VALE A PENA INSERIR UMA CLÁUSULA ARBITRAL NOS ESTATUTOS DE UMA SOCIEDADE? Sofia Vale Maio de 2014 A arbitragem é uma forma de resolução de litígios alternativa aos meios tradicionais, designadamente à resolução dos litígios nos tribunais judiciais. Mediante o recurso à arbitragem, as partes desavindas concordam em que o diferendo seja solucionado por árbitros por elas indicados, cuja decisão final é vinculativa para as partes e tem a força executiva das decisões dos tribunais judiciais. Importa, pois, analisar em que medida os litígios societários podem ser submetidos à arbitragem e se tal submissão pode ser determinada nos estatutos de uma sociedade comercial. O Direito Angolano não contém nenhuma regra que incida especificamente sobre a possibilidade de submeter os litígios societários à arbitragem. A resposta à questão da arbitrabilidade dos litígios societários depende, assim, do critério geral fixado no artigo 1.º, n.º 1, da Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 16/03, de 25 de Julho), segundo o qual «todos aqueles que dispuserem de capacidade contratual podem, nos termos da presente lei, recorrer a um Tribunal Arbitral para resolver litígios relativos a direitos disponíveis, mediante Convenção de Arbitragem, desde que por lei especial não estejam exclusivamente submetidos a Tribunal Judicial ou à arbitragem necessária». Assim, a regra que existe é a de que, desde que o ordenamento não cometa, através de regra especial, determinado litígio aos tribunais judiciais, nem determine que esse litígio apenas pode ser dirimido por via arbitral necessária, a submissão de um litígio a arbitragem é uma escolha exclusiva das partes, desde que o litígio diga respeito a direitos disponíveis. Parece-nos, assim, que os limites à arbitrabilidade dos litígios devem corresponder unicamente ao que, entre nós, deva reconhecer-se como ordem pública jurisdicional interna. Ou seja, só não haverá lugar à arbitragem nos casos em que a iniciativa do exercício de um direito tenha de ser pública, ou seja, nos casos em que o Estado tenha o dever de exercer esse direito, como sucede com questões penais, relativas ao estado civil das pessoas, alguns direitos relativos a menores, direito a alimentos futuros, património público, imóveis sitos em território angolano e direitos/interesses colectivos ou difusos. No domínio aqui em análise, a ordem pública interna societária corresponderá, então, ao conjunto de regras e princípios considerados essenciais pelo Estado Angolano em matéria de direito societário e que norteiam este ramo específico do direito comercial, tais como as normas destinadas a proteger os interesses do Estado, as normas destinadas a proteger os credores da sociedade e as normas destinadas a proteger os actuais e os futuros sócios, sempre que não lhes seja possível renunciar a essa protecção. Incluem-se aqui, pois, as normas relativas ao tipo e à estrutura das sociedades comerciais, bem como as normas respeitantes à organização e ao funcionamento das sociedades (v.g., ao limite de distribuição de bens aos sócios, à protecção dos sócios minoritários ou à transparência e lealdade da actividade dos administradores). Analisando as constelações mais frequentes de litígios societários, devem ser considerados disponíves, para efeitos da sua arbitrabilidade: (i) os litígios relativos à interpretação do contrato de sociedade e a direitos sociais dos sócios (informação, lucros, participação nos órgãos da sociedade, por exemplo); (ii) as relações estabelecidas entre os sócios através de acordos parassociais; (iii) a nulidade do contrato de sociedade; (iv) a responsabilidade dos administradores perante a sociedade, bem como os litígios respeitantes à cessação do contrato de administração e respectivas compensações; (v) a determinação da quota de liquidação de um sócio que sai da sociedade; (vi) e a impugnação e a nulidade de deliberações sociais. A arbitrabilidade de uma questão não é evidentemente suficiente para que ela seja cometida a um tribunal arbitral. A arbitrabilidade corresponde apenas à possibilidade da sujeição do litígio a um tribunal arbitral. Nos termos do artigo 1.º, n.º 1, da Lei da Arbitragem Voluntária, para que um diferendo entre as partes seja remetido a tribunal arbitral é ainda necessário que estas celebrem convenção de arbitragem. A convenção de arbitragem pode, nos termos do artigo 2.º da Lei da Arbitragem Voluntária, revestir duas modalidades: (i) cláusula compromissória, correspondendo à convenção segundo a qual as partes se obrigam a dirimir, através de árbitros, os litígios que venham a decorrer de uma determinada relação jurídica contratual ou extra-contratual; e (ii) compromisso arbitral, convenção segundo a qual as partes se obrigam a dirimir, através de árbitros, um litígio actual, quer ele se encontre afecto, quer não, a um tribunal judicial. Afinal, para que um litígio possa ser julgado por um tribunal arbitral é necessário que todas as partes envolvidas tenham subscrito a convenção de arbitragem, pois não é possível impor a terceiros que os litígios relativos à sociedade com eles relacionados sejam resolvidos por via arbitral. Ainda que tal não seja a única forma de dar validade a uma cláusula compromissória (a qual pode também, v.g., ser inserida num acordo parassocial), a forma mais eficaz de submeter os litígios relativos a uma sociedade a arbitragem passa pela sua inserção nos respectivos estatutos. Ficam vinculados pela cláusula compromissória inserida nos estatutos: − Os sócios fundadores, que celebram directamente o contrato de sociedade no qual se insere a cláusula compromissória; − Os sócios que adquirem posteriormente a participação social, os quais ficam vinculados a todos os direitos e obrigações que impendiam sobre o sócio transmitente em virtude da detenção da respectiva participação social, entre os quais, os direitos e deveres oriundos da aposição da cláusula compromissória; − Os administradores, os membros do órgão de fiscalização e os liquidatários, os quais, ao aceitarem a sua designação, aceitam sujeitar-se ao disposto nos estatutos da sociedade, o que abrange também a cláusula compromissória; − Os administradores de facto da sociedade, os quais ficam vinculados à cláusula compromissória nos mesmos moldes que os administradores de direito, em virtude da remissão operada pelo artigo 85.º da Lei das Sociedades Comerciais. Por esta via, promove-se a estabilidade da vida societária, procurando-se que os litígios envolvendo a vida interna da sociedade sejam dirimidos de forma célere e sigilosa.