às tarefas definidas como legítimas e aos projetos e
2
a saber, a cultura crítica, a cultura acadêmica, a cultura social,a cultura institucional, a cultura docente, a cultura experencial,
entre outras.
8974
resistências não-confessados, aos papéis e aos estereótipos latentes. ( GÓMEZ,
2001, p. 284).
Acredita-se ser este o ponto de partida, o fato de o professor posicionar-se frente à
manipulação do discurso orientado pelas classes dominantes, valorizando a pluralidade
cultural presente na escola como instrumento de inclusão das diferenças e produção do
conhecimento. Obviamente não se trata de um trabalho fácil, pois exige uma busca contínua
através da pesquisa, do estudo, do posicionamento crítico frente ao que se impõe através das
políticas na escola, a fim de que efetivamente se rompa com a proposta manipuladora que
insiste em propor a aquisição de uma cultura homogênea nas escolas.
Metodologia
Escolheu-se a pesquisa qualitativa, que se apresenta como uma abordagem própria
para os estudos em educação, tendo em vista que propicia uma maior interação entre
pesquisadores e os temas abordados, na medida em que não se pauta por um rigor cartesiano
absoluto. Ao contrário, permite ser modificada no percurso da pesquisa, garantindo que as
ações dos sujeitos observados tenham primazia no desenvolvimento da pesquisa.
O artigo foi elaborado com base em um procedimento de pesquisa bibliográfica,
entendido como uma sistemática de produção de conhecimento. Trata-se de uma análise do
trabalho dos professores no tempo- espaço da aula que é entendido como produção de um
discurso pedagógico. O interesse pelo desenvolvimento da presente pesquisa surgiu de
questionamentos surgidos durante discussões e estudos desenvolvidos no Kairós (Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Educação, Trabalho e Políticas Públicas, no âmbito da UFSM),
além de observações cotidianas do ambiente escolar de uma escola pública municipal, em
Restinga Seca, interior do estado do Rio Grande do Sul, local de trabalho de uma das autoras
do presente texto.
Pretende-se com este estudo, encaminhar uma reflexão crítica sobre a produção do
discurso dos professores no ambiente escolar, o qual, na maioria das vezes, é elaborado de
maneira reguladora, no intuito de impor a aquisição da cultura privilegiada, ignorando a
diversidade cultural dos estudantes, bem como acaba por atender aos interesses da classe
dominante. Para isso, criou-se uma seqüência de fases, quais sejam: seleção do material
mediante o critério da abordagem do tema em consonância com a perspectiva teórica
8975
escolhida, centrada em estudos relativos ao trabalho e cultura; leitura inicial com fichamento
de idéias centrais; análise das categorias (palavras-chave) no material fichado;
aprofundamento dos temas em novas leituras; e, por último, sistematização entremeando os
estudos realizados com as descobertas e análises dos autores.
Como técnica de análise dos dados, utilizou-se a Análise de Conteúdo, com base em
Bardin (2006). Isso exigiu uma elaboração de categorias a priori e a análise delas lidas no
material bibliográfico, tal metodologia visou a impregnar nesta investigação um rigor
científico marcado pela atenção aos detalhes, análise acurada das categorias e sistematização
embasada nos estudos realizados até então.
A produção do discurso pedagógico no “entrecruzamento cultural” da escola
A palavra enquanto instrumento da consciência funciona como elemento essencial que
acompanha toda a criação ideológica. Nesse sentido, a língua, por sua vez, irá representar a
expressão das relações culturais e das lutas sociais. A palavra através da língua veicula a
ideologia, já a língua serve de instrumento material para que se efetive a luta social.
Por elaborar-se através do uso do signo ideológico, portanto não neutro, a língua
carrega em si o poder da manipulação ou da condução à reflexão crítica, em outras palavras,
seu poder simbólico subjuga ou liberta seus usuários. Bakhtin, em sua obra Marxismo e
filosofia da linguagem, expõe a necessidade de uma abordagem marxista da filosofia da
linguagem, nessa perspectiva as relações entre sociedade e linguagem são colocadas sob o
signo da dialética3, do signo enquanto efeito das estruturas sociais e não individuais. Segundo
ele, “o signo é por natureza, vivo e imóvel, plurivalente; a classe dominante tem interesse em
torná-lo monovalente”. (1995, p.15)
Além disso, Bakhtin acredita que a filosofia marxista deve colocar como base de sua
doutrina a enunciação enquanto realidade da língua e como estrutura sócio-ideológica:
3
A dialética marxista, postula que as leis do pensamento correspondem às leis da realidade. A dialética
não é só pensamento: é pensamento e realidade a um só tempo. Mas, a matéria e seu conteúdo histórico ditam a
dialética do marxismo: a realidade é contraditória com o pensamento dialético. A contradição dialética não é
apenas contradição externa, mas unidade das contradições, identidade: "a dialética é ciência que mostra como as
contradições podem ser concretamente idênticas, como passam uma na outra, mostrando também porque a razão
não deve tomar essas contradições como coisas mortas, petrificadas, mas como coisas vivas, móveis, lutando
uma contra a outra em e através de sua luta." (Henri Lefebvre, Lógica formal/ Lógica dialética, trad. Carlos N.
Coutinho, 1979, p. 192).
8976
A enunciação, compreendida como uma réplica do diálogo social, é a unidade de
base da língua. (...) Ela é de natureza social, portanto ideológica, ela não existe fora
de um contexto social, já que cada locutor tem um “horizonte social”. Há sempre um
interlocutor, ao menos em potencial. O locutor pensa e se exprime para um auditório
social bem definido. (...) O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados.
(BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1195, p. 16)
Segundo M. Buber4, a base do princípio dialógico é a filosofia do diálogo, que
afirmando a palavra como dialógica, estabelece a relação entre os seres humanos e funda a
experiência da interação. Nessa concepção, o ser humano não é um ser individual, mas uma
relação dialógica entre eu-tu. O tu é a condição de existência do eu, pois a realidade do
homem é a realidade da diferença entre um eu e um tu. O eu não existe individualmente,
senão como abertura para o outro. Origina-se daí a constituição do par fundador eu-outro.
Para Bakhtin, o fundamento de toda a linguagem é o dialogismo, essa relação com o
outro. “A vida é dialógica por natureza, viver significa participar de um diálogo” (1995: 184).
Todo enunciado é apenas um elo de uma cadeia infinita de enunciados, um ponto de encontro
entre opiniões e visões de mundo. O filósofo russo acrescenta ainda que a interação social
ocorre entre três participantes: o falante, o ouvinte e o tema do discurso.
Nessa perspectiva dialógica, tanto o professor como o estudante podem assumir
simultaneamente o função de ouvinte e/ou de falante. O tema do discurso deve atender à
pluralidade cultural da escola, apresentando-se como a própria aula, ou seja, o próprio
trabalho do professor, a fim de desenvolver uma aprendizagem significativa entre os sujeitos
participantes deste processo, a saber, os estudantes e o professor.
Nessa perspectiva, acredita-se que uma reformulação do discurso que os professores
elaboram seja imprescindível para possibilitar uma abordagem dialógica em sala de aula que
seja capaz de abarcar a diversidade cultural dos sujeitos envolvidos nesse processo. O
objetivo central do presente estudo é conduzir a uma reflexão crítica sobre a produção do
discurso pedagógico em sala de aula, a fim de que se encaminhe a uma ruptura com o modelo
de educação vigente na maioria das escolas brasileiras.
Entendendo-se a relação intrínseca entre discurso e trabalho do professor, conclui-se
que o trabalho em si enquanto produção da aula mediada pela linguagem, é o que Pey
denomina discurso pedagógico. Outrossim, essa concepção estende-se à questão cultural
abordada por Pérez Gómez, a qual segundo ele se entrecruza na escola. Todavia, o que se
4
Um dos principais representantes da filosofia do diálogo foi o filósofo austríaco Martin Buber, citado
por Todorov (1981) como influência para o pensamento de Bakhtin sobre dialogismo.
8977
percebe, na escola organizada pelas políticas educacionais atuais, é uma assimilação da
cultura privilegiada, que exclui a manifestação das demais culturas. E é diante desse contexto
de tensão nas relações sócio-culturais que se encontra a escola, não há como se pensar em
uma reformulação na produção dos discursos dos professores sem um posicionamento diante
do desafio de construção de novos marcos interculturais que sejam mais amplos e flexíveis,
que incluam a diversidade, a diferença, o novo. Defende-se o ponto de vista de que discurso
pedagógico deve abarcar a heterogeneidade dos sujeitos envolvidos no processo educativo
para poder romper com os ditos da classe dominante manifestos nas políticas que organizam a
escola.
Diante desta realidade estão os professores, como sujeitos responsáveis pela abertura e
valorização do entrecruzamento cultural que perpassa a escola, proporcionando através do
exercício de sua profissão, a integração de valores, idéias, tradições, costumes e aspirações
que, de fato, assumam a diversidade, a pluralidade, a reflexão crítica e a tolerância. Há que se
pensar no enriquecimento dos estudantes enquanto seres sociais, constituídos como sujeitos
de suas experiências, pensamentos, desejos e afetos. Segundo Pérez Gómez,
(...) toda vez que tal enriquecimento do sujeito requer estruturas democráticas que
favoreçam e estimulem os intercâmbios culturais mais diversificados, a
reivindicação do sujeito supõe, ao mesmo tempo, a liberdade pessoal e o
desenvolvimento da comunidade. (GÓMEZ, 2001, p. 77).
Rompendo com os interesses da classe dominante através do exercício da reflexão crítica
por parte dos professores
O fato do enriquecimento do sujeito requerer estruturas democráticas remete a
estrutura das políticas que organizam a escola. A política educacional brasileira vincula-se ao
processo de reprodução e acumulação do capital. O processo de financiamento externo
engendra relações e determinações econômicas, políticas, ideológicas, nacionais e
internacionais, alimentando as trocas comerciais e o processo de acumulação do capital.
Nesse contexto, encontra-se a gestão escolar, operando dentro de um universo
complexo, pois as políticas educacionais são desenvolvidas com o objetivo de organizar a
escola, entretanto acabam regulando seu funcionamento, atendendo implicitamente o interesse
da classe dominante, tornando a escola um ambiente politicamente hierarquizado, através da
8978
produção dos discursos autoritários e burocráticos, que nada tem a ver com a produção do
conhecimento, distanciando-se, assim, de uma das funções educativas básicas da escola.
Entretanto, quando se questiona sobre o(s) sentido(s) da escola, como, por exemplo,
suas funções social e educativa, os próprios professores, alienados, isolados e desacreditados
em relação ao desenvolvimento do próprio trabalho, não conseguem definir uma resposta que
dê conta da função educativa das aulas que produzem. Primeiramente, isso se deve ao fato de
o professor não ter conhecimento sobre a ciência5 que pratica. Desde a década de 80 os
professores assumiram-se como “empregados” municipais e/ou estaduais, tornaram-se meros
cumpridores de tarefas. O caráter meramente informativo das aulas, não deixa espaço para
que efetivamente se produza conhecimento. O professor, na maioria das vezes, reproduz
mecanicamente o que está no livro didático de maneira homogênea, não questiona, não
proporciona o exercício da reflexão crítica, nem ao menos valoriza a pluralidade dos sujeitos
representada por várias culturas locais que se entrecruzam e constituem a identidade do grupo
escolar.
Nessa concepção de “educação bancária”6, os estudantes, por sua vez, não produzem
conhecimento, pois os temas abordados em aula não os interessam, não tem relação com seu
cotidiano, não fazem parte da cultura que permeia as suas relações de interação social. Nesse
processo, esses sujeitos acabam sendo rotulados por desinteressados, indisciplinados,
rebeldes. Sendo que os responsáveis por esses comportamentos são os próprios professores
que negligenciam a reflexão crítica da educação que praticam, desvalorizando, assim o
próprio trabalho que desenvolvem enquanto profissionais da educação.
Além disso, perpetua-se a ênfase na assimilação da cultura privilegiada, seus
conhecimentos e seus métodos, ignorando as peculiaridades e diferenças do desenvolvimento
individual e cultural, impondo-se a aquisição homogênea, restringindo assim, o objetivo do
ensino ao conhecimento que oculta as contradições, os conflitos na história do pensar e do
fazer, bem como não valoriza as intuições, as emoções e sensibilidades que perpassam a vida
desses estudantes.
5
Precisamente porque a pedagogia viabiliza uma práxis educativa, a práxis pedagógica será o
exercício do fazer científico da pedagogia sobre a prática educativa.
6
Segundo Paulo Freire, trata-se de uma concepção de educação tradicional e tecnicista que
identifica a educação como um depósito bancário, onde o aluno nada sabe e o professor é o detentor
do saber.
8979
Nessa perspectiva, não há como concordar com Pérez Gómez no que diz respeito à
existência de um entrecruzamento cultural na escola. O discurso pedagógico dos professores é
mediado por uma linguagem autoritária que reproduz o interesse na aquisição de uma cultura
homogênea, subordinando-se assim, aos interesses da classe dominante, expressos
implicitamente através das políticas educacionais vigentes na escola brasileira.
Considerações finais
A necessidade de uma reformulação do discurso pedagógico é urgente, não há como
abarcar a diversidade cultural presente na escola através do discurso que circula nela, tanto
por parte dos seus gestores, como por parte dos professores. Sabe-se que as políticas são
desenvolvidas para organizar a escola, mas o que acontece de fato é uma regulação que reflete
principalmente na gestão escolar, atingindo o trabalho do professor consequentemente.
Contudo, acredita-se que o tempo-espaço destinado à aula é um lugar privilegiado para
romper com essa regulação. O trabalho do professor enquanto produção de um discurso
pedagógico, deve fundamentar-se na produção do conhecimento sua e de seus estudantes, a
partir do exercício da autonomia profissional durante a produção de sua aula, incluindo-se
nesse processo os intercâmbios culturais entre esses sujeitos em lugar e tempo real, ou seja, na
escola que representa a prática social que se atribui aos principais participantes da vida
escolar: professoras, professores e estudantes.
Dessa forma, poder-se-á atribuir um sentido verdadeiramente social à educação, um
primeiro passo para a transformação que tanto se almeja na escola. Todavia, deve-se salientar
que não se trata de um trabalho simplista, pois requer antes de tudo, comprometimento e
posicionamento crítico por parte dos profissionais da educação em relação à ação pedagógica
que praticam, o que exigirá desses profissionais estudo, pesquisa e ação.
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