ABORTO NO RECIFE: DIREITO CANÔNICO ACIMA DO DIREITO CIVIL ? Mais uma vez, a imprensa noticia o resultado da perversidade existente no interior do que tanta gente considera uma santa instituição, base da sociedade sadia: “a família”. Neste caso, um padrasto abusava sexualmente de suas duas enteadas, uma de 14, outra de 9 anos, em Alagoinha, no Estado de Pernambuco. A mais nova engravidou e o diagnóstico médico foi taxativo: a gravidez de gêmeos ameaçava a vida da menina, portanto, o aborto foi o procedimento médico recomendado. Além da concordância da mãe, o aborto tinha toda a cobertura da legislação brasileira, por duas razões: ameaça à vida da menina e gravidez resultado de estupro. Mas, com base em procuração passada pelo pai estuprador, o Arcebispo de Olinda e Recife, José Cardoso Sobrinho tentou acionar a Justiça contra o que seria um atentado contra “a vida” – mas não foi rápido o bastante. O aborto foi realizado e o Arcebispo usou da chantagem religiosa, excomungando a mãe da menina e os profissionais de saúde que atuaram no caso. O padrasto agressor sexual não foi excomungado pelo Arcebispo, que julgou seu ato menos grave do que o aborto. Houve cronistas que identificaram aí um incentivo aos estupradores, como no famigerado apelo de Paulo Maluf: “estupra, mas não mata”. A diretora do Centro Médico, Dra Fátima Maia, uma das excomungadas, declarou ao jornal O Globo (06/03/2009): “Sou católica, mas dirijo uma entidade que está habilitada a fazer o aborto legal. Teria feito novamente. Se não fosse assim, essa criança poderia no mínimo ficar estéril ou até morrer. Ela poderia sofrer ruptura do útero, hemorragia, eclampsia ou parto prematuro, pois não tinha condições físicas para levar a gestação até o fim.” O Dr. Sérgio Cabral, médico da mesma instituição, declarou a um jornalista que a excomunhão não o abalou em nada. Nem por um segundo hesitou no procedimento médico. E completou: “De forma alguma vamos tolerar a intromissão da Igreja ou de outras instituições em políticas públicas. O que fizemos foi executar a lei. Quanto mais o Estado oferecer esse tipo de serviço, com certeza menos abortos clandestinos serão praticados e menores os índices de óbitos de mulheres.” (O Globo, 15/3/2009) O Dr. Olímpio Moraes, outro médico da equipe que procedeu ao aborto, minimizou a excomunhão recebida do cardeal. Em 2008, ele já havia sido alvo de idêntica qualificação por ter distribuído camisinhas e “pílulas do dia seguinte”. Apesar de duas vezes excomungado seu nome foi aplaudido após ser mencionado na abertura do Seminário Nacional Saúde da Mulher, em Brasília, em 9/3/2009. O Dr. Rivaldo Mendes de Albuquerque, também foi excomungado pelo Arcebispo pela segunda vez. A primeira foi quando da inauguração do serviço de atendimento de mulheres vítimas de violência sexual na Universidade Estadual de Pernambuco. Agora, membro da equipe médica que procedeu ao aborto em questão, disse que a segunda excomunhão não lhe fechou os olhos diante da realidade. “A violência contra a mulher existe, e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres têm de ser respeitados. O aborto ser crime não protege as mulheres, não evita que ocorra, nem dá saúde à mulher. Ou seja: não resolve o problema. A descriminalização pode melhorar essa situação. Com ela, teremos de respeitar a vontade das pessoas. O Estado é laico e deveria agir com tal, não cedendo às pressões da Igreja.” (CartaCapital, 18/3/2009) O Ministro da Saúde José Ramos Temporão criticou a posição do Arcebispo, qualificando-a de “lamentável”. Em declaração televisada, o Presidente Lula protestou contra a excomunhão em evento público no Estado do Espírito Santo, em 06/03/2009. Disse o Presidente: “Como cristão e como católico, lamento profundamente que um bispo da Igreja Católica tenha um comportamento, eu diria, conservador como esse. Não é possível permitir que uma menina estuprada pelo padrasto tenha esse filho, até porque a menina corria risco de vida. Eu acho que, neste aspecto, a Medicina está mais correta do que a Igreja.” (O Globo, 07/03/2009) Empregando linguagem menos erudita, o Presidente Lula sintonizou-se com Pedro II. Em visita ao Colégio Caraça, em 1881, o Imperador assistiu aula do padre Chavanat, sobre Direito Canônico, que defendeu a supremacia do Direito Eclesiástico sobre o Direito Civil. O professor foi interrompido pelo Imperador, que, diante dos alunos, protestou contra o ensino de uma doutrina inconstitucional. (Confira em José Murilo de Carvalho, Dom Pedro II, página 143). A jornalista Fernanda da Escóssia manifestou veemente repúdio ao ato do arcebispo José Cardoso Sobrinho: “O absurdo, o covarde, o inaceitável, é a idéia de usar a fé para penalizar a quem tenta permitir que uma criança de nove anos junte os cacos de uma infância despedaçada. Em nome da fé, a Arquidiocese de Olinda e Recife volta aos tempos medievais e patrocina uma pequena inquisição. Mas a fé não pode ser empecilho para o amor de uma mãe por uma filha, de um médico por seu paciente. Em nome da Fé, a Arquidiocese atira a primeira pedra. Mais uma vez, a primeira pedra tem nome: intolerância.” (O Globo, 7/3/2009) Walter Fanganiello Maierovitch, cronista de CartaCapital, escreveu na edição de 18 de março de 2009, a crônica “Abalos vaticanos”, que focaliza várias questões, inclusive o montante das indenizações financeiras a que a Igreja Católica foi condenada a pagar, da ordem de 1,5 bilhão de dólares, por acusações comprovadas de pedofilia e abusos sexuais cometidos por sacerdotes. As excomunhões feitas pelo Arcebispo José Cardoso Sobrinho integram o complexo mosaico desses abalos. Ao fim da matéria, o jornalista mostrou que o problema não era a posição religiosa do Arcebispo, mas a tentativa de intromissão na ação do Estado. “Não se discute tenha ele atuado de acordo com conhecida posição da Igreja. O que não se pode aceitar é a impropriedade de sair a divulgar, repudiar e demonizar pessoas e se intrometer em âmbito laico.” O site da revista CartaCapital indagou de seus visitantes na semana 07 a 13/03/2009 o que pensavam do caso em questão. As respostas de 3,4 mil internautas não deixam dúvida: 93% disseram que a mãe e os médicos tomaram a decisão certa; e apenas 6% deram razão ao Arcebispo, porque a menina não poderia ter a gravidez interrompida. Atentas para o Dia Internacional da Mulher, 8 de março, as “Católicas pelo Direito de Decidir” manifestaram sua opinião no texto “Insanidade, crueldade ou princípios cristãos ?”, que finaliza com veemente condenação ao ato do cardeal: “Assusta-nos o desprezo pela vida das mulheres. Assusta-nos que suas histórias sejam descartadas, que sua existência na Terra esteja valendo menos do que a crença autoritária de umas poucas pessoas. Para que a nossa democracia seja efetiva, as pessoas precisam ter o direito real de escolher. Por isso, defendemos que as políticas públicas de saúde reprodutiva e os direitos reprodutivos já conquistados sejam garantidos. Além disso, lutamos pela legalização do aborto, para que as mulheres que assim desejem, possam levar qualquer gravidez até o fim. Mas que as que não o desejam, não sejam obrigadas a arriscar suas vidas, ou mesmo morram, por se pautarem por valores éticos distintos.” Veja todo o texto em www.catolicasonline.org.br A repercussão nacional e internacional da atitude do Arcebispo de Olinda e Recife, assim como as manifestações de indignação que ela suscitou levaram a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil a contemporizar. Em entrevista coletiva, o Secretário da CNBB, o bispo auxiliar do Rio de Janeiro Dimas Lara Barbosa, buscou uma via diplomática de desmentir sem contestar. Ele declarou que seu colega fora mal interpretado, que ninguém havia sido de fato excomungado. O que o Arcebispo José Cardoso Sobrinho teria feito foi anunciar que o aborto acarreta a possibilidade dessa pena. A menina estuprada não teria consciência do aborto e sua mãe teria agido sob pressão. Estariam a salvo. Mas, para a equipe médica, essa sim, “vale a punição da Igreja”, porque declarou ter a intenção de praticar o aborto. Passando do plano da excomunhão para o do pecado mortal, o Secretário da CNBB declarou que estupro é pecado mortal, assim como o assassinato, usando da fórmula ambígua para deixar entrever a categorização da doutrina católica, do aborto, em qualquer circunstância, como um assassinato. Artigo publicado no L´Osservatore Romano, em 15/03/2009, o Presidente da Pontifícia Academia para a Vida, monsenhor Salvatore Rino Fisichella, não criticou a excomunhão da equipe médica, mas disse que estenderia a punição simbólica ao estuprador. Para o monsenhor, seria necessário, antes de tudo, salvaguardar a vida inocente da menina. Sua maior objeção foi, no entanto, à sequência dos atos do dirigente religioso de Pernambuco, que acabou por levar ao conflito entre o Governo brasileiro e a Igreja Católica. Lamentavelmente, isso “prejudicou a credibilidade de nossas instruções que, para muitos, parecem marcadas por insensibilidade, incompreensão e falta de misericórdia.” (El País, 16/03/2009) Ou seja, a falta de tato do Arcebispo de Pernambuco foi ruim para a imagem da Igreja Católica. No mesmo sentido, o Arcebispo de Paris, Cardeal Vingt-Trois, apresentou seu ponto de vista sobre a excomunhão da equipe médica pernambucana em seu programa de rádio dominical de 15/03/2009. Além de se juntar aos que priorizam a atitude de auxílio da Igreja aos que sofrem, o Arcebispo disse que seu colega de Olinda e Recife não deveria ter feito a condenação, “por razões táticas”, nada desprezíveis em um momento em que outros hierarcas católicos têm despertado indignação, em todo o mundo, como a revogação, pelo Papa Bento XVI, da excomunhão do bispo britânico Richard Williamson, que minimizou o massacre dos judeus nos campos de concentração nazistas. Aliás, o bispo havia sido excomungado por ter recebido esse status fora do controle do Papa, não por suas declarações políticas. Entrevistado pela revista Veja (no. 2.014, de 18/03/2009), o Arcebispo José Cardoso Sobrinho manteve sua posição quando confrontado com as repercussões negativas de sua intervenção no caso. Disse que sentiria remorso se nada fizesse diante dos 50 milhões de abortos que se fazem em todo o mundo, anualmente, escala muito maior do que o do holocausto, no qual teriam sido mortos 6 milhões de judeus. Dráusio Varella, o médico mais conhecido do Brasil, por sua participação em programa dominical da Rede Globo, publicou artigo no qual fez uma análise política do caso, para além da situação imediata. Disse ele: “Os males que a Igreja causa à sociedade, em nome de Deus, vão muito além da excomunhão de médicos, medida arbitrária de impacto desprezível. O verdadeiro perigo está em sua vocação secular para apoderar-se da maquinaria do Estado, por meio do poder intimidatório exercido sobre nossos dirigentes. Não por acaso, no presente episódio manifestaram suas opiniões cautelosas apenas o Presidente da República e o Ministro da Saúde. Os políticos não ousam afrontar a Igreja. O poder dos religiosos não é conseqüência do conforto espiritual oferecido a seus rebanhos nem de filosofias transcendentais sobre os desígnios do céu e da terra, ele deriva da coação exercida sobre os políticos.” (Folha de São Paulo, 14/03/2009). Tudo somado, as ressalvas do Vaticano e da CNBB não bastaram para dissimular a radical oposição da Igreja Católica, no Brasil, diante da descriminalização do aborto, que já tem apoio da maioria da população, inclusive dos católicos. Mas o episódio produziu um avanço na consciência a respeito da laicidade do Estado. Nunca se escreveu tanto, em nosso país, que o Estado é laico. E que não se deve permitir que a Igreja Católica interfira nas políticas públicas de saúde. De tanto se repetir isso, é possível que a idéia se materialize e o Estado brasileiro venha a tornar-se plenamente laico.