50 anos em 50: O Longo e Sinuoso Caminho do Desenvolvimento Industrial Brasileiro David Kupfer Instituto de Economia da UFRJ (IE/UFRJ) João Carlos Ferraz Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e CEPAL Laura Carvalho New School of Social Research (NSSR) 2 50 anos em 50: O Longo e Sinuoso Caminho do Desenvolvimento Industrial Brasileiro* David Kupfer IE/UFRJ João Carlos Ferraz BNDES e CEPAL Laura Carvalho NSSR Resumo O artigo compila e sistematiza estatísticas descritivas sobre produção, emprego, investimento e comércio exterior para a economia brasileira durante os últimos 50 anos, distinguindo setores e atores. O exame levou à identificação de duas grandes trajetórias de crescimento. A primeira, o “empuxo para dentro”, vigente de 1959 a 1979, foi subdividida em duas ondas, seguindo modificações no regime econômico (Plano de Metas e Planos Nacionais de Desenvolvimento). A segunda trajetória, “empuxo para fora”, vigente de 1980 a 2003, também foi subdividida em duas ondas, igualmente em vista de mudanças no regime econômico: fuga para as exportações e novos entrantes. O período mais recente, a partir de 2004, designado “stop or go?” é então analisado, evidenciando os elementos que estavam inclinando a tendência novamente na direção de um “empuxo para dentro”, reeditando, talvez, as condições de crescimento sustentado do passado. Interrompido pela crise internacional de 2008, esse padrão de desenvolvimento traz novos desafios para ser retomado, que são examinados na parte final do texto. Abstract This paper compile and discuss descriptive statistics on production, job, investment and external trade for the Brazilian economy during the last 50 years, distinguishing sectors and actors. The data led to the identification of two main trajectories of growth. The first one, “inward oriented”, effective between 1959 and 1979, were subdivided in two waves, the “Goal’s Plan” period and the “National Plans of Development” period, in accordance with changes in the economic regime. The second trajectory, “outward oriented”, effective from 1980 to 2003, also was stylized in two waves: “escape by exports” and “entry of newcomers”. Then, the recent period, from 2004 to now, named “stop or go”, is analyzed, showing some evidences that the pendulum is swinging back to an inward oriented path, reediting, perhaps, the conditions of sustained growth of the past. Interrupted by the international crisis of 2008, this pattern of development brings new challenges that are examined in the final part of the text. * Artigo preparado para o Seminario 50 años de desarrollo industrial en América Latina: Contexto, sectores y actores, realizado em Buenos Aires, 27 de agosto de 2009 3 Sumário 1. INTRODUÇÃO: 50 ANOS DE INDUSTRIALIZAÇÃO NO BRASIL...........................................................................1 2. A FASE DO EMPUXO INTERNO: 1959 A 1979 ..................................................................................................4 2.1. 1A ONDA – DÉCADA DE 1950 : O PLANO DE METAS E OS “50 ANOS EM 5”........................................................4 2.1.1. 2.1.2. 2.1.3. 2.2. Contexto...................................................................................................................................... 4 Setores ........................................................................................................................................ 6 Atores .......................................................................................................................................... 8 2A ONDA – DÉCADA DE 1970: OS PLANOS NACIONAIS DE DESENVOLVIMENTO E O “MILAGRE ECONÔMICO” ..............9 2.2.1. 2.2.2. 2.2.3. Contexto...................................................................................................................................... 9 Setores ......................................................................................................................................10 Atores ........................................................................................................................................13 3. A FASE DO EMPUXO EXTERNO: 1980 A 2003................................................................................................ 14 3.1. 1ª. ONDA ‐ DÉCADA DE 1980: A DÉCADA PERDIDA E A FUGA PARA AS EXPORTAÇÕES .......................................... 14 3.1.1. 3.1.2. 3.1.3. 3.2. Contexto....................................................................................................................................14 Setores ......................................................................................................................................15 Atores ........................................................................................................................................18 2ª. ONDA ‐ (1990 ATÉ 2003): LIBERALIZAÇÃO ECONÔMICA E OS NOVOS ENTRANTES......................................... 19 3.2.1. 3.2.2. 3.2.3. Contexto....................................................................................................................................19 Setores ......................................................................................................................................21 Atores ........................................................................................................................................24 4. A RETOMADA DO EMPUXO INTERNO EM 2004‐2008 E A CRISE: STOP OR GO? ............................................. 27 5. CONSIDERAÇÃOES FINAIS: OS 50 ANOS EM 50 ‐ UMA VISÃO DE CONJUNTO ................................................ 29 6. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................................... 33 ÍNDICE DE TABELAS TABELA 1 COMPOSIÇÃO DO VALOR ADICIONADO (VA) E DO PESSOAL OCUPADO (PO) ANTES E DEPOIS DO PLANO DE METAS............................ 7 TABELA 2 EVOLUÇÃO DA COMPOSIÇÃO DO VALOR ADICIONADO (VA) E DO PESSOAL OCUPADO (PO) ENTRE 1968 E 1979 ................................ 11 TABELA 3 COMPOSIÇÃO DO VALOR DAS EXPORTAÇÕES (X) E IMPORTAÇÕES (M) ENTRE 1974 E 1979................................................................. 11 TABELA 4 EVOLUÇÃO DA COMPOSIÇÃO DO VALOR ADICIONADO (VA) E DO PESSOAL OCUPADO (PO) ENTRE 1980 E 1989 ................................ 16 TABELA 5 COMPOSIÇÃO DO VALOR DAS EXPORTAÇÕES (X) E IMPORTAÇÕES (M) ENTRE 1980 E 1989................................................................. 17 TABELA 6 COMPOSIÇÃO DO VALOR ADICIONADO (VA) E PESSOAL OCUPADO (PO) ENTRE 1990 E 2003............................................................... 22 TABELA 7 COMPOSIÇÃO DO VALOR DAS EXPORTAÇÕES (X) E IMPORTAÇÕES (M) ENTRE 1990 E 2003................................................................. 23 ÍNDICE DE GRÁFICOS GRÁFICO 1 REGIMES ECONÔMICOS E DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL................................................................................................................. 2 GRÁFICO 2 QUANTUM IMPORTADO POR CATEGORIA DE USO (BASE 2006) ENTRE 1974 E 1979 .......................................................................... 12 GRÁFICO 3 FORMAÇÃO BRUTA DO CAPITAL FIXO DOS SETORES PUBLICO E PRIVADO EM % DO PIB (EM R$ DE 1980) ENTRE 1970 E 1979 ......... 13 GRÁFICO 4 QUANTUM EXPORTADO POR CATEGORIA DE USO (BASE 2006) ENTRE 1980 E 1989 .......................................................................... 17 GRÁFICO 5 QUANTUM IMPORTADO POR CATEGORIA DE USO (BASE 2006) ENTRE 1980 E 1989 .......................................................................... 18 GRÁFICO 6 FORMAÇÃO BRUTA DO CAPITAL FIXO DOS SETORES PUBLICO E PRIVADO EM % DO PIB (EM R$ DE 1980) ENTRE 1980 E 1989 ......... 19 GRÁFICO 7 QUANTUM EXPORTADO POR CATEGORIA DE USO (BASE 2006) ENTRE 1990 E 2003 .......................................................................... 23 GRÁFICO 8 QUANTUM IMPORTADO POR CATEGORIA DE USO (BASE 2006) ENTRE 1990 E 2003 .......................................................................... 24 GRÁFICO 9 FORMAÇÃO BRUTA DO CAPITAL FIXO DOS SETORES PUBLICO E PRIVADO EM % DO PIB (EM R$ DE 1980) ENTRE 1990 E 2002 ......... 25 GRÁFICO 10 EVOLUÇÃO RECENTE DO INVESTIMENTO: TAXA DE VARIAÇÃO ANUAL E PROPORÇÃO DO PIB ENTRE 2004 T1 E 2009 T2............... 28 GRÁFICO 11 DECOMPOSIÇÃO DA VARIAÇÃO MÉDIA ANUAL DO PIB ENTRE 1970 E 2008 ..................................................................................... 30 GRÁFICO 12 BALANÇA COMERCIAL BRASILEIRA 1980‐2008................................................................................................................................... 31 GRÁFICO 13 PARTICIPAÇÃO RELATIVA NO VALOR DE TRANSFORMAÇÃO INDUSTRIAL DE TRÊS GRUPOS DE ATIVIDADES ECONÔMICAS (1957‐2007) .................................................................................................................................................................................................................... 32 1. INTRODUÇÃO: 50 ANOS DE INDUSTRIALIZAÇÃO NO BRASIL Há 50 anos o Brasil vivia uma onda de desenvolvimento econômico sem precedentes. Estruturada no Plano de Metas editado pelo Governo Kubitschek, cujo lema era “50 anos em cinco”, tinha lugar então a construção de um padrão de industrialização planejada com base em um conjunto inédito de instituições e políticas voltadas para o fomento ao desenvolvimento industrial. O Plano de Metas tinha uma natureza pragmática, utilizando‐se de instrumentos tão diversos quanto tarifas aduaneiras elevadas, taxas diferenciadas de câmbio e controle de saída de divisas com um arcabouço legal e regulatório favorável à entrada do capital estrangeiro e, ao mesmo tempo, o recurso à participação direta do Estado nos investimentos na indústria de base e na infra‐estrutura. Alguns anos depois, superada uma fase de instabilidade política e econômica no início da década de 1960, teve lugar um segundo ciclo desenvolvimentista, organizado em torno do 1º e 2º Planos Nacionais de Desenvolvimento que o regime militar instaurado no país levou a cabo entre 1968 e 1979. Foram os anos do “Milagre Econômico” e do grande salto para a industrialização pesada. De alcance ainda maior, esse novo ciclo desenvolvimentista conjugou instrumentos que tornaram ainda mais visível a mão firme do Estado como coordenador dos investimentos, por meio principalmente de um maior protagonismo da empresa estatal. Essas alcançaram um escopo de atuação muito além do verificado durante o Plano de Metas, atuando como controladora ou parceira relevante em um grande número de empreendimentos em setores estratégicos para o prosseguimento do processo de industrialização acelerado do país. Porém, a desestruturação do ordenamento econômico internacional pós‐Bretton Woods, que atingiu seu ponto nevrálgico justamente nos anos finais da década de 1970 com as crises do petróleo e dos juros significou uma grande contração da liquidez nos mercados financeiros internacionais, jogando uma pá de cal no modelo altamente dependente de capitais externos que havia se instituído no país. Desde então, imersa em um quadro de profunda vulnerabilidade externa, a economia brasileira passou a enfrentar uma pré‐disposição crônica ao baixo crescimento. As razões para isso estavam relacionadas à desorganização macroeconômica que se seguiu ao esgotamento do processo de industrialização por substituição de importações. Os sucessivos surtos inflacionários ocorridos nesse período, cujo combate ia se tornando cada vez mais difícil, eram as evidências inquestionáveis do grave desequilibro fiscal provocado por níveis insustentáveis de endividamento interno e externo do setor público. A necessidade de manter a taxa de câmbio real desvalorizada, para impulsionar o saldo comercial, e as taxas de juros elevadas, para possibilitar o fechamento do balanço de pagamentos por meio da atração de capitais 2 externos, formavam uma equação de políticas pouco eficaz e cada vez mais custosa para a sociedade. Sucedem‐se então um sem‐número de planos de estabilização monetária, começando em 1986 com o Plano Cruzado – uma tentativa de controlar a inflação pela via do congelamento dos preços – até o Plano Collor – uma tentativa ainda mais heterodoxa de “matar” a inflação pelo congelamento da liquidez, conjugado a um processo rápido de abertura comercial e liberalização da economia. Somente em 1993, com a edição do Plano Real – um plano de estabilização baseado em uma âncora cambial e na intensificação da abertura comercial e financeira da economia – e, especialmente após a sua revisão, introduzida como resposta à crise cambial de 1999, que levou à adoção de um regime de metas de inflação com âncoras monetárias e fiscais, que vigora até hoje, a inflação foi controlada. Essas sucessivas fases estão ilustradas no Gráfico 1, que mostra a evolução da taxa de crescimento real da economia brasileira de 1955 a 2008. A linha de tendência é bastante clara em ilustrar a perda de dinamismo que vai caracterizando a economia brasileira ao longo dos anos, evidenciando que nem o controle da inflação conseguido a partir do Plano Real em 1994, nem a melhora gradual nas condições de estabilidade macroeconômica conseqüentes à adoção dos regimes de câmbio flutuante e de metas fiscais foram suficientes, pelo menos até o momento, para reverter a tendência ao baixo crescimento do Produto Interno Bruto brasileiro, que se manteve sempre muito aquém da média dos países emergentes. GRÁFICO 1 REGIMES ECONÔMICOS E DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL 15,0 Fase do Empuxo Interno 14,0 Fase do Empuxo Externo 1955‐1980 13,0 12,0 11,0 1980‐2008 1968-76: Milagre Econômico 1956-61: Plano de Metas 10,0 1986: Plano Cruzado 9,0 8,0 1994: Plano Real 7,0 Linha de Tendência 6,0 5,0 4,0 3,0 2,0 1,0 1982: Crise do Balanço de Pagamentos 0,0 ‐1,0 ‐2,0 ‐3,0 1963: Crise Inflacionária 1988-1994: Hiperinflação ‐4,0 1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 ‐5,0 ‐6,0 19998-2003: Crise Cambial e Política Fontes: IPEADATA e IBGE Taxa de Variação do PIB (preços de 2008) 3 Cinquenta anos após o início dos anos áureos do desenvolvimentismo, o país assiste à retomada do crescimento em bases aparentemente sustentáveis. De fato, em 2008, antes do mergulho provocado pela eclosão da grande crise financeira global de setembro de 2008, a economia exibia um desempenho qualitativamente distinto do das décadas anteriores. Neste novo contexto, o Estado voltou a por em marcha programas e planos (Programa de Aceleração do Crescimento, Política de Desenvolvimento Produtivo, entre outros), também de natureza pragmática, porém em um quadro de economia aberta e de acordos internacionais (ex. OMC), que diminuem a possibilidade de uso de alguns dos instrumentos do passado. Estes programas, ainda infantes, datados que são de 2007 e 2008 respectivamente, tem o mérito de trazer novamente para o centro das atenções o debate sobre como construir e manter políticas de desenvolvimento estruturantes, capazes de sustentar um ciclo longo de crescimento. É exatamente quando o cenário internacional está atravessando um período de turbulência que essas questões ganham relevância. Dentre os países latino‐americanos, o Brasil foi o que conseguiu ir mais longe no projeto original de industrialização, foi o que enfrentou o mais prolongado período de estagnação e é, agora, o que reúne as melhores condições para o salto em direção a um novo estágio de desenvolvimento. Não é por outra razão que entendemos que visitar a história, neste momento, é um exercício que pode trazer ensinamentos importantes para pensar o futuro. Foi exatamente dessa convicção que surgiu a motivação para escrevermos esse artigo. Este é um artigo essencialmente empírico e exploratório. Nele compilamos e sistematizamos informações estatísticas descritivas sobre produção, emprego, investimento e comércio exterior para 50 anos, distinguindo setores e atores. A atividade industrial foi classificada em três grandes grupos, de acordo com a importância relativa dos principais insumos para produção: recursos naturais, indústria tradicional (intensiva em trabalho) e maior conteúdo tecnológico (alta intensidade de esforços de engenharia e pesquisa e desenvolvimento). Os atores foram classificados em empresas estatais, privada de capital local e privada de capital estrangeiro. Este exame detalhado nos levou à identificação de duas grandes trajetórias de crescimento. A primeira, o “empuxo para dentro” (seção 2), vigente de 1959 a 1979, foi subdividida em duas ondas, seguindo modificações no regime econômico (Plano de Metas e Planos Nacionais de Desenvolvimento). A segunda trajetória “empuxo para fora” (seção 3), vigente de 1980 a 2003, também foi subdividida em duas ondas, igualmente em vista de mudanças no regime econômico: fuga para as exportações e novos entrantes. O período mais recente, a partir de 2004, foi por nós designado “stop or go?” é abordado na seção 4. Nela 4 estão descritos os elementos que estavam inclinando a tendência novamente na direção de um “empuxo para dentro”, reeditando, talvez, as condições de crescimento sustentado do passado. Interrompido pela crise internacional de 2008, esse padrão de desenvolvimento traz novos desafios para ser retomado. Na última seção, com base em uma visão de conjunto da trajetória de industrialização estabelecemos algumas considerações sobre esse tema. 2. A FASE DO EMPUXO INTERNO: 1959 A 1979 2.1. 1A ONDA – DÉCADA DE 1950 : O PLANO DE METAS E OS “50 ANOS EM 5” 2.1.1. Contexto Embora importantes transformações na estrutura institucional do Estado brasileiro, visando dotá‐lo de capacidade de intervenção, já viessem sendo introduzidas desde a década de 1930, não havia ainda no pós‐guerra a experiência de planejamento econômico, aí incluindo tanto a capacidade de diagnosticar os principais problemas da economia brasileira, quanto o conhecimento da técnica de planejar de forma racionalizada e precisa. Foi somente a partir de meados dos anos 1950 que o Estado brasileiro passa a desempenhar um papel mais ativo no desenvolvimento do setor industrial. Essa construção institucional pode ser desdobrada em três frentes. Em primeiro lugar, buscou‐se desenvolver um novo arcabouço legal e regulatório voltado para articula capital privado nacional, capital estrangeiro e o próprio Estado. Em segundo lugar, se reformula o regime de incentivos para dar proteção ao mercado interno e seus produtores, por meio da introdução de uma nova tarifa aduaneira e da política cambial, com controle de câmbio e taxas diferenciadas. Em terceiro lugar, o Estado passou a fomentar diretamente o desenvolvimento industrial, seja pela ampliação da sua participação nos investimentos na indústria de base (siderurgia, mineração, petroquímica) e na infra‐estrutura (energia e transportes), seja pela ação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), criado em 1952 para financiar o investimento em praticamente todos os gêneros industriais, Nesse contexto, o Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek (1956‐1961) se constitui como a primeira experiência efetiva de planejamento do desenvolvimento industrial brasileiro. O plano, que tinha como mote a idéia de “50 anos em 5”, coordenava um programa de investimentos públicos e privados (nacionais e estrangeiros), de modo a cumprir uma lista de metas específicas para os setores de 5 energia, transporte, alimentação, indústrias de base e educação, visando o desenvolvimento acelerado da capacidade industrial. Além de buscar a superação dos chamados “pontos de estrangulamento” da economia brasileira, o Plano de Metas mirava os chamados “pontos de germinação”, ou seja, os setores que, quando desenvolvidos, seriam capazes de estimular outras atividades produtivas, como o de transportes (rodovias). Além disso, o Plano utilizava o conceito de ponto de estrangulamento externo para estabelecer a política de controle do comércio exterior, que focava no desenvolvimento dos setores que estariam limitando a capacidade de importar do país. As Instruções 70 e 113 da SUMOC (Superintendência de Moeda e Crédito, precursora do Banco Central do Brasil) implementadas em 1953 e 1955 já haviam estabelecido uma nova disciplina na alocação das importações, tornando‐a mais racional e definida. Junto à criação do BNDE e da Petrobrás em 1952 e 1953, estas medidas abriram espaço para o salto industrial do país. No entanto, os instrumentos e políticas auxiliares ao Plano de Metas foram além, tornando‐o um período de forte protecionismo, com subsídio à formação de capital e à exportação, e pesada intervenção reguladora que incluíram proteção cambial e tarifária e controles sobre remessas de lucros, controles de preços, de juros e de tarifas de serviços públicos. Nos cinco anos correspondentes ao Plano de Metas o PIB real cresceu em média 9,3% ao ano, contra taxa média anual de 6,2% entre 1950 e 1956. Já a taxa média anual de crescimento do PIB da indústria de transformação foi de 10,4% entre 1957 e 1961, contra 8% ao ano entre 1950 e 1956. Os maiores sucessos do Plano de Metas se concentraram nos setores de energia (petróleo), indústrias de base e alimentação, com destaque também para o crescimento da indústria automobilística. Tão importante quanto o elevado ritmo de expansão econômica, o período do Plano de Metas marca o deslocamento das exportações como principal fonte de demanda para o crescimento. Basta mencionar que as exportações cresceram em média 5,5% anuais no mesmo período, pouco mais da metade da taxa de crescimento atingida pelo PIB, tendo mesmo sofrido redução absoluta de valor em alguns anos. Com isso, o coeficiente de exportação passou de 6,8% do PIB em 1956 para 5,8% em 1961. Já as importações crescem em média 8,6% ao ano e não mudam muito sua participação no PIB. Fortes desequilíbrios foram criados no balanço de pagamentos desde fins dos anos 50, refletindo um novo ciclo de deterioração das relações de troca que se dá a partir de 1958 e o crescimento dos serviços 6 do capital estrangeiro desde 1957, como conseqüência do aumento dos investimentos e empréstimos externos acumulados no início da década. Além disso, entre os pontos apontados como de fracasso do Plano de Metas está o processo inflacionário desencadeado durante o governo de Juscelino Kubitschek. O Plano não previa grande contrapartida fiscal ou outras formas de sustentação financeira, o que levou à utilização de mecanismos de emissão para financiar os investimentos governamentais. No entanto, a aceleração da inflação também foi em grande medida reflexo dos problemas do setor externo apontados acima. O Programa de Estabilização Monetária lançado em 1958 não foi capaz de conter o surto inflacionário que caracterizou esses anos. 2.1.2. Setores Como resultado do Plano de Metas e da adoção de um regime competitivo mais protecionista e mais apoiado no capital estatal a estrutura industrial neste período avançou muito na incorporação de segmentos da indústria pesada, da indústria de bens de consumo duráveis e de bens de capital, substituindo importações de insumos básicos, máquinas e equipamentos, automóveis e eletrodomésticos. Conforme aponta Serra (1982), o impulso do Plano de Metas provocou uma diferenciação industrial intensa e sem precedente, em um período relativamente curto, sobretudo com a instalação no país das indústrias automobilística, construção naval, material elétrico e outras máquinas e equipamentos, e a expansão de indústrias básicas, como siderúrgica, metais não ferrosos, química pesada, petróleo, papel e celulose. Apesar da pouca disponibilidade de dados sobre a estrutura industrial no período relativo ao Plano de Metas, os dados de Valor da Transformação Industrial, que podem ser usados como proxy do valor adicionado (VA), e de Pessoal Ocupado (PO), ambos classificados por gênero industrial, que foram divulgados nos Censos Industriais de 1949 e 1959 e na primeira Pesquisa Industrial Anual (PIA) de 1966, permitem que se vislumbre grandes mudanças que aconteceram na indústria brasileira ao longo do período em questão. Como será descrito na próxima seção, os anos que se seguem ao Plano de Metas e se estendem até 1968 são de forte recessão, sendo o crescimento da produção industrial ainda baseado na capacidade instalada durante o período do Plano. Portanto, uma avaliação das mudanças estruturais ocorridas até 1966, por falta de dados relativos ao início da década de 1960, não altera muito a compreensão dos resultados do Plano. 7 Como se observa na Tabela 1, o grupo de setores considerados como de maior conteúdo tecnológico, que engloba basicamente as Indústrias Mecânica, de Material Elétrico e Comunicações, e de Material de Transporte (Automobilística) representavam apenas 8,6% do valor adicionado da indústria no fim da década anterior, mais do que dobrando sua participação, para 17,1%, em 1959 e chegando a 22,9% em 1966. Este resultado se explica sobretudo pelo aumento do valor adicionado da indústria de Materiais de Transporte, cujo principal componente é a Automobilística, que passa de 2,2% do VA em 1949 para 7,4% em 1959 e 8,9% em 1966. TABELA 1 COMPOSIÇÃO DO VALOR ADICIONADO (VA) E DO PESSOAL OCUPADO (PO) ANTES E DEPOIS DO PLANO DE METAS EM % 1949 Grupos VA 1959 PO VA 1966 PO VA PO RecursosNaturais 32,7 32,6 38,6 35,3 37,5 34,6 Tradicional 58,7 61,5 44,3 52,0 39,7 47,1 8,6 6,0 17,1 12,7 22,9 18,4 Total 100,0 100,0 Fonte: IBGE /Censo Industrial, IBGE/PIA Empresa 100,0 100,0 100,0 100,0 MaiorConteúdoTecnológico As indústrias produtoras de recursos naturais, como por exemplo os setores de Metalurgia e Minerais não‐metálicos, também aumentam seu peso neste período, passando de uma parcela total de 32,7% para 37,5% do VA entre 1949 e 1966. Na realidade, os dois grupos de setores ganharam espaço em detrimento da indústria Tradicional, que apesar de se manter com mais da metade do valor adicionado industrial, perde cerca de 15% do VA ao longo da década de 1950 e mais 6% entre 1959 e 1966, sobretudo com as Indústrias Têxtil e de Alimentos, que reduzem sua participação, respectivamente, de 19,2 e 20,1% em 1949, para 11,7 e 16,1% em 1959, e finalmente 10,4 e 13,9% em 1966. As mudanças observadas na estrutura do emprego, também mostradas na Tabela 1, são similares às já observadas na estrutura de valor adicionado industrial, com a diferença que no emprego, o peso da indústria tradicional, intensiva em trabalho, é ainda maior inicialmente, mas perde 10% (ao invés de 15%) entre 1949 e 1959, e mais 5% entre 1959 e 1966. Entre os setores que mais perdem participação no Pessoal Ocupado no total do período estão novamente o Têxtil e de Alimentos, e entre os que mais ganharam peso, as indústrias Metalúrgica, de Material de Transporte, seguidas pela Mecânica e de Material Elétrico e de Comunicações. 8 2.1.3. Atores A onda de industrialização brasileira iniciada em meados dos anos 50 se baseou no tripé formado pelas empresas do Estado, do capital privado e do capital estrangeiro. Dentro desta divisão de tarefas, conforme já apontado, coube uma proteção especial ao capital privado nacional, que era a parte mais frágil do tripé. Além de ter contado com incentivos para os setores de bens de capital e setores fornecedores das empresas transnacionais, o capital privado nacional beneficiou‐se muito da expansão da demanda por bens de consumo não duráveis no período. Quanto à participação direta do Estado, houve neste período a ampliação da Companhia Siderúrgica Nacional, bem como a expansão da Petrobrás e do setor estatal de produção de energia elétrica. Observa‐se no período o crescimento do investimento público enquanto proporção do PIB a partir de 1956. De 1956 a 1961, a Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) do setor público passa a responder por cerca de 6% do PIB, enquanto que a FBCF do setor privado cai de mais de 14% do PIB em 1956 para cerca de 8% em 1961. Na realidade, é a partir de meados da década de 1950 que se acentua a entrada massiva de capital estrangeiro na produção de bens manufaturados destinados ao mercado interno. Nesse sentido, pode‐se dizer que o salto da indústria brasileira na direção dos ramos manufatureiros pesados de bens de produção e de consumo duráveis é inseparável da penetração das empresas transnacionais no setor. Conforme aponta Serra (1982), as empresas transnacionais concentraram‐se sobretudo nos setores mais dinâmicos e oligopolizados da indústria de transformação, operando com escalas de produção, intensidade de capital, complexidade tecnológica e produtividade mais elevadas que as empresas nacionais. As dificuldades do balanço de pagamentos justificaram a política permissiva com relação as empresas transnacionais, ainda que muitas vezes houvessem contradições com o interesse nacional. No entanto, pode‐se dizer que havia alto grau de complementaridade entre as atividades das empresas transnacionais e as empresas privadas nacionais do setor industrial, como no caso das indústrias automobilística e de autopeças. 9 2.2. 2a ONDA – DÉCADA DE 1970: OS PLANOS NACIONAIS DE DESENVOLVIMENTO E O “MILAGRE ECONÔMICO” 2.2.1. Contexto O início de década de 1960 é marcado pelo declínio do ritmo de crescimento da economia. Esta desaceleração decorreu em parte de fatores de natureza cíclica, dada a conclusão do pacote de investimentos públicos e privados iniciados em 1956. Com a crise econômica e a crise política que culminou na imposição do regime autoritário militar em 1964, houve certo abandono do planejamento do desenvolvimento industrial, conforme aponta Suzigan (1996). Os planos nacionais passaram a se preocupar sobretudo com a estabilização econômica, sob a coordenação do Conselho Monetário Nacional (CMN), o que contribuiu mais ainda para a desaceleração. A volta da preocupação com o planejamento do desenvolvimento econômico se dá nos anos do “milagre econômico brasileiro”, entre 1968 e 1973, principalmente com a implementação dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND). Enquanto o I PND, ainda sob a coordenação da CMN, se preocupou mais com a estratégia macroeconômica do que com um projeto de desenvolvimento industrial e tecnológico, o II PND (1975‐ 1979), implementado sob comando do Conselho de Desenvolvimento Econômico, se constitui como a segunda experiência efetiva de planejamento do desenvolvimento industrial, articulando investimentos públicos e privados na indústria e infra‐estrutura econômica, social e de ciência e tecnologia. No âmbito da infra‐estrutura, alem de energia e transportes, investimentos estatais foram dirigidos para a infra‐ estrutura de armazenagem, comunicações e urbanização/saneamento. Pode‐se dizer que o II PND e as políticas que o complementaram até 1979 reforçaram e intensificaram a política industrial do período anterior. A política de proteção comercial se tornou discricionária e crescentemente baseada em barreiras não tarifárias. O fomento ao desenvolvimento tecnológico passou a ser regido pelo sistema nacional de desenvolvimento científico e tecnológico (SNDCT) e os mecanismos de transferência de tecnologia e direitos de propriedade intelectual foram regulados; há implementação de programas regionais e setoriais com impacto regional; o fomento a pequenas e médias empresas passa a contar com fundos especiais de financiamento e se desenvolve um programa específico de exportação. Por fim, as políticas regulatórias e de competição foram aplicadas mais rigorosamente, especialmente o licenciamento de investimentos, controle de preços e regulação do mercado de trabalho. Entre 1963 e 1970, o crescimento da indústria ainda se deu baseado na capacidade ociosa construída no 10 fim da década de 1950 e início da de 1960, tendo os investimentos sido retomados apenas em 1970, conforme destaca Suzigan (1988). Após a severa recessão de 1963‐1967, com o aumento da ajuda do Estado na expansão do mercado interno e na promoção das exportações de produtos manufaturados, associada às condições favoráveis da economia mundial em termos de dinamismo do comércio internacional e facilidades de aporte de capital externo de risco e empréstimos em moeda, a indústria brasileira experimentou a partir de 1968 um novo ciclo de rápido crescimento e mudanças estruturais. O PIB entre 1969 e 1979 cresceu em média a uma taxa real de 8,8%, contra 4,8% entre 1962 e 1968. Já a taxa média de crescimento real da indústria de transformação passa de 5,2% entre 1962 e 1968 para 9,5% entre 1969 e 1979. Ao contrário do ciclo de crescimento anterior, o rápido crescimento desta vez esteve associado a uma maior abertura para o exterior. Como resultado das políticas de incentivo, as exportações crescem em média 14,7% ao ano entre 1968 e 1979. As importações passam de 6,7 em 1968 para 9,3% do PIB em 1979, refletindo a diversificação do parque industrial brasileiro e a disponibilidade de divisas proporcionada pelo crescimento das exportações. 2.2.2. Setores Na fase de desaceleração econômica compreendida entre 1962 e 1967, houve queda do crescimento industrial, sendo o setor mais afetado pela redução de investimentos, o de bens de capital, conforme aponta Serra (1982). Da mesma forma, a recuperação econômica se dá mais uma vez com este setor, e com o de bens de consumo duráveis. No entanto, as modificações estruturais da indústria e da economia foram muito menos acentuadas do que no ciclo de crescimento anterior. As mudanças ocorridas nas estruturas de valor adicionado e emprego, no período entre 1968 e 1979, podem ser observadas na Tabelas 2. De forma geral, pode‐se dizer que a Indústria Tradicional continua a perder espaço, tanto em VA quanto em emprego, perda esta que é dividida entre os outros dois grandes grupos de setores (Recursos Naturais e de Maior Conteúdo Tecnológico). Como se observa na Tabela 2, o total da parcela da Indústria Tradicional, em termos de VA, tem sua queda concentrada entre os anos de 1968 e 1974, relativos ao milagre econômico, quando passa de 44,6% para 39,8%, tendo se mantido relativamente estável até 1979. O principal responsável pela perda de peso da Indústria Tradicional ao longo do período é o setor Têxtil, que passa de 10,6% em 1968 para 6,7% em 1979. Esta redução é em parte amenizada pelo aumento de peso de outros setores do grupo, como o de Vestuário, que sobe sua parcela no VA de 2,9 para 4,4%. Quem ganha participação no VA é a 11 Indústria Mecânica, que aumenta seu percentual de 5,2 para 9,9% do VA total no mesmo período. TABELA 2 EVOLUÇÃO DA COMPOSIÇÃO DO VALOR ADICIONADO (VA) E DO PESSOAL OCUPADO (PO) ENTRE 1968 E 1979 Em % 1968 1974 1979 Grupos VA PO VA PO VA PO Recursos Naturais 37,9 35,0 37,7 33,1 39,6 33,9 Tradicional 38,8 45,5 37,6 44,8 35,0 42,9 Maior Conteúdo Tecnológico 23,3 19,5 24,7 22,2 25,5 23,2 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: IBGE/PIA Empresa Apesar da ligeira queda de participação da Indústria Tradicional, a estrutura do emprego industrial apresenta evolução distinta ao longo do período. Enquanto que no VA, o setor de Recursos Naturais ganha participação e se aproxima da parcela ocupada pela Tradicional (especialmente em 1974 e 1979), no Emprego, o único grupo a ganhar peso é o de Maior Conteúdo Tecnológico, que se aproxima da parcela representada pelos setores de Recursos Naturais, chegando a uma diferença de apenas 3% em 1979. Este resultado indica que indústrias de Maior Conteúdo Tecnológico passam a absorver relativamente mais mão‐de‐obra do que as de Recursos Naturais neste período, refletindo possíveis aumentos de produtividade nos setores de Commodities. Mais uma vez, a indústria Mecânica é a principal ganhadora de participação do período, passando de 5% do Pessoal Ocupado em 1968 para 11,2% em 1979, seguida pela indústria de Vestuário, que sobe de 5,3 para 8,8%, atenuando a queda do peso da indústria Tradicional (que apenas reduz percentual de 45,5 para 42,9%, sendo que somente a indústria Têxtil reduz seu peso de 14,9% em 1968 para 8,4 em 1979). As exportações, além de crescerem muito, passam por uma notável diversificação durante este período. Em primeiro lugar, nota‐se o aumento da proporção de bens manufaturados na pauta exportadora: a agropecuária, que ocupava 15,6% do valor exportado em 1974, ocupa apenas 6,1% em 1979. Além disso, nota‐se na Tabela 3 o aumento substantivo da exportação de bens de maior conteúdo tecnológico, QUE : passaram de 8,6% das exportações em 1974 para 16,6% em 1979. TABELA 3 COMPOSIÇÃO DO VALOR DAS EXPORTAÇÕES (X) E IMPORTAÇÕES (M) ENTRE 1974 E 1979 Em % 1974 1979 12 Grupo Agropecuária Recursos Naturais Tradicional Maior Conteúdo Tecnológico Total Fonte: FUNCEX X 15,6 60,7 15,1 8,6 100,0 M 59,6 15,5 24,9 100,0 X 6,1 60,9 16,4 16,6 100,0 M 67,8 9,5 22,6 100,0 As políticas protecionistas do período também se refletiram na pauta importadora. Em um primeiro momento, também aumentam as importações de bens de capital, dada a complementaridade entre a produção doméstica e as importações deste setor, que por sua vez era decorrente da deficiência do parque produtor já instalado, da maior facilidade de financiamento para bens de capital importados e maior propensão das empresas transnacionais para importar as máquinas e equipamentos necessários (Serra, 1982). Em um segundo momento, os setores de maior conteúdo tecnológico passam a perder participação (Tabela 3). Estas mudanças também são observadas no Gráfico 2, que apresenta a evolução da quantidade importada por categoria de uso no período. As importações de bens de capital e de bens de consumo duráveis são substancialmente reduzidas no período, tendo sido substituídas por produção nacional. GRÁFICO 2 QUANTUM IMPORTADO POR CATEGORIA DE USO (BASE 2006) ENTRE 1974 E 1979 Fonte: FUNCEX 13 2.2.3. Atores Ainda apoiada no tripé capital privado, capital público e capital estrangeiro, a industrialização brasileira continua a incorporar setores mais dinâmicos ao longo da década de 1960 e 1970. A observação da evolução da FBCF nacional pública e privada, entre 1962 e 1979, no Gráfico 3, mostra a complementaridade existente entre o investimento realizado pelos dois setores, sobretudo entre 1970 e 1975. Conforme apontado anteriormente, as empresas privadas durante a década de 1960 ainda se aproveitam muito da capacidade ociosa construída no período do Plano de Metas, sendo o investimento público um fator de freio à queda do ritmo de formação de capital fixo para o conjunto de economia entre 1963 e 1965. Nota‐se, no entanto, um aumento substantivo do investimento privado em relação ao PIB após esta data. O investimento público enquanto proporção do PIB cresce sobretudo entre 1973 e 1976. GRÁFICO 3 FORMAÇÃO BRUTA DO CAPITAL FIXO DOS SETORES PUBLICO E PRIVADO EM % DO PIB (EM R$ DE 1980) ENTRE 1970 E 1979 250 200 150 100 50 0 1970 1971 1972 1973 1974 F B C F d o S e t o r P ú b l ic o 1975 1976 1977 F B C F d o S e t o r P r i v a d o 1978 1979 Fonte: IBGE/SCN 2000, IBGE/RTSP, IPEA Já as empresas transnacionais passam a controlar mais de 30% do estoque de capital da indústria de transformação, segundo dados básicos da FINEP de 1978, citados por Serra (1982). Em 1970, entre as empresas lideres, as transnacionais dominavam a produção de bens duráveis de consumo (85% das vendas) e de bens de capital (57% das vendas), tendo ainda participação substancial na produção de bens de consumo não duráveis e intermediários (43 e 47%, respectivamente). Desde fins dos anos 60, há 14 também uma tendência de associação das empresas transnacionais com as empresas nacionais, privadas ou estatais, tanto do ponto de vista tecnológico, quanto do ponto de vista financeiro e de garantia de mercados para exportação, sendo esta última predominante no caso das empresas estatais. 3. A FASE DO EMPUXO EXTERNO: 1980 A 2003 3.1. 1ª. ONDA ‐ DÉCADA DE 1980: A DÉCADA PERDIDA E A FUGA PARA AS EXPORTAÇÕES 3.1.1. Contexto Apesar do choque de petróleo de 1973 e da recessão internacional que se seguiu, a persistência de altas taxas de crescimento econômico entre 1974 e 1980 foi explicada por dois fatores fundamentais. Em primeiro lugar, conforme já destacado na última seção, pela estratégia industrial do governo brasileiro, que tomou forma no II PND e provocou uma “marcha forçada” da economia no período (Castro e Souza, 1985). Em segundo lugar, esta “marcha forçada” foi possibilitada pelo lado do financiamento pela abundância de recursos externos criada pelos. No entanto, esta mesma fonte de recursos foi responsável pelo aumento rápido da dívida externa brasileira, de modo que ao mesmo tempo em que ocorria o catching‐up do ponto de vista industrial, o país entra em um processo de fragilização financeira, marcado pelo crescimento da inflação e da vulnerabilidade externa. O segundo choque de petróleo em 1979, que é seguido pelo forte aumento da taxa de juros norte‐ americana, torna a estrutura da dívida pública brasileira ainda mais frágil. A recessão internacional e a moratória mexicana que se seguem eliminam a entrada de recursos externos para o país, levando a instalação de uma crise aberta de dívida externa em 1982, enquanto no front interno, a recessão que se estabeleceu entre 1981 e 1983 agravou ainda mais o quadro deficitário das finanças públicas. Com tudo isso, a década de 1980 tornou‐se uma “década perdida” no âmbito do crescimento econômico e do desenvolvimento industrial. O regime econômico deixa de privilegiar o desenvolvimento produtivo e a gestão macroeconômica em busca da estabilidade assume prioridade, processo este que logrará sucesso somente em 1994, com o Plano Real. A década de 1980, portanto, é marcada por importantes mudanças nos âmbitos institucional e econômico. Ao mesmo tempo, no âmbito político, ocorre o fim do regime militar em meados da década. A resolução da crise da dívida passou a ditar a política econômica do período, relegando as políticas de 15 desenvolvimento a um plano secundário. Para atrair recursos para o Estado sob a forma de títulos públicos, as taxas de juros foram aumentadas, retroalimentando dívida e recessão. Por outro lado, buscou‐se um ajuste externo a qualquer custo através da geração de superávits comerciais que gerassem divisas para saldar os compromissos externos. A idéia era de que somente resolvendo o problema externo, seriam eliminados os entraves ao crescimento da economia doméstica. A balança comercial começa a ser revertida, gerando pequeno superávit em 1981, número este que só aumenta nos anos seguintes e atinge o seu máximo em 1985. O câmbio é desvalorizado em 1983, e as exportações, muito estimuladas pelo crescimento dos EUA após esta data, são responsáveis pela maior taxa de crescimento econômico observado em 1984 e 1985. Pode‐se então perceber que a prioridade à gestão macroeconômica não deixa de ter reflexos sobre a estrutura produtiva: é neste momento quando são ativados mecanismos de incentivos (incluindo subsídios) para induzir as empresas a exportar, gerando as tão escassas divisas externas. Como será visto logo abaixo, alguns setores, como a indústria automobilística, se aproveitam dos incentivos e logram exportar. No entanto, com o aumento da dívida interna, a crise se agravou na segunda metade da década de 1980. Alimentada pela desvalorização cambial e pelo alto grau de indexação de preços a inflação chega a uma taxa anual de 202% em 1984, contribuindo para aumentar incertezas e diminuir a disposição ao investimento nos diversos setores da indústria. São muitos os planos de estabilização realizados no período, com uso de controle de preços e reformas monetárias, mas nenhum foi bem‐sucedido na eliminação da inflação inercial. A expansão do consumo promovida pelo Plano Cruzado em 1986 mostrou que o problema externo ainda não estava solucionado: o aumento da demanda doméstica e a valorização cambial causaram a redução das exportações, praticamente eliminando o saldo comercial em 1986 e 1987 e provocando a moratória da dívida externa em 1987. O crescimento real do PIB de 1,7% ao ano em média e do PIB industrial de apenas 0,4% anuais em média justificam a denominação de década perdida dada a esse período. Quanto ao setor externo, a década é marcada por aumentos no coeficiente de exportações, que passa de cerca de 9% do PIB em 1980 para 21% em 1985 e a repressão das importações, resultando em saldos crescentes na balança comercial. 3.1.2. Setores A recessão econômica do período se reflete na estrutura industrial, que não sofre grandes mudanças estruturais ao longo da década de 80. Como apontam Bonelli e Gonçalves (1998), os setores considerados dinâmicos (bens intermediários classificados pelos autores como “modernos” – metalúrgicos, químicos, 16 plásticos, materiais de construção, papel e borracha – além dos bens de capital e parte dos bens de consumo duráveis) encerram neste período sua trajetória de aumento da participação na estrutura industrial. Conforme distinção de Teixeira e Ferraz (1996), a fase entre 1981 e 1988 é marcada pelo ajuste exportador da economia brasileira em resposta à crise da dívida, que se sustenta na maturação dos investimentos do II PND. Entre 1980 e 1982, a principal política de governo a afetar a indústria é a de subsídios fiscais e creditícios à exportação, combinada com a desvalorização do câmbio real, que estimulam um grande número de empresas a explorar o mercado externo. Em um segundo momento, entre 1983 e 1988, o governo brasileiro assumiu a responsabilidade da dívida externa de empresas privadas e estatais, o que junto à grande instabilidade, levou as empresas industriais a fazer o chamado ajuste financeiro, procurando alta liquidez e eliminando planos de investimento. Conforme pode ser observado na Tabela 4, ao longo da década de 1980 a participação relativa dos grandes grupos no VA da indústria não sofre alteração. No entanto, no interior de cada um ocorrem mudanças importantes. As Indústrias de Alimentos e Bebidas e Têxtil perderam peso no produto industrial durante a década, passando, respectivamente, de 12,56% e 6,59% em 1981 para 11,42% e 5,21% em 1989. Ao contrário, a Indústria de Materiais de Transporte ganha peso, aumentando sua participação de 7,64 para 9,12% graças à sua propensão exportadora. Por fim, a Indústria Mecânica, reverte o seu processo de crescimento, reduzindo sua participação de 11,28 em 1981 para 9,37% em 1989. Já a composição do Pessoal Ocupado apresenta evolução semelhante. Nota‐se um pequeno aumento da participação da Indústria Tradicional entre 1980 e 1983, que pode estar relacionada ao ajuste exportador, ficando estabilizada a estrutura do emprego na segunda metade da década. TABELA 4 EVOLUÇÃO DA COMPOSIÇÃO DO VALOR ADICIONADO (VA) E DO PESSOAL OCUPADO (PO) ENTRE 1980 E 1989 Em % 1980 1985 1989 Grupos VA PO VA PO VA PO Recursos Naturais 41,5 34,5 46,0 32,1 40,9 31,7 Tradicional 32,9 43,1 31,3 45,4 31,3 44,2 Maior Conteúdo Tecnológico 25,6 22,4 22,7 22,4 27,8 24,1 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: IBGE/PIA Empresa A observação do perfil exportador da indústria brasileira no período, na Tabela 5, permite confirmar 17 algumas das hipóteses anteriores. Os grupos Recursos Naturais e Tradicional, que inclui a Têxtil e o setor de Alimentos e Bebidas, aumentam sua participação no valor das exportações ao longo do período em detrimento dos setores de maior conteúdo tecnológico, principalmente na primeira metade da década. TABELA 5 COMPOSIÇÃO DO VALOR DAS EXPORTAÇÕES (X) E IMPORTAÇÕES (M) ENTRE 1980 E 1989 Em % 1980 1985 1989 Grupos X M X M X M Recursos Naturais 65,3 71,5 66,7 73,3 61,1 58,0 Tradicional 16,1 8,1 16,5 5,3 17,1 11,6 Maior Conteúdo Tecnológico 18,6 20,4 16,8 21,5 21,7 30,4 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: FUNCEX A interrupção da trajetória anterior de sofisticação da estrutura industrial brasileira também se reflete no volume exportado, quando estimado pelo Índice de Quantum. Nota‐se no Gráfico 4 que as indústrias de Bens de Capital são as que mais reduzem as exportações entre 1981 e 1985, enquanto que as de Bens de Consumo não Duráveis e de Bens Intermediários aumentam a quantidade exportada ao longo da maior parte da década. GRÁFICO 4 QUANTUM EXPORTADO POR CATEGORIA DE USO (BASE 2006) ENTRE 1980 E 1989 30 25 Bens de Capi tal 20 Bens de cons umo durávei s 15 Bens de cons umo não durávei s 10 5 1989 1988 1987 1986 1985 1984 1983 1982 1981 1980 0 Bens Intermedi ári os Fonte: FUNCEX Confirmando o fim da era da substituição de importações, entre 1980 e 1989, os bens de maior conteúdo tecnológico passam de 20,4% para 30,4% do valor total importado de bens industriais, conforme 18 apresentado na mesma tabela 6. Este processo se inicia na segunda metade da década, quando já não ocorre mais a maturação dos investimentos do II PND. Na realidade, como mostra o Gráfico 5, o volume importado cai para todas as categorias de uso entre 1980 e 1984, refletindo a recessão econômica e a desvalorização cambial que marcaram o período. Na segunda metade da década, há pequeno aumento da quantidade importada dos diversos tipos de bens (com destaque para o pico de importação de bens de consumo não duráveis em 1986, ano do Plano Cruzado e da valorização cambial). GRÁFICO 5 QUANTUM IMPORTADO POR CATEGORIA DE USO (BASE 2006) ENTRE 1980 E 1989 30 25 Bens de Capi tal 20 Bens de cons umo durávei s 15 Bens de cons umo não durávei s 10 Bens Intermedi ári os 1989 1988 1987 1986 1985 1984 1983 1982 1981 0 1980 5 Fonte: FUNCEX 3.1.3. Atores A Formação Bruta de Capital Fixo sofre redução em proporção ao PIB entre 1980 e 1985, no período em que, conforme defendem Castro e Souza (1985), o crescimento da indústria ainda se baseia nos investimentos do II PND. Esta queda á ainda maior no setor privado, onde passa de cerca de 17 para 12% do PIB, conforme se observa no Gráfico 6. Após este período, os investimentos se mantém aproximadamente no mesmo patamar em relação ao PIB: FBCF de 4% do PIB no setor público e 13% no setor privado. 19 GRÁFICO 6 FORMAÇÃO BRUTA DO CAPITAL FIXO DOS SETORES PUBLICO E PRIVADO EM % DO PIB (EM R$ DE 1980) ENTRE 1980 E 1989 18 16 14 12 10 8 6 4 2 0 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 FBCF do s etor públ i co (% do PIB FBCF do s etor pri vado (% do Fonte: IBGE/SCN 2000, IBGE/RTSP, IPEA 3.2. 2ª. ONDA ‐ (1990 ATÉ 2003): LIBERALIZAÇÃO ECONÔMICA E OS NOVOS ENTRANTES 3.2.1. Contexto A virada das década de 1980 foi marcada por grandes mudanças nos regimes institucional e econômico. As primeiras eleições diretas desde 1960 levaram ao poder o presidente Collor, cuja política econômica é uma combinação entre uma estratégia de estabilização heterodoxa e um conjunto de reformas institucionais liberalizantes. Estas reformas, chamadas de primeira geração, envolviam não somente as aberturas comercial (redução de barreiras tarifárias e não‐tarifárias à importação) e financeira (abertura da conta de capital), mas também a desregulamentação da economia e as privatizações. Também havia a idéia era de que seria possível reduzir e estabilizar a inflação a partir da volta do fluxo de capitais para o Brasil, o que por sua vez só poderia ocorrer com a liberalização do mercado de capitais. Paralelamente, o governo Collor também adotou uma política de elevação das taxas de juros reais, que somada ao conjunto de reformas gerou um grande afluxo de capitais durante os primeiros anos da década. A massiva entrada de capitais é interrompida em 1992, quando aumenta a incerteza sobre o ambiente político e econômico no país, a partir das evidências de corrupção e o grande movimento popular que se forma para o impeachment de Collor. Após um esboço de uma estratégia econômica mais nacionalista e 20 intervencionista, durante o início do governo Itamar Franco, vice de Collor, a ameaça da crise econômica e as pressões políticas levam ao prosseguimento das reformas durante todo o restante da década. Em resposta à política econômica do ministro Fernando Henrique Cardoso e em especial às altas taxas de juros praticadas, os capitais retornam em massa ao país, possibilitando a acumulação de reservas internacionais necessárias e suficientes à realização de uma outra tentativa de estabilização, desta vez com a utilização de uma âncora cambial. O Plano Real é implementado em 1994 através da criação de duas moedas oficiais (uma que servia como unidade de medida e a outra como meio de pagamento) e obtém sucesso imediato na redução da inflação. A baixa inflação somada à apreciação cambial estimulou instantaneamente a economia. Cardoso é eleito presidente em 1994 e re‐eleito em 1998. Durante seu primeiro mandato (1995‐1998), não houve recuperação das exportações, de modo que os problemas na balança de pagamentos pioram com a crise asiática de 1997 e a crise russa em 1998, levando a uma crise cambial em 1999. O Banco Central adotou então um regime de metas de inflação e de taxa de câmbio flutuante, o que junto ao aumento do superávit primário do governo, impediu a volta da inflação e evitou o aumento da relação PIB/dívida pública, trazendo a assistência financeira do FMI. Após 1999, apesar da mudança no regime cambial, a política macroeconômica brasileira continuou a ser caracterizada pelas altas taxas de juros, mas desta vez com alto superávit primário. A crise Argentina em 2001 e as expectativas após a eleição de Lula em 2002 reduzem a entrada de capitais, dando novo golpe na economia: o câmbio se desvaloriza, a inflação acelera, o crescimento econômico é reduzido e aumentam as exportações. Apesar das expectativas de grandes mudanças, a política macroeconômica de Lula se manteve com a mesma estratégia: os juros e o superávit primário foram aumentados no início da gestão, trazendo instantaneamente de volta o capital estrangeiro e provocando nova apreciação do câmbio. Em termos do desempenho da economia, da distribuição de renda e do catching‐up industrial e tecnológico do país, a década de 1990 (até 2003) se junta à década de 1980 enquanto “década perdida”, ao contrário do que sustentavam o FMI e os demais advogados do Consenso de Washington. O crescimento médio do PIB real foi de 1,2% ao ano entre 1990 e 1994 e de 2,2% desde a estabilização, entre 1995 e 2003. Já o crescimento industrial, foi de apenas 0,8% em média entre 1990 e 1994 e 1,4% entre 1995 e 2003. 21 No setor externo, as exportações crescem de 8,2% do PIB em 1990 para 15% em 2003. Ainda como reflexo da política de abertura, as importações aumentam de 7 para 12% do PIB entre 1990 e 2003. A situação da balança comercial se deteriora até que surge o primeiro déficit em 1995. De fato, conforme destacam Souza, Burlamaqui e Barbosa‐Filho (2005), a economia se tornou mais aberta para o comércio exterior e o mercado de capitais, mas sem aumentar sua participação nas exportações mundiais ou reduzir a vulnerabilidade externa. Os maiores avanços da década, conforme apontam os autores, se deram na produção agrícola (agrobusiness), com um aumento substancial na produção e nos indicadores de produtividade dos produtos exportados, e no setor de petróleo, no qual a Petrobrás, empresa ainda estatal, aumentou consideravelmente seu peso no mercado domestico. 3.2.2. Setores Conforme já descrito, a década de 1990 foi marcada no Brasil por duas mudanças no regime econômico e competitivo: a liberalização econômica e a estabilização monetária (Kupfer, 1998). A indústria nacional passou a enfrentar um ambiente caracterizado por sobrevalorização cambial, taxas de juros elevadas e redução das barreiras à entrada de empresas estrangeiras. Em primeiro lugar, como já apontado, o resultado deste cenário foi a deterioração da balança comercial brasileira e a entrada de capital estrangeiro para financiar este déficit, o que, por sua vez, elevou a vulnerabilidade externa da economia nacional. Além disso, a década de 1990 foi para a economia brasileira um período de baixo crescimento dos investimentos. Por fim, após análise dos impactos da liberalização sobre a composição e os níveis de produtividade da estrutura industrial brasileira, vê‐se em Ferraz, Kupfer e Iootty (2004) que de uma forma geral, a indústria doméstica se adaptou de forma diferenciada às reformas da década de 1990, tornando‐se mais competitiva em alguns casos. No entanto, parte do aumento da produtividade na indústria decorreu da maior importação de insumos e bens intermediários, o que por sua vez contribuiu para o rompimento e a fragilização de alguns elos da cadeia produtiva no Brasil. Na realidade, a liberalização comercial levou à modernização produtiva via simplificação de produtos e processos e outsourcing de insumos, resultando aumentos importantes da produtividade da indústria. A Tabelas 6, referente à evolução da composição do valor adicionado da indústria entre 1990 e 2003, permite uma primeira avaliação sobre a evolução da estrutura industrial do país. Entre 1990 e 1994, esta 22 estrutura permanece basicamente congelada, com uma ligeira redução do peso dos setores de Recursos Naturais e aumento da Indústria Tradicional. TABELA 6 COMPOSIÇÃO DO VALOR ADICIONADO (VA) E PESSOAL OCUPADO (PO) ENTRE 1990 E 2003 Em % Grupos Recursos Naturais Tradicional Maior Conteúdo Tecnológico Total 1990 1994 1999 2003 VA PO VA PO VA PO VA PO 39,6 33,3 27,1 100,0 30,7 45,2 24,2 100,0 38,6 34,0 27,4 100,0 30,6 46,5 22,9 100,0 41,3 34,9 23,8 100,0 33,7 54,6 11,7 100,0 47,2 30,3 22,5 100,0 32,7 54,6 12,7 100,0 Fonte: IBGE/PIA Empresa No entanto, após 1994, com a estabilização e abertura, a parcela ocupada pelas indústrias de maior conteúdo tecnológico inicia uma trajetória de queda, passando para 22,5% do VA em 2003. Por outro lado, o grupo da indústria tradicional chega a ultrapassar a indústria de recursos naturais em participação entre 1995 e 1999. Após 1999, os setores baseados em recursos naturais, liderados pelo setor petróleo, passam a assumir a liderança na estrutura industrial brasileira. De acordo com o IBGE, entre os setores que mais ganharam peso na produção industrial durante a década de 1990 estão o de Alimentos e Bebidas (que eleva a sua participação de 12,43 para 18,25%) e a Indústria Química. Por outro lado, os setores produtores de Material Elétrico e de Comunicações, a Indústria Mecânica, a Metalúrgica, a Têxtil, e, finalmente, a Indústria de Artigos de Vestuário, Couro e Calçados reduziram significativamente seu peso no VA durante todo o período. As mudanças ocorridas na estrutura do emprego industrial ao longo do período 1990‐2003 também podem ser vistas na Tabela 6. Apesar da mudança de metodologia da Pesquisa Industrial Anual que ocorre em 1996 e dificulta a avaliação da série de forma contínua, ainda é possível observar, mais uma vez, que o período 1990‐1994 não apresenta mudança estrutural relevante. No entanto, durante o período 1995‐2003 ocorrem mudanças importantes na estrutura do emprego, com queda de dez pontos percentuais da participação relativa nos setores de maior conteúdo tecnológico. Há um ligeiro aumento na participação relativa do emprego nos Recursos Naturais e um crescimento de 8 pontos percentuais para a o grupo Tradicional que mantêm a maior parte do emprego industrial do país. As exportações no período aumentam substancialmente para todos os setores, conforme aponta o Gráfico 7, com destaque para as indústrias de bens de consumo duráveis e não duráveis. As participações 23 na pauta oscilam ao longo da década, com aumento seguido de queda do peso da indústria Tradicional, e trajetória reversa seguida pelas indústrias de maior conteúdo tecnológico, conforme revela a Tabela 7. GRÁFICO 7 QUANTUM EXPORTADO POR CATEGORIA DE USO (BASE 2006) ENTRE 1990 E 2003 90 80 Bens de Capi tal 70 60 Bens de cons umo durávei s 50 40 30 Bens de cons umo não durávei s 20 Bens Intermedi ári os 10 0 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 Fonte: FUNCEX TABELA 7 COMPOSIÇÃO DO VALOR DAS EXPORTAÇÕES (X) E IMPORTAÇÕES (M) ENTRE 1990 E 2003 Em % Grupos Recursos Naturais Tradicional Maior Conteúdo Tecnológico Total 1990 X 61,9 18,0 20,1 100,0 M 56,8 10,2 33,0 100,0 1994 X 57,8 19,8 22,4 100,0 M 44,8 11,6 43,6 100,0 1999 X 54,7 19,3 26,0 100,0 M 39,5 10,6 49,9 100,0 2003 X 55,3 18,3 26,4 100,0 M 48,1 9,1 42,8 100,0 Fonte: FUNCEX Sob um regime de liberalização econômica, estabilização e crescimento –como foi o período aqui analisado‐ o perfil das importações apresenta mudanças importantes, principalmente para os bens de maior conteúdo tecnológico. Como mostra o Gráfico 8, as importações aumentam fortemente para todas as categorias de uso entre 1990 e 1997, se estabilizando após esta data, quando emerge a crise asiática e o câmbio sofre desvalorização. Do início da década até 1998, os bens de maior conteúdo tecnológico aumentaram substancialmente seu peso no valor das importações, em detrimento, sobretudo, das importações de commodities. Esta mudança reflete as estratégias das firmas industriais após a abertura de redução de custos via contração do leque de produtos fabricados no país e substituição por 24 componentes importados. Este ajuste, como destacado em Teixeira e Ferraz (1996) foi facilitado pela grande oferta de inovações genéricas a baixo custo, como componentes microeletrônicos de automação industrial. Já após 1999 nota‐se uma lenta reversão deste processo, com redução da participação de bens sofisticados na pauta importadora. GRÁFICO 8 QUANTUM IMPORTADO POR CATEGORIA DE USO (BASE 2006) ENTRE 1990 E 2003 160 140 Bens de Capi tal 120 100 Bens de cons umo durávei s 80 Bens de cons umo não durávei s 60 40 Bens Intermedi ári os 20 0 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 Fonte: FUNCEX Em termos de composição, a principal mudança é observada no grupo de maior conteúdo tecnológico. A partir de 1991 e até 1998 as importações neste grupo crescem a taxas positivas, passando de 33,2% do total naquele ano para 50,1% em 1998. A partir de então se observa queda, atingindo 42,8% em 2003. O grupo tradicional, como era de se esperar, é aquele com menor propensão à importação, mantendo‐se a participação do grupo na faixa de 10%, com um pico de 14,0% do total em 1996. Os recursos naturais, por outro lado, que respondiam por mais da metade das importações no início, terminam o período com 44,8% do total. 3.2.3. Atores Com relação ao esforço de formação de capital do país, a trajetória de queda da participação dos investimentos públicos, já presente desde a década anterior, continua e até mesmo se intensifica. De fato, os investimentos públicos que chegaram a atingir 6% do PIB em 1982 e que já haviam caído para 4% em 1989, seguiram ladeira abaixo, situando‐se na casa dos 2% em 2002, como mostra o Gráfico 9. Já a Formação Bruta do Capital Fixo do setor privado sofreu redução em um primeiro momento, entre 1990 e 1993 (de 12 para um pouco mais de 9% do PIB), aumentando entre 1993 e 1997, e voltando a cair entre 25 1998 e 2003, sugerindo que a estabilização monetária proporcionada pelo Plano Real teve fôlego curto na mudança das condições de atratividade dos investimentos no país, com o retorno de um quadro de grande incerteza após a crise cambial de 1999 e a crise sucessória de 2002‐2003. GRÁFICO 9 FORMAÇÃO BRUTA DO CAPITAL FIXO DOS SETORES PUBLICO E PRIVADO EM % DO PIB (EM R$ DE 1980) ENTRE 1990 E 2002 14,00 12,00 10,00 8,00 6,00 4,00 2,00 0,00 1990199119921993199419951996199719981999200020012002 FBCF do s etor públ i co (% do PIB FBCF do s etor pri va do (% do Fonte: IBGE/SCN 2000, IBGE/RTSP, IPEA Boa parte desse desempenho decrescente do investimento público decorreu do avanço do processo de desestatização que marcou a política econômica desses anos, inicialmente com a predominância da venda de empresas da indústria de transformação de 1991 a 1996 e, posteriormente, do segmento de serviços, de 1997 em diante. Diferentemente da distribuição setorial, a estrutura da indústria segundo a nacionalidade do capital sofreu grandes transformações nesses anos, muito em decorrência do processo de desestatização, mas não apenas por essa razão. Estudo realizado por Kupfer (2002) com um grupo de empresas líderes mostrou que os resultados do programa de desestatização implementado pelo governo brasileiro na primeira metade da década de 90 repercutiram mais amplamente na indústria baseada em recursos naturais, haja vista que era nesse segmento que estava concentrada a participação das empresas estatais. De fato, as empresas estatais, cujo faturamento se aproximava da metade do obtido pelo grupo de empresas líderes desse segmento em 1991, viu‐se resumida exclusivamente à Petrobras já em 1996. O declínio das empresas estatais correspondeu inicialmente ao incremento da participação das empresas nacionais, situação, porém, registrando as seguir um grande avanço das empresas multinacionais na produção de commodities, que chegaram a 1999 com um market‐share bem próximo ao das empresas nacionais. 26 Na indústria de maior conteúdo tecnológico, a década de 1990 foi um período de ratificação da crescente hegemonia do capital estrangeiro. As empresas multinacionais, que controlavam cerca de 50% das receitas das empresas desse segmento em 1991, evoluíram continuamente no período, atingindo a quase totalidade do mercado, revelando a perda de competitividade das empresas nacionais nesse segmento e também o fasto de o Estado, cuja participação em 1991 limitava‐se à Embraer, ter se retirado completamente do segmento. Mesmo na indústria tradicional verificou‐se transformação similar, com as empresas multinacionais, que representavam pouco mais da metade das receitas obtidas pelas empresas nacionais em 1991, terminando a década praticamente em pé de igualdade com o capital local. Enfim, a década caracterizou‐se por um processo de desconcentração econômica, causado principalmente pelo fracionamento de algumas grandes empresas estatais e por grande número de entradas de novas empresas multinacionais no país. No sub‐período 1991‐1996 houve importante redução do peso das empresas estatais e aumento do das empresas privadas, independentemente da nacionalidade, caracterizando uma etapa de desestatização. Já no sub‐período 1996‐1999, houve transferência de receita das empresas nacionais, independentemente da natureza pública ou privada, para as empresas multinacionais, configurando uma etapa de desnacionalização. As grandes empresas privadas nacionais foram deslocadas da indústria para os serviços, em particular, atividades relacionadas à infra‐estrutura. O processo de privatização teve grande importância na explicação das mudanças observadas no perfil de especialização das empresas no período, mas fatores relacionados à liberalização e à estabilização monetária também desempenharam importante papel na maior atratividade ao investimento direto externo que, mesmo que em sua maior parte tenha visado somente a aquisição de ativos pré‐existentes, pode ser considerado muito intenso, especialmente nos poucos anos de maior estabilidade macroeconômica que decorreram do Plano Real até a crise cambial de 1999. 27 4. A RETOMADA DO EMPUXO INTERNO EM 2004‐2008 E A CRISE: STOP OR GO? Após duas décadas de busca incessante de condições macroeconômicas mais favoráveis à retomada do crescimento econômico, foi apenas no período mais recente, que se inicia em meados de 2004 e se estende até setembro de 2008, quando do início da fase aguda da crise financeira internacional, que a economia brasileira passou a exibir claros sinais de que uma importante inflexão na trajetória anterior de desenvolvimento encontrava‐se latente. De fato, é visível que nesses pouco mais de quatro anos algumas importantes transformações nas condições de contorno da economia brasileira tiveram lugar: a estabilidade macroeconômica se consolidou, as exportações cresceram em um ritmo inimaginável e, acima de tudo, o mercado interno ressurgiu como principal força dinamizadora do crescimento. Cada uma dessas mudanças foi o reflexo de múltiplas causas. A consolidação da estabilidade decorreu de uma intrincada conjunção de interesses que congelou um modelo macroeconômico que, mais devido a sua continuidade do que devido ao acerto das diretrizes da política econômica nele contidas, teve o mérito de assegurar uma transição política sem maiores rupturas que pudessem comprometer de modo irreversível as expectativas dos agentes. Já a disparada das exportações refletiu fatores exógenos, ligados ao contexto internacional favorável que vigorava especialmente nos mercados das commodities agrícolas e metálicas no quais o Brasil apresenta boa inserção, mas também foi fruto do aproveitamento das oportunidades trazidas pela reestruturação estratégica promovida pelas grupos empresariais brasileiros, que aos poucos vinham buscando o mercado externo como uma opção mais permanente de receitas e não somente como escoadouro de excedentes nas fases de recessão. Finalmente, o aumento da importância do mercado interno deu‐se como resposta aos efeitos de políticas de rendas adotadas pelo governo brasileiro dentre as quais se destacam a consolidação e ampliação do programa de transferência de renda condicional –Bolsa Família‐ e também, e principalmente, o crescimento real do salário mínimo. Também o retorno do crédito ao consumo que, com a maior estabilidade econômica, pode ser direcionado também para as classes de menor renda, ajuda a explicar a grande aceleração experimentada pelo consumo doméstico no período. Todos esses fatores conjugados estavam promovendo aquilo que provavelmente constituía a mais significativa de todas as mudanças em curso nesses anos: tomava forma no país um forte ciclo de investimentos, como não se via desde a década de 1970. Como mostra o Gráfico 10, eram muitas as evidências desse fato. Desde 2005 a formação bruta de capital passou a crescer sistematicamente à 28 frente do PIB, atingindo às vésperas do evento Lehman Brothers, que precipitou a crise financeira internacional em setembro de 2008, uma taxa de crescimento, na margem, de quase 20% para uma expansão do PIB da ordem de 6% (gráfico à esquerda). Com isso, a taxa de investimento como proporção do PIB vinha em contínua ascensão, tendo deixado um piso de menos de 14% do PIB no primeiro trimestre de 2004 e rumava para valores já superiores a 19% no final de 2008, antes de a grande crise vir a se manifestar (gráfico à direita). Evidentemente a crise internacional modificou profundamente essa trajetória, haja vista que, assim como em tantos outros países, o seu contágio no Brasil deu‐se com grande força. Foram marcantes as quedas sofridas pelo produto industrial, pelo comércio internacional e pela formação bruta de capital. A produção industrial, por exemplo, contraiu‐se 20% entre setembro e dezembro de 2008, em grande medida em função da queda das exportações de manufaturados. Desses, 12% já foram recuperados entre dezembro de 2008 e junho de 2009, sinalizando que a retomada dos níveis prévios de expansão do mercado nacional parece ser agora apenas uma questão de tempo. GRÁFICO 10 EVOLUÇÃO RECENTE DO INVESTIMENTO: TAXA DE VARIAÇÃO ANUAL E PROPORÇÃO DO PIB ENTRE 2004 T1 E 2009 T2 25 19 20 18 15 17 Taxa de investimento (preços 2006) ‐ % PIB 10 16 5 15 ‐5 2 0 0 4 T 1 2 0 0 4 T 2 2 0 0 4 T 3 2 0 0 4 T 4 2 0 0 5 T 1 2 0 0 5 T 2 2 0 0 5 T 3 2 0 0 5 T 4 2 0 0 6 T 1 2 0 0 6 T 2 2 0 0 6 T 3 2 0 0 6 T 4 2 0 0 7 T 1 2 0 0 7 T 2 2 0 0 7 T 3 2 0 0 7 T 4 2 0 0 8 T 1 2 0 0 8 T 2 2 0 0 8 T 3 2 0 0 8 T 4 2 0 0 9 T 1 0 14 13 ‐10 12 ‐20 Taxa de Variação da Formação de Capital Fixo (Tri/Tri‐4) Taxa de Variação do PIB (Tri/Tri‐4) 2 0 0 9 T 2 2 0 0 9 T 1 2 0 0 8 T 4 2 0 0 8 T 3 2 0 0 8 T 2 2 0 0 8 T 1 2 0 0 7 T 4 2 0 0 7 T 3 2 0 0 7 T 2 2 0 0 7 T 1 2 0 0 6 T 4 2 0 0 6 T 3 2 0 0 6 T 2 2 0 0 6 T 1 2 0 0 5 T 4 2 0 0 5 T 3 2 0 0 5 T 2 2 0 0 5 T 1 2 0 0 4 T 4 2 0 0 4 T 3 2 0 0 4 T 2 2 0 0 4 T 1 ‐15 Fonte: IBGE/SCN Em um plano de análise mais conjuntural, essa reação rápida da economia pode ser em grande medida atribuída, primeiro, ao fato de que o mercado de trabalho passou quase que incólume pela crise, contribuindo para a manutenção da renda das famílias; segundo, como efeito de diversas políticas anticíclicas de sustentação da demanda interna, como desonerações tributárias sobre bens duráveis e de capital e o aumento dos gastos correntes e do investimento públicos em obras de infraestrutura e em programas de construção habitacional e; terceiro, ao maior ativismo dos bancos públicos – BNDES, Banco 29 do Brasil e Caixa Econômica Federal na concessão de empréstimos, melhorando as condições de liquidez da economia. . Contudo, em um plano de análise mais estrutural, na medida em que os efeitos da grande crise forem ficando para trás, os desafios para o desenvolvimento industrial que já estavam postos desde a retomada pós‐2004 irão retornar, provavelmente com maior força, em vista das implicações que uma expansão mais lenta da economia mundial tenderá a trazer sobre o acirramento da competitividade e a modificação dos padrões de concorrência, tanto para os exportadores brasileiros nos mercados internacionais, quanto para os fabricantes domésticos no mercado nacional. Por isso a saída da crise exigirá muito mais do que tão somente recuperar as engrenagens do círculo virtuoso do crescimento recente que, como visto, estava associado à transferência gradual do pólo dinâmico da economia brasileira inicialmente das exportações para o consumo interno e, mais recentemente, daí para o investimento. Isso porque, em paralelo a esse movimento, a atividade industrial via‐se enredada em um círculo nada virtuoso da especialização regressiva: maior competitividade das atividades baseadas em recursos naturais; concentração da pauta de produção e exportação nesses produtos com dependência crescente de importações dos demais; perda de densidade nas cadeias produtivas, aumento do hiato de produtividade e inovação do restante da indústria, maior atratividade dos investimentos nos setores de recursos naturais, aumento da competitividade desses setores. Sem quebrar essa circularidade não desejável, dificilmente o desafio competitivo trazido pelo novo cenário econômico mundial será superado. Esse tema iremos abordar na próxima seção. 5. CONSIDERAÇÃOES FINAIS: OS 50 ANOS EM 50 ‐ UMA VISÃO DE CONJUNTO Ao longo das seções anteriores foi possível traçar uma linha do tempo do processo de desenvolvimento, industrial brasileiro nos últimos 50 anos, organizando essa trajetória em torno de duas diferentes forças: o empuxo interno do período desenvolvimentista e o empuxo externo do período de busca da estabilidade. Nessa seção, a título de conclusão, pretendemos avançar na proposição de três fatos estilizados que permitem a construção de uma visão de conjunto dessa trajetória de industrialização. São eles: i. a importância do mercado interno, em particular do investimento, como driver estratégico de um crescimento expressivo e sustentado 30 No gráfico 11 é possível perceber que ao longo das últimas quatro décadas o crescimento da economia brasileira foi majoritariamente liderado pela demanda interna, exceto nos dois períodos que se estendem entre 1981 e 1984 e 1999 e 2003. Não por coincidência, estes dois períodos apresentaram taxas médias de crescimento relativamente baixas, principalmente quando comparados aos demais períodos. Percebe‐ se, também, que o padrão de crescimento da década de 1970, no qual todos os componentes apresentavam crescimento positivo e significativo, somente veio a ocorrer novamente no período mais recente, como se depreende da semelhança entre os padrões de crescimento desses dois períodos. Particularmente marcante no período 2004‐2007 e em especial no primeiro semestre de 2008 foi a alta contribuição do investimento para o PIB em comparação aos baixos valores que foram típicos do período anterior (1994‐2003), para não mencionar a contribuição negativa ocorrida no período 1990‐1993, também reproduzindo similaridade com os padrões verificados na década de 1970. GRÁFICO 11 DECOMPOSIÇÃO DA VARIAÇÃO MÉDIA ANUAL DO PIB ENTRE 1970 E 2008 16% 14% 12.3% 12% 10% 7.2% 5.1% 8% 6% 4.1% 4.5% 3.1% 4% 0.1% -0.7% 2.1% 2% 0% -2% -4% 1970-1973 1974-1980 1981-1984 1985-1989 1990-1993 1994-1998 1999-2003 2004-2007 Consumo final Formação Bruta de Capital Fixo Exportações Importações 2008 1s PIB Nota: a taxa exibida acima de cada barra refere‐se à taxa média de crescimento do PIB ao longo do período. Fonte: elaboração própria com base em IBGE/SCN. ii. a integração da economia brasileira à economia internacional como fornecedora de matérias‐ primas O segundo fato relevante é a crescente integração à economia internacional experimentada pela economia brasileira, demonstrada pela rápida expansão da corrente de comércio ao longo do tempo. O Gráfico 11 apresenta a evolução dos números referentes ao comércio exterior brasileiro de 1980 até 31 hoje. Verifica‐se que nos últimos dez anos as vendas ao exterior do Brasil alcançaram taxas de expansão superiores a 20% ao ano, levando a que o valor total exportado pelo país duplicasse no período, colocando o Brasil no seleto clube dos países alcançam vendas externas na casa de 200 bilhões de dólares anuais ou mais. É interessante enfatizar que a análise do desempenho de longo prazo da corrente de comércio exterior brasileira mostrado no gráfico sugere que as exportações seguem uma trajetória de expansão suave e contínua, independente das oscilações da economia, enquanto as importações, ao contrário, têm um comportamento extremamente irregular, com explosões e contrações comandadas pelo quadro macroeconômico. GRÁFICO 12 BALANÇA COMERCIAL BRASILEIRA 1980‐2008 400.000 375.000 350.000 325.000 300.000 275.000 250.000 1000 Us$ 225.000 200.000 175.000 150.000 125.000 100.000 75.000 50.000 25.000 0 ‐25.000 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Exportações Importações Saldo Corrente de Comércio Quando colocados em perspectiva internacional, porém, esse desempenho é nada mais do que mediano, isto é, a despeito de todo o crescimento absoluto ocorrido, as exportações de manufaturados expandiram‐se em ritmo inferior ao dos nossos concorrentes. Em 1980, as exportações brasileiras eram de 20,1 bilhões de dólares, valor que correspondia a 1,17% do comércio internacional, de acordo com UNCTAD. Mesmo com os excelentes resultados conseguidos nos últimos anos, a participação brasileira na corrente de comércio mundial alcançou 1,18% em 2007, após ter atingido um máximo de 1,38% em 1984 e um mínimo de 0,84% em 1999. Em termos da composição da pauta de exportação, os dados também não são muito alvissareiros, tendo ocorrido um aumento do market‐share apenas para os produtos agrícolas. 32 iii. a lenta evolução da estrutura industrial na direção de crescente participação de atividades associadas aos recursos naturais Quando se observa a evolução da composição do valor adicionado na indústria brasileira, mostrada no Gráfico 13 para o período 1959‐2007, verifica‐se que houve avanço da participação dos setores baseados em recursos naturais (agropecuários ‐ complexo soja, carnes ou industriais ‐ mineração, siderurgia, petroquímica), com uma nítida aceleração a partir da abertura comercial no início dos anos 1990. Já para a indústria tradicional, voltada para a produção de bens de consumo não durável (alimentos, complexo têxtil‐calçados, móveis) e o suprimento dos insumos industriais mais simples e com menores requisitos de escala (produtos de metal, plásticos, químicos diversos), é inquestionável a perda de peso que vem ocorrendo desde a década de 1980, quando da estagnação da renda nacional, acelerada após a adoção do regime de câmbio flutuante em 1999. Em uma situação intermediária fica o conjunto de setores de maior conteúdo tecnológico (material de transporte, mecânica, eletrônica) que, se não recuou no período coberto pelos dados, atravessou uma fase bastante adversa no período dos anos finais da década de 1990 e iniciais da atual década. GRÁFICO 13 PARTICIPAÇÃO RELATIVA NO VALOR DE TRANSFORMAÇÃO INDUSTRIAL DE TRÊS GRUPOS DE ATIVIDADES ECONÔMICAS (1957‐2007) 0,50 0,45 0,40 0,35 0,30 0,25 0,20 19 67 19 69 19 71 19 73 19 75 19 77 19 79 19 81 19 83 19 85 19 89 19 91 19 93 19 95 19 97 19 99 20 01 20 03 20 05 20 07 19 59 0,15 Recursos Naturais Fonte: IBGE Tradicional Maior Conteúdo Tecnológico Esse comportamento de longo prazo da estrutura produtiva confirma que está em curso um processo 33 lento mas persistente de especialização da indústria brasileira em setores produtores de commodities. Nesse processo, na contramão do que vem ocorrendo nas indústrias líderes mundiais, são os setores intensivos em recursos naturais, menos dinâmicos na geração de renda e emprego e mais sujeitos aos ciclos de preços e quantidades do comércio internacional, que vêm conseguindo evoluir positivamente. Reverter esse quadro indesejável é o principal desafio a ser superado. Como mencionado na introdução, este artigo é um esforço exploratório, essencialmente empírico e descritivo, visando reunir informações sobre a mudança estrutural ‐ ou sobre a sua ausência ‐ na indústria brasileira para relatar uma história complexa e de longa duração. Embora extenso, certamente esse relato não é exaustivo. Muito mais do que esgotar um tema, aqui vislumbramos um vasto programa de investigação para rever argumentos, alcançar maior precisão nas conclusões e, principalmente, identificar causalidades e determinantes mais sólidos para explicar o longo e sinuoso caminho do desenvolvimento industrial brasileiro nos últimos 50 anos. A apreciação do longo prazo realizada no artigo levou‐nos à única certeza possível: o desenvolvimento industrial depende, primeiro, da qualidade dos regimes econômicos praticados no país e, segundo, e mais fundamental, da habilidade dos governantes em conciliar a prudência imposta pelos objetivos de estabilidade com a ousadia requerida pelos objetivos de desenvolvimento nos diferentes momentos da história econômica nacional e mundial. 6. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BONELLI, R.; GONÇALVES, R. R. (1998) “Para onde vai a estrutura industrial brasileira?” Texto para Discussão IPEA n. 540. CASTRO, Antônio B.; SOUZA , Francisco E. P. (1985). A Economia Brasileira em marcha forçada, Paz e Terra. FERRAZ, J.C., KUPFER, D. e IOOTTY, M. (2004) “Competitividad industrial em Brasil: 10 años después da la liberalización”. Revista de la CEPAL 82, abril 2004. KUPFER, D. (2005) A indústria brasileira após a abertura in CASTRO, A. C.; LICHA, A. PINTO JR. H. Q.; SABÓIA, J. 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