Psicose Puerperal: vicissitude de um amor?

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IV CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL
O AMOR & SEUS TRANSTORNOS
Psicose Puerperal: vicissitude de um amor?
Paula Land Curi1
Resumo:
Este trabalho objetiva refletir sobre a psicose puerperal, um transtorno pouco estudado, raro,
porém exuberante, e que remete a uma série de questões sobre o sujeito. A pergunta: “Que
tipo de mãe é esta?” ressoa sempre que a mídia explora um suposto caso e o campo jurídico o
legitima, ratificando a influência do estado puerperal no psiquismo da mãe. Alguns autores
sinalizam que a diferenciação que se dá, com o parto, entre o bebê e sua mãe, gera nesta uma
enorme dificuldade: de reconhecer o filho como ser diferenciado. A relação de simbiose
estaria na base da psicose puerperal, havendo então uma intorelabilidade a essa separação
(concreta) e, conseqüentemente, a assunção do bebê a uma posição de objeto agressivo e
persecutório. Racamier (1964), por sua vez, representa a psicose puerperal como um
abortamento dos processos psíquicos da maternidade e propõe, em consonância com autores
de uma época, que o aspecto central da patologia não remete apenas a relação de uma mãe
com o seu filho, mas com a sua própria mãe e com toda a sua vivência enquanto filha.
Poderíamos pensar então na psicose puerperal como uma vicissitude de um amor?
Palavras-chave: psicose puerperal, maternidade, relação mãe-filho, sujeito.
*****
É um dia de fim de semana como outro qualquer na maternidade, alguns partos,
algumas curetas, algumas intercorrências, nem sempre tão graves como aquela que se deu
com Maria.
Como uma moça qualquer, entrou na unidade de saúde através da admissão emergência obstétrica – pois estava parindo e iria ser internada naquele momento... Correria,
confusão, alegria. Nasce uma linda menina - Joana.
Como Maria e Joana estavam contaminadas com a espiroqueta treponema pallidum,
causadora da sífilis, mãe e filha precisariam ficar por mais tempo. Dez dias. Este era o tempo
necessário para fazer o tratamento endovenoso para sífilis e aguardar os resultados dos novos
exames laboratoriais.
Num primeiro momento, Maria parecia como outra mãe qualquer. Com perguntas
sobre como cuidar, com vontade de estar com sua filha, embora sozinha e sem receber visitas.
1
Doutoranda da PUC-SP, Núcleo de Psicanálise, Laboratório de Psicopatologia Fundamental; Gestora de
curso e professora da Universidade Salgado de Oliveira, Campus Niterói; Mestre em Pesquisa e Clínica em
Psicanálise (UERJ); Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Endereço: Trav. Francisco
Dutra, 163/701 – Icaraí, Niterói – Rio de Janeiro. CEP: 24.220-150
2
Mas, conforme os dias iam passando, seu humor também ia se alterando. Maria estava ficando
agitada e irritada.
Deambulava dia e noite, não conseguia mais dormir. Já falava com Joana como se
estivesse dando-lhe broncas, chegando a sacudir, xingar e mal tratá-la. A jovem mulher
começou a limpar sua criança, a toda hora. Estava sempre a trocar-lhe as fraldas.
Dizia que sua filha não podia ter a vagina tão cheia de bichos como estava
acontecendo. Era como justificava aquele comportamento bizarro as colegas da enfermaria,
que se assustaram ao perceberem aquela súbita mudança de humor e comportamento. “O que
será que se deu com Maria?”
Ontem, era a mãe mais carinhosa do mundo, hoje parecia uma louca, pois seu
comportamento era absolutamente bizarro. Maria estava ensandecida, limpava a vagina de
Joana repetidamente, dizendo que ali estavam os bichos. Joana não parava de chorar.
As outras puérperas internadas comunicaram a enfermagem que temiam que Maria
viesse a machucar Joana e, quem sabe, inclusive, seus bebês. Tinham receios de estarem
correndo risco ao lado de Maria, quem agora se mostrava nitidamente com problemas,
possivelmente mentais.
A enfermagem “cumpre” o seu papel de zelar pelo bem estar do recém-nato e separa a
mãe do bebê, utilizando a unidade neonatal como refúgio. Maria, por conta dos tantos maustratos impetrados a Joana, não iria mais poder ficar em companhia de sua filha. Mãe e filha só
ficariam juntas quando monitoradas por toda uma equipe de assistência. Ou seja, Maria tinha
que “se comportar” para poder estar com Joana.
Chega então uma solicitação para o serviço de assistência social, logo na segunda pela
manhã: Maria, além de não ter família, não está apta a ser mãe. É má, agressiva e, muitas
vezes, sem controle. Pede-se também a interferência do Conselho Tutelar, através de
notificação, para que “punissem” esta mãe tão vil, suspendendo-lhe o poder familiar.
Maria apenas falava de animais que tinham a infestado, assim como a sua filha. Falava
de coisas que só ela via... Dizia-se sem rede social de apoio (não tinha nem família nem
companheiro).
Acabou por receber uma visita do serviço de saúde mental, na figura de uma psicóloga
que não pode coletar muito de sua história. No momento da entrevista, Maria foi pouco
cooperativa, gritava solicitando que tirassem os bichos de seus corpos. Sentia-os andando pela
sua pele e os via saindo da vagina de Joana. Por isso, tinha que limpar e limpar...
3
Seu pensamento estava desorganizado, dissociado, seu comportamento era bizarro,
estava totalmente desorientada. Sugeria estar vivendo uma desorientação delirante, estar em
franco surto psicótico, com delírios de infestação.
Enquanto as equipes temiam que ela pudesse fazer mal a si ou ao bebê, as outras mães
apavoravam-se com a idéia de que ela pudesse fazer mal a seus filhos. Assim, Maria foi
levada para uma avaliação psiquiátrica num hospital de emergência próximo a maternidade...
E, não mais voltou. Seu quadro era de uma emergência psiquiátrica. Foi internada com o CID
F53.1, psicose puerperal.
Por conta da gravidade de seu quadro, deveria ficar alguns dias pelo hospital
psiquiátrico, em tratamento. Quanto a Joana, precisava de alguém que pudesse cuidá-la.
Surge, então, em meio de uma grande confusão, alguém que se dizia irmã de Maria e se
comprometia a “guardar” Joana. Inicia-se o processo judicial de instituição da guarda
provisória.
Mariana conta então que sua irmã veio de outro Estado, grávida de pouco, e que não
sabia ao certo quem seria o pai do RN. Estava morando em sua casa quando saiu para ir à casa
de outros parentes e não voltou mais. Passado uns dias, resolveu ligar para saber dela e
ninguém a havia visto. Como sabia que estava no fim da gestação, achou melhor, antes de ir à
polícia, procurar nas maternidades próximas a sua residência. Foi como chegou até a unidade.
Maria era jovem, primípara e, possivelmente, primagesta, sem qualquer história
pregressa conhecida de doença mental. Tinha vindo para o Rio para tentar uma nova vida,
com seu bebê ainda em útero, num lugar supostamente com mais oportunidades.
Assim o caso se desdobrou... Para Maria, a internação se fez necessária. Para Joana, a
separação precoce de sua mãe. Para tia, um serzinho a cuidar enquanto sua irmã se tratava.
Para as equipes, a surpresa do quadro, tão radical, exuberante e incomum...
*****
Numa maternidade a internação é, normalmente, rápida, levando apenas cerca de 48h.
As ações são pontuais e, na maioria das vezes, voltadas ao par mãe-bebê. Para estar em
condições de alta, o recém nascido precisa estar bem, não apresentando nenhuma evidência de
alguma disfunção/alteração física. Do mesmo modo, sua mãe, quem deverá estar não só bem,
física e psiquicamente, mas também apta a cuidar...
O caso de Maria nos remete a pensar nas relações possíveis entre a psicose e a
maternidade, articuladas na questão que intitula este trabalho: “Psicose puerperal: vicissitude
de um amor?”.
4
Descrita sob o nome de transtornos mentais e comportamentais associadas ao
puerpério, não classificados em outra parte, sob o código F53.1, no CID-10, a psicose
puerperal (anteriormente esquizofrenia do pós-parto) é de rara incidência. No entanto,
apresenta-se com exuberância, não passando despercebida pelos agentes de saúde.
As estatísticas revelam que tem maior ocorrência entre as primíparas 2, o que nos leva a
interrogar o que há de específico no parto, que faz com que aquilo que anteriormente estava
estabilizado irrompa num surto psicótico. Ou melhor: poderia a maternidade ser um elemento
desestabilizador da psicose? Que lugar tem um filho na economia psíquica de uma mulher?
*****
O puerpério é o período de ajustamento após a gravidez e o parto, quando as mudanças
anatômicas e fisiológicas da gravidez são revertidas e o corpo retorna ao estado normal de não
gravidez.
De acordo com Ministério da Saúde (2001), ele é o período do ciclo grávidopuerperal em que as modificações locais e sistêmicas, provocadas pela gravidez e parto,
retomam a situação do estado pré-gravídico.
Inicia-se duas horas após a saída da placenta e tem um término imprevisto,
dependendo do processo de amamentação e do retorno completo do ciclo menstrual. Como
algumas modificações persistem durante a lactância, o término do período pós-parto fica
pouco preciso, podendo ser estendido até final do primeiro ano de vida do bebê.
Ainda segundo o Ministério (2001), em suas Normas Técnicas, as transformações que
se iniciam no puerpério dizem respeito não somente aos aspectos endócrino e genital, mas sim
a mulher como um todo, pois, “a mulher neste momento deve ser vista como um ser integral,
não excluindo seu componente psíquico” (p. 175). Assim sendo, poderíamos salientar que o
puerpério pode ser também considerado um estado de “ajustamento” psíquico da mulher.
Nesse mesmo Manual, chama-se atenção para as alterações de humor por vezes
presentes nesse momento, justificando a necessidade de observação mais sistemática do
estado psicológico da mulher. Salienta também que os sintomas de uma psicose puerperal
devem ser precocemente identificados. Contudo, resta-nos perguntar: o que é a psicose
puerperal? Que relação este transtorno tem com a maternidade? Isto não aparece no Manual.
2
Primípara é a mulher que tem o primeiro parto.
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Historicamente, o puerpério é reconhecido como um momento crítico e de alto risco
de adoecimento mental/emocional para as mulheres, especialmente para as primíparas.
Alguns autores chegam a considerá-lo o momento mais crítico da vida de uma mulher.
Desde o tempo de Hipócrates, a relação entre o período pós-parto e o sofrimento
mental havia sido notada. Ele foi o primeiro a descrever os transtornos mentais relacionados
ao parto, neste período de readaptação corporal chamado puerpério.
No entanto, foi somente com Jean Étienne Dominique Esquirol, com seu seguidor
Louis Marcoduzir, e, posteriormente, com Louis Marcé que a psicose puerperal realmente
ganhou forma.
Ainda no século XIX, dada a sua gravidade e exuberância fenomenológica, esses
autores centraram-se parte de seus estudos aos chamados transtornos mentais do puerpério,
culminando na publicação, em 1858, por Marcoduzir de um livro: Traité de la folie dês
Femmes Encientes, seguindo as teses de Esquirol, seu mentor.
Alguns autores modernos, como O´Hara, Zekoski et al. (1990), seguem as colocações
dos autores acima citados apontando que o período puerperal é um momento em que as
mulheres têm maior vulnerabilidade para os transtornos de humor. Apesar de salientarem a
prevalência da depressão pós-parto, chamam atenção para a possibilidade de irrupção de uma
psicose puerperal.
Kendell, Chalms e al. (1987) corroboram os demais autores e completam dizendo que,
neste momento, há um risco maior do que em qualquer outro tempo de suas vidas das
mulheres serem admitidas em hospitais psiquiátricos, sugerindo assim o aparecimento de um
quadro mais grave - uma psicose abrupta cuja intervenção, muitas vezes sob forma de
internação, se faz necessária e urgente.
Segundo eles, aproximadamente 12,5 % das internações psiquiátricas em mulheres
ocorrem no primeiro mês após o parto. Embora incomum, tendo em vista as estatísticas que
sugerem acometer apenas cerca de 0.1 a 0.2 % das parturientes, a psicose puerperal constituise como uma emergência médica, com riscos grandes para mãe e bebê, em virtude das
características psicóticas, requerendo hospitalização para tratamento.
Dada a exuberância de sintomas produtivos positivos e alterações do comportamento,
a psicose puerperal não passa despercebida e convoca a uma série de questões médicas e
jurídicas, pois, devido ao surgimento dos sintomas psicóticos não é incomum a mãe
negligenciar seu filho ou mesmo causar-lhe mal, obedecendo às alucinações e delírios, por
vezes presentes.
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É neste sentido que ouvimos falar que os transtornos que ocorrem durante o período
puerperal são motivos de grandes controvérsias médicas e jurídicas. As questões jurídicas que
se colocam dizem respeito a como se encaminhará a vida da mãe, do RN e do par mãe-bebê,
uma vez que são todos eles atravessados pela doença. Que tipo de relação será possível se
constituir entre mãe e filho?
Dentre as controvérsias médicas temos alguns pontos de discussão, pois, não se tem
clareza se a psicose puerperal seria uma entidade clínica distinta ou uma doença já
caracterizada, estável, com ocorrência puerperal. Ou seja: seria a psicose puerperal uma
psicose reativa a maternidade, ao meio, a desadaptação própria deste período? Ou seria o
parto apenas o elemento desestabilizador de uma psicose instalada, porém ainda não
deflagrada? Questões a pesquisar...
***
Eugen Bleuler, psiquiatra contemporâneo a Freud, que muito trabalhou com o que
chamou de “Grupo das Esquizofrenias”, citou em seu Tratado de Psiquiatria, no capítulo
sobre as causas das perturbações psíquicas, um pequeno parágrafo que trata do puerpério.
Salientou que na psiquiatria, anteriormente, costumava-se considerar o puerpério, assim como
a gravidez, a menstruação e o climatério, uma causa autônoma de doença. Mas, ele aponta:
“contudo, não estão ligados a nenhuma forma especifica de psicose e, no
máximo, constituem uma disposição para algumas perturbações psíquicas
isoladas (especialmente alteração de humor). Estas disposições são, em
parte, causadas psicologicamente, em parte endocrinamente.” (Bleuler,1985;
p.92).
Bleuer não faz nenhuma articulação com as esquizofrenias, por ele estudadas, não
considera propriamente uma psicose, mas salienta a presença de alteração de humor. Já para
Kaplan (1993), quando há uma psicose puerperal é porque há uma doença mental subjacente,
sendo mais comum o transtorno bipolar e menos comum a esquizofrenia.
Embasado em estudos psicodinâmicos, Kaplan (idem) aponta para sentimentos
conflitantes da mulher sobre sua experiência de vir a ser mãe, o que poderia justificar a
maioria dos episódios ocorrerem com as primíparas. Contudo, não descarta a possibilidade de
risco aumentado para gravidezes subseqüentes.
A principal característica deste transtorno, segundo Kaplan (idem), é a associação ao
período pós-parto, de alterações de humor, particularmente depressão, e delírios ou
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alucinações com conteúdos relacionados ao bebê e a maternidade. Como os demais autores
citados, ele aponta para a gravidade do caso, salientando que esta patologia é uma emergência
psiquiátrica.
Sendo mais específico, Henri Ey, no capítulo V do Manual de Psiquiatria, descreve as
patologias psiquiátricas da maternidade, descrevendo sob este nome “todos os acidentes
psiquiátricos da gravidez, do período puerperal e do abortamento” (p. 802). Deixa claro que
os quadros vão desde uma reação neurótica leve a uma psicose de maior duração e neles
interferem fatores diversos, assim como a própria maternidade, com todos os seus aspectos
biológicos e psicossociais.
Salienta o autor, citando Balduzzi (1951):
“o puerpério é uma oportunidade para se averiguar, de uma maneira talvez
mais clara que em todos os outros casos, o aspecto multidimensional da
etiologia das afecções psiquiátricas e a ausência de especificidade das
respostas clínicas a uma situação patogênica complexa que envolve o terreno
psicopuerperal”.
Embora o autor deixe claro que fatores etiológicos diversos incidam nos quadros
puerperais, o autor retoma as pesquisas de Helene Deutsch sobre a maternidade, apontando
para o papel fundamental que a gravidez e o parto têm na vida de uma mulher.
H. Deutsch, como se sabe, dedicou seus estudos a então chamada Psicologia da
Mulher, e não se cansou de dizer: “If delivery were purely psysiologic process, it would
probably be subject to far fewer individuals variations and cultural influences than it is”
(Deutsch, 1945; p. 202).
H. Deustch nos mostrou que as esquizofrenias assim como as depressões que surgem
no parto têm um conteúdo e caráter específico. Para poder afirmar isto, ela retomou Zilboorg
(1929), quem estudou a relação entre doença psicótica e dinamismo instintual aos processos
da psicologia do ego nas funções reprodutivas.
Zilboorg (idem) chegou à conclusão, segundo H. Deutsch (idem), que na
esquizofrenia pós-parto a criança tem para essas mulheres um valor ainda maior do que a
perda do órgão masculino. Eles entenderam que o nascimento seria uma castração e a reação
psicótica que se revelaria como o recrudescimento da inveja do pênis.
H. Ey, por sua vez, também apontou que durante a gravidez e o puerpério evidencia-se
maior parte dos distúrbios em mulheres. Para ele, os transtornos de caráter neurótico são mais
encontrados durante as gravidezes, enquanto os transtornos psicóticos aparecem no pós-parto.
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Tomando então Rancuel e cols.(1968), H. Ey aponta que os acidentes psicóticos são
raros durante os oito meses de gravidez, levantando a possibilidade de “esta parece exercer
um papel protetor no tocante às psicoses em evolução” (p.806 ).
Sobre as psicoses puerperais propriamente ditas, ele descreve que surge nos dias que
se seguem ao parto, com início brutal, com uma confusão súbita, sem período premonitório.
Tal estado confusional, que nomeia de polimorfo, pode ser de discreto, mas também pode
chegar ao estupor. Seu tratamento é passível de êxito, pois, pode-se fazer a mulher sair do
distúrbio. Entretanto, deixa a possibilidade de recaídas, de recidivas nas gestações posteriores.
A psicose puerperal não aparece como uma doença que acomete apenas as primíparas.
Sua proposta de tratamento é centrada naquilo que chama “psicologia da
maternidade”, sendo o aspecto central a relação não apenas da mãe com o seu filho, mas
também com a própria mãe e como toda sua vivência, seguindo não só orientações propostas
por Racamier e Leeks (1967), mas também anteriormente apontadas por Helene Deustch.
Segundo Racamier, apud H.Ey (p.811), a psicoterapia, para estes casos, consiste na
presença da criança próximo a sua mãe, que seja assegurado junto da mãe à relação com seu
filho, fazendo-a participar dos cuidados com o bebê. De preferência, haveria uma “mãe
substituta”, quem cuidaria do par mãe e filho, tendo em vista que destes cuidados primários se
aponta para a constituição de vida psíquica do bebê.
Alguns autores3 trataram o que hoje chamamos de psicose puerperal de esquizofrenia
pós- parto, talvez incitando a uma articulação entre a psicose puerperal e um estado psicótico
anterior. O fato é que a doença tem um início súbito, geralmente ocorre no puerpério tardio,
com sintomatologia que incluem: elação do humor ou depressão, comportamento
desorganizado, humor lábil, delírios e alucinações (Brockington, Cernik et al. 1981).
Apesar do prognóstico e a evolução serem favoráveis4, percebe-se que a maioria das
mulheres com psicose puerperal apresenta, posteriormente, Transtorno Bipolar do Humor, de
modo que estas mulheres ficam sob risco de desenvolver posteriormente um episódio nãopuerperal de Transtorno Afetivo Bipolar (Schopf, Bryois et al. 1984). Mas exatamente o que
isto quer dizer? A psicose puerperal abre a possibilidade de doenças psiquiátricas não
puerperais?
Voltamos às antigas discussões do século XIX... Pouco ainda se sabe sobre esta
patologia tão antiga no campo da psiquiatria. A literatura é escassa e o material encontrado
bastante repetitivo... Parece que como sua incidência é rara, ela não ocupa um lugar
3
4
Zilboorg, Henri Ey e Helene Deutsch.
Kumar and Robson, 1984; Kumar, 1994; Okano, Nomura et al, 1998; Robling, Paykel et al.,2000.
9
privilegiado no rol das patologias que causam intenso sofrimento mental para um sujeito-mãe
e, por inferência, a seu rebento. Como aponta H.Ey, citando Racamier (1964): Os distúrbios
representam “um abortamento dos processos psíquicos da maternidade” (p.811).
****
Sobre a maternidade e a psicose puerperal
Sabemos que o processo de concepção é ancorado no corpo biológico. Sabemos também
que não há como desconsiderar sua primazia, mas no campo da saúde reprodutiva, um
funcionamento anatomo-fisiológico perfeito não é garantia de sua realização.
Ao se tratar da concepção, algo enigmático se revela, pois, o corpo enquanto organismo
biológico é condição necessária, mas não suficiente para explicar os fenômenos da vida
sexual de uma mulher, pois são múltiplos os fatores que se conjugam em uma trama
simbólica, tornando um filho demandado mais do que um fruto de ato sexual.
Existem também, por outro lado, múltiplos fatores que se colocam como variáveis
intervenientes no processo de concepção, gravidez e parto... Fatores estes que, de acordo com
H. Deutsch, articulam-se a vida psíquica do sujeito- mãe.
Um filho está remetido a representações simbólicas constitutivas da subjetividade de
cada um dos sujeitos envolvidos em sua constituição, mesmo antes de sua concepção. Desde
que vem ao mundo, a criança já se encontra mergulhada num contexto que preexiste a ela. Ele
nasce em meio a uma história que a antecede, para qual o sujeito deve se dirigir e se
identificar. O fato de a criança já ser falada antes de nascer, estabelece demandas que
imprimirão demarcações em suas interpretações
Deste modo, não podemos dizer que a mulher, durante o período gravídico-puerperal,
não passará por crises próprias. Este período é de transição de filha à mãe, convocando
mudança de posições subjetivas, que estão marcadas por uma organização psíquica particulara sua história de sujeito - por processos psíquicos que marcarão sua relação com seu filho.
Se o corpo, para a psicanálise, não é um corpo natural, orgânico-biológico, mas um
corpo sexuado investido de desejo, ele [o corpo] sustenta não só um organismo biológico, mas
imprime nele [corpo biológico] suas marcas, tornando-se via de representações. Dentre essas
marcas... Aquelas de sua maternalização.
H. Deutsch (1945) enfatizou as raízes maternas da sexualidade feminina, que vão da
maternalização à maternalização, expressas pelas palavras de Zalcberg (2003):
10
“A história particular que cada menina escreve com sua mãe, ao longo de sua
infância e adolescência, costuma deixar na filha uma indiferenciação em face
da mãe em aspectos que tocam à sua identificação própria como mulher. É o
corpo e o desejo da mãe que se apresentam como mais fortes do que o dela”.
(p. 13)
O papel das identificações, e mais precisamente da identificação com a mãe, ao tratar da
vida sexual e reprodutiva de uma mulher, ganharam relevo na obra de H.Deutsch. O processo
desenvolvimento da fase pré-edípica e da ligação primária bastante arraigada a mãe, foi
também salientado por Freud (1932-33): “Em suma, fica-nos a impressão de que não
conseguimos entender as mulheres, a menos que valorizemos essa fase de vinculação préedipiana à mãe” (p. 148).
Esta identificação com a mãe, tão fundamental para a constituição de uma mulher,
apresenta-se como questão, pois, a menina quer ser amada por seu pai como sua mãe e, como
mãe, quer ter um filho dele. Este desejo pode ser realizado mais tarde quando suceder a troca
do objeto infantil - seu pai - por um homem. Otherwise, she runs into neurotic disturbances
of conception, of pregnancy or labor (Deutsch, 1933; p.193).
Seu propósito em sua Psicologia é explicar a vida psíquica de uma mulher normal com
conflitos também normais, baseada na idéia de que a saúde psíquica não é determinada pela
ausência de conflitos, mas pela capacidade e adequação de métodos para resolvê-los. A
mudança do ego de uma mulher grávida, que acompanha o processo de introjeção, é uma
nova edição de um processo que já aconteceu previamente, a criança tornou-se para a mãe a
encarnação de um ego ideal do passado.
Contudo, H. Deutsch aponta que suas observações nos torna incapazes de distinguir os
tipos característicos de mulheres, de acordo com sua reação mental frente à gravidez. Mas,
afirma que há um grande número de mulheres que vivem sua gravidez com um intenso
desconforto e depressão, ao passo que, algumas vivem com uma grande intensidade física e
psíquica.
Conclui (1924):
“Parece que a unidade mãe-filho não é completamente sem problemas como
supúnhamos. A harmonia original do estado primal, inaugurada no processo
de introjeção durante o ato sexual é logo atrapalhada pela manifestação de
ambivalência para com a criança no útero” (p.415).
A gestação, enquanto processo, permite à gestante, ao longo de suas mudanças
corporais e do crescimento do bebê elaborar os processos de transformação em seu psiquismo.
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Desta forma, o bebê, na maioria das vezes, é posto pela mãe grávida como sendo parte
integrante de seu corpo.
Contudo, o nascimento pode ser experenciado por ela como uma amputação, algo que
revele o impacto psíquico da separação de corpos. A partir de um o ato de separação física
entre mãe e filho, se produziria no inconsciente uma sensação de perda e de fragilidade. Sobre
o assunto, Langer (1986), comenta que:
“Para Helene Deutsch, o parto é a reverência mais exata que podemos ter de nosso
próprio trauma de nascimento. A mulher, identificada com seu filho, vive através
dele o temor de separar-se de sua mãe. Identifica-se com seu desamparo e sente não
poder continuar protegendo-a contra a vida. Sente que ela perde a mãe e vive o parto
como perda dele (p. 216)”.
Como uma conseqüência de um “mau puerpério”, de uma má experiência de separação,
pode-se surgir manifestações de um quadro de psicose puerperal. Segundo Trucharte e
Knijnik (2001), a característica principal desse está no fato da mãe não tolerar a presença do
seu filho.
“(...) a paciente não quer vê-lo, aterroriza-se com ele, permanece triste, afastada,
ausente, sofre insônia, inapetência, descuida-se da própria aparência, não se veste,
não se banha nem se penteia. Muitas vezes faz referência a alucinações auditivas, ou
exprime ideias delirantes.Tal estado pode remitir por si mesmo, ao cabo de alguns
dias, semanas ou meses. Na remissão, é muito importante a capacidade dos
familiares para tolerar, absorver e modificar a ansiedade que determina o quadro:
ansiedade de esvaziamento ou de castração (p. 77)”.
Ewald (2005) corrobora dizendo que na psicose puerperal há, por parte da mãe, uma intolerabilidade a separação feita e por não perceber no filho nascido, todo material fantasmático inconsciente investido ao longo da sua gestação. O bebê não se encaixa na fantasia inconsciente dessa genitora e, portanto, é por ela sentido como um objeto estranho, uma massa corporal que por vezes, assume uma posição de objeto agressivo e persecutório. A dor para essa
mulher não está na perda de um pedaço de si, mas no trauma frente aquela massa corporal estranha que ela não se percebe dando conta.
Maldonado (1984), explica que:
“(...) quando o bebê começa a diferenciar-se de modo mais marcante e apresentar
sinais mais evidentes de autonomia, surge, na mãe, a dificuldade de reconhecer o
filho como diferenciado de si mesma: ‘dá a impressão de que eu e ele somos uma
coisa só, às vezes sinto que eu sou ele, reajo como ele, e às vezes que ele é eu, sente
tudo exatamente como eu sinto’. O tratamento, nestes casos, pode ser difícil, pelo
medo de que a situação simbiótica se rompa, o que é expresso pelo medo de
‘invasão’(p.68).
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Para essa puérpera, a presença do filho a obriga reconhecer-se enquanto mãe e que,
portanto tem uma função a cumprir, a de encarnar alguém que já existiu. Wald (2005)
compreende que esse reconhecimento remete-a as omissões e as falhas no discurso de sua
própria genitora, do qual não apreendeu o desejo de ter um filho. Complementa a autora que
quando o desejo da maternidade incide a mulher não percebe seu filho enquanto objeto de seu
desejo, pois essa condição materna remete-a a singularidade do desejo de sua mãe. E como ela
– um dia – a criança agora se percebe num discurso falho de significação para sua existência.
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