SÍLZIA ALVES CARVALHO PIETROBOM O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O PROCESSUALISMO CIENTÍFICO E A CRISE DOS PARADIGMAS Programa de Estudos Pós-graduados em Direito Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2006 SÍLZIA ALVES CARVALHO PIETROBOM O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O PROCESSUALISMO CIENTÍFICO E A CRISE DOS PARADIGMAS Programa de Estudos Pós-graduados em Direito Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de DOUTORA em Direito das Relações Sociais, sob a orientação da professora Doutora Haydeé Maria Roveratti. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2006 SÍLZIA ALVES CARVALHO PIETROBOM O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O PROCESSUALISMO CIENTÍFICO E A CRISE DOS PARADIGMAS Tese defendida no Programa de Estudos Pós-graduados em Direito da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, para obtenção do título de Doutora em Direito das Relações Sociais, aprovada em ________ de ______ de __________________, pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores: ____________________________________________ Profª. Drª. Haydeé Maria Roveratti. Orientadora ____________________________________________ ___________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ Dedico Este trabalho à vovó Norica pela lição mais preciosa que seu exemplo de vida ensina: o amor. AGRADECIMENTOS A todos que acreditaram na viabilidade deste projeto, oferecendo o seu apoio compreensão, incondicional, carinho e a sua dedicação. Especialmente, agradeço à professora Haydeé Maria Roveratti, à minha mãe, Luzia Alves Carvalho, e às minhas filhas, Sulanne e Francine. Esta vida é uma estranha hospedaria, De onde se parte quase sempre às tontas, Pois nunca as nossas malas estão prontas, E a nossa conta nunca está em dia. (Mário Quintana) RESUMO Admitindo-se que há discussões a respeito do caráter científico do direito, a pesquisa é iniciada com uma abordagem sobre as condições atuais do conhecimento científico. A partir disso, procurou-se contextualizar o direito cientificamente e no campo da teoria dos sistemas, a qual orienta metodologicamente o trabalho. Sob uma perspectiva sistêmica, tratou-se de demonstrar que o conhecimento do direito está estruturalmente vinculado à Constituição Federal. Neste aspecto, foi destacado o reconhecimento da existência de um Sistema Constitucional, que demandou estudos sobre as teorias materiais e a hermenêutica crítica da Constituição. O estudo dos princípios Constitucionais de processo foi realizado com o objetivo de estabelecer uma conexão entre a hermenêutica Constitucional e o direito processual. Ainda quanto à teoria dos sistemas, foi explicitado o referencial teórico adotado, apresentando-se os conceitos básicos e fundamentais da teoria autopoiética luhmanniana, através da qual o objeto do estudo foi examinado. A historicidade do processo foi realizada demonstrando-se que os seus problemas, atualmente em discussão, fazem parte de sua existência ao longo do tempo, portanto, a insatisfação com a prestação jurisdicional é um fenômeno histórico. Apresentada a análise sobre a instrumentalidade do processo no contexto da modernidade, tomou-se como referencial a crise dos paradigmas como proposto por Boaventura de Sousa Santos a fim de verificar as condições atuais do sistema jurídico em face dos sistemas social, político e econômico. Conclui-se por afirmar que os problemas ligados à realização prática do direito são sistêmicos, logo, dificilmente propostas dogmáticas que enfoquem o direito como sistema fechado terão êxito na obtenção de uma prestação jurisdicional célere e justa. ABSTRACT Admitting that there are some discussions concerning the scientific character of law, this research begins with an approach on today’s scientific knowledge. From this, it was tried to put the law in two contexts: first, the scientific one and second, in the field of systems theory, which methodologically directs the paper. Under a systemic perspective it was aimed to demonstrate that the law knowledge is structurally linked to the National Constitution. In this aspect, it was highlighted the acknowledgement of the existence of a constitutional system, which required some studies about the material theories and the Constitutional hermeneutic criticism. The study of the principles of constitutional process was performed aiming to establish a connection between the constitutional hermeneutic and the processual law. Still concerning the system theories, the adopted theoretical referential was explained by presenting the fundamental and basic concepts of the Luhmann´s autopoietic theory through which the study object was examined. The process historicity was performed demonstrating that its problems that are being discussed at present, are part of its existence throughout the time, therefore, the dissatisfaction with the jurisdictional role is historical. After presenting the analysis over the process instrumentality in the modernity context, it was adopted as a referential the paradigm crisis, as proposed by Boaventura de Souza Santos, aiming to verify the present conditions of the juridical system concerning the social, political and economical systems. In conclusion, it is possible to state that those problems related to the practical performance of law are systemic, and so, it is very difficult that dogmatic and other proposals, which focus the law as a close system, will succeed in obtaining a fast and fair jurisdictional performance. SUMÁRIO RESUMO ................................................................................................. 06 ABSTRACT .............................................................................................. 07 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................ 11 2 UMA PERSPECTIVA PARA A PESQUISA ........................................ 18 2.1 CONSTRUINDO A CIÊNCIA ................................................................. 21 2.2 A CIÊNCIA EM THOMAS KHUN .......................................................... 24 2.3 CIÊNCIAS NATURAIS E CIÊNCIAS SOCIAIS .................................... 42 2.4 QUESTÕES A RESPEITO DO ESTUDO DO DIREITO. ....................... 51 2.5 COMO CONHECER O DIREITO? .......................................................... 52 3 O DIREITO NO CONTEXTO DA TEORIA DOS SISTEMAS............... 66 3.1 TEORIA GERAL DOS SISTEMAS ........................................................ 66 3.2 CIÊNCIA DOS SISTEMAS ...................................................................... 69 3.3 SISTEMAS SOCIAIS ................................................................................ 70 3.4 SISTEMA JURÍDICO ............................................................................... 73 3.4.1 Posição do Direito em relação à teoria dos sistemas jurídicos............. 76 3.4.2 A tradicional sistêmica do Direito .......................................................... 78 3.4.3 Sistemas jurídicos teleológicos ou finalísticos ....................................... 82 3.4.4 O sistema jurídico no marxismo ............................................................. 87 3.4.5 Atualidades a respeito da sistêmica jurídica.......................................... 94 3.5 SISTEMA CONSTITUCIONAL .............................................................. 102 3.5.1 Constituição formal e Constituição real ................................................ 104 3.5.2 Teorias materiais da Constituição .......................................................... 106 3.6 HERMENÊUTICA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL............ 112 4 120 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O PROCESSO DE EXECUÇÃO.............................................................................................. 124 4.1 A TEORIA DOS PRINCÍPIOS.................................................................. 4.2 ESTRUTURA DOS PRINCÍPIOS............................................................. 127 4.3 PRINCÍPIOS, REGRAS E POSTULADOS NORMATIVOS................... 130 5 ALGUMAS QUESTÕES DA TEORIA GERAL DO DIREITO......... 134 5.1 EPISTEMOLOGIA JURÍDICA ................................................................ 5.2 CULTURALISMO JURÍDICO ................................................................. 143 5.3 O DIREITO PROCESSUAL NO CONTEXTO DA TEORIA DA CIÊNCIA DO DIREITO ........................................................................... 135 154 5.3.1 O direito processual como objeto cultural ............................................ 158 6 O DIREITO PROCESSUAL CONTEMPORANEAMENTE.............. 166 6.1 O DIREITO PROCESSUAL AUTOPOIÉTICO....................................... 169 6.1.1 A autopoiése em Niklas Luhmann .......................................................... 171 6.1.2 Complexidade, contingência e expectativa de expectativas................. 177 6.2 O DIREITO COMO ESTRUTURA DE SIMPLIFICAÇÃO DA COMPLEXIDADE .................................................................................... 6.3 REFLEXIVIDADE ENTRE EXPECTATIVAS COGNITIVAS E NORMATIVAS ......................................................................................... 6.4 188 198 O PARADIGMA DA AUTOPOIESE NO PROCESSO DE EXECUÇÃO .............................................................................................. 203 7 PANORÂMICA HISTÓRICA DO DIREITO PROCESSUAL........... 216 7.1 AUTODEFESA, AUTOCOMPOSIÇÃO E HETEROCOMPOSIÇÃO... 7.2 PROCESSO ROMANO ............................................................................ 228 7.2.1 Sistema da justiça privada ou da ordo judiciarum privatorum............. 232 222 7.2.1.1 Ações da Lei ou Legis Acciones. ............................................................... 233 7.2.1.2 Processo formular ou per formulam .......................................................... 240 7.2.2 Sistema da justiça pública ou da extraordinaria cognitio..................... 247 7.2.2.1 A execução forçada no sistema da justiça pública em Roma.................... 257 7.3 PROCESSO ROMANO-BARBÁRICO ................................................... 262 7.4 PROCESSO JUDICIALISTA ................................................................... 266 7.4.1 Processo canônico ................................................................................... 275 7.5 PROCESSO PRAXISTA. ......................................................................... 289 7.6 PROCESSO PROCEDIMENTALISTA ................................................... 294 7.7 PROCESSO CIENTÍFICO ........................................................................ 301 8 O PROCESSO DE EXECUÇÃO INSTRUMENTAL.......................... 311 8.1 A TEORIA DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO.................. 314 8.2 A CRISE DOS PARADIGMAS E SEUS REFLEXOS NO DIREITO .... 318 8.3 QUESTÕES INSTRUMENTAIS E PARADIGMÁTICAS DA ALTERAÇÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO................................... 325 8.4 PRINCIPAIS MUDANÇAS PROMOVIDAS PELA LEI 11.232 DE 22/12/2005 ................................................................................................. 330 9 CONCLUSÃO........................................................................................... 340 REFERÊNCIAS ...................................................................................... 358 1 INTRODUÇÃO O despertar da atenção, do raciocínio ou da curiosidade é normalmente estimulado quando algo ocorre em desacordo com uma expectativa, quando não é possível explicar um fenômeno, ou quando as explicações tradicionais não funcionam. Essas experiências produzem estímulos no observador que têm o efeito de criar a problematização do objeto observado. Em relação a esse trabalho, a observadora pousa seu “olhar” sob as questões que estão envolvidas com a insatisfação dos jurisdicionados quanto à realização prática dos comandos legais através do Estado. Nesse sentido, qual(is) poderia(m) ser a(s) causa(s) da ineficiência do Poder Judiciário? Esse questionamento tem implicações muito amplas e complexas, porque envolve todos os aspectos ligados ao conhecimento jurídico, assim como: questões filosófica, sociológica, econômica, administrativa, histórica. Enfim, percebeu-se que seria necessário delimitar o enfoque do problema. Opta-se por estudar aquele aspecto que se considera fundamental quanto à realização do direito privado na modernidade, trata-se do cumprimento forçado das obrigações legal, contratual ou decorrente de atos ilícitos. A execução de títulos executivos judiciais ou 12 extrajudiciais apresenta-se problemática. A doutrina brasileira admite que o cumprimento forçado da obrigação privada é o ponto onde são evidenciados os problemas das dificuldades para obter a realização prática do direito, revelando a ineficiência do Poder Judiciário. Poderia ser estudada a execução trabalhista ou civilista, sendo que a escolha quanto à última se justifica porque é em seu âmbito que se observam as maiores dificuldades, as quais estão demandando a alteração estrutural do direito processual brasileiro. Curiosamente, as mudanças na execução civil estão ocorrendo no sentido de absorver algumas características do modelo trabalhista de execução. Dentre esses, destaca-se o fato de que a execução de título executivo judicial na justiça comum perderá sua autonomia ontológica, tal como ocorre no processo trabalhista. No entanto, isso não significa afirmar que haverá identidade dos procedimentos, pois a execução trabalhista ocorre por sub-rogação legal, podendo o magistrado determinar ex officio a realização dos atos necessários ao acertamento e à constrição patrimonial do devedor. Ao que tudo indica, os avanços no sentido de obter a simplificação dos procedimentos judiciais do cumprimento forçado da sentença proferida relativamente a obrigações civilistas não autoriza que os procedimentos executivos sejam realizados por atos praticados de 13 ofício pelo magistrado. Isso demonstra a existência de diferenças que podem ser consideradas relevantes entre as duas formas de obtenção forçada do cumprimento das obrigações privadas. Do mesmo modo, permite a afirmação anterior quanto à situação problemática da satisfação das obrigações civis através da ação do Estado. Está se desenvolvendo entre os doutrinadores brasileiros a idéia segundo a qual existem antagonismos entre a segurança e a efetividade jurídica, logo, na medida em que se aumenta a segurança, reduz-se a possibilidade da efetividade, estabelecendo-se uma relação inversamente proporcional entre estes dois institutos jurídicos. Este também é um importante aspecto a ser observado para se entender as causas que justificam a ineficiência do Judiciário. Na delimitação do problema, opta-se pelo estudo dos procedimentos executivos adotados pela justiça comum, tendo em vista as questões da ineficiência do Poder Judiciário, sendo abordadas a segurança e a efetividade jurídica, bem como o atual referencial teórico do processo. Será objeto de estudo, igualmente, os problemas extrínsecos ao direito processual que podem agravar a morosidade para a prestação jurisdicional. Quanto à apresentação do tema de estudos e sua delimitação, esta tese versa sobre os problemas da segurança, efetividade, celeridade 14 e “justiça” da prestação jurisdicional, tomando como referencial os procedimentos adotados para a obtenção da realização forçada das obrigações civis. Será adotado o método de abordagem hipotético-dedutivo, pois, a partir de determinadas hipóteses proceder-se-á ao estudo dos aspectos gerais que envolvem o conhecimento do direito para, posteriormente, identificarem-se aqueles problemas que são considerados relevantes para o processo e algumas questões legais pertinentes ao tema. Quanto ao método de procedimento, o estudo é desenvolvido com referência a corrente jurídica sociologista e histórica. A base teórica a qual instrumentaliza o estudo é fornecida pela teoria dos sistemas sociais sintetizada por Niklas Luhmann. Admite-se a priori como hipótese básica que o processo de execução é ineficiente na realização do direito, porque as teorias a respeito do poder de coerção estatal foram elaboradas tendo em vista Estados autoritários, e anteriormente à consolidação dos preceitos Constitucionais asseguradores do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Nos Estados Democráticos de Direito, a segurança dos jurisdicionados assume preponderância e, somente através da via institucional do processo Constitucional, pode ser realizada a promessa 15 da paz social garantida pela jurisdição. Essa situação parece exigir a revisão e a elaboração de uma Teoria Geral pautada nos princípios Constitucionais e adequada ao processo contemporâneo. Secundariamente, admite-se que a Teoria do Processualismo Científico cria uma artificialidade que compromete a validação social do processo, porque pretende uma ordem desvinculada do contexto sociológico intrínseco a todas as formulações humanas. Desse modo, acredita-se que o direito processual desconheça as relações sistêmicas que estabelece, comprometendo-se com o individualismo e com o patrimonialismo, erigidos na modernidade e exacerbados principalmente a partir do século XVIII. Entende-se que a justificativa para este trabalho está vinculada ao fato de que os referenciais teóricos e ideológicos do processo, tendo sido formulados sob a influência do movimento burguês na França, assimilaram a necessidade daquela classe social em permanecer no poder. Assim, a idéia da segurança jurídico-processual estaria referida especificamente aos ocupantes dos poderes político e econômico, os quais, a partir do discurso da universalização dos bens emergentes através do liberalismo econômico, efetivamente consolidaram-se no poder, criando para as massas populacionais proletárias um saldo 16 residual negativo, no sentido de que as promessas da “liberdade, igualdade e fraternidade” restaram frustradas. Considera-se necessário o estudo com vista à compreensão das alterações ocorridas no campo social e jurídico, desde o século XVIII, as quais afetaram o direito até o ponto em que, no caso brasileiro, percebese um crescente descrédito na capacidade do Poder Judiciário realizar a “justiça”. Após a consolidação da burguesia no poder, a igualdade foi conceitualmente reduzida à idéia da igualdade formal, ou seja, igual perante o sistema legal e político, as disparidades real, concreta foram relegadas. E a liberdade pode ser encarada da seguinte forma: “Livres e iguais para não serem livres e iguais”1. Desse modo, a metodologia qualitativa aliada a teorias críticas que tratam dos sistemas autopoiéticos justifica o estudo do processo de execução das obrigações privadas no Brasil diante das propostas em andamento e já aprovadas quanto às alterações no modelo processual. O objetivo central é apresentar a descrição e possíveis explicações para as causas da morosidade quanto à prestação jurisdicional, para tanto, observar-se-á os procedimentos executivos. Acredita-se que este trabalho possa contribuir para que o processo seja estudado como uma técnica, um instrumento a serviço do 1 FACHIN, Luiz. Teoria crítica do Direito Civil, p. 35. 17 direito material, mas, sobretudo, tendo em vista as transformações sociais contemporâneas a fim de que se realize a garantia da paz social. 18 2 UMA PERSPECTIVA PARA A PESQUISA A condição humana, diante do “todo” que forma sua complexa estrutura existencial, independentemente de como se pretenda entender isto, pode ser aceita como de “debilidade”, aqui referida a uma situação em face do processo de formulação do conhecimento no plano da compreensão dos fatos que envolvem a vida e também a sua ausência. A história do Homem na Terra, até à contemporaneidade, produziu diversas formas de conhecimentos, mas sempre referidos a alguma coisa, logo, circunstancial, parcial e insuficiente para lhe revelar um conhecimento que pudesse traduzir a verdade2 sobre a natureza ou a respeito de sua existência. O pesquisador do Século XXI deve considerar que o conhecimento é relativo e as verdades que produz são parciais, podendo afirmar-se que as teorias não são válidas para sempre, sendo esta uma das lições apresentadas pela história das realizações científicas. Ainda que o conhecimento pareça sólido, serão possíveis novas observações e novas idéias que modificam aquele enfoque, renovando os conceitos. 2 SANTOS, Pedro Sérgio dos. Direito Processual Penal & a insuficiência metodologia: a alternativa da mecânica quântica, p. 48 ... dos gregos ao homem contemporâneo do Ocidente, o problema da verdade vem tomando nuances diferenciadas sem deixar de ocupar um lugar de destaque no campo da filosofia e da produção científica. Todavia, é forçoso dizer que esse problema, tendo inicialmente um caráter científico, e a posteriori, de natureza filosófica, encontrou na física, particularmente na mecânica quântica e na teoria da relatividade, conceitos e (in) definições que certamente estarão a nortear qualquer modelo de pesquisa em qualquer área do saber, que se venha a desenvolver no século XXI, ... 19 Isso é parte da ciência, que trabalha lentamente para decifrar o enigma do mundo natural. Alfred Noyes elegantemente chamou a atitude do Homem em busca do conhecimento de “longa batalha pela luz”3. Esta perspectiva foi destinada às ciências naturais, contudo, entende-se que possa ser igualmente usada para as ciências sociais. É interessante lembrar que a aplicação no campo das pesquisas voltadas para o conhecimento social da metodologia criada no plano das ciências naturais tem sido objeto de dissenso entre os estudiosos de metodologia. Esta problemática deve ser superada, pois a interdisciplinaridade tem melhores possibilidades de levar a produção de um conhecimento mais amplo e satisfatório ao Homem. Observe-se que a compartimentação tem importância didática, mas pode ser entendida como reducionista do conhecimento científico4. O que se pretende é jogar novas “luzes” ao processo jurisdicional brasileiro, sobretudo, quanto a sua função instrumentalizadora da realização efetiva da jurisdição voltada para os direitos privados, entendidos como tal, aqueles de natureza individual e patrimonial. 3 RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência, p. 125. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um curso sobre as ciências, p. 46-47. ... É hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos. ... Os males desta parcelização do conhecimento e do reducionismo arbitrário que transporta consigo são hoje reconhecidos, mas as medidas propostas para os corrigir acabam em geral por os reproduzir sob outra forma. 4 20 Acredita-se que o momento é oportuno, porque a realização da entrega da prestação jurisdicional tem sido objeto de estudos doutrinários e reformas legais tanto no direito processual como institucionalmente através da reforma do Poder Judiciário brasileiro. Destaca-se a questão de que os movimentos de reestruturação do modelo brasileiro para a prestação jurisdicional a par da problemática referente à segurança e efetividade que devem ser inerentes ao direito, seja este compreendido como técnica, ciência ou arte; procuram respostas ou soluções em “velhas” fórmulas, ou melhor, no sistema estruturalista formalista desenhado pelo positivismo e teorizado no direito por Kelsen em sua Teoria Pura. É vislumbrada a possibilidade através desta pesquisa de acrescentar-se alguns elementos teóricos ligados ao criticismo metodológico. Desse modo, a instrumentalização do processo deve ser superadora do estruturalismo formalista, concebido no final do século XIX na Alemanha, que deu origem ao processualismo científico. As referências básicas “ideológicas” que orientam este trabalho foram proclamadas por Montoro5, quando declarou a necessidade do direito assumir seu papel social, sobretudo, nos países em vias de desenvolvimento, como o Brasil. 5 MONTORO ,André Franco. Introdução à Ciência do Direito, p.25-26. 21 Quanto ao processo, Cândido Rangel Dinamarco6 defende seu papel sociológico, como mecanismo para garantir a realização do direito material, assim, o direito processual é o “caminho” que assegura a democratização da justiça. A técnica processual deve cumprir sua função de orientar a prestação jurisdicional segura e efetiva, assim, servindo ao Homem e a sociedade7. 2.1 CONSTRUINDO A CIÊNCIA Construir ciência é formular conhecimento para explicar ao Homem a natureza e sua própria condição diante de si mesmo e de outros indivíduos, podendo, ainda, ser mencionada a questão metafísica. A filosofia é considerada a mãe das ciências, mas, a partir do empirismo positivista do Círculo de Viena8, não mais se reconheceu a 6 DINAMARCO, Cândido Rangel . A Instrumentalidade do processo, p. 186. DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit., p. 186. ... hoje, todo estudo teleológico da jurisdição e do sistema processual há de extrapolar os lindes do direito e da sua vida, projetando-se para fora. É preciso, além do objetivo puramente jurídico da jurisdição, encarar também as tarefas que lhe cabem perante a sociedade e perante o Estado como tal. O processualista contemporâneo tem a responsabilidae de conscientizar esses três planos, recusando-se a permanecer num só, sob pena de esterilidade nas suas construções, timidez ou endereçamento destoante das diretrizes do próprio Estado social. (grifo nosso) 8 ALVES-MAZZOTTI , Alda Judith ; GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 10-11. O termo positivismo vem de Comte, que considerava a ciência como o paradigma de todo conhecimento. No entanto, mais importante do que Comte para a linha anglo-americana foi a combinação de idéias empiristas (Mill, Hume, Mach & Russell) com o uso da lógica moderna (a partir dos trabalhos em matemática e lógica de Hilbert, Peano, Frege, Russell e das idéias do Tractatus Lógico-Philosophicus, de Wittgenstein). Daí o movimento ser chamado também de positivismo lógico ou empirismo lógico. O movimento foi influenciado ainda pelas novas descobertas em física, principalmente a teoria quântica e a teoria da relatividade. ... Embora tenha surgido nos anos 20, na Áustria (a partir do movimento conhecido como “Círculo de Viena”, fundado pelo filósofo Moritz Schlick), Alemanha e Polônia, muitos de seus principais filósofos, como Rudolf Carnap, Hans Reichenbach, Herbert Feigl e Otto Neurath, emigraram para os Estados Unidos ou Inglaterra com o surgimento do nazismo, ... Para o positivismo, a Lógica e a Matemática seriam válidas porque estabelecem as regras da linguagem, constituindo-se em um conhecimento a priori, ou seja, independente da experiência. ... A indução, portanto, é o processo pelo qual podemos obter e confirmar hipóteses e enunciados gerais a partir da observação. (grifos nossos). 7 22 filosofia como uma ciência, porque os conhecimentos por ela elaborados não têm rigor metodológico, não dispondo de um objeto próprio e específico de conhecimento e de uma linguagem adequada e autoreferenciada para descrever e explicar o objeto de estudo. Não se pretende adentrar na questão da natureza do conhecimento filosófico, mas registrar que se optou em determinado momento histórico por negar ao conhecimento integral do ser a característica da cientificidade. Atualmente, o conhecimento científico vincula-se a epistemologia que se refere a uma filosofia da ciência que considera a maneira como os saberes são organizados, partindo da lógica em seu sentido amplo. Desse modo, a lógica é entendida como o estudo da maneira pela qual os saberes humanos se estruturam, o que implica averiguar quais as suas condições de validade. Para a epistemologia, o ato de conhecer pressupõe um objeto a ser observado, sendo que, desse ato de observar9, surgem sínteses descritivas que se denominam leis. Estas são submetidas a verificações 9 FOUREZ, Gerard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências, p. 40. ... a observação não é puramente passiva: trata-se antes de uma certa organização da visão. ... para observar, é preciso relacionar aquilo que se vê com noções que já se possuía anteriormente. Uma observação é uma interpretação: é integrar uma certa visão na representação teórica que fazemos da realidade. 23 experimentais que, se confirmarem as leis, são inseridas em teorias que visam a uma descrição e explicação da realidade. A observação construtora do conhecimento pressupõe uma linguagem para sua expressão. Toda forma de expressão de linguagem é cultural, o que permite afirmar que a ciência não é indiferente à cultura. Assim, os cientistas são vinculados a um ponto de partida prévio, são integrantes de um universo cultural e lingüístico. A observação neutra do objeto é uma ficção. As proposições empíricas indiscutíveis apenas o são no sentido de uma convenção prática ligada ao trabalho científico, quando assim são declaradas com referências a fatos que, momentaneamente, não serão discutidos. Toda observação é realizada por alguém, que é o indivíduo, o sujeito10 que observa. A esse respeito, para a construção do conhecimento, é interessante pensar sobre o referencial, ou seja, os objetos existem em si mesmos, ou é o observador que os configura e, portanto, atribui-lhes existência. Assim, observar é meramente descrever o objeto ou o observador efetivamente cria o objeto através de um processo de interpretação dos dados sensitivos. Essas questões não 10 Ibidem, p.50. O termo “sujeito” designa então o conjunto das atividades estruturantes necessárias a observação. 24 desafiam uma resposta específica tendo sido discutidas ao longo da história da ciência. A partir da revolução copernicana, a observação é entendida como uma construção que tem, no sujeito, seu ponto de partida. Isto legitimou a visão da ciência como uma construção humana, tendo o conhecimento assumido uma subjetividade relacionada com a linguagem e com pressupostos culturais. Dessa forma, a objetividade da ciência é ligada à instituição social do mundo. O conhecimento científico é verificado em um contexto coletivo, em que, a partir de proposições teóricas (leis não testadas), é realizada a verificação empírica que poderá produzir as proposições empíricas, que são um conjunto lingüístico convencionado pela comunidade científica como portador da verdade em relação a determinado objeto em face de determinado método e circunstâncias. A ciência não produz um conhecimento atemporal e absoluto, mas convencional. 2.2 A CIÊNCIA EM THOMAS KUHN Este estudioso de física na Universidade de Harvard acabou se interessando pela história da ciência e pela filosofia, escrevendo um dos 25 importantes trabalhos a respeito das transformações científicas11. Para tanto ele formula os conceitos de “ciência normal”, “paradigma”, identifica as características das revoluções científicas e as questões referentes ao progresso científico. O objetivo desse estudo não é o aprofundamento na obra de Thomas Kuhn, mas identificar alguns pontos fundamentais em seu trabalho, graças a sua indiscutível relevância no campo do conhecimento científico, por ter acrescentado elementos que reordenaram a história da ciência. Tendo como ponto de partida sua posição no quadro da história da ciência, Kuhn aponta duas tarefas que são consideras fundamentais para o historiador da ciência; a identificação de quando e de por quem cada fato, teoria ou lei científica contemporânea foi descoberta ou inventada, e a descrição e explicação do amontoado de erros, mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos elementos constituintes do moderno texto científico. A construção da idéia de que o progresso da ciência vincula-se mais a invenções e descobertas individuais em detrimento da idéia de que ocorra por movimentos de acumulação de conhecimentos foi possível em decorrência da mudança de postura dos historiadores que passaram a abordar novas espécies de questões e a traçar linhas diferentes de 11 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas, p. 22. 26 pesquisa, freqüentemente não-cumulativos, de desenvolvimento para as ciências. Essa nova postura dos historiadores da ciência está voltada para uma abordagem da ciência e do cientista em seu tempo, assim a história da ciência passou a ter o máximo de coerência interna e a maior adequação possível à natureza. Esta nova imagem da ciência foi constituída, sobretudo, após o trabalho de Alexandre Kayré12. A partir das colocações básicas a respeito da história e dos historiadores da ciência, Kuhn apresenta seu conceito de paradigma13 como sendo “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”14. Podem ser identificadas duas características fundamentais nos paradigmas; a realização apresentada no paradigma deve ser sem precedentes, a fim de atrair um grupo duradouro de partidários, e deve ser suficientemente aberta para deixar toda a espécie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da ciência. As revoluções e o progresso científico são relacionados a alteração do paradigma, logo, os problemas e as soluções modelares são 12 Op cit., p. 22. Ibidem, p.43-44. ... um paradigma é um modelo ou padrão aceitos. ... Os paradigmas adquirem seu status porque são mais bem sucedidos que seus competidores na resolução de alguns problemas que o grupo de cientistas reconhece como grave. 14 Ibidem, p. 13. 13 27 substituídos por novos problemas e respostas, o que provoca a transformação do mundo. A ciência em Kuhn pode ser identificada como uma reunião de fatos, teorias e métodos organizados em textos atuais. Esse autor referese a “ciência normal”15, como a pesquisa baseada em uma ou mais realizações científicas passadas, ou seja, realizada dentro de paradigmas. Para contrapô-la, a ciência produzida nos momentos de ruptura do paradigma. Dessa forma, as pesquisas produzidas com base em paradigmas compartilhados estão comprometidas com as mesmas regras e padrões para a prática científica. Esse comprometimento e o consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa determinada. Sob uma perspectiva de desenvolvimento da ciência, um campo de estudos pode cruzar a divisa entre o que o historiador poderia chamar de sua pré-história como ciência, e sua história propriamente dita. Os movimentos de transição não são repentinos ou inequívocos; assim como não são historicamente graduais, isto é, coextensivos com o desenvolvimento total dos campos de estudos em que ocorreram. 15 Ibidem, p. 45. A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são visto. ... a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma. 28 Dessa forma, sem a possibilidade de considerar os eventos do passado, torna-se difícil encontrar outro critério que revele claramente que um campo de estudos tornou-se uma ciência. No enfoque sobre a natureza da ciência normal, destaca-se sua função de atualização obtida através da ampliação do conhecimento daqueles fatos que o paradigma apresenta como particularmente relevantes, aumentando a correlação entre esses fatos e as predições do paradigma e articulando ainda mais o paradigma. Esse trabalho é denominado operação de limpeza. A operação de limpeza, conquanto seja redutora do espaço da pesquisa, porque fica limitada ao paradigma, é essencial para o desenvolvimento da ciência, uma vez que tem um caráter de verticalização da investigação16. A pesquisa baseada em paradigmas, desenvolvida, portanto, no contexto da ciência normal17, inicia-se com a coleta de fatos que visa às experiências e observações descritivas. Três focos normais são identificados para a investigação científica dos fatos, os quais não são sempre ou permanentemente distintos. Quanto à classe dos fatos que o 16 Ibidem, p. 45. A ciência normal possui um mecanismo interno que assegura o relaxamento das restrições que limitam a pesquisa toda vez que o paradigma do qual derivam deixa de funcionar efetivamente. Nessa altura os cientistas começam a comportar-se de maneira diferente e a natureza dos problemas de pesquisa muda. 16 Ibidem, p. 51. Uma parte (embora pequena) do trabalho teórico normal consiste simplesmente em usar a teoria existente para prever informações fatuais dotadas de valor intrínseco. 17 Ibidem, p. 51. Uma parte (embora pequena) do trabalho teórico normal consiste simplesmente em usar a teoria existente para prever informações fatuais dotadas de valor intrínseco. 29 paradigma mostrou ser particularmente reveladora da natureza das coisas, ao empregá-lo na resolução de problemas, o paradigma tornou-os merecedores de uma determinação mais precisa, numa variedade maior de situações. Quanto aos fenômenos determinados pelos fatos, a partir de uma observação intrínseca, há a verificação se podem ser diretamente comparados com as predições da teoria do paradigma. Finalmente, o trabalho empírico empreendido para articular a teoria do paradigma, resolvendo algumas de suas ambigüidades residuais e permitindo a solução de problemas para os quais ela anteriormente só tinha chamado a atenção, esgota as atividades de coleta de fatos na ciência normal18. A articulação de um paradigma não se restringe a determinação de constantes universais, podendo visar a leis quantitativas. Assim, a relação entre paradigma qualitativo e lei quantitativa é tão geral e tão estreita que, desde Galileo, essas leis, com freqüência, têm sido corretamente adivinhadas com o auxílio de um paradigma, anos antes que um aparelho possa ser projetado para sua determinação experimental19. 18 Ibidem, p. 48. ... a obra de Newton indicava que a força entre duas unidades de massa a uma unidade de distância seria a mesma para todos os tipos de matéria, em todas as posições do universo. Mas os problemas que Newton examinava podiam ser resolvidos sem nem mesmo estimar o tamanho dessa atração, a constante da gravitação universal. E durante o século que se seguiu ao aparecimento dos Principia, ninguém imaginou um aparelho capaz de determinar essa constante. A famosa determinação de Cavendish, na última década do século XVIII, tampouco foi a última. Desde então, em vista de sua posição central na teoria física, a busca de valores mais precisos para a constante gravitacional tem sido objeto de repetidos esforços de numerosos experimentadores de primeira qualidade. ... Poucos desses complexos esforços teriam sido concebidos e nenhum teria sido realizado sem uma teoria do paradigma para definir o problema e garantir a existência de uma solução. 19 Ibidem, p. 49. 30 Pode concluir-se afirmando que para Thomas Kuhn a ciência normal é pautada em três classes de problemas: determinação do fato significativo, harmonização dos fatos com a teoria e articulação da teoria. Fora desse esquema, podem ser encontrados problemas extraordinários, emergidos em ocasiões especiais geradas pelo avanço da ciência normal. Esses problemas levam ao abandono do paradigma e são os pontos de apoio em torno dos quais giram as revoluções científicas20. Os modos de aplicação do paradigma podem levar a pequenas ou grandes revoluções científicas. Isto deriva do fato de que o mesmo paradigma pode ser empregado em diversas linhas da pesquisa, sem que todos apliquem as mesmas leis que o integram. Ressalta-se que, por intermédio da ciência normal, podem ocorrer alterações internas no paradigma, situação em que alguma de suas leis poderia ser modificada, o que não significa o seu desaparecimento. Esse fato afeta somente os estudos pautados naquela lei, permanecendo inalteradas as demais linhas de pesquisas fundamentadas em outras leis do paradigma que não tenham sido modificadas. Nesses casos, caracterizam-se as pequenas revoluções científicas. Antes de falar especificamente do que pode ser considerado 20 Ibidem, p. 77. ... fenômenos novos e insuspeitados são periodicamente descobertos pela pesquisa científica; cientistas têm constantemente inventado teorias radicalmente novas. O exame histórico nos sugere que o empreendimento científico desenvolveu uma técnica particularmente eficiente na produção de surpresas dessa natureza. 31 como uma grande revolução científica, é pertinente tratar do que se entende como uma descoberta e uma invenção.A descoberta é um processo que exige tempo para a observação e formulação conceitual de um novo tipo de fenômeno, sendo um acontecimento complexo que envolve o reconhecimento tanto da existência de algo, como de sua natureza. Sobressai igualmente a questão da teoria em relação ao paradigma, sendo certo que para Thomas Kuhn nem todas as teorias são teorias paradigmáticas21. Nos momentos de “crise do paradigma”22, os cientistas desenvolvem teorias especulativas e desarticuladas, que, entretanto, podem indicar o caminho para uma nova descoberta, que nem sempre está vinculada à hipótese especulativa e experimental proposta pelas teorias de referência. Conclui, então, que somente após a articulação da experiência e da teoria experimental, pode surgir a descoberta e a teoria converte-se em paradigma23. 21 Idem, p. 87. Idem, p. 95 a 99. A emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de insegurança profissional pronunciada, pois exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da ciência normal. Como seria de esperar, essa insegurança é gerada pelo fracasso constante dos quebra-cabeças da ciência normal em produzir os resultados esperados. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas regras. ... Essa proliferação de versões de uma teoria é um sintoma muito usual de crise. 23 Idem, p. 88. 22 32 As descobertas das quais surgem novos fenômenos apresentam as seguintes características: a consciência prévia da anomalia24 25 , a emergência gradual e simultânea de um reconhecimento, tanto no plano conceitual como no plano da observação, e a conseqüente mudança das categorias e procedimentos paradigmáticos. O procedimento da descoberta se completa quando o que era considerado anômalo se converte no previsto. A constatação desse processo justifica as razões pelas quais a ciência normal é eficaz para provocar as descobertas. Observa-se que uma nova teoria surge somente após um fracasso caracterizado na atividade normal de resolução de problemas. Esse fracasso é prenunciado, pois a ciência normal26 considerava o problema relacionado com a crise total ou parcialmente solucionado. Desse modo, o fracasso com um novo tipo de problema pode ser decepcionante, no entanto, não pode ser surpreendente. A importância da crise para a constituição de novas teorias e paradigmas caracteriza-se pelo fato de que a solução para cada um dos problemas foi antecipada, pelo menos parcialmente, em um período no 24 Idem, p. 92. A anomalia aparece somente contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma. Idem, p. 113. ... para uma anomalia originar uma crise, deve ser algo mais do que uma simples anomalia. Sempre existem dificuldades em qualquer parte da adequação entre o paradigma e a natureza; a maioria, cedo ou tarde, acaba sendo resolvida, freqüentemente através de processos que não poderiam ter sido previstos. maioria, cedo ou tarde, acaba sendo resolvida, freqüentemente através de processos que não poderiam ter sido previstos. 26 Idem, p. 111. A ciência normal esforça-se (e deve fazê-lo constantemente) para aproximar sempre mais a teoria e os fatos. 25 33 qual a ciência correspondente não estava em crise. Tendo sido essas antecipações ignoradas exatamente porque não havia uma crise27. Podem ser identificados dois efeitos gerais para as crises; todas elas iniciam com o obscurecimento de um paradigma e o conseqüente relaxamento das regras que orientam a pesquisa normal. Assim, ocorre uma proliferação de articulações divergentes, pois as regras da ciência normal tornam-se indistintas. Os cientistas perdem o referencial claro a respeito do paradigma, não mais sendo possível identificá-lo com exatidão e mesmo soluções-padrão de problemas anteriormente aceitas passam a ser questionadas. Os cientistas28, contudo, mesmo em face de anomalias prolongadas e graves, têm uma postura de resistência, na medida em que defendem o paradigma vigente, e somente no caso de suspeitas quanto às soluções apresentadas aos problemas é que são criadas as alternativas. As novas teorias surgem quando um fenômeno portador de anomalia se recusa, obstinadamente, a ser assimilado aos paradigmas existentes, isso se verifica quando ele não fornece um lugar no campo visual do cientista 27 Idem, p. 105. O significado das crises consiste exatamente no fato de que indicam que é chegada a ocasião para renovar os instrumentos. 28 Idem, p. 109. ... indubitavelmente alguns homens foram levados a abandonar a ciência devido a sua inabilidade para tolerar crises. Tal como os artistas, os cientistas criadores precisam, em determinadas ocasiões, ser capazes de viver em um mundo desordenado - ... “a tensão essencial” implícita na pesquisa científica. (grifo nosso) 34 capaz de abranger a anomalia. A rejeição de um paradigma implica invariavelmente na aceitação de outro que o substitua29, sendo que o juízo que conduz a essa decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza, bem como sua comparação mútua30. Diante da crise, emergem as novas teorias científicas as quais somente alcançarão o status do paradigma se puderem substituí-lo, ou seja, quando puderem oferecer respostas aos problemas de modo mais satisfatório do que aquelas até então apresentadas. Podem ser apontadas três maneiras em que se resolvem as crises. O paradigma vigente reordena o quebra-cabeça da anomalia e resolve o problema. Em outros casos, o problema revela-se insolúvel e é abandonado, a fim de quê, em outro momento, seja retomado, quando se dispor de novos instrumentos para sua abordagem. E, finalmente, os casos em que ocorrem as revoluções científicas, entendidas como aquelas em que a crise termina com a emergência de um novo candidato a paradigma e com uma subseqüente batalha por sua aceitação. Esta transição de um paradigma a outro promove a reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, alterando-se 29 Idem, p. 110. Rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituí-lo por outro é rejeitar a própria ciência. 30 Idem, p. 108. 35 algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações31. Sobreleva o modo como são modificadas as formas de solução dos problemas. Completada a transição, os cientistas terão modificado a sua concepção sobre suas pesquisas, seus métodos e seus objetivos. Ao final, os cientistas terão, diante de si, o mesmo conjunto de dados que, anteriormente, mas estabelecendo entre eles um novo sistema de relações, organizado a partir de um quadro de referência diferente. Nos momentos de crise, ocorre o retorno do cientista a análise filosófica que tem sido fundamental para a ciência contemporânea, ocorrendo uma mudança na natureza de suas pesquisas, proliferando as articulações concorrentes, a disposição de tentar qualquer coisa, a expressão de descontentamento explícito, o recurso à filosofia e ao debate sobre os fundamentos, são reveladores da pesquisa extraordinária. A ciência extraordinária ou não-normal é produzida nos momentos de crise dos paradigmas, até que se estabeleçam as condições para a reestruturação de uma nova ciência normal. Nessas circunstâncias, verifica-se a grande revolução científica. Do ponto de vista histórico, não é plausível que a inclusão 31 Idem, p. 119. ... nenhuma experiência pode ser concebida sem o apoio de alguma espécie de teoria, o cientista em crise tentará constantemente gerar teorias especulativas que, se bem sucedidas, possam abrir o caminho para um novo paradigma e, se mal sucedidas, possam ser abandonadas com relativa facilidade. 36 lógica seja uma concepção admissível na relação existente entre teorias científicas sucessivas32. Portanto, as diferenças entre paradigmas sucessivos são, ao mesmo tempo, necessárias e irreconciliáveis33; conseqüentemente, sua mudança requer uma redefinição da ciência correspondente. Sob o ponto de vista dos paradigmas como parte constitutiva da ciência, os cientistas têm neste uma teoria34, um método e padrões científicos, que compõem uma mistura inextrincável.35 As mudanças de paradigmas levam os cientistas a ver36 o 32 Idem, p. 137. Precisamente por não envolver a introdução de objetos ou conceitos adicionais, a transição da mecânica newtoniana para a einsteiniana ilustra com particular clareza a revolução científica como sendo um deslocamento da rede conceitual através da qual os cientistas vêem o mundo. 33 Idem, p. 138. A tradição científica normal que emerge de uma revolução científica é não somente incompatível, mas muitas vezes verdadeiramente incomensurável com aquela que a precedeu. 34 Idem, p. 143. Por meio das teorias que encarnam, os paradigmas demonstram ser constitutivos da atividade científica. 35 Idem, p. 142-143. Não é de surpreender que alguns historiadores tenham argumentado que a história da ciência registra um crescimento constante da maturidade e do refinamento da concepção que o homem possui a respeito da natureza da ciência. Todavia é ainda mais difícil defender o desenvolvimento cumulativo dos problemas e padrões científicos do que a acumulação de teorias. A tentativa de explicar a gravidade, embora proveitosamente abandonada pela maioria dos cientistas do século XVIII, não estava orientada para um problema intrinsecamente ilegítimo; as objeções às forças inatas não eram nem inerentemente acientíficas, nem metafísicas em algum sentido pejorativo. Não existem padrões exteriores que permitam um julgamento científico dessa espécie. O que ocorreu não foi nem uma queda, nem uma elevação de padrões, mas simplesmente uma mudança exigida pela adoção de um novo paradigma. 36 Idem, p. 165. Após revoluções científicas, muitas manipulações e medições antigas tornam-se irrelevantes e são substituídas por outras. ... Mas mudanças dessa espécie nunca são totais. Não importa o que o cientista possa então ver, após a revolução o cientista ainda está olhando pra o mesmo mundo. Além disso, grande parte de sua linguagem e a maior parte de seus instrumentos de laboratório continuam sendo os mesmos de antes , embora anteriormente ele os possa ter empregado de maneira diferente. Em conseqüência disso, a ciência pós-revolucionária invariavelmente inclui muitas das mesmas manipulações, realizadas com os mesmo instrumentos e descritas nos mesmos termos empregados por sua predecessora pré-revolucionária. 37 mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente. Na medida em que seu único acesso a esse mundo ocorre através do que vêem e fazem, podendo ser afirmado que, após uma revolução, os cientistas reagem a um mundo diferente37. O que ocorre durante uma grande revolução científica não é totalmente redutível a uma reinterpretação38 de dados estáveis e individuais. Isto não quer dizer que os cientistas não interpretem observações e dados, o que, contudo, vincula-se a um paradigma e, portanto, ocorre no quadro da ciência normal, a qual tem por objetivo refinar, ampliar e articular um paradigma que já existe, apenas possibilitando o reconhecimento de anomalias e crises. A interpretação limita-se a articular um paradigma, não podendo corrigi-lo, pois isso não é papel desempenhado pela ciência normal. Questão fundamental quanto ao conhecimento científico se refere ao fato de atribuir à experiência um caráter neutro e às teorias a condição de simples interpretações humanas. Quanto a isto, Thomas 37 Idem, p. 171. O autor se refere a um mundo diferente no sentido de que o novo paradigma fornecerá ao cientista uma nova percepção do objeto. Assim, “mesmo após a aceitação da teoria, eles ainda tinham que forçar a natureza e conformar-se a ela, ...”. 38 Idem, p. 157. Em vez de ser um intérprete, o cientista que abraça um novo paradigma é como o homem que usa lentes inversoras. Defrontado com a mesma constelação de objetos que antes e tendo consciência disso, ele os encontra, não obstante, totalmente transformados em muitos de seus detalhes. 38 Kuhn, trata do assunto afirmando que “a perspectiva epistemológica que mais freqüentemente guiou a filosofia ocidental durante três séculos impõe um ‘sim!’ imediato e inequívoco. Na ausência de uma alternativa já desdobrada, considero impossível abandonar inteiramente essa perspectiva”39. Dando continuidade a sua posição quanto ao assunto, o autor afirma que: “Todavia ela já não funciona efetivamente e as tentativas para fazê-la funcionar por meio da introdução de uma linguagem de observação neutra parecem-me agora sem esperança”40. Quanto à linguagem, a tentativa de criar um modelo que permitisse aproximá-la dos objetos de percepção e expressá-los de forma pura e geral, como referido anteriormente, tem se revelado insatisfatório. Isto se deve a que o cientista não realiza operações e medições de um dado objeto da experiência, mas coleta, com dificuldade, índices concretos para os conteúdos das percepções mais elementares41 42. A propósito de evidenciar como a ciência progride através de revoluções, atribui-se aos historiadores o equívoco de escrever a história passada a partir do presente. Os manuais são os meios de divulgação da 39 Idem, p. 161. Idem, p. 161. 41 Idem, p. 162. As operações e medições, de maneira muito mais clara do que a experiência imediata da qual em parte derivam, são determinadas por um paradigma. A ciência não se ocupa com todas as manifestações possíveis no laboratório. Ao invés disso, seleciona aquelas que são relevantes para a justaposição de um paradigma com a experiência imediata, a qual, por sua vez, foi parcialmente determinada por esse mesmo paradigma. 42 Idem, p. 165. Os paradigmas determinam ao mesmo tempo grandes áreas da experiência. ... Após uma revolução científica, muitas manipulações e medições antigas tornam-se irrelevantes e são substituídas por outras. 40 39 ciência normal, tendo um caráter pedagógico. Diante das alterações na ciência normal, esses manuais são reescritos, e este procedimento tem sido realizado de modo a ocultar as revoluções (grandes ou pequenas) científicas. Isto se deve ao fato de que os relatos históricos apresentados nesses manuais são fragmetários e parciais, relatando feitos com referência a fatos presentes, o que leva a uma impressão equivocada de que os cientistas e estudantes do presente são partícipes de um processo cumulativo de conhecimentos. Isso é agravado pelo fato de que, normalmente, são apresentadas apenas as partes do trabalho de antigos cientistas que possam contribuir com o enunciado e a solução do problema apresentado pelo paradigma do manual. Contribui também, para o equívoco referente ao processo cumulativo, o fato dos cientistas de épocas anteriores serem representados como se tivessem trabalhado sobre o mesmo conjunto de problemas fixos, e utilizado o mesmo conjunto de cânones estáveis que a revolução mais recente, em teoria e metodologia científica, fez parecerem científicos43. A ciência contemporânea está assentada num complexo de teorias, métodos e se realiza com base em instrumentos que não existiam antes da revolução científica que lhes reconheceu a validade. Os problemas pesquisados e as soluções propostas no passado eram 43 Idem, p. 177-178. ... a tendência dos manuais a tornarem linear o desenvolvimento da ciência acaba escondendo o processo que está na raiz dos episódios mais significativos do desenvolvimento científico. 40 completamente diferentes dos que atualmente movimentam o quebracabeça da ciência contemporânea. A passagem de uma coisa a outra não se deve a evolução gradual das teorias, mas resulta de uma reformulação revolucionária da tradição científica anterior, na qual a relação entre o cientista e a natureza mediada pelo conhecimento era particular ao seu tempo. Após a descrição histórica e analítica dos fatos que envolvem a estrutura constitutiva do conhecimento científico, é possível identificar alguns pontos que levam a substituição de um paradigma que embasa uma ciência normal, através de teorias especulativas até a constituição de um novo paradigma, que orientará a percepção do cientista em relação ao seu campo visual do mundo. Todo procedimento científico está fundamentado na relação entre o objeto captado pela percepção sensorial do cientista e o modo como este interpreta essa percepção, seja para descrevê-la ou explicá-la. Assim, a ciência se realiza sempre com o objetivo de compreender o mundo. Nesse ambiente, pode ocorrer que um ou vários cientistas façam uma nova interpretação da natureza (objeto), verificando, então, uma descoberta ou formulando uma teoria. Esse fato decorre da ação criadora do cientista, nessa situação, normalmente vinculada a uma atenção concentrada sobre problemas que provocam crises. Observa-se, ainda, 41 que os cientistas mais jovens ou menos comprometidos com o paradigma vigente têm melhores resultados nesse processo. A partir do quadro acima descrito, são formuladas as teorias de verificação probabilística, que indicam as novas direções pelas quais deverão avançar as futuras discussões sobre o problema da verificação, fazendo-o através da adoção de uma das linguagens de observação. Aqui se retorna ao fato de que os sistemas de linguagem ou os conceitos não são portadores de neutralidade científica ou empírica, o que torna necessária a realização de testes e teorias alternativas à vinculação a algum paradigma tradicional. Durante esse período, haverá intensa discussão e as formulações teóricas especulativas lutarão entre si a fim de demonstrar sua melhor condição para apresentar respostas factíveis aos problemas. Ao final desse processo, surge um candidato a paradigma que assumirá esse papel de referência para a ciência na medida em que a comunidade científica se convencer a respeito de sua capacidade para solucionar os problemas que estão ligados à melhor adequação possível entre a formulação teórica e a descrição ou explicação do objeto. Uma questão elementar e fundamental é aquela de perceber o alterações. progresso da ciência no contexto de suas 42 Admitindo que a revolução científica leva a novas formas de resolução de problemas a partir de teorias, métodos e instrumentos inovadores em relação àqueles utilizados pela ciência normal, é possível afirmar que isto assegura o progresso da ciência 44. O ponto de referência adotado por Thomas Kuhn não parte da questão vinculada à ciência enquanto instrumento capaz de levar à verdade. O progresso da ciência, então, é um “progresso de evolução a partir de um início primitivo – processo cujos estágios sucessivos caracterizam-se, por uma compreensão sempre mais refinada e detalhada da natureza” 45. Para efeito desta tese, será admitido a priori que as ciências sociais podem ser operacionalizadas através das referências constituídas para as ciências naturais quanto aos aspectos relativos ao desenvolvimento histórico, à conceituação de paradigma, à constituição de seus momentos de crises e ao seu progresso. 2.3 CIÊNCIAS NATURAIS E CIÊNCIAS SOCIAIS Esta introdução não objetiva resolver os problemas inerentes ao conhecimento científico, mas posicionar o leitor a respeito de alguns 44 Idem, p. 209. As revoluções terminam com a vitória total de uma dos dois campos rivais. Alguma vez o grupo vencedor afirmará que o resultado de sua vitória não corresponde a um progresso autêntico? Isso equivaleria a admitir que o grupo vencedor estava errado e seus oponentes certos. Pelo menos para a afacção vitoriosa, o resultado de uma revolução deve ser o progresso. 45 Idem, p. 213. 43 pontos que foram considerados relevantes para a pesquisa. Embora tenha sido mencionado que a questão metodológica que envolve as ciências naturais e as ciências sociais não seja importante para este trabalho, esta posição não tem a pretensão de levar a conclusão de que não há diferenças entre esse dois ramos de estudos. Aquela consideração limitase à questão referente ao fato de que nem sempre as ciências sociais têm sido consideradas como produtoras de um conhecimento que se caracterize pela objetividade científica, que fundamenta as ciências naturais. Sendo sabido que houve e em certa medida ainda há reservas a aceitação do caráter científico inerente e próprio ao conhecimento vinculado aos fatos sociais ou decorrentes das relações humanas46. Atualmente, fala-se na pesquisa quantitativa referindo-se às características dos trabalhos realizados nas ciências naturais e em pesquisa qualitativa como sendo aquela forma de abordagem mais indicada para as ciências sociais. Os critérios que envolvem a diferenciação entre essas duas formas de desenvolvimento da pesquisa são interessantes, pois desloca a questão do método47 para um enfoque relativo aos objetivos que se pretende alcançar com a realização do 46 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos, p. 113. Se tivesse que destacar um elemento constante no desenvolvimento da “ciência social”, desde o momento e que, em meados do século XIX, Comte fundou a Sociologia, esse elemento seria o debate epistemológico ou metodológico permanente e, concomitantemente, polêmico, acerca do status científico das Ciências Sociais. 47 VIEGAS, Waldyr. Fundamentos de metodologia científica, p. 123. A palavra método – do grego antigo µετά, no meio de + όδόζ, caminho – significa, etimologicamente, “atalho”, mas na linguagem corrente passou a significar “andar em busca de”. 44 trabalho científico, afastando-se do critério que considera como fundamental no processo de conhecimento a posição do observador em relação ao objeto pesquisado48. Isto vincula o estudo à construção de um conhecimento que tem uma forte referência prática ligada ao modo de desenvolvimento e objetivos da pesquisa. A pesquisa quantitativa ou positivista adota uma metodologia que produz um conhecimento de caráter descritivo, formalista, nãoanalisador e acrítico. O trabalho de caráter quantitativo procura a explicação dos fenômenos ou objetos estudados através de uma descrição da realidade social sem julgamento de valores e preocupações críticas, tomando como ponto de partida a verificação de hipóteses escolhidas a priori. O valor científico de uma sociologia explicativa-quantitativa está vinculado a uma pretensa objetividade do conhecimento, o que poderia possibilitar a formulação de leis gerais aplicáveis aos fatos sociais e capazes tanto de explicá-los como de prevê-los. Os procedimentos próprios a uma metodologia do tipo quantitativa se fundamentam em dados estatísticos, objetiváveis, quantificáveis 48 e descontextualizados. Criam uma perspectiva LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia científica, p. 47-80. Tratando a respeito dos Métodos Científicos são apresentados de forma didática os métodos de abordagem indutivo, dedutivo, hipotético-dedutivo e dialético. Podendo afirmar-se que estes métodos ilustram de que maneira têm sido considerados os referenciais metodológicos básicos para a construção de um conhecimento com caráter científico. 45 macrossociológica, na medida em que os sistemas sociais são considerados em sua totalidade. Nessa situação, o objeto das ciências sociais é equiparado ao objeto das ciências naturais. As pesquisas voltadas para o estudo dos fenômenos sociais que adotam uma metodologia do tipo quantitativa consideram o referencial próprio das ciências naturais para determinar um tipo de conhecimento que se baseie nos critérios de cientificidade modelados pelo positivismo. A atitude científica, então, é pautada em procedimentos objetivos, quantitativos, homogêneos, generalizadores, diferenciadores; as relações causais são ligadas à investigação da natureza ou a estrutura do fato estudado, o extraordinário é um caso particular do que é regular, normal e freqüente49. A metodologia qualitativa visa a uma pesquisa que propõe a descrição compreensiva do sentido das ações humanas. A realidade social é considerada como algo em diálogo, em interação, em comunicação contínua com o pesquisador. A ação social é tomada quanto à sua intencionalidade e o momento subjetivo passa para o primeiro plano na realização dos estudos. O objeto de estudo não é transcendente ao sujeito cognoscente, sendo que este, necessariamente, fica implicado no objetivo do 49 CHAUI, Marilena Convite à filosofia, p. 249-250. 46 conhecimento50. As pesquisas qualitativas operam com o pluralismo metodológico. Sob uma perspectiva qualitativa há uma abordagem microssociológica, o que consiste em estudar os processos concretos de comunicação e de interação da ação social. Acredita-se que essas pesquisas permitam dar um sentido interpretativo aos dados da análise empírico-quantitativa. A pesquisa desenvolvida com base em uma metodologia qualitativa se caracteriza por ser construtivista e compreensiva. Sua base filosófica está principalmente ligada à dialética51 e à fenomenologia52. Pode-se entender a dialética como um método de enfoque da realidade sob o prisma de sua dinâmica, portanto, sendo constitutivamente mutável e contraditória. Através da análise dialética 50 A interdependência e a indissociabilidade são as marcas entre o sujeito e o objeto, ou seja, o sujeito observador é parte integrante do processo cognoscente, dando aos fenômenos significado. O objeto não é inerte, é portador de significados oriundos das relações com os sujeitos. 51 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia, p. 185-187. Com efeito, dialética significa em Hegel, em primeiro lugar, o momento negativo de toda realidade. Dir-se-á que, por ser a realidade total de caráter dialético – em virtude da identidade prévia entre a realidade e a razão, identidade que faz do método dialético a própria forma em que a realidade se desenvolve – em virtude da identidade prévia entre a realidade e a razão, identidade que faz do método dialético a própria forma em que a realidade se desenvolve – esse caráter afeta o que ela tem de mais positivo. ... A noção de dialética, o método dialético e, por vezes, a chamada “lógica dialética” são centrais no marxismo ... . Um caráter comum a quase todos os pensadores marxistas é fazer da dialética um método para descrever e entender não, como em Hegel, o autodesenvolvimento de “a Idéia”, mas a realidade enquanto realidade “empírica”. ... Em sua Crítica da Razão Dialética, Sartre apresenta a atividade dialética como “totalizante”. A razão dialética constitui um todo que deve fundar-se a si mesmo. 52 A fenomenologia foi criada pelo filósofo Edmund Husserl, que propõe um método baseado na “redução fenomenológica” que em síntese consiste no seguinte; por meio da análise de como o entendimento intervém no conhecimento das realidades da experiência, permitindo definir o campo da consciência interior e chegar assim aos próprios fenômenos na forma como se apresentam a essa consciência, isto é, atingir a essência real das coisas. Na prática, esse método consiste numa descrição da gênese dos conceitos, o que possibilitaria delimitar os elementos objetivos e subjetivos que intervêm no ato de conhecer. 47 seria possível descobrir o significado das ações e das relações que se ocultam nas estruturas sociais. A fenomenologia consiste em uma abordagem do objeto em que deve ser ultrapassada sua aparência para alcançar a essência de sua realidade fenomênica, para tanto usa-se o interacionismo e a etnometodologia. O interacionismo, pautado na teoria do ator, funda-se na idéia básica segundo a qual os indivíduos forjam comportamentos antecipados de outrem e agem em razão de comportamentos esperados dos outros. Assim, o indivíduo é entendido como um intérprete do mundo que o rodeia. A etnometodologia investiga o cotidiano dos pesquisados e o significado que eles atribuem aos acontecimentos diários e triviais. A análise fenomenológica tem como referência, ou ponto de partida, o indivíduo. A respeito do conhecimento formulado no campo das ciências sociais ou das ciências naturais, no que tange à sua natureza científica, reporta-se a Boaventura de Souza Santos que, ao inspirar-se em Jacques Rousseau (1750) a propósito de alguns questionamentos elementares a respeito da ciência e do senso comum, indaga “pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo 48 positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade”53. Até que ponto a ciência melhorou ou poderá melhorar a vida humana? A complexidade desta pergunta parece irredutível, porque na cultura ocidental foi incorporada à idéia da ciência a crença quanto ao avanço tecnológico e progresso, sendo decorrência disso os benefícios materiais aos quais as pessoas passaram a ter acesso54 a partir da elaboração de um conhecimento marcado por especificidades que lhe confere o caráter de científico. Contudo, não se pode negar que referido “progresso científico” trouxe conseqüências dramáticas para a vida humana individual e coletiva. A devastação dos ecossistemas (fauna e flora), o que ameaça a qualidade de vida em período de tempo muito próximo; a violência globalizada através das organizações de caráter ideológico-religioso (terrorismo islâmico e de Estado)55 e criminosa (tráfico internacional de drogas e armas)56; a solidão e o sedentarismo das pessoas, levando as mesmas ao uso cada vez mais disseminado 53 de antidepressivos e drogas lícitas do SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências, p. 8-9. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, p. 258. Por que, então, temos a ilusão do progresso e de evolução? Por dois motivos principais: ... 1 ... Do lado do cientista, o progresso é uma vivência subjetiva; ... 2. do lado dos não cientistas, porque vivemos sob a ideologia do progresso e da evolução do “novo” e do “fantástico”. Além disso, vemos os resultados tecnológicos das ciências: naves espaciais, computadores, satélites, fornos de microondas, telefones celulares, cura de doenças julgadas incuráveis, objetos plásticos descartáveis, e esses resultados tecnológicos são apresentados pelos governos, pelas empresas e pela propaganda como “signos do progresso” e não da diferença temporal. Do lado dos não cientistas, o progresso é uma crença ideológica. (grifo nosso) 55 BARELA, José Eduardo. O massacre dos inocentes. Revista Veja, p. 106-109. 56 TOWNSEND, Mark; HARRIS, Paul. O apocalipse está aí. Revista Carta Capital, p. 46-53 54 49 comportamento 57, bem como as doenças (como a obesidade) exigindo tratamentos cada vez mais agressivos à fisiologia humana; exemplificam os múltiplos aspectos que envolvem a questão de afirmarse acriticamente as maravilhas produzidas pelo conhecimento científico na contemporaneidade. Duas observações são pertinentes, a posição apresentada a respeito da ilusão quanto à melhoria da qualidade de vida a partir do conhecimento científico e, sobretudo, de seu progresso não tem o objetivo de desconsiderar as conquistas das ciências natural e social, mas de contextualizar o Homem, pois não se usufrui esses benefícios sem contrapartida. Vários problemas inerentes à vida humana foram resolvidos, no entanto, vive-se em um mundo repleto de outros tantos problemas à espera de solução. O que se pretende é afirmar as diferenças nos modos de vida em cada tempo, sempre repletos de expectativas. Ressalta-se, ainda, que é irrenunciável o papel da ciência na condução do conhecimento em busca de uma melhoria geral na condição de existência do Homem. A partir das considerações anteriores, é reafirmada a posição segundo a qual é possível especular que, no paradigma emergente, “a distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências sociais deixou de 57 LOZNEANU, Bronie. Prisioneiros das pílulas. Revista Época, p. 50 ter sentido e utilidade”58. Isto se deve a quê, segundo Boaventura de Sousa Santos; a concepção mecanicista da matéria e da natureza a que contrapõe, com pressuposta evidência, os conceitos de ser humano, cultura e sociedade. Os avanços recentes da física e da biologia põem em causa a distinção entre orgânico e inorgânico, entre seres vivos e matéria inerte e mesmo entre o humano e o não-humano59. Há uma convergência entre as diferentes formas de conhecimento, haja vista uma ontologia renascida na contemporaneidade em decorrência das frustrações que as restrições cientificistas60 criaram através das especialidades e compartimentação do conhecimento. A prometida redução da complexidade proposta através da subordinação do conhecimento ao método de análise do objeto revelou-se inconsistente, pois o Homem continua sem resposta para problemas fundamentais relativos à sua existência. 58 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências, p. 37. Idem, p. 37. 59 CHAUÍ, Marilena. Op. cit., p. 280. O cientificismo é a crença infundada de que a ciência pode e deve conhecer tudo, que, de fato, conhece tudo e é a explicação causal das leis da realidade tal como esta é em si mesma. 59 . 51 2.4 QUESTÕES A RESPEITO DO ESTUDO DO DIREITO. Abordados alguns temas a respeito da produção do conhecimento e suas implicações para a condição da vida humana, considera-se oportuno tratar dessas questões no âmbito do direito. Neste sentido, há problemas que devem ser demarcados e, na medida do possível, estudados com vistas à contextualização do direito no quadro geral dos saberes. O direito, como objeto de estudo, atende aos pressupostos necessários para identificação como um conhecimento que tenha a natureza de científico? Qual é o objeto de estudo do direito? Se os estudos a respeito do Direito têm o caráter científico, a qual ramo da ciência o direito estaria afeito? Esses problemas são pertinentes ao método, como instrumento que encaminha o processo de análise do objeto, a partir de sua fragmentação, classificação e conceituação, basicamente. Portanto, não se trata de resolver o problema, mas de contextualizá-lo, considerando um vetor que orienta o desenvolvimento deste trabalho, o qual assenta 52 suas pilastras na finalidade do direito, a qual se identificada como sendo a “de ordenar a convivência e o desenvolvimento dos povos”61. 2.5 COMO CONHECER O DIREITO? O conhecimento do direito no Brasil até o final da década de 80 do século XX, teve, como referência fundamental, o estudo da norma jurídica enquanto fenômeno ordenador da sociedade brasileira. Como tal, as escolas de direito formavam os estudantes a partir de uma visão positivista estruturalista, logo, os profissionais trabalhavam com o direito em uma perspectiva da sua validade, vigência e eficácia. Verificadas estas condições no sistema jurídico, outras discussões a respeito do direito deveriam ser reservadas à sociologia jurídica, à filosofia jurídica, enfim, esteve-se por um longo período estudando o direito a partir de um referencial kelseniano de sistema fechado62. É perceptível como está se transformando rapidamente o modo de vida da faixa economicamente ativa da população no Brasil, o que pode ser atribuído a absorção de novas tecnologias e práticas sociais 61 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do Direito, p. 25. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução à Filosofia e à Epistemologia Jurídica. Do formalismo advém a disposição em deduzir o direito a partir de um sistema de conceitos e princípios, com a crença de que a correção material decorre do acerto formal dessa operação. Como conseqüência, tem-se que: (1º) A ordem jurídica passa a ser vista como um sistema fechado e pleno, com autonomia e independência frente à realidade social. (grifo nosso) 62 53 decorrentes, entre outros fatores, aos novos padrões de comunicação estabelecidos globalmente. No campo do direito, a elaboração da Constituição de 1988 teve um papel importante porque toda a ordem jurídica foi revisitada. Esta movimentação provocada pela Assembléia Nacional Constituinte levou a discussões políticas e ideológicas que resultaram na absorção de determinados valores relevantes, os quais foram incorporados ao sistema jurídico brasileiro. Foram selecionados alguns pontos que são identificados como referenciais para as alterações provocadas no ordenamento jurídico com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Assim, destaca-se a adoção do primado do devido processo legal no artigo 5º, LIV da CF/88, no qual se entende que se asseguram todas as garantias processuais, desde o acesso irrestrito à jurisdição estatal até o duplo grau de jurisdição. O princípio do contraditório e da ampla defesa, previsto no artigo 5º, LV, são tidos como fundamentais para o Estado Democrático de Direito; o artigo 1º, inciso III63; o artigo 3º, inciso I64; o artigo 170 63 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 1º. A República Federativa do Brasil ... tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana; 64 Idem, artigo 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; 54 caput e inciso VII65; o artigo 173, § 1º, inciso I66; todos da Constituição Federal de 1988, entre outros dispositivos que preceituam a respeito da construção da sociedade brasileira pautada em valores que são suprajurídicos, no sentido de que se expressam lingüisticamente por termos que têm uma significação ampla, vinculada à sociologia e à filosofia. Acredita-se que a introdução no ordenamento legal desses termos que apresentam conceitos abertos possibilitou novas formas de estudo do direito e, portanto, novas formas de conhecê-lo. Igualmente se têm pensado que as estruturas que o Estado organiza para cumprir seu papel67 obrigatoriamente devem voltar suas ações para a realização daqueles ideais Constitucionais. Procura-se o apoio no texto da Constituição Federal de 1988, a fim de evidenciar o caráter jurídico das preocupações desta proposta de estudos. A abordagem específica visa à compreensão sistêmica das questões inerentes à segurança e à efetividade da prestação jurisdicional. 65 Idem, artigo 170, caput. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VII – redução das desigualdades regionais e sociais; 66 Idem, artigo 173, caput. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividades econômicas de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; 67 O Estado deve ser o responsável pela criação, organização e implementação das políticas de desenvolvimento dos bens eleitos pela nação como fundamentais para o crescimento nacional. 55 Quer se propor uma forma de conhecer o direito a partir de uma referência teórica crítica68 da hermenêutica Constitucional. O que se pretende dizer com isso? O enfoque dos estudos deve ser realizado, tendo como ponto de partida a Constituição Federal, como preceito jurídico fundamental, sendo portadora dos dispositivos legais que asseguram a coerência e a existência do sistema jurídico brasileiro, como sistema autopoiético. Estes dispositivos legais dependem para sua aplicação de passarem pelo processo de interpretação, a qual deve ser realizada criticamente, ou seja, o direito deve ser estudado a partir de suas interações com outros sistemas, interessando, sobretudo, suas relações lingüísticas e finalísticas com o ambiente social. Ressalta-se que a oportunidade dessa proposta de estudos caminha no sentido indicado pelas recentes constatações realizadas no campo teórico e doutrinário, tanto nas ciências naturais como nas ciências sociais, a indicação é a da crise do paradigma dominante69 70. 68 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente, p. 23. Por teoria crítica entendo toda a teoria que não reduz a ‘realidade’ ao que existe. A realidade qualquer que seja o modo como é concebida é considerada pela teoria crítica como um campo de possibilidades e a tarefa da teoria consiste precisamente em definir e avaliar a natureza e o âmbito das alternativas ao que está empiricamente dado. 69 Ibidem, p. 60-63.O modelo de racionalidade que preside à ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. ... é só no século XIX que este modelo de racionalidade se estende às ciências sociais emergentes. ... Esta nova visão do mundo e da vida conduz a duas distinções fundamentais, entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza e pessoa humana, por outro. 70 Ibidem, p. 71. Depois da euforia cientista do século XIX e da conseqüente aversão à reflexão filosófica,bem sinalizada pelo positivismo, chegamos a finais do século XX possuídos pelo desejo quase desesperado de complementarmos o conhecimento das coisas com o conhecimento do nosso conhecimento das coisas, isto é, com o conhecimento de nós próprios. (grifos nossos) 56 Localiza-se a crise dos paradigmas no direito na observação do processo de desestruturação dos princípios erigidos pela Revolução Francesa, quanto ao monismo jurídico, a efetividade e segurança da jurisdição, a liberdade, a igualdade e a fraternidade; os quais têm determinado as discussões em torno da criação, organização e aplicação do direito através dos instrumentos postos à disposição dos indivíduos pelo Estado. Retomando a idéia a respeito da qual as ciências naturais e as ciências sociais se integram para formar uma modalidade de conhecimento que tem a finalidade de proporcionar melhores condições para a vida humana. Deve-se mencionar que durante 14 séculos, desde o Século II até o Século XVI, a teoria de Cláudio Ptolomeu 71, a respeito do geocentrismo, tratou a Terra como o centro do Universo, o quê, de certa forma, localizava o Homem como o ser central, criado à imagem e semelhança de Deus. Os escritos de Nicolau Copérnico foram desenvolvidos no sentido de negar o geocentrismo e propor um estudo baseado no heliocentrismo, o que acabou se confirmando com o trabalho de Galileo Galilei. 71 NOVA Enciclopédia Barsa, v.12, p. 105-106. O compêndio de astronomia elaborado por Ptolomeu no século II foi adotado pela igreja durante toda a Idade Média. ... Personalidade das mais célebres da época do Imperador Marco Aurélio, Ptolomeu foi o último dos grandes sábios gregos e procurou sintetizar o trabalho de seus predecessores. Por meio de suas obras de astronomia, matemática, geometria, física e geografia, a civilização medieval teve seu primeiro contato com a ciência grega. ... Baseado nas idéias de Hiparco, Ptolomeu adotou o sistema geocêntrico, que situa a Terra no centro do universo e, ... 57 Essa alteração completa no paradigma reconhecida como “Revolução Copernicana” ou “Revolução de Copérnico”72 produziu efeitos durante vários séculos, sabendo-se que o heliocentrismo passou a ser o referencial para os estudos realizados no campo da astronomia, permanecendo assim até o presente. Efetivamente, a Revolução Copernicana representa uma grande revolução científica, onde se observa uma completa ruptura e mudança no paradigma até então adotado. Posteriormente, ocorreram pequenas revoluções científicas, as quais alteraram parcialmente alguns referenciais teóricos e leis a respeito dos trabalhos desenvolvidos por Copérnico e Galileo, contudo, nenhum estudo chegou a demonstrar que o heliocentrismo não tenha relação com a representação do movimento da terra em relação ao sol. Contemporaneamente à Revolução Copernicana, inicia-se o ciclo das grandes navegações com a descoberta de regiões desconhecidas da terra pelos europeus. Podem ser acrescentados inúmeros fatos que ocorreram a partir do Século XVI aos anteriormente mencionados, mas não sendo o objetivo deste trabalho tratar exaustivamente da descrição histórica a respeito do que ocorreu por ocasião da elaboração e divulgação da teoria heliocêntrica, pretende-se apenas observar que, a 72 SIMMONS, John,.Os 100 maiores cientistas da história, 2002. A “Revolução de Copérnico” é um termo extremamente válido, apesar de seu conteúdo real ter sido muito discutido e disputado por dois séculos, desde que foi empregado pela primeira vez por Immanuel Kant. O termo deve ser entendido como se referindo ao abandono, por Copérnico, da astronomia ptolomaica e sua prioridade em desenvolver um modelo heliocêntrico. 58 partir de Galileo, tem início uma completa mudança na maneira de viver do Homem. Acredita-se que no campo das ciências humanas73 74 e das ciências sociais, esse processo levou a posturas que, em última análise, deslocam os dogmas de uma perspectiva transcendental75 e permite uma visão imanente do Homem em relação ao mundo e a si mesmo. Estava preparado o terreno para que René Descartes escrevesse, em 1637, o Discurso do Método e propusesse uma forma de conhecimento embasado na decomposição do objeto em partes, o que asseguraria seu melhor conhecimento. Esta forma de abordagem do objeto constituiria um tipo de conhecimento rigoroso e que seria caracterizado como sendo científico. Desde então e até o final da 2ª Guerra Mundial, quando o holocausto, Hiroxima e Nagasaki chocaram o mundo, parecia não haver um modo melhor ou mais eficiente de constituir o conhecimento. Todos os movimentos científicos parecem ter sido orientados no sentido da formação de uma ciência caracterizada pela sua especialidade, na medida 73 CHAUI, Marilena, Op. Cit., p. 271. ... a expressão ciências humanas refere-se àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto. ... para ganhar respeitabilidade científica, as disciplinas conhecidas como ciências humanas procuraram estudar seu objeto empregando conceitos, métodos e técnicas propostos pelas ciências da Natureza. 74 Ibidem, p. 273. A constituição das ciências humanas como ciências específicas consolidou-se a partir das contribuições de três correntes de pensamento, que, entre os anos 20 e 50 de nosso século (XX), provocaram uma ruptura epistemológica e uma revolução científica no campo das humanidades. A contribuição da fenomenologia, a contribuição do estruturalismo e a contribuição do marxismo. 75 AULETE, F. Caldas.Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, v. 5, p. 3.625. Transcendental, o mesmo que transcendente. Transcendente, adj., sublime, superior. Metafísico. 59 em que se exigia a fragmentação do objeto para o seu efetivo conhecimento. Grandes juristas envolveram-se com o nazismo76 e o fascismo, por reduzirem o direito e a idéia de justiça a alguma coisa menor, desvinculada do Homem, algo institucional, contextualizado no tempo e pautado na idéia de que “os fins justificam os meios”77. Acredita-se que tais fatos criaram as condições para que se questionassem os paradigmas segundo os quais o conhecimento científico poderia ser formulado de modo desvinculado de valores éticos. O conhecimento do direito deve se pautar por meios que assegurem uma análise mais ampla do fenômeno jurídico como expressão do poder estatal a que todos vincula. Sua realização no campo do direito processual tem caráter instrumental, ressalta-se que isto não pode ser entendido como uma forma de subordinação e perda da autonomia do processo em relação ao direito material. Este caráter instrumentalizador do processo precisa ser entendido como um mecanismo que possibilite não apenas a aplicação das regras de direito material, mas, sobretudo, a garantia da realização dos fins primordiais que orientam e dão sustentação ao direito no corpo social. O processo 76 BERCOVICI, Gilberto. Carl Schimtt e a constituição de Weimar: breves considerações. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais., p. 366. 77 MACHIAVELLI, Niccolò. O príncipe. 60 deve ocupar seu espaço no mundo jurídico como um filtro, onde se produzirá a norma a ser aplicada a cada caso concreto levado a apreciação do Poder Judiciário. Reduzir o direito processual à ferramenta cega do direito material é negar uma trajetória histórica que se iniciou em Roma, com a acción real e desenvolveu-se até à formulação da Teoria Geral do Processo na Alemanha em 1868. Qualquer proposta nesse sentido deve ser tratada com cautela. O processo, ainda que seja uma técnica não deve estar em descompasso com os interesses e necessidades da sociedade onde incide suas regras. Portanto, não se pretende negar que o direito pode ser conhecido como ciência e igualmente que o processo tem elementos que permitem afirmar sua cientificidade. A atividade científica em torno do direito tem por objetivo dar uma representação do fenômeno jurídico de acordo com o paradigma científico adotado78. 78 ARNAUD, André-Jean et al. Dicionário enciclopédico de teoria e de Sociologia do Direito, p. 9196. A ciência do Direito como corpus teórico e como prática social. ... A ciência do direito é suscetível, na base da definição muito geral que acabamos de apresentar, de se realizar a níveis bastante diversos com respeito aos diversos paradigmas admitidos e aos critérios de cientificidade que a eles estão associados. Esse ponto é entretanto obscurecido pelo fato de que, no pensamento jurídico, o monismo epistemológico dominante conduz a exclusões e a condenações recíprocas. Se adotarmos, ao contrário, uma forma de pluralismo epistemológico, deverá ser reconhecido que a cientificidade pode ter graus e que as diversas versões da ciência do direito podem assumir seu lugar em um espectro com múltiplas gradações, correspondentes aos diversos empregos da expressão “ciência do direito”, empregos esses a que uma definição léxica precisa referir-se. ... Acrescentamos, à guisa de conclusão, que nesse modelo complexo de ciência interdisciplinar do direito a teoria do direito é chamada a desempenhar um papel determinante que consiste em operar a aproximação ou a tradução dos dois jogos de linguaagem em presença: o da dogmática, de um lado, e o das ciências sociais, do outro. Sem que isto conduza a subestimar as especificidades e as funções distintas que esses dois tipos de saber apresentam, esse papel de intermediário deveria incitar a teoria do direito a adotar uma forma de pluralismo epistemológico (supra), que poderia predispô-la a liberar as virtualidades científicas inscritas na dogmática, da mesma forma que as virtualidades práticas alternativas que as ciências sociais veiculam. (grifo nosso) 61 Contudo, torna-se imprescindível compreender as limitações das teorias originalmente criadas de modo hermético, buscando a um conhecimento baseado em métodos que antes isolavam o fenômeno de estudos em relação ao Homem, ao qual está ligada toda construção realizada, seja de caráter científico ou não. Com isso, quer-se afirmar que não deve ser convalidada a figura do conhecimento desvinculado do sujeito que o produz. É adequado que se estude o direito como parte de um todo maior, que é o sistema social. Não se trata de submeter o direito à sociologia, mas de compreendê-lo como um elo entre o Estado, considerado sob o ponto de vista dos fins que deve promover para a organização e transformação sociais e o próprio corpo social, nas múltiplas relações que estabelece intrínseca e extrinsecamente. É através do direito processual que se realiza o procedimento de aplicação dos dispositivos de direito material. Tendo em vista a proposta da realização de uma pesquisa pautada em uma teoria crítica da hermenêutica Constitucional, focada, sobretudo, no sistema de interpretação e aplicação dos princípios cunhados na Constituição Federal de 1988 a respeito do direito processual, considera-se que o processo de execução das obrigações de natureza privada se localiza entre os eixos principais de sustentação das políticas brasileiras em busca 62 do ingresso entre os países desenvolvidos, de um lado a estruturação de uma sociedade politicamente democrática e pautada pelos valores do Estado Democrático e Social de Direito, e de outro, o imperium referente às políticas econômicas liberais, que exigem garantias de retorno dos capitais investidos nos países cujas economias estão mais susceptíveis aos movimentos dos capitais voláteis, descompromissados com os setores produtivos e com os interesses locais. Nessa encruzilhada entre garantias individuais Constitucionais e garantias de sustentação das políticas econômicas, são criados os “seguros” que socorrem os bancos que misteriosamente quebram, os “fundos de emergência” para as corporações que “sofrem prejuízos” por participarem dos processos de privatização e não arcarem com os riscos do empreendimento. Tudo sob o manto do Estado. O indivíduo que ainda consegue participar do sistema de crédito, contudo, submete-se à remuneração exorbitante cobrada pelas instituições financeiras pelo capital; o regime da correção de investimentos para o poupador é ínfimo se comparado com as taxas de juros praticas. Esse desequilíbrio tem como um de seus efeitos o seguinte resultado: a pessoa é levada ao sistema de consumo a crédito, arcando com o ônus de uma macropolítica econômica que ela sequer suspeita que existe, mas que, em última análise, alimenta. 63 Nesse quadro, qual deve ser o papel do direito? O indivíduo não pode ser objeto da espoliação imposta por macropolíticas econômicas que não são do interesse local, mas não deve também tutelar a inadimplência irresponsável. Acredita-se que o processo represente uma possibilidade concreta para conduzir esses problemas a um tipo de solução que atenda às necessidades das partes envolvidas na execução. Propostas que visem ao comprometimento das estruturas que o direito processual edificou a partir de uma longa experiência histórica devem ser tratadas com cautela. A referência é ao comprometimento da autonomia do processo de execução em relação ao processo de conhecimento. Esta posição decorre da convicção de que não é justificável comprometer a ordem do processo, que ainda representa uma das garantias das liberdades democráticas para a sociedade, e da suspeita de que, sob o pálio da apregoada busca pela efetividade da jurisdição, pretenda-se colocar o direito processual a serviço dos interesses nem sempre claros do sistema financeiro que opera com a rotatividade de crédito e que alimenta a custos incalculáveis políticas econômicas de alcance internacional. O processo de execução deve ser modelado de acordo com os princípios da Constituição Federal de 1988, sem com isto desconsiderar- 64 se sua autonomia em relação ao processo de conhecimento. Esta nova execução ao atender aos preceitos instrutores da justiça em seu sentido amplo deve antes viabilizar a solvência da obrigação que inviabilizar as atividades econômicas do devedor, sobretudo, quando o débito tiver sido contraído com o objetivo de financiar meios de produção formais ou informais. É possível afirmar que as propostas de reforma do processo de execução no Brasil não serão capazes de oferecer respostas satisfatórias ao problema da baixa efetividade jurisdicional quanto à entrega do bem da vida pela via da coação jurisdicional, pois o quebra-cabeça desse problema está situado em um descompasso ligado a fatores extrínsecos ao direito processual, como a questão dos juros elevadíssimos cobrados pelo crédito, bem como pelas altas taxas referentes aos juros moratórios quando o indivíduo eventualmente torna-se inadimplente, sendo-lhe quase sempre impossível arcar com as despesas adicionais decorrentes da demora. O direito processual como sistema fechado desconsidera estas questões, que, contudo, são relevantes para a compreensão e superação do problema da efetividade e segurança jurisdicional. Estudar o direito processual de forma crítica exige uma postura mais aberta e flexível quanto ao seu papel no contexto da realização dos objetivos do Direito enquanto ciência e mecanismo de organização e 65 desenvolvimento da sociedade. É nesse sentido que este trabalho será encaminhado. 66 3 O DIREITO NO CONTEXTO DA TEORIA DOS SISTEMAS 3.1 TEORIA GERAL DOS SISTEMAS A elaboração de uma rede de conceitos a respeito da idéia da existência e funcionamento dos sistemas ocorreu primeiramente no campo das ciências biológicas em 1951, tendo sido o seu organizador Von Bertalanffy, que escreveu a Teoria Geral dos Sistemas. Contemporaneamente Wiener, desenvolve um conjunto de conhecimentos análogos no campo da cibernética. A questão relativa à Teoria dos Sistemas está centrada nos mecanismos operacionais ou funcionais dos seus elementos integrantes, sendo admissível a idéia que concebe sob o ponto de vista de sua natureza, o sistema como aberto ou como fechado. Quanto à sua constituição, os sistemas podem ser: físico/concreto/hardware ou abstrato/software. Há teorias intermediárias, as quais concebem o sistema como fechado relativamente a certos aspectos de seu funcionamento e aberto em relação a necessidade de interação com o meio79. 79 A teoria dos sistemas autopoiéticos foi desenvolvida inicialmente no Chile no campo da biologia por Francisco Javier Varela e Humberto Maturana, que eram biólogos moleculares. 67 A Teoria Geral dos Sistemas como foi proposta está fundamentada na formação de modelos abertos com funções que dependem da estrutura do sistema. Os sistemas são abertos porque são caracterizados por um processo de intercâmbio infinito com seu ambiente, que são outros sistemas. Cessando o intercâmbio, o sistema se desintegra por perder sua fonte de energia. Como esta teoria foi elaborada no campo da biologia, ela apresenta um aspecto organicista. Bertalanffy não visou a solução de problemas de ordem prática, mas a partir da crítica da visão do conhecimento produzido de forma compartimentada através da divisão em diversas áreas do saber, a qual considerava arbitrária, afirmou que as propriedades dos sistemas não podem ser descritas significativamente em termos de seus elementos separados. Assim, a compreensão dos sistemas ocorre quando estudados globalmente, envolvendo todas as interdependências de suas partes. O funcionamento dos sistemas na Teoria Geral de Bertalanffy ocorre dentro dos parâmetros em que se verifica a entrada/insumo/impulso (input)80 e a saída/produto/resultado (output)81. Considerando a necessidade de estabelecer-se um referencial conceitual quanto ao que é entendido como sistema, o mesmo deve ser compreendido como um conjunto de elementos interdependentes e 80 Input é a força de arranque ou de partida do sistema que fornece o material ou energia para a operação do sistema. 68 interagentes que se formam por um grupo de unidades combinadas que compõem um todo organizado que gera um resultado maior do que seria criado pelas unidades, funcionando separadas e independentemente. No modelo cibernético de Wiener, são estudadas as relações entre os fatores de controle e comunicação dos seres vivos, das máquinas e das relações sociais. Pode ser mencionada igualmente a idéia expressa por sistema na filosofia, onde autores como Kant, Leibniz, Wolff, Fichte, utilizaramna para referir-se a diversas coisas, contudo, sempre tendo em vista uma totalidade dedutiva de discurso, sendo usada para indicar, sobretudo, um discurso organizado dedutivamente constituindo um todo cujas partes derivam umas das outras. Outro aspecto correlato a sistema na filosofia refere-se a qualquer teoria científica ou filosófica quando se pretenda ressaltar suas características teóricas e, portanto, afastar-se dos problemas empíricos82. Quanto ao conhecimento expresso pela teoria geral dos sistemas, em ciências sociais é pertinente observar que ela representa uma retomada de estudos, através de novas vias, em busca de um fio condutor para a unidade da ciência. Nesse sentido, esta teoria se 81 82 Output é a finalidade para a qual se reuniram elementos e relações do sistema. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, p. 908-909. 69 caracteriza pela interdisciplinaridade com um sentido unificador e globalizante, em busca de uma totalidade do conhecimento científico. 3.2 CIÊNCIA DOS SISTEMAS Nos anos setenta, formulou-se a sistêmica ou ciência dos sistemas em geral como disciplina científica autônoma, visando desenvolver os métodos de modelização para fins de intervenção dos fenômenos compreendidos como complexos, entendidos, assim, aqueles que são portadores de um certo grau de imprevisibilidade essencial. A ciência dos sistemas visa a uma conceituação do sistema geral como um “conceito abstrato, construído de modo a servir de matriz para modelos de fenômenos complexos, dotados de um certo número de traços ou propriedades cuja coerência mútua é estabelecida no seio da teoria do sistema geral” 83. Dois aspectos são fundamentais, lastreando a ciência dos sistemas, quais sejam: o que se refere à sua conjunção cibernética (aspecto funcional), ou seja, todo fenômeno pode ser entendido pelas suas finalidades em um determinado meio; e a conjunção estruturante (aspecto estrutural) dos sistemas em geral, segundo a qual, os fenômenos 83 ARNAUD, André-Jean. Dicionário enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, p. 736. 70 podem ser entendidos através de seu funcionamento e de suas transformações. O método sistêmico é proposto pela teoria dos sistemas como uma alternativa que rompe com o racionalismo clássico analítico. Em ciências sociais, o método sistêmico foi questionado porque utiliza os modelos construídos em outras áreas da ciência, como a biologia. Esta aplicação se justifica em virtude do poder explicativo apresentado pelos métodos sistêmicos. A sociologia e, principalmente, a sociologia jurídica desenvolveram, através de métodos sistêmicos, formas excepcionais de análise do fenômeno social, seja sob seu enfoque geral, ou específico, no campo do direito. 3.3 SISTEMAS SOCIAIS O enfoque do direito sob uma perspectiva crítica forçosamente leva à questão do sistema social, pois, em uma concepção sistêmica de análise do fenômeno jurídico, este é estudado a partir das interações que estabelece com o meio social84 quê, por sua vez, existe em um contexto o qual forma o sistema social. 84 MIRANDA, Pontes de Francisco Cavalcanti. Introdução à Sociologia Geral, p.17. A adaptação não se opera entre parte do ser e o meio, mas entre todo o ser e todo o meio. Por isso, a sociedade humana difere da animal: os processos adaptativos não se efetuam somente entre atos, e sim também entre pensamentos, porque os homens são serem pensantes. Por outro lado, o meio não é só a família, o grupo profissional, é também a escola filosófica ou científica, a nação, a humanidade; e não é só o grupo social, - é também o Universo, o mundo físico. (grifo nosso) 71 Pode ser afirmado que o sistema social consiste na intersecção entre indivíduos num determinado espaço de tempo e lugar, sendo estabelecidas relações de interdependência. Isto pressupõe um conjunto de relações estabelecidas entre indivíduos a partir de inúmeras situações que podem ser naturais, como a filiação e convencionais, como a relação de emprego. Sobressalta, entretanto, que as relações no sistema social são normatizadas. As regras que regulam o sistema social podem ter diversas origens, sendo normas de conduta social, religiosa, de etiqueta e de direito. O sistema social permeia tudo quanto diga respeito ao Homem, uma vez que o paradigma da existência em sociedade não foi rompido. O Homem é um ser eminentemente social e aquilo que lhe diz respeito se concretiza na conjuntura do sistema social. A sociologia é um ramo do conhecimento que objetiva compreender o sistema social em sua totalidade, o que significa que seu objeto de trabalho é a análise do conjunto das relações interdependentes que são estabelecidas no meio social. A ciência dos sistemas, erigida a partir da teoria geral dos sistemas, desenvolveu-se com base na idéia fundamental a respeito da existência de estruturas constituídas por partes 72 interligadas por vínculos de dependência que interagem formando o todo que possibilita a identificação de um sistema. As partes integrantes do sistema são denominadas subsistemas. Em ciências sociais, a pesquisa qualitativa é predominante e o método sistêmico tem sido utilizado com bons resultados na análise sociológica. Uma análise sistêmica é considerada crítica porque aborda os aspectos inerentes ao subsistema em relação ao sistema social no que tange às conseqüências decorrentes dessas relações para os indivíduos. O subsistema jurídico pode ser conhecido através de diferentes maneiras. A sociologia jurídica é a área da sociologia que pretende compreender esse subsistema sob sua ótica social. O Direito é a área do subsistema jurídico que visa ao estudo dos dispositivos legais, considerando-se sua inserção social quanto à ordenação e transformação do sistema social. No que se refere à função regulamentadora das condutas, o direito desempenha um importante papel na solução dos conflitos de interesses, uma vez que o Estado tem poderes para intervir junto às partes para garantir a ordem, impondo 73 uma determinada conduta a qual elas ficam obrigadas a obedecer85. 3.4 SISTEMA JURÍDICO Ao referir-se a sistema86, tem-se a noção de um conjunto de partes unidas por relação de dependência com vista a determinados fins. Historicamente, houve uma variação considerável quanto ao que se pode identificar como sendo o sistema jurídico87. 85 ARNALD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos., p. 11. O sistema jurídico possui diferentes significados, de acordo com que, como objeto de conhecimento, se o considera numa perspectiva jurídico-dogmática ou numa perspectiva sociojurídica. Do ponto de vista da dogmática, o sistema jurídico surge como um conjunto lógico-formal de regras jurídicas, cujas características fundamentais são a sistematização, a generalidade, a completude, a unidade e a coerência. Do ponto de vista propriamente sociojurídico, no entanto, o sistema jurídico é polissêmico. Por um lado, é concebido como lugar de interação, isto é, como um sistema de comunicação, formado por símbolos normativos com função persuasiva; por outro lado, esse sistema de símbolos normativos age como elemento causal dos comportamentos sociais. A sociologia do direito, conseqüentemente, também toma o sistema jurídico como objeto de conhecimento, sem limitar-se aos comportamentos sociais que têm uma relação com o direito - , e isto com base nas duas perspectivas acima assinaladas, ao mesmo tempo em que se consideram interpretações jurídico-dogmáticas que dão aos juristas das normas jurídicas, porquanto estas também são elementos determinantes da conduta social dos indivíduos. (grifo nosso) 86 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução à Filosofia e à Epistemologia Jurídica, p. 110. Uma noção muito cara para a moderna metodologia das ciências é a de ‘sistema’. Em Direito, o termo aparece já no século XVIII, com o Movimento do Direito Racional Jusnaturalista, surgido sob o influxo das meditações cartesianas, fundantes da concepção de ciência vigente nos temos modernos. ‘Sistema’, conforme se entendia à época, coincidia com a idéia geral que se tem de um todo funcional composto por partes relacionadas entre si e articuladas de acordo com um princípio comum. 87 ARNAUD, André-Jean. Dicionário enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, p. 728. Até o século dezoito, designava-se o conjunto de normas jurídicas de uma sociedade pelo nome de ‘leis’. ... O termo mais preciso ‘sistema jurídico’ aparece na filosofia política e na teoria jurídica no século XVIII. Encontramos a expressão ‘systems of law’ com Bentham em 1782 ... e a expressão ‘os diversos sistemas de legislação’ no Contrato social de Rousseau de 1762... . Vinte anos antes, Hume já utilizava a expressão ‘system of morality’ para designar uma moral particular ... . O termo ‘sistema jurídico’ se difundiu no século XIX através de escritos históricos, assim como o termo de origem alemã ‘ordem jurídica’. ... Mesmo que as expressões ‘sistema jurídico’ e ‘ordem jurídica’ sejam muitas vezes utilizadas uma pela outra, elas têm conotações diferentes. O termo ‘sistema jurídico’ dá, de um direito positivo, essencialmente a imagem de um conjunto de normas, e insiste no aspecto de sistematização de coerência lógica: ele agrada àqueles que atribuem à doutrina um papel importante na elaboração de um direito positivo. Por outro lado, o termo ‘ordem jurídica’ tem um sabor sociologizante e evoca algo mais forte que um conjunto de normas seja a sociedade, a cultura ou o Volksgeist que criam as normas, ou as relações sociais e o conjunto da ordem social que resultam das normas jurídicas. 74 A respeito desse assunto, é importante considerar o sistema informal de direito, de modo que o sistema jurídico formal convive com um conjunto de regras complementares de caráter flexível, e destituídas de poderes de coerção segundo o modelo estatal. Os sistemas informais criam uma regulamentação constituída de regras identificáveis que, embora sejam flexíveis, operam através de meios que produzem as condutas esperadas. Não há uma linha divisória que separe de modo absoluto os sistemas informais dos formais, pois em inúmeras situações regras de conduta informais se transformam em regras obrigatórias absorvidas pelo sistema formal, havendo casos em que regras informais podem existir dentro do sistema formal, interferindo em seu funcionamento. Desta forma, os sistemas informais constituem uma realidade que engloba o sistema formal e, muitas vezes, penetra-o. Suas formas de agir, suas áreas de influência e suas relações com o sistema formal são indispensáveis para o seu conhecimento. O sistema jurídico desdobra-se em algumas questões que lhe são inerentes e, portanto, fundamentais, as quais se referem a sua existência, sua identidade, sua estrutura e seu conteúdo. O critério para determinar-se a existência, a identidade, a estrutura e o conteúdo do sistema jurídico é que representa o principal problema que deve ser 75 enfrentado, sendo que, até o presente momento, não foi possível estabelecer, de modo definitivo, uma forma que permita precisar com segurança os limites ou contornos dos sistemas jurídicos. A questão da existência vincula-se a efetividade do sistema. A identidade se refere aos limites do sistema, para tanto tem sido adotado o critério da origem, assim as normas originadas do mesmo modo integram o mesmo sistema. Quanto à identidade, também é admitido o critério do reconhecimento pelos órgãos que aplicam o direito, como é o caso dos tribunais. Quanto à estrutura, várias são as posições doutrinárias sobre o modo de organização dos dispositivos que constituem o sistema jurídico, podendo ser mencionadas as normas de conduta, normas imperativas, normas de competência, entre outras, de modo a formar o modelo do sistema. Há ainda as normas sancionadoras88, que têm sido entendidas como as diferenciadoras do sistema jurídico, pois somente este disporia de mecanismos que impõem sanções aos indivíduos que se recusem a cumprir os preceitos que compõem o sistema. Ainda no que tange à estrutura do sistema jurídico, observa-se a grave problemática da existência de lacunas e de conflitos dentro do sistema. Atualmente, as teses que admitem as lacunas e os conflitos têm 88 Ibidem, p.. 731. É quase universalmente aceito que todo sistema jurídico contém normas que impõem sanções ... . A maior parte dos autores afirma que todo o sistema jurídico contém, além das normas de conduta, normas outras que impõem sanções àqueles que desobedecem às primeiras: essas duas categorias de normas são muitas vezes chamadas `primárias` e `secundárias`. 76 melhor aceitação na comunidade jurídica, em detrimento do pensamento kelseniano que, até a década de 60, defendia a idéia da ausência de lacunas e de conflitos. Após 1960, Kelsen aceitou a possibilidade da existência de conflitos internos no sistema jurídico. Quanto ao conteúdo dos dispositivos que compõem o sistema jurídico, duas questões são suscitadas, uma que se refere à identificação de conteúdos comuns em todos os sistemas jurídicos e outra, em saber se é necessária a presença de determinados conteúdos para que um conjunto de dispositivos sejam considerados como parte do sistema jurídico. A par de alguns dos problemas que envolvem a questão referente à identificação e à conceituação do sistema jurídico, considerase interessante, tendo em vista que esta pesquisa é desenvolvida sob um viés sistêmico, tratar de alguns aspectos a respeito da formação da teoria dos sistemas jurídicos a fim de que seja determinado um conceito de sistema jurídico, bem como referido o atual estágio de desenvolvimento dessa teoria. 3.4.1 Posição do Direito em relação à teoria dos sistemas jurídicos Tratar do direito sob uma perspectiva sistêmica dentro de uma proposta hermenêutica reporta a uma concepção de acordo com a qual o Direito se configura como realidade cultural o que não deve 77 comprometer seu caráter científico. Assim, como um modo de solução de conflitos concretamente entabulados o direito adere à realidade, toda a sua história está vinculada a isto. A cientificidade do direito é reconhecida na medida em que ele se constitui como um conjunto de regras capazes de garantir soluções pré-determinadas ou prédetermináveis aos problemas que surgem em decorrência das relações existentes no meio social. Estas soluções devem ser formuladas através de um modelo lingüístico que lhe assegure a “eqüidade” das respostas apresentadas aos problemas. A concepção sistemática do Direito não é inovadora, representando, contudo, uma retomada quanto à intenção de reformularse um modo de estudo que dê um sentido unificador ao conhecimento jurídico, podendo ser afirmada uma tendência à totalidade quanto ao Direito89. A unidade e a totalidade devem ser assimiladas através da identificação de um conjunto de princípios que norteie toda a compreensão do fenômeno objeto do estudo. Há duas acepções tradicionais relativas ao sistema jurídico, uma externa ou extrínseca e outra interna ou intrínseca. Sob o ponto de 89 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 107. A idéia-força de nosso tempo – e aqui nos valemos daquela imagem verbal produzida por Fouilée há tanto tempo – parece ser, no campo das Ciências Sociais e de sua metodologia, a concepção sistêmica, qual se acha de último concebida na teoria dos sistemas. Importa a orientação sistêmica, no significado mais profundo que talvez se lhe possa atribuir, a retomada de um sonho frustrado desde o século XIX, de que foi exemplo e modelo a filosofia positivista de Augusto Comte: o da unidade da Ciência, agora investigada e perquirida por novas vias. 78 vista extrínseco, o sistema se refere ao trabalho intelectual que produz uma totalidade de conhecimentos logicamente classificados, com base em um princípio unificador. Seus requisitos são: a coerência, a perfeição e a independência. No campo do Direito, o conhecimento de seu objeto está vinculado a coaticidade do dispositivo legal. Esse mesmo objeto, quando abordado em si mesmo como um conjunto de elementos materiais (coisas ou processos) ou imateriais (conceitos), ligados entre si por relações de mútua dependência, constituindo um todo organizado caracterizado pela simetria acerca da matéria, está ligado à concepção intrínseca do sistema. 3.4.2 A tradicional sistêmica do Direito Sem preocupações conceituais, desde Roma, podem ser identificadas menções a sistemas de Direito. Entretanto, isto não apresentava um nível de abstração teórica comparável ao que mais tarde veio a ser concebido, assim será tomada como ponto de partida a pandectística alemã A Escola Histórica, que foi encabeçada por Savigny90, representa 90 MARTINS FILHO, Ives Gandra. Manual Esquemático de história da filosofia, p. 353. FRIEDRICH VON SAVIGNY (1799-1861). Professor em Berlim e ministro da Prússia, é o fundador da escola histórica do Direito, que combateu a teoria do Direito Natural, substituindo-a pelo estudo da evolução histórica do Direito Positivo. (grifo nosso) 79 um momento crucial após um período em que o direito romano havia sido estudado pela Escola dos glosadores que foi sucedida pela Escola dos Pós-glosadores, que teve como um de seus ilustres representantes Bártolo de Sassoferrato91. Tradicionalmente, a Escola histórica possibilitou uma perspectiva de conhecimento do direito que culmina com a pandectística sintetizada na dogmática jurídica também denominada de jurisprudência dos conceitos, pautada no formalismo jurídico através de uma via sistemática fundamentadora de dois modelos para a ciência do direito92. Em um caso, a idéia do sistema é formada de maneira externa, ou seja, as normas jurídicas não apresentam pontos de ligação 91 PRATA, Edson. História do processo civil e sua projeção no direito moderno, p. 100-107. Irnérius, fundador da Universidade de Bolonha, em 1088, ... assumiu a cátedra de direito romano, criando escola, fazendo recrudescer o seu prestígio que mais salientava pela interpretação dada aos textos romanos acomodada à prática das instituições vigentes. Era a escola dos glosadores, assim chamados porque os que a constituem (Búlgaro, Placentino, Giovani Bassiano e outros) se notabilizaram pelas glosas, ou notas, feitas à margem ou nas entrelinhas dos textos, em comentários às instituições a que se referiam. ... Houve um intervalo entre a projeção da Escola dos Glosadores e a dos PósGlosadores, ocupada pela chamada Escola dos Ultramontanos, cujos alicerces foram lançados por Jacques Révigny (1.200-1.296) e João Faber. ... Surgiu no século XIV a chamada Escola dos PósGlosadores, também denominada Escola dos Comentadores, porque seus integrantes se valeram dos comentários aos textos romanos estudados, assim como os glosadores da glosa se utilizaram. ... Dois grandes juristas se projetaram nesta Escola: Bártolo de Sassoferrato (1.314 – 1.357) e Pedro Baldo de Ubaldis (1.327 – 1.406). ... Bártolo, professor da Escola de Bolonha, era considerado pelos seus coevos como a maior figura jurídica de todos os tempos, trazendo consigo, os cognomes “a luza do Direito”, “o príncipe dos legisladores”, “o milagre da natureza”. Sua fama chegou a tal ponto que fez surgir o aforismo: “nemo bonus jurista nisi bonos bartholista”. Daí porque a Escola dos Pósglosadores ficou conhecida também como Escola Bartolista. (grifo nosso) 92 CANARIS, Claus–Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução à edição portuguesa. António Menezes Cordeiro. P. XXV e seguintes. Designadamente com SAVIGNY e a escola histórica, procedeu-se à confecção de um método puramente jurídico. Esse método, que era suposto corresponder a um discurso sobre o processo de realização do direito vai, ele próprio, tornar-se objecto de novos discursos. Ou seja, num fenômeno que a moderna Filosofia da Linguagem bem permite isolar, pode considerar-se que a autonomização metodológica do Direito comportou um preço: o aparecimento dum metadiscurso que, por objecto, tem não já o Direito. Surge, então uma metalinguagem, com metaconceitos e toda uma seqüência abstracta que acaba por não ter já qualquer contacto com a resolução dos casos concretos. 80 específicos entre si, sendo que os juristas realizavam seus trabalhos tendo por finalidade elaborar uma estrutura para o direito. Assim, os teóricos constroem, dogmatizam e impõem a lógica ao Direito. Dessa forma, o sistema é identificado em uma síntese interpretativa entre a histórica, o doutrinador e o dispositivo legal. Portanto, a idéia do sistema seria exterior ao objeto específico de estudo, sendo constituída pelos doutrinadores com base na história. A Escola histórica, com as suas mesmas bases formalistas e estruturalistas, permitiu a formulação de um modelo de sistema intrínseco93. Nessa concepção, a estrutura lógica está no próprio direito, assim o ordenamento jurídico seria dotado de uma racionalidade interior à espera de revelação pelo jurista. A sistematicidade lógica e racional é pré-existente em relação à intervenção do sujeito cognoscente, estando intrinsecamente ligada ao objeto. A partir das colocações anteriores, pode afirmar-se que a teoria dos sistemas jurídicos tem suas bases tradicionais vinculadas à Escola histórica que formulou a jurisprudência dos conceitos que é formalista e estruturalista. Por sua vez, a jurisprudência dos conceitos produziu duas correntes teóricas distintas para o direito, uma que considera o sistema 93 BONAVIDES, Paulo Op. cit., p. 112. A determinação do sistema interno do Direito, pelo formalismo, inspira-se na filosofia kantista, graças à qual floresceram posteriormente várias posições doutrinárias, cujo objetivo era estabelecer com exação e rigor científico a especificidade do nexo que vincula as várias partes da construção jurídica positiva. 81 jurídico como uma formulação extrínseca ao ordenamento jurídico, sendo constituído pelo sujeito cognoscente, ou seja, o sistema é identificado no objeto (ordenamento jurídico) através da elaboração doutrinária. O conteúdo sistêmico do direito se encontraria na formulação teórico-doutrinária produzida pelo sujeito e não propriamente no objeto estudado, sendo sua finalidade criar uma estrutura para o direito. A mesma jurisprudência dos conceitos, através da teoria dos sistemas intrínsecos, inverte a posição da formulação do conhecimento sistêmico do direito e desloca essa característica para o objeto estudado, sendo que ao sujeito cognoscente cabe unicamente descrever as características que são intrínsecas ao ordenamento jurídico. Os sistemas intrínsecos representam um alto grau de sofisticação teórica, sendo o formalismo jurídico kelseniano da Teoria Pura do Direito, o modelo de elaboração mais primorosa dentre aqueles identificados como integrantes da tradição sistêmica do direito94. 94 Paulo BONAVIDES. Op. cit. p., , 112. Fora, contudo, da órbita formalista, numa esfera puramente material, vingaram também sistemas jurídicos internos com base nos valores e sua relatividade (Radbruch) ou em critérios de manifesto cunho teleológico, com os sistemas formados à sombra da chamada jurisprudência dos interesses, da Escola do Direito Livre e da Teoria marxista. 82 3.4.3 Sistemas jurídicos teleológicos ou finalísticos Não é possível, com absoluto grau de precisão, determinar uma linha no tempo ou mesmo no desenvolvimento epistemológico, onde teria arrefecido a jurisprudência dos conceitos para ascender a jurisprudência dos interesses. Acredita-se que as mudanças no ocidente durante a Idade Moderna os quais decorreram da desagregação dos meios de produção organizados durante a Idade Antiga enquanto vigorou o feudalismo foram fatores determinantes que permitiram a rediscussão sobre a questão dos valores e dos fins a ser buscados através dos sistemas ordenadores das condutas humanas que mais tarde foi delimitado por algumas características específicas e denominado de sistema jurídico95 96 97. A jurisprudência dos interesses representa uma reação ao 95 ENCICLOPÉDIA Mirador Internacional, v. 11, p. 5.937. Idade Média. 1. Conceituação e limites. A apresentação organizada dos fatos no fluxo do processo histórico impõe a sua distribuição por amplas fases, e a isso se chama periodização. ... No século XVII é que se nota a tendênica a aplicar essa divisão no processo histórico em geral. ... Foi somente em 1685-1696 que Christoph Keller (Cellarius) consagrou a tripartição da história universal em seus compêndios, ... . ... A partir daí, apesar das objeções levantadas no séc. XVIII, o termo idade Média acabou por ser aceito na França, na Inglaterra, e em toda a Europa. Nunca houve, entretanto,, unanimidade quanto aos seus limites no tempo. 96 VICENTINO, Cláudio. História Geral., p. 111. ... utilizaremos a expressão Idade Média desprovida de qualquer conteúdo pejorativo, indicando unicamente o período histórico compreendido entre os séculos V e XV, que tem início com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e que se estendeu até a tomada de Constantinopla, em 1453. 97 Ibidem, p.176. Entre os séculos V e XVIII, estruturou-se uma nova ordem socieconômica, denominada capitalismo comercial. ...Apenas no final da Idade Moderna, a classe burguesa reuniu meios para edificar um ordem social, política e econômica à sua própria imagem, embora somente os acontecimentos da segunda metade do século XVIII, como a Revolução Industrial, a independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, consolidassem definitivamente a posição da burguesia, inaugurando a idade Contemporânea. 83 que se pode denominar por irrealismo metodológico da jurisprudência dos conceitos, é operacionalizada por metadiscursos inacessíveis e sem preocupações juspositivas. O direito desvinculado da realidade torna-se inflexível e incapaz de resolver os problemas que lhe são apresentados. O meio social produz uma infinidade de situações que obrigam o direito a admitir uma maleabilidade que dificilmente poderia ser totalmente expressa através de um sistema modelado com base em conceitos previamente estabelecidos de forma rígida98. É interessante mencionar que o idealismo filosófico de Kant faz referência a questões inerentes à jurisprudência dos interesses, como é o caso do enfoque quanto ao objeto a partir de uma sua função. Von Ihering ao propor uma teoria sistêmica em que o direito estaria vinculado a questões exteriores ao ordenamento jurídico, tendo em vista a finalidade que os dispositivos ordenadores das condutas devem cumprir ou satisfazer, teria se inspirado em uma visão organicista em que o sistema funciona como um organismo vivo que existe a partir 98 CANARIS, Claus–Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução à edição portuguesa. António Menezes Cordeiro. P. XXVIII. Tal o dilema da Ciência do Direito no final do século vinte: perante problemas novos, ou se intensifica um metadiscurso metodológico irreal, inaplicável a questões concretas e logo indiferente ao Direito, ou se pratica um formalismo ou um positivismo de recurso. Em qualquer dos casos, as soluções são ora inadequadas ora assentes em fundamentações aparentes, escapando ao controlo da Ciência do Direito. 84 de uma orientação básica que se refere ao cumprimento de suas finalidades99 100. A concepção orgânica da Ciência do Direito desenvolvida por Von Ihering introduz no sistema jurídico as idéias de interesse e de fim, desviando a pesquisa do direito embasada em questões formais e estruturais e atribuindo-lhe uma dimensão material eminentemente valorativa. Ressalta-se que a jurisprudência dos conceitos não negou ao direito uma dimensão axiológica, mas restringiu este aspecto ao próprio ordenamento jurídico, como algo que se lhe apresentasse interiormente. A jurisprudência dos interesses vai buscar o reconhecimento dos fins em um contexto mais amplo, ou seja, no meio social onde o direito realizase como reordenador das condutas em descompasso diante dos problemas inerentes às relações sociais. Surgiram críticas no sentido de que a jurisprudência dos interesses se pautava em um simplismo reducionista, na medida em que abandonava as macroteorias que asseguravam uma visão mais ampla dos fenômenos jurídicos para focar a realidade cotidiana da vida. 99 MARTINS FILHO, Ives Gandra. Op.cit., p. 209. Sob a ótica do juízo reflexivo, vê-se que o objetivo da natureza é a realização do fim moral do homem (todos os seres organizados estão ordenados para o homem): “Duas coisas enchem-me o espírito de admiração e reverência: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim” (natureza, liberdade e Deus) – sublime que provoca o êxtase. 100 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 113. A imagem organicista de Kant continha já uma poderosa e implícita sugestão finalística, potencialmente precursora do modelo teleológico que von Ihering e os juristas posteriores da jurisprudência dos interesses e das correntes sociológicas do Direito acabaram depois por consagrar. 85 A jurisprudência dos valores surge após a 2ª Guerra Mundial como uma teoria que enfoca os interesses, os quais se vinculam à figura do legislador e dos valores sob um ponto de vista em que ocorre a ponderação entre a realidade observada no meio social, seus valores e os interesses do Estado quanto à forma de regulamentação desta mesma realidade. Considerando-se que há uma natural intersecção entre as teorias, a jurisprudência dos valores, em virtude de não ter tido seus estudos aprofundados e melhor desenvolvidos, acabou por ser assimilada pelo formalismo estruturalista. Na mesma esteira epistemológica, surgiu a jurisprudência ética construída a partir das novas possibilidades em relação a problemas como o da verdade e da moral. A atribuição a moral de um caráter cultural e o entendimento de que as regras jurídicas se distinguem de outros regramentos pelo fato de que somente aquelas integram o processo de decisão, estando adstritas à Ciência do Direito, possibilitou a afirmação de que o sistema de aplicação do direito deve ser conduzido pela ética. Como se percebe, há uma dificuldade considerável em operar no campo axiológico, porque há o risco de se comprometer elementos como a segurança jurídica, e ainda, a possibilidade de se criar situações 86 em que os problemas quanto à sua solução não obedeçam a um padrão de regularidade prevista previamente. Podem ser mencionadas outras teorias sistêmicas do direito, como a teoria analítica do direito ou jurisprudência analítica, a jurisprudência problemática, reelaborada por Theodor Viehweg em 1953, as sínteses hermenêuticas, que se originaram do pensamento de Hegel e se desenvolveram através de Heidegger até Gadamer101. Não será abordada pontualmente cada uma dessas formulações teóricas, porque sua repercussão é mais importante e direta para o continente europeu, sobretudo para a Alemanha, em que pese seus reflexos se fazerem sentir na América, por outro lado, a apresentação das teorias sistêmicas neste trabalho não tem uma finalidade em si mesma, mas objetiva a melhor compreensão possível a respeito de como se formaram e se encontram essas teorias atualmente no direito. 101 CANARIS, Claus–Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução à edição portuguesa. António Menezes Cordeiro, p. XL- LXI. 87 3.4.4 O sistema jurídico marxista Karl Marx102 é reconhecido como o ideólogo do modelo econômico e político denominado marxismo ou comunismo, não se atribuindo inicialmente maior importância às suas idéias no campo do sistema jurídico. Atualmente, contudo, os autores críticos do direito103 reconhecem, nos primeiros trabalhos de Marx, o embrião das teorias críticas do direito, considerando-se este como um sistema teleológico ou finalístico. A teoria marxista representa o contraponto ao modelo econômico capitalista e globalizante como método para a análise dos sistemas social, econômico e político. No século XX, e, sobretudo, após a década de 80, pode ser observado um acirramento no processo de acumulação financeira baseada na especulação em detrimento da economia de produção de bens e serviços. Esse fato é decorrência de 102 NOVA Enciclopédia Barsa, v..9, p. 341. Marx, Karl. Karl Heinrich Marx nasceu em Trier, na Renânia, então província da Prússia, em 5 de maio de 1818. ... Em 1841 apresentou sua tese de doutorado na Universidade de Berlim, em que analisava, na perspectiva hegelina, as diferenças entre os sistemas filosóficos de Demócrito e de Epicuro. Nesse mesmo ano concebeu a idéia de um sistema que combinasse o materialismo de Ludwig Feuerbach com o idealismo de Hegel. ... Depois de participar do movimento revolucionário de 1848 na Alemanha, Marx regressou definitivamente a Londres, onde durante o resto da vida contou com a generosa ajuda econômica de Engels para manter a família. ... em 1867 publicou o primeiro volume de O Capital, monumental análise do sistema socioeconômico capitalista, sua mais importante obra. ... morreu em 14 de março de 1883 em Londres. 103 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução à filosofia e à epistemologia jurídica, p. 121.Talvez a maior contribuição da atualidade no campo da ciência jurídica ou, mais especificamente, na teoria (da ciência) do direito, seja aquela portada pela teoria crítica do direito. Esta última tem suas raízes históricas assentadas no século XIX, precisamente na concepção jurídica do jovem Marx, forjada em contraposição crítica ao pensamento da Escola Histórica e à filosofia do Direito e do Estado hegeliana, ambas igualmente idealistas e ingenuamente românticas. 88 inúmeros acontecimentos históricos que contribuíram para que a sociedade ocidental vinculasse o abastamento econômico das pessoas (naturais ou jurídicas) a competência, eficiência, enfim, o êxito no sentido mais amplo que se possa entender isto, passa a ser mensurado como conseqüência da capacidade de acumulação financeira e de participação do mercado consumidor. Em última análise, isto justifica tudo, inclusive o que não se enquadra neste sistema econômico, pois, no mundo democrático da livre iniciativa e das oportunidades, se a prosperidade econômica não se realizou o problema é das pessoas que não tiveram competência, capacidade, e sob uma perspectiva metafísica, não foram “abençoadas por Deus”. Essa forma de compreensão da realidade compromete dois valores fundamentais, de um lado, a percepção da vida sob o prisma da responsabilidade social é reduzida ao assistencialismo estatal e a um solidarismo da sociedade mal interpretado. Neste contexto a grande maioria das pessoas não é considerada como sujeito ativo no processo de formação histórica e cultural, mas sujeito passivo de um modelo em que são submetidas à condição de legitimadores do poder político e consumidores de bens e serviços. Soma-se a isto o conceito de alienação econômica, filosófica e religiosa, porque as identidades locais e regionais são desagregadas em favor de ideologias e interesses que não são 89 revelados, tendo como conseqüência um elevado grau de inconsistência e instabilidade social. Por sua vez, isto é informado às comunidades como ausência de capacidade para sua estruturação sócio-políticaeconômica, o que justifica as intervenções, e mais sutilmente ainda, a reelaboração do conceito de soberania e subordinação legal, no plano interno; e de coordenação, no cenário internacional. Esse quadro mostra um quebra-cabeça para o qual o marximo pode apresentar subsídios para uma análise sob uma perspectiva mais crítica no sentido de encontrar-se desvinculada dos “fios invisíveis” que orientam aquele sistema. Ressalta-se que a teoria marxista, desde sua formulação até à atualidade. passou por estudos de diferentes áreas do conhecimento humano, sendo que economistas, historiadores, antropólogos, sociólogos e outros estudiosos incorporaram a metodologia marxista sem aderir à sua filosofia política e à práxis revolucionária. Para a teoria dos sistemas jurídicos, a crítica marxista importa na medida em que como o conjunto das idéias filosófica, econômica, política e social que interpretam a vida conforme a dinâmica das relações entre a infra-estrutura e as superestruturas que são alicerçadas pelo modo de produção, o direito enquanto sistema formalista e estruturalista é um mecanismo de controle das forças que, se encetado em uma direção 90 ordenadora, termina por garantir a manutenção de um modelo que subjuga e explora as forças produtivas a fim de assegurar o máximo de resultado econômico com o mínimo de risco financeiro. De outro modo, em uma abordagem metodológica segundo a teoria marxista ou crítica do sistema jurídico, ao direito pode atribuir-se um papel mais amplo, na medida em que não seja um simples ordenador de forças, mas verdadeiro instrumento de transformação social, como resultado de uma construção histórica em que a idéia de mudança seja a constante e o papel do direito seja o de equacionamento desse movimento no sentido da recomposição e reorientação da composição das forças produtivas. Tem sido afirmado que, quando o direito nega a realidade, a realidade nega o direito, o quê, apesar da simplicidade, evidencia a necessidade de um sistema jurídico que seja consentâneo com as transformações sociais. Não deve ser esquecido o fato de que Marx tratou o direito como uma superestrutura legitimante da infra-estrutura. O pensamento original marxista é revolucionário, o que tornaria o direito incapaz de promover transformações no campo institucional, pois somente durante as “eras revolucionárias”, quando as forças produtivas da sociedade entrassem em contradição com as relações de produção existentes, 91 convertendo-se estas em obstáculos à continuidade do processo produtivo, a estrutura ideológica vigente seria rompida, permitindo ao Homem a tomada da consciência do conflito entre o capital e o trabalho, o que conduziria à revolução proletária, com a implantação da ditadura do proletariado, a qual evoluiria para um modelo de sociedade sem classes ou comunista. A referência feita ao sistema jurídico marxista toma como ponto de partida não-exatamente o aspecto revolucionário da mudança, mas a análise baseada na dialética materialista. Dessa forma, o “devir” do plano ideal hegeliano foi substituído pela noção da percepção da realidade no progresso material e econômico. Na percepção da realidade imanente, teriam sido admitidas as relações estabelecidas entre a infraestrutura e as superestruturas. A existência dessas relações seria uma constante de interação e interdependência, onde pode ser localizado o papel crítico transformador do Direito em uma perspectiva sistêmica e dialética. Acredita-se que somente após a 2ª Guerra Mundial, com o desenvolvimento de estudos não-dogmáticos do marxismo, sobretudo, elaborados por Edmund Husserl e Martin Heidegger, desenvolveram-se 92 as teorias sistêmicas críticas do direito, pautadas na dialética materialista de Marx104. A crítica sistêmica no marxismo necessariamente não rompe com um certo grau do dogmatismo, mas estabelece uma diferença fundamental entre as teorias que enfocam o direito sob um ponto de vista dogmático-formalista-estruturalista fundamentado nos dispositivos legais e aquelas que o estudam enquanto fenômeno social. No primeiro caso, o modelo proposto é “integrante ou de equilíbrio” e no segundo caso, o “modelo é de conflito”. Isto significa que o positivismo jurídico, do qual Kelsen é seu representante máximo, propõe um direito que prédetermina uma solução “artificial” porque não considera a realidade conflituosa sobre a qual incidirá a solução do problema. Por outro lado, no modelo de conflito, a solução dos problemas será sempre referida à realidade histórica materialista que gerou seu surgimento, ainda que, igualmente relacionada com um conjunto de dispositivos legais que préestabeleçam formas para a sua composição. A grande distinção está em que num caso a solução é idealizada previamente e, no outro, ela é construída com referência ao conflito. 104 BONAVIDES, Paulo. Op. cit. ,p. 114. A noção teleológica de sistema interno, expendida por Von Jhering, caracteriza tam’bem a jurisprudência dos interesses, bem como a Escola Livre do Direito. Mas foi a Teoria Marxista que fez o pensamento teleológico e sistêmico alcançar pontos extremos de oposição ao dedutivismo formalista, com os preceitos jurídicos conduzidos então às últimas conseqüências em termos de teorização material; algo comparável, em profundidade e extensão, ao que fizera Kelsen, do lado oposto, com o formalismo. (grifo nosso) 93 Aprofundando a questão da crítica marxista para a análise dos sistemas jurídicos, convém, ainda, destacar que esta difere das teorias decorrentes da jurisprudência dos interesses, porque a conexão com a realidade sob a qual incidirá o direito não é restrita ao fato em si mesmo, mas se refere às relações que levaram à necessária intervenção do Estado para o reequacionamento da situação. Nesse contexto, a aplicação do dispositivo legal se afasta dos particularismos nas decisões jurídicas, que tantas observações renderam às escolas que se desenvolveram com base na jurisprudência dos interesses, como foi o caso da Escola Brasileira do Direito Alternativo. Os fatos que demandam a aplicação do direito, de acordo com a dialética materialista marxista, devem ser observados sob o prisma dos movimentos, das mudanças, das transformações social, econômica e política que determinaram a sua ocorrência. É possível afirmar que a proposta teórica de se estudar o direito a fim de assegurar sua aplicação com base em parâmetro de “justiça”, levando em consideração todos aqueles aspectos, ou seja, as determinantes histórica, social, econômica e política que resultaram no fato a ser objeto da decisão jurídica, tornaria inviável a jurisdição, tendo em vista a complexidade e dificuldades que resultariam para a formação do aplicador do direito. Considera-se esta afirmação procedente, mas, ou se aceita o desafio, ou se convive com a insegurança e a não-efetividade 94 da jurisdição, objeto de infinitas reformas e insatisfações na práxis do direito, sem que se chegue a uma solução do problema da “justiça”. 3.4.5 Atualidades a respeito da sistêmica jurídica Desde a proposição da teoria geral dos sistemas no campo da biologia, passando pela concepção sistêmica em ciências sociais até a atualidade, há uma infinidade de teorias que foram elaboradas. No campo do direito, as formulações a esse respeito se encontram em fase de desenvolvimento, pois durante um considerável período de tempo, que pode ser delimitado aproximadamente até o término da 2ª Guerra mundial, foi conservada uma visão do direito formalista-estruturalista baseada em um idealismo altamente abstrato, o quê, posteriormente, identificou-se como sendo um sistema fechado, ou seja, onde as trocas de energia ou relações com outros sistemas eram desconsideradas quanto à sua operacionalidade, entendida como aplicabilidade prática dos dispositivos legais. Houve uma tentativa de aplicação da teoria geral dos sistemas de Bertalanffy ao direito, o que lhe atribuiu um caráter interdisciplinar porque a compreensão dessa teoria é a de que os sistemas são abertos, logo, o conhecimento do direito e sua aplicação ocorreria de uma forma 95 mais ampla, não se restringindo à norma jurídica, podendo, inclusive, mencionar-se a possibilidade da pluralidade quanto às fontes do direito. Esta forma de compreensão dos sistemas foi considerada inadequada por entender-se que a visão da teoria geral apresentava um caráter descritivo das relações de troca de energia, sendo os sistemas analisados através de sua forma e organização, ou seja, pelo aspecto formal e estrutural em detrimento da investigação quanto ao conteúdo dos sistemas e das relações que estabelecem. Podem ser mencionadas a teoria cibernética105 de Norbert Wiener106 e a teoria de David Easton107 108 como importantes propostas para a sistêmica jurídica, contudo, estas teorias têm sofrido um certo grau de restrição por considerar-se que permanecem vinculadas à idéia da forma e da organização. 105 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 117. A Cibernética em sua acepção mais larga vem definida no Fischer-Lexikon como “a Ciência da descrição matemática e da valorização construtiva de estruturas, relações, funções e sistemas gerais que são comuns a distintos campos da realidade”. 106 BONAVIDES. Op. cit., p. 117. Importantes e fundamentais estudos trouxeram de imediato a aplicação daquela ciência ou arte (arte, segundo o entendimento de Louis Couffignal) ao domínio das Ciências Sociais. As contribuições mais relevantes ocorreram no campo da Ciência Política, com as obras de Karl W. Dutsch e Eberthard Lang, instituladas respectivamente The Nerves of Government (Os Nervos do Governo) e Staat um Kybernetik (O Estado e a Cibernética). 107 BONAVIDES. Op. cit., p.118. Parte Easton da compreensão da vida política como um conjunto de atividades relacionadas entre si (“a system of interrelated actividies”), isto é, como um sistema, em que a idéia mesma de sistema já induz a possibilidade de separar, pelo menos para efeitos analíticos, o campo da atividade política do campo da atividade social. 108 BONAVIDES. Op.cit., p.120. Afirma Easton que, num universo sujeito a flutuações tão violentas quanto o nosso, é exatamente o fluxo desses efeitos e informações entre o sistema e o meio que, em última análise, permite ao sistema político sobreviver. Sem o feedback, poderá ele, “nenhum sistema, afinal, sobreviveria, salvo por acidente.” 96 A Teoria da Ação Social de Talcott Parsons109 110 é particularmente interessante, estando localizada no campo da sociologia jurídica. O trabalho de Parsons tem seus contornos demarcados pelo sistema da personalidade e sistema cultural, através da interação entre os atores individuais, o que coloca o conceito de interação como sendo fundamental para a sua análise sistêmica ao lado dos conceitos de “‘papel’, ‘posição’, consenso, integração, funcionalidade e estabilidade”111. Contemporaneamente, é de destacada a importância do trabalho de Niklas Luhmann112 que foi aluno de Parsons, na Universidade de Harvard, na década de 60. 109 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Op. cit., p. 158. A versão mais importante da teoria funcionalista foi a dada por Talcott Parsons, com o que, mais tarde, see chamou de paradigma do estruturalismo funcionalista. ... Para se definir o coneito de sistema social, parte-se da “ metáfora organicista”, segundo a quual a sociedade se constitui em sistema (de ação social), cujo funcionamento se assemelha ao de um organismo vivo, a exemplo do corpo humano. ... , segundo Parsons, o sistema social é comporto de quatro subsistemas (político, jurídico, econômico e cultural), cada um deles constituído por várias instituições (as instituições penitenciárias, a família, o casamento, a religião etc.). Todos esses elementos trabalham para a manutenção da coesão, da ordem e do equilíbrio social do sistema. 110 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Op. cit., p. 159-160. ... todo sistema social requer quatro funções: 1. função de adaptação, executada pelo sistema adaptativo ou pelo subsistema econômico, que consiste na obtenção, na produção e na distribuição de recursos e de meios instrumentais, para, se adaptar ao meio externo e para realizar os objetivos do sistema; 2. a função “instrumental”ou de ataque dos objetivos, executada pelo subsistema político, e que consiste na realização dos objetivos do sistema; 3. a função de “integração social ou de controle social”, própria do subsistema jurídico, na medida em que este é um dos elementos mais importantes do sistema de integração social. É a função a que Parsons e outros autores funcionalistas deram maior importância, pois ela consiste, basicamente, em arrefecer os conflitos sociais e em manter o equilíbrio das relações sociais; 4. a função de “socialização”, própria do subsistema cultural, q eu consiste na manutenção do modelo, isto é, na transmissão e na salvaguarda da cultura e dos valores institucionalizados. 111 BONAVIDES. Op. cit., p. 121. 112 ESTEVES, João Pissarra. Niklas Luhmann: uma apresentação. Disponível em:< ... http://Ubista.ubi.pt/~comum/esteves-pissarraluhmann.htm> foi, sobretudo, em termos intelectuais que a passagem por Harvard marcou o percurso de Luhmann. NO início da década de 60, a Universidade local era um dos mais importantes centros das Ciências Sociais norte americanas, em particular da Sociologia, muito por influência de um autor então consagrado, Talcott Parsons. Os seus seminários eram seguidos com enorme interesse por estudantes de todo o mundo, e Luhmann não fugiu à regra. Aí nasceu uma afinidade intelectual que podemos hoje considerar a mais consistente do seu pensamento. Se quisermos arriscar uma caracterização geral da proposta teórica de Luhmann, podemos considerá-la na directa continuidade da Sociologia estrutural e funcional de Parsons; isto significa que ele toma essa proposta com potnto de partida, e apenas isso, para desenvolver um modelo intelectual próprio que, em múltiplos aspectos, se afasta da referência original. (grifo nosso) 97 Nesta mesma época, Luhmann conheceu Jürgen Habermas, tornando-se amigos apesar de suas divergências no campo teóricoacadêmico113. As concepções teóricas de Luhmann tiveram a influência do funcionalismo parsoniano, contudo, a metodologia personalista européia e o modelo interdisciplinar da Universidade de Munster em Bielefeld, onde Luhmann deu aulas a partir de 1968, levaram suas pesquisas a um determinado grau de abstração que durante os últimos anos tem orientado formulações teóricas tanto no campo do direito como da sociologia. O aspecto mais particular do pensamento luhmaniano se refere ao modo segundo o qual este autor entende a forma através da qual são estabelecidas as relações entre o sistema e o meio. A sociedade operacionaliza suas relações nestes termos (sistema-meio) a partir do modelo weberiano que reconhece a existência de uma racionalidade 113 ESTEVES. Op. cit. O pensamento de Habermas representou, nos anos que se seguiram e até hoje, a referência negativa, por assim dizer, da teoria de Luhmann: a versão contemporânea da tradição progressista do pensamento europeu, que Luhmann desde sempre refutou, com uma crítica radical à tradição emancipatória herdeira do humanismo da Luzes, que ele considera totalmente desajustada à realidade complexa das sociedades desenvolvidas. No ambiente muito particular do pensamento alemão, os dois jovens acadêmicos decidiram dar expressão a tão interessante conflito intelectual com a publicação de um livro conjunto e, assim, em 1971 saiu à estampa Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. O trabalho mereceu diversas reedições nos anos seguintes e a editora (Suhrkamp) ampliou as suas repercussões dando início à publicação de uma ‘seie de volumes complementares, numa série intitulada Theorie-Diskussion, onde foram chamados a participar no debate muitos outros destacados cientistas sociais. A polémica estava lançada e ficará, por certo, para a história como uma das mais importantes deste século. Ao longo dos últimos vinte anos, o confronto intelectual entre os dois autores radicalizou-se ainda mais, mas nem por isso as suas relações pessoais deixaram de ser as melhores ... 98 ideal, típica, normativa e optimal, onde seriam instauradas relações harmoniosas entre o sistema e o meio. Também quanto ao reconhecimento do dualismo sistêmico de Weber, onde pode ser identificada uma racionalidade formal e uma racionalidade material ocorre a assimilação pela teoria de Luhmann. Assim, o meio ambiente é entendido como o equivalente da racionalidade material, tendo a função de abastecer e definir os limites do sistema. Ao atribuir ao meio a capacidade para delimitar o sistema, ocorre uma redefinição da racionalidade sistêmica que perde o caráter hegemônico que Weber reconhecia à racionalidade formal. Com isto, em Luhmann, a racionalidade é defensiva do sistema, visando neutralizar as ameaças provenientes do meio. Surge a idéia da contingência, uma vez que a racionalidade passa a funcionar como uma espécie de rede pluridimensional e polimórfica. Percebe-se que a constituição da teoria sistêmica de Niklas Luhmann é inspirada no trabalho de Parsons e também na obra de Max Weber; não menos importantes foram as contribuições da teoria autopoiética elaborada no campo da biologia por Maturana e Varela114. 114 BERNARDES, Márcio de Souza. A compreensão do direito nas matrizes neopositivista e pragmático-sistêmica. Disponível em:<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5624>. A compreensão do direito nas matrizes neopositivista e pragmático-sistêmica. ... sistema social, esboço de uma teoria geral, publicada em 1984. Nesta obra Luhmann introduziu uma nova concepção de sistema social, tendo por referência a mudança de paradigma na teoria geral dos sistemas, produzida por dois biólogos chilenos: Humberto R. Maturana e Francisco Varela (1994a, 1994b e 1995). Essa mundaça significou a substituição dos sistemas abertos, caracterizada pela diferença entre sistema e ambiente, pela teoria dos sistemas autopoiéticos. 99 Contudo, estes teóricos foram referências ou pontos de partida para a abordagem problematizante da comunicação sob o ponto de vista sistêmico na teoria luhmaniana. A propósito do estudo sobre os enfoques atuais dos sistemas jurídicos, a teoria dialógica do direito115 elaborada Rolf Peter Calliess foi concebida com base no pensamento de Luhmann116, sendo que o direito é abordado sob o prisma da estrutura do sistema social como construção social da realidade. Nesse contexto, o Homem aparece no direito, a sociedade passa a ser encarada como elemento constitutivo do jurídico e o direito como constitutivo do social. O jurista é parte ou ator da realidade jurídica. Em Callies, o direito é reduzido a um processo verbal conciliatório de interação, informação e comunicação (estrutura dialógica dos sistemas sociais). Assim, o direito é um instrumento destinado a garantir e proteger a participação do indivíduo nos papéis de comunicação social e tem por finalidade proporcionar e planejar a participação e as oportunidades tanto de informação como de comunicação em uma sociedade em permanente processo de estruturação. 115 BONAVIDES. Op.cit., p. 127. A teoria da estrutura dialógica do Direito é teoria que politiza sobremodo a formação do Direito, compreendendo unitariamente o processo de sua produção e finalmente fornecendo “a moldura categorial para um entendimento necessariamente mais largo da Ciência do Direito como ciência também da planificação do Direito”. 116 BONAVIDES. . Op.cit., p. 125. Inspirado, pois, na sociologia de Luhmann (a sociologia enquanto teoria dos sistemas sociais), intenta aquele jurista (Callies) explicar o Direito como estrutura dialógica dos sistemas sociais, isto é, como “algo” situado entre as categorias sujeito e objeto, ou seja, uma espécie de esfera autônoma e conciliatória em relação a ambos. 100 Observa-se quê, com referência ao momento presente, podem ser encontrados ao longo da história do direito diferentes enfoques quanto à idéia de sistema. Partindo da compreensão de Tomas Khun quanto aos modos de criação e desenvolvimento do conhecimento científico e da descrição desses fatos pelos historiadores, é prudente advertir que a análise sistêmica conforme é realizada atualmente somente se tornou possível após sua elaboração por Bertalanffy (1951), e, havendo a pretensão de contextualização com maior rigor cronológico e epistemológico quanto à sua inserção no direito seria adequado lembrar que a “ciência dos sistemas” foi sintetizada na década de 70. Com isso, pretende-se afirmar quê, embora existam estudos tratando de uma análise sistêmica do direito antes da apresentação da Teoria Geral dos Sistemas por Bertalanffy, isto decorre do equívoco, denunciado por Kuhn, praticado pelos pesquisadores de pretender descrever a ciência no passado com base nos dados e instrumentos do presente, o que altera a descrição dos fatos por criar a imagem distorcida, segundo a qual a ciência no passado teria tido contato com elementos existentes apenas no presente. Advirta-se, portanto, que as abordagens quanto ao pensamento sistêmico que foram realizados neste trabalho, de acordo com os estudos desenvolvidos por Claus-Wilhelm Canaris, tem sua relevância ligada à 101 opção da autora quanto ao estudo de um determinado objeto (direito) a partir de uma metodologia, no caso, o método sistêmico, que foi criado posteriormente em relação ao fenômeno/fato pesquisado. Sob uma perspectiva histórica, considerando um seu enfoque descritivo é necessária a prudência sob pena de ser criada a crença equivocada de que a análise atual corresponde a fatos pretéritos, quê, na verdade, jamais ocorreram. É reiterada a afirmação de que o direito está iniciando seus estudos no campo sistêmico, podendo ser apresentado o seguinte conceito de sistema jurídico: “o conjunto das normas jurídicas válidas para um certo território ou um certo grupo de pessoas, e que não obtém sua validade de nenhuma norma jurídica externa a ele”117. Estes estudos que a princípio estão sendo desenvolvidos no campo da teoria geral do direito passaram por um processo de verticalização, pois, como se verá adiante, já é possível identificar a existência de trabalhos no âmbito do direito Constitucional a partir de uma metodologia sistêmica. Acredita-se na necessidade de estender essas pesquisas para os diversos ramos do direito, sendo que esta tese é uma proposta de trabalho no campo do direito processual, considerando este como instrumento 117 Arnaud, André-Jean. Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, p. 729. 102 para a realização do direito material e, especificamente, das obrigações privadas de caráter individual. 3.5 SISTEMA CONSTITUCIONAL A abordagem a respeito da configuração de um sistema Constitucional pode ser considerada uma novidade, porque embora a idéia de sistema tenha sido bem refletida em uma perspectiva jurídica, entendende-se, neste caso, o fenômeno como um todo; a verticalização para uma compreensão dessa mesma idéia no campo do Direito Constitucional tem sido raramente proposta. Este tema é enfocado neste trabalho a partir da compreensão de que o estudo dos princípios Constitucionais deve pautar-se por uma orientação teórica a priori que permita a contextualização do Direito Constitucional relativamente aos demais ramos do direito, pois pretendese produzir uma pesquisa que permita visualizar o direito processual sob o prisma do sistema jurídico, mas, sobretudo, tendo como liame orientador uma estrutura sistêmica, fundamentada nos princípios processuais insertos na Constituição Federal de 1988. Ressalta que esta elaboração é desenvolvida no sentido de identificar um modelo de interpretação que produza argumentos que assegurem a segurança e a 103 efetividade do processo de execução sem o comprometimento das garantias Constitucionais de processo. É curioso pensar na possibilidade de falar-se em segurança e efetividade crítico-materiais do processo de execução. O sistema Constitucional pode ser conhecido sob um ângulo interno estruturalista, como o faz José Joaquim Gomes Canotilho118, de forma rigorosa. Levando-se em consideração a opção teórica crítica da hermenêutica Constitucional, aquela forma de estudos do sistema Constitucional assume uma relevância parcial, cedendo espaço para a referência sistêmica adotada por Paulo Bonavides. O critério desta opção não guarda uma relação de preferência quanto a excelência dos trabalhos produzidos por esses juristas, mas com os caminhos que se desejou trilhar para a realização desse estudo. Identifica-se nesse sistema uma Constituição formal e uma real, bastante distanciadas uma da outra por haver diferenças consideráveis entre os preceitos contidos em seu texto formalmente constituído119 e os modos como sua aplicação se verifica cotidianamente. 118 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Op. cit., p. 112. Do formalismo advém a disposição em deduzir o direito a partir de um sistema de conceitos e princípios com a crença de que a correção material decorre do acerto formal dessa operação. Como conseqüência, tem-se que: (1º) A ordem jurídica passa a ser vista como um sistema fechado e pleno, com autonomia e independência frente à realidade social, uma realidade a se, 119 104 3.5.1 Constituição formal e Constituição real Ao fazer alusão a uma Constituição formal, quer-se identificar o texto escrito revestido por um idealismo ligado ao grau de abstração do legislador constituinte no momento de cristalizar os bens escolhidos para serem tutelados pelo mais elevado corpo de dispositivos legais do país. A Constituição formal encontra-se fundamentada na jurisprudência dos conceitos que levaram à construção lógica e normativa do sistema jurídico de Hans Kelsen. É correto afirmar quê, formalmente, a Constituição não se reveste de valores materiais da sociedade, mas apenas ideais. Isto justifica o surgimento das Teorias materiais da Constituição120. Pelo seu caráter ideal, a Constituição formal não consegue resolver questões de ordem pragmática corriqueiras, contudo, tal fato não lhe retira a obrigatoriedade e nem tampouco a vinculação quanto à hierarquia do sistema jurídico. Os processos de adequação entre o idealismo da Constituição formal e a necessidade de sua aplicação intensificam a criação de métodos de interpretação que garantam a 120 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 96. A conferência proferida por Ferdinando Lassalle, a 16 de abril de 1862, não representou uma novidade de crítica constitucional antiliberal, porquanto essa crítica já fora feita, com todo o rigor, pelos filósofos da Reação em princípios do século XIX, mas em verdade veio sistematizar todo um estado de idéias, que se insurgia contra o formalismo abstrato das Constituições, buscando assim explicar cientificamente, de modo deveras precursor, o fracasso da Constituição inspirada em dogmas meramente jurídicos e normativistas. A crítica lassaliana fixou em definitivo a importância da Constituição real, reconhecida por decisiva. 105 aproximação entre o ideal Constitucional e as exigências materiais da sociedade. As Teorias materiais da Constituição foram desenvolvidas com o objetivo de criar métodos de interpretação da Constituição formal que possibilitem o reconhecimento de uma Constituição Real, ou seja, aquela que é aplicada tendo efetividade concreta. Assim, quando o artigo 5º, LIV da CF/88, prevê o devido processo legal como um pressuposto imprescindível para a aplicação do direito, qual a extensão disso no direito processual? O Sistema Constitucional121 existe em virtude desse descompasso entre a Constituição formal idealista e abstrata e a necessidade da incorporação de valores relativos aos fatos concretos ocorridos no seio da sociedade. Trata-se de um sistema que se caracteriza por ser material e orgânico, o que o afasta da posição kelseniana e dos sociologismos embasados em realidades inarredáveis. 121 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 97. ... o sistema constitucional, quer dizer, aquele que abrange todas as forças excluídas pelo constitucionalismo clássico ou por este ignoradas, em virtude de visualizar nas Constituições apenas o seu aspecto formal, o seu lado meramente normativo, a juridicidade pura. (grifo nosso) 106 3.5.2 Teorias materiais da Constituição As teorias materiais da Constituição têm uma conotação crítica do direito, o que significa a adoção de uma postura nascida no século XIX, a partir das concepções jurídicas de Carl Marx que criou um contraponto ao pensamento da Escola Histórica e à filosofia do Direito, idealistas e românticas, segundo sua concepção122. O estudo que procura atribuir ao direito uma vinculação com a realização de bens sociais, ao que já se referiu como sendo sua finalidade de ordenação e também de transformações sociais mais voltados para aspectos concretos ou materiais somente teve maior repercussão entre os teóricos do direito após a década de 40, principalmente depois do término da 2ª Guerra Mundial, pois as experiências do nazismo e do fascismo foram reveladoras dos riscos que o discurso formalista e positivista do direito criou para a humanidade, uma vez que atendidos os pressupostos rigorosos da linguagem, hierarquia, vigência e validade da lei, o sistema fechado concebido por Kelsen, colocava o Direito a salvo 122 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Op. cit., p. 121. Valendo-se do método dialético, Marx faz inicialmente a negação antitética da tese historicista, ao propugnar que esta sofre de uma petição de princípios e é radicalmente falsa, quando pretende conhecer o direito como história dos conceitos, princípios, normas e instituições jurídicas, pois essa história simplesmente não existe. Em seguida, conclui, com a negação da negação, síntese superadora da oposição, afirmando que o direito não tem uma história própria, autônoma, distinta do conjunto dos fenômenos sociais em que se inclui, todos voltados, em última instância, para a organização, a um só tempo política e econômica, dos meios materiais de garantir a existência em sociedade. 107 da discussão a respeito de outras questões como a social, política e econômica. O purismo metodológico kelseniano construído com base em um sistema fechado negou a importância da questão valorativa e ideológica, tornando o direito susceptível da apropriação por modelos políticos totalitários e desvinculados dos interesses do Homem. Esta situação conduziu a uma reavaliação dos teóricos do direito quanto à sua concepção formalista e positivista, estabelecendo o ambiente necessário para o referencial crítico materialista referido por Marx. O fundamento da crítica materialista está em que o direito como sistema é aberto, constituindo uma superestrutura lingüística legitimadora das estruturas de poder político e econômico, onde repousariam suas bases ideológicas e valorativas. Logo, somente através da elaboração de uma metodologia de interpretação dos dispositivos legais que permitisse levar em consideração os aspectos sociológicos nos quais assenta o direito sua base, poderia ter assegurada uma ordem na qual pudesse haver a transformação includente, socialmente falando, no sentido de garantir a todos os indivíduos iguais oportunidades de acesso à justiça. Ao se referir às teorias materiais da Constituição, pretende-se mencionar os possíveis métodos de interpretação que 108 possibilitem a aplicação do direito levando-se em consideração suas repercussões sociológicas, considerando-se seus aspectos político e econômico. É importante ressaltar que a opção sociologizante, quanto ao estudo do direito123 e da Constituição, exige cuidado, sob pena de incidir-se no equívoco de afastando questões técnico-jurídicas inerentes ao direito, criar-se um outro modelo ideológico e injusto124. Ainda quanto às teorias materiais da Constituição, deve ser destacada a questão relativa aos seus antecedentes que, estando voltados para a sociedade, nasceram no campo do direito privado, porquanto as elaborações inerentes ao direito público são mais recentes, e ocorrem de 123 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na Ciência do Direito, p. 364-365.”Fascinante – dissemos – o sonho de colocar, por cima do justo por convenção, por cima do justo segundo a lei, o soberano justo por natureza. Num primeiro impulso, na pura esfera de um sonho, não há quem não se sinta irmanado com os juízes do chamado Direito Alternativo. Mas, no momento em que despertamos, e saímos do sonho, e pomos os pés na terra, e o pensamento na simples realidade, que é que vemos? Vemos que precisamos nos abraçar às leis, para ser livres. Para assegurar o respeito a nossos Direitos. Para usufruir e defender o que é nosso. Para que existem as lei? ... Elas existem para evitar o arbítrio do Executivo, par evitar o arbítrio do Jucidiário, para evitar o arbítrio dos mais fortes. ... O que pedimos ao juiz é, somente, que ele interprete a lei aplicável ao caso concreto, e julgue de acordo com o que essa lei manda. O que queremos é nos submeter à lei, não ao arbítrio do juiz, não às teorias ou crenças subjetivas do juiz, à revelia da lei.” Nesse texto, ao tratar do aspecto filosófico inerente à questão da Justiça é abordada a vertente brasileira que proclamou a adoção da Teoria Crítica miscigenada com a jurisprudência dos interesses sob a ótica da escola norte-americana da livre aplicação do direito para a criação da escola orgânica do Direito Alternativo. Sua manifestação é uma advertência inequívoca quanto aos riscos do descuido quanto a questões jurídicas na aplicação do direito. (grifo nosso) 124 BONAVIDES, Paulo. Op. cit.,p.100. A concepção material da Constituição representa no século XX uma corrente de pensamento crítico e revisor, a cujo leito confluem todas aquelas direções inconformadas com o exclusivismo normativo e formalista do positivismo lógico. Desde Laband e Kelsen, esse positivismo levara a teoria do Estado a um ‘nihilismo científico-espiritual’, conforme advertira Smend, numa admoestação severa dirigida sem dúvida aos juristas esvaziadores do Estado e do Direito. Aquelas direções estavam volvidas para o conteúdo e a matéria dos preceitos normativos, de preferência à forma e às categorias. ... Disso também poderia advir o dano oposto, ou seja, uma visão puramente ideológica e política da Constituição, dissolvendo ou debilitando-lhe as bases jurídicas. Se o excesso de formalismo pusera em perigo as Constituições, reduzindo-as a desprezíveis folhas de papel, a alternativa material, exagerada ao extremo, conduzida às suas últimas conseqüências, não se forrava a menores riscos. 109 forma mais lenta e gradual. Advirta-se, contudo, que o desenvolvimento dessas teorias se encaminha na direção de uma organicidade sociologicamente construída no processo dialético-historicista e pautado nos princípios e conceitos constituídos na esfera do direito público. No século XX, nos Estados Unidos da América, o juiz Marshall e outros membros da Suprema Corte propuseram a aplicação dos dispositivos legais de forma embasada em um direito vivo, de modo que a Constituição Americana seria revelada no processo de interpretação através do método hermenêutico, tratava-se da Escola da Jurisprudência sociológica125. Carl Schimitt desenvolveu uma teoria de aplicação da Constituição em que os conceitos de Constituição e Lei constitucional são diferentes. O conceito de Constituição está imbuído de um sentido político que lhe confere uma unidade, atribuindo-lhe um profundo valor existencial. Em Schimitt, o político prepondera sobre o jurídico. O existencial compõe a essência da Constituição, o reino da decisão fundamental, a esfera política que se sobrepõe ao normativo, às leis Constitucionais e ao domínio jurídico propriamente dito. As leis 125 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos, p. 72-73. ... Ainda que não se trate de uma corrente doutrinária unitária, pode-se assinalar os nomes de alguns autores que estiveram envolvidos nessa corrente ‘crítica’. O austríaco Eugen Ehrlich (1862-1922), considerado o fundador – ou, pelo menos, aquele que lhe deu o nome. Durante uma conferência que ele fez em Viena, em 1903, cujo título era Freie rechtsfindung und freie Rechtswissenschaft, Ehrlich afirmava que o direito era um ‘realidade sociológica que o jurista deve pesquisar’. Ele definiu, por conseguinte, a existência de um ‘direito social’, ‘vivo ou real’, ‘fora do estado’, que vive completamente à margem do direito do estado. (grifo nosso) 110 Constitucionais qualificam-se pelo formalismo ou rigidez, que dificulta sua mudança, logo, seu valor é assegurado em função da existência da Constituição, o que, em última análise, leva a uma conseqüente relativização daquelas. Há uma unidade essencial de existência, integridade e segurança relacionada com os valores existenciais da Constituição, que exprime fundamentalmente uma decisão política126. Na Suíça, a partir de 1930, alguns autores desenvolveram teorias a respeito da Constituição, tomando em consideração sua interpretação crítico-material, destacaram-se Schindler com sua tese dialética, valorizando o ambiente, o meio e o extrajurídico; Werner Kaegi destacou a crise dos valores, apregoando o crepúsculo do Estado Constitucional devido ao desprestígio da ordem jurídica e a queda geral das crenças. Hans Haug enfocou os valores dentro de uma idéia de justiça, tendo em vista um teor idealista inspirado na filosofia dos valores de Hartmann e Sheller. Assim, a Constituição e o direito referem-se a valores materiais explicáveis pelos valores que incorporam. Esses autores se destacaram na formação do ideário teórico que ficou 126 BONAVIDES, Paulo. Op. cit.,p. 105. Kelsen sustentando, conforme observa Wimmer, que ‘algo vale, quando vale e porque vale’ e Schmitt, com seu sentido de existencialidade, professando que ‘algo vale, quando existe e porque existe’. 111 conhecido como Escola de Zurique, a qual representa uma das importantes construções dentre as teorias materiais da Constituição127. O Direito, como ciência embasada em um objeto ideal que teria suas regras fundamentais expressas através da Constituição Federal, exige do seu pesquisador um exercício acadêmico grandioso, pois, como já referido, este plano ideal do dever-ser não se sustenta em si mesmo. Modernamente, estão em processo de superação as concepções doutrinárias que buscam a justificação do direito em seu próprio contexto. As teorias materiais da Constituição voltam-se, cada uma de acordo com a compreensão de seu sintetizador, ao desenvolvimento de mecanismos que possibilitem a realização efetiva dos valores expressos em seus dispositivos. Com referência a isso, é relevante lembrar que o sistema Constitucional sob um prisma material se aproxima consideravelmente do sistema político128, o que, contudo, pode ser resolvido a partir da 127 Ibidem, p. 107. É cedo talvez para medir os efeitos doutrinários da produção constitucional da Escola de Zurique. Fica porém fora de toda a controvérsia que ela representa um importantíssimo passo adiante no sentido de estabelecer as bases sólidas de uma teoria material da Constituição. Teve já o inquestionável merecimento de levar a cabo uma tarefa que ainda prossegue de sistematização de certos aspectos relevantes para a técnica de interpretação constitucional e já teoricamente aflorados por predecessores do tomo de Heller, Schmitt e sobretudo Smend. 128 BONAVIDES. Op. cit., p. 128. ... Nisso porém reside o mais grave defeito de todas as concepções sistêmicas do Direito ou da Constituição, caso venham efetivamente a esboçar-se: é que elas podem conduzir a uma desintegração do “jurídico”pelo “político”, afrouxando os laços da juridicidade e da constitucionalidade ou ampliando estes conceitos a um grau de politização tão intolerável, de efeitos tão irreparavelmente negativos e funestos, que importariam o sacrifício do homem ao sistema, da liberdade ao ordenamento, inaugurando assim em última análise, uma versão mais aperfeiçoada de totalitarismo jurídico e político, dissimulado na legitimidade tecnocrática, perante a qual sucumbiriam, enfim, os valores da pessoa humana, aqueles que a tradição Ocidental em vão intentaria amparar. 112 adoção de novos métodos para interpretação dos dispositivos contidos no texto da Constituição, daí a adequação da proposta de uma nova hermenêutica. 3.6 HERMENÊUTICA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL A ruptura entre a religião e a ciência teve como um de seus efeitos a viabilização de uma compreensão do Homem como sujeito ativo do processo constitutivo de sua história. A realização dos meios para a garantia da qualidade de vida humana torna-se responsabilidade do Homem. Observa-se, contudo, que não há entre todos os povos e em todas as camadas das populações uma plena sensibilização quanto a essa responsabilidade social. O direito nesse contexto inicialmente assumiu uma função de organização e controle a fim de assegurar ao Estado a operacionalização da ordem no sentido de que, dentro de uma concepção positivista, o Estado garantiria um nível satisfatório de segurança que levaria ao desenvolvimento e progresso dos povos. A frustração dessa promessa forçou a repensar o direito. O momento é de crise do paradigma positivista, assim o que tem sido 113 produzido apresenta um caráter marcadamente especulativo, de acordo com o entendimento da história da ciência em Tomas Khun. A partir dos estudos de Von Ihering há uma crescente expectativa em relação às possibilidades concretas ou reais do direito em produzir “justiça”, no sentido de assegurar a cada um o que seja seu dentro de uma equação em que os bens individuais se enquadrem harmoniosamente com os interesses coletivos129. Esta colocação deve ser entendida dentro de um conjunto de fatos que compõem a história do direito, sobretudo, tomando-se como referência cronológica os ideais iluministas da Revolução Francesa (1789). Gradativamente está sendo reconhecida a função ordenadora do direito tendo em vista uma finalidade transformadora, no sentido de regulamentar os fatos em favor do desenvolvimento individual e da nação. O papel sancionador e coercitivo do direito tem se revelado ineficiente, o que justifica as discussões a respeito dos problemas da baixa efetividade na prestação jurisdicional. Um sistema que não produz a realização de suas funções e finalidades pode ter comprometida sua 129 MONTORO. Op.. cit., p. 138-139. Grande número de opiniões pode ser encontrado a respeito das espécies de justiça. Deixando de lado discussões intermináveis, que, freqüentemente, se fundam em aspectos secundários do problema, podemos dizer que há: a) uma justiça particular, cujo objeto é o bem do particular; b) uma justiça geral, também chamada legal ou social, cujo objeto é o bem comum. A justiça particular, por sua vez, pode se realizar de duas formas: a) um particular dá a outro particular o bem que lê h é devido; b) a sociedade dá a cada particular o bem que lhe devido; chama-se, nesse caso, justiça distributiva. Na justiça geral, social ou legal são as partes da sociedade – isto é, governantes e governados, indivíduos e grupos – que dão à comunidade o bem que lhe é devido. 114 segurança. Com isto, a estrutura institucional que forma o Estado fica abalada. Diante de uma crise que pode assumir essas proporções, acredita-se que a proposta de se interpretar a Constituição com o objetivo de produzir sua concretização material, ou melhor, a consecução dos bens jurídicos previstos em seu texto em sentido real é significativa, uma vez que quanto maior a dissonância entre o ideal, ou o dever-ser e o real, menor a efetividade do direito e crescente a insegurança institucional. A hermenêutica desenvolvida segundo a interpretação sistemática com bases racionais e lógicas, em um modelo em que a norma deve ser aplicada tendo em vista suas conexões com o ordenamento jurídico, ou seja, com todas as demais normas integrantes do sistema jurídico, é uma concepção clássica e que teve importância como método de interpretação e aplicação do direito de acordo com sua concepção dogmático-positivista. Sob esse ponto de vista, é discutível a juridicidade da norma Constitucional, considerando-se sua índole política130. 130 BONAVIDES. Op. cit., p. 129-130. Rigorosamente, não deve existir distinção de natureza entre a interpretação das normas constitucionais e a interpretação das demais normas do ordenamento jurídico, posto que haja distinções decorrentes da peculiaridade das regras básicas, de seu conteúdo ou aspecto material, mas que não devem afetar a essência jurídica da norma. Dizemos “não devem afetar” porquanto o conteúdo da norma constitucional há sido desde muito objeto de incisivas controvérsias na esfera teórica. Posições há claramente antagônicas ao reconhecimento da plena juridicidade daquela norma, uma vez que a matéria sobre a qual versa é também de índole política, determinando assim o tratamento excepcional atribuído pela doutrina ao seu exame e a sua precisa caracterização no quadro da normatividade. 115 Esse modelo de interpretação aplica o método axiomáticodedutivo sendo caracterizado pela objetividade e pela certeza da norma através de regras puras e abstratas previstas nas constituições rígidas. As verdades para o formalismo constitucional se apresentam como lógicas e reivindicam a cientificidade pautada na ausência de subjetivismos de natureza axiológica. A aplicação do direito pelo método objetivo ou axiomáticodedutivo vincula o processo decisório integralmente à lei, que é considerada o elemento central do “sistema”. Assim, os problemas que não encontram uma solução ou resposta no ordenamento jurídico são entendidos como pseudo-problemas. Qualquer questão extralegal deve ser rejeitada no procedimento de aplicação do direito. A fundamentação da decisão será sempre de caráter legal, nisso consistindo fundamentalmente sua racionalidade131 132. A questão mais pungente para a hermenêutica clássica ou tradicional se encontra na ausência de lei em face do fato ensejador da 131 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 93, IX. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes. (grifo nosso) 132 WAMBIER, Luiz Rodrigues, ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de processo civil, v. 1. Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. P. 552. Na fundamentação, exporá o magistrado as razões de seu convencimento, de forma clara e de molde a que tantos quantos a lerem tendam a chegar à mesma conclusão a que chegou. Trata-se de dispositivo legal em que se manifesta e se concretiza de forma inequívoca o princípio do livre convencimento motivado, da mesma forma que ocorre no art. 131. Ato de inteligência e de vontade, não se pode confundir a sentença com u mato de imposição pura e imotivada de vontade. Daí a necessidade de que venha expressa sua fundamentação (art. 93, IX, da CF). (grifo nosso) 116 situação jurídica sob a apreciação do Poder Judiciário, ou seja, como resolver o problema da lacuna da lei no ordenamento jurídico. O próprio Kelsen que a princípio negou a existência de lacunas, posteriormente admitiu sua existência, sem, contudo, apresentar uma resposta satisfatória à questão. De fato as teorias positivistas de Carlos Cossio, Goffredo Teles Júnior e Lourival Vilanova propuseram-se a enfrentar este problema, admitindo a abertura do “sistema legal”. Ressalta-se que seus trabalhos são posteriores à elaboração da Teoria Geral dos Sistemas. A conseqüência mais drástica do positivismo pautado na hermenêutica clássica é o desligamento entre o ideal Constitucional e as necessidades reais da comunidade. Este distanciamento criou contradições entre o dedutivismo idealista e abstrato da Constituição formal e as exigências fundamentais da Constituição real. Diante dos problemas que não foram resolvidos satisfatoriamente pelo positivismo formalista, surgiu uma hermenêutica a qual denominamos crítica. Sua gênese pode ser identificada na jurisprudência dos interesses, pauta-se em um sistema Constitucional axiológico-teleológico tendo um caráter funcional. Seu ponto culminante ocorre com a Escola Livre do Direito. Adota uma metodologia pluridimensional o que significa afirmar que interpreta e aplica o direito tendo em vista valores, fins, 117 razões históricas, considerando os interesses, o conteúdo e o pressuposto da lei. Seu aspecto mais fundamental é reconhecer que o sistema jurídico e, sobretudo, o sistema Constitucional são integrados por um complexo de forças, relações e valores em uma dinâmica dialética permanente e insuperável. Poder-se-ia afirmar que ao trazer para o direito e, principalmente para o campo Constitucional, a dinâmica própria do sistema social levaria ao risco de desequilibrar o sistema Constitucional no caso de preponderar o conteúdo material de seus dispositivos sobre a forma. Nesse caso, o sistema Constitucional se desagregaria, pois a certeza e a segurança da jurisdição ficariam abaladas. O problema aqui residiria em que o intérprete da Constituição correria o risco de realizar seu trabalho com referência às suas ideologias, o que levaria a uma excessiva politização do direito. Neste ponto é importante lembrar que as teorias a respeito do direito Constitucional relegam a um plano secundário os aspectos do direito público o que resulta na fragilização em maior ou menor grau de seu conteúdo. O trabalho desenvolvido no sentido de formular uma hermenêutica historicista baseada no direito público, considerando o texto Constitucional a partir de um critério evolutivo das transformações 118 do sistema com base nas variações de sentido quanto à aplicação de seus dispositivos e de sua realidade Constitucional parece razoavelmente satisfatório quanto às possibilidades de resolver o problema da ideologização e politização do jurídico. Assim, ao intérprete não caberia o mal-entendido papel de criador da norma, mas de contextualizador do direito em sua dimensão histórica tendo em vista a evolução ocorrida no sistema Constitucional, considerando-se os dispositivos codificados no texto da Constituição e a realidade que lhe imprime eficácia, vida e conteúdo. Poderia argumentar-se quanto às dificuldades práticas decorrentes de uma proposta de interpretação e aplicação do direito embasada em uma teia complexa de informações como seria o caso da hermenêutica crítica historicista da Constituição. Não parece, contudo, que sejam intransponíveis tais dificuldades, uma vez que os intérpretes da lei poderiam ser selecionados e receber uma formação que lhes permitisse ter uma compreensão do direito com referência ao método axiológico-teleológico, diferentemente do que ocorre atualmente em que a sociedade e a ciência do Direito clamam pela superação do positivismo formalista e pela democratização do Poder Judiciário, tendo, no entanto, que conviver com um sistema jurídico que ainda atua através da 119 aplicação da lei sob uma perspectiva metodológica axiomáticadedutivista.133 133 Considerando o objetivo de estudar o processo de execução no Brasil tendo como referência a Constituição Federal de 1988 e as obrigações de natureza privatísticas, opta-se pela abordagem a respeito dos princípios133 que podem ser identificados no texto Constitucional, buscando compreender sua inserção na execução levando em consideração uma metodologia axiológica-teleológica. 120 4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O PROCESSO DE EXECUÇÃO O processo de execução no Brasil tem sido objeto de muito estudo, sobretudo tendo em vista uma perspectiva pragmática, no sentido de elucidar a forma mais satisfatória de se garantir a realização do direito objeto da obrigação inadimplida. No entanto, os trabalhos realizados não estão conseguindo tornar mais eficientes os mecanismos estatais de coerção através da execução processual134, o que é revelado pelas inquietações que permeiam seus estudos e o conjunto de dispositivos legais a seu respeito. Acredita-se na necessidade de compreender o processo de execução de forma mais ampla, principalmente em relação à Constituição de 1988 e ao modelo econômico liberal adotado pelo Brasil, em que o custo de fomento da economia de produção de bens e serviços é elevadíssimo. Nesse aspecto é situado o problema do estudo do processo de execução como integrante da teoria da ciência do direito, cujo objeto é cultural. Assim considerado, o processo de execução, será abordado 134 O Código de Processo Civil está sendo reformado, e o Projeto de Lei 3.253 de 2004, aprovado em junho, ao remeter a liquidação de sentença e o processo de execução para o Livro 1 rompe com o paradigma da estruturação compartimentada do Código de Processo Civil brasileiro e com a autonomia do processo de execução segundo suas funções. Assim pode-se falar em rompimento do direito processual civil brasileiro com o processualismo científico. 121 criticamente em face do contexto e das relações sócio-econômicoculturais em que se coloca. Sob a ótica da dogmática, o texto da Constituição Federal de 1988, ao determinar os princípios norteadores do direito processual afetou drasticamente o Código de Processo Civil de 1973, sendo especialmente relevantes os efeitos produzidos no Livro II, artigos 566 a 795; igualmente a Consolidação das Leis do Trabalho, nos artigos 876 a 892 que tratam do processo de execução trabalhista está comprometida, pois, há um descompasso entre o texto da Lei ordinária e os preceitos da Constituição Federal. O direito quando é assimilado como um sistema de controle e implementação das políticas do Estado, na esfera do processo de execução apresenta-se como o meio de constrangimento da vontade individual contra o interesse geral na conservação do sistema de crédito econômico-financeiro, pois, o inadimplemento é um fator de restrição e de elevação dos custos do crédito, na medida em que o risco é compensado com a elevação das taxas de juros no sistema financeiro. Com isso, o custo humano, a dignidade do devedor, que em uma sociedade de consumo, está inevitavelmente ligada à sua capacidade de participar do mercado consumidor, é transplantada do direito para a economia, onde sob um referencial liberal ou neoliberal como preferido, 122 a dignidade está em solver ao credor, ainda que ao custo do aniquilamento econômico e pessoal do devedor. Mas “aquele que deve tem que pagar”. Não se pretende negar esta afirmação, mas compreendê-la para além do direito, ou melhor, o direito sob a imagem da deusa greco-romana Themis135 que significa o equilíbrio imparcial de forças e não a subordinação do direito à economia. A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, introduziu alguns preceitos de natureza processual a propósito de garantir a todos os indivíduos o respeito a alguns bens inerentes ao Estado Democrático de Direito proclamado no artigo 1º daquela Carta136. Tem sido discutido o alcance e forma de aplicação desses dispositivos Constitucionais ao processo de execução, pois, originariamente, esta é iniciada a partir da certeza da obrigação e do inadimplemento, prescindindo do contraditório. Esta pesquisa é desenvolvida no sentido de que os preceitos inerentes ao processo proclamado nos incisos LIV, LV, do artigo 5º, da CF/88, são aplicáveis à execução, o que representa uma mudança 135 A deusa Themis classicamente vendada não se contrapõe aos ideais de justiça real, porque a justiça deve ser entendida como medida de forças pautada por parâmetros históricos, culturais e sociais, uma vez que a palavra justiça só tem significado quando referida ao humano, seja sob uma perspectiva materialista ou metafísica. 136 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (grifo nosso) 123 significativa, pois os artigos 652, do Código de Processo Civil, e o artigo 880, da CLT, restringem drasticamente as noções próprias ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa. O artigo 586, do CPC, ao determinar os requisitos para a realização da execução para cobrança de créditos estabelece que o título executivo deverá ser líquido, certo e exigível, fazendo pressupor que o processo de execução deve partir de uma situação concretamente determinada, o que poderia justificar a não-incidência das normas orientadoras do processo estabelecidas na Constituição Federal. A Constituição demarca o regime político e o sistema jurídico garantindo a unidade do ordenamento jurídico, expressando mandamentos que não podem ser contrariados por serem subordinantes de todo o ordenamento jurídico. Desse modo, o professor Goffredo Telles Júnior refere-se à existência de um pluralismo de ordenações, harmonizados hierarquicamente, formando um conjunto estruturado submetido a uma só ordem nacional137. Retomadas as idéias a respeito da teoria dos sistemas, da teoria da ciência do direito e admitindo-se o axioma da hierarquia das normas jurídicas ao texto da Constituição Federal, entende-se pela necessidade e oportunidade de estudar o direito processual e, mais 137 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do Direito, p. 123. 124 especificamente, o processo de execução das obrigações de pagamento de quantia certa de natureza privada sob a ótica da teoria constitucional dos princípios jurídicos. 4.1 A TEORIA DOS PRINCÍPIOS Após 21 anos sob um regime político em que as liberdades e garantias individuais estiveram sob exceção, redescobriu-se a importância de compreender os fatos além da superficialidade138. A sociedade brasileira tem adotado novas posturas em relação a acontecimentos pautados em velhos comportamentos. O mundo do direito assimilou esse momento, sendo prova disso o surgimento de uma escola crítica do direito no Estado do Rio Grande do Sul, sob a denominação de escola do direito alternativo. Nesse contexto, todos os ramos do direito tenderam em maior ou menor grau a revizitação de seus institutos, orientando-se por critérios oferecidos pela “Constituição cidadã” e pelas teorias de cunho sociológico. 138 O primeiro presidente da República eleito diretamente após o período militar (Fernando Collor de Melo) sofreu um processo de impeachment e renunciou. Esse momento histórico foi corroborado pela participação popular, através de manifestações públicas pacíficas. Aparentemente esse presidente representava uma irrenunciável conquista democrática e a garantia de modernização do país, o que não evitou ou impediu que a população compreendesse a necessidade de superar a superficialidade das aparências e exigisse seu afastamento por gravíssimas suspeitas de corrupção estruturalmente organizada. 125 A teoria dos princípios é uma formulação que pretende oferecer ao direito um referencial para o reconhecimento de um princípio jurídico, pois a sua consideração como fonte do direito em detrimento de seu reconhecimento, no campo da interpretação legal, precisa ser compreendida. Para tanto se considera que o direito pressupõe uma reconstrução de significados139 a partir da interpretação dos dispositivos legais que possibilita a identificação das normas140 jurídicas que serão aplicadas. Isto permite afirmar que os dispositivos não contêm os princípios e as regras que dependem da interpretação e, portanto, encontram-se no âmbito das normas141. Assim, surgem as questões quanto ao modo de investigação dos princípios e sua aplicação, bem como a distinção entre estes e as regras. A relevância destas questões levou ao surgimento de vários critérios, podendo ser mencionados os seguintes: o critério do caráter hipotético-condicional das regras, o critério do modo final de aplicação, o critério do relacionamento normativo e o critério do fundamento axiológico. Cada um desses critérios apresenta-se comprometido pela 139 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 25. ..., pode-se afirmar, que o intérprete não só constrói, mas reconstrói sentido, tendo em vista a existência de significados incorporados ao uso lingüístico e construídos na comunidade do discurso. 140 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 22.Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. 141 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, passim. 126 complexidade inerente a aplicação do direito, o que não reduz a importância de cada um. Para efeito deste trabalho, considerou-se que tanto regras como princípios possuem igual conteúdo de dever-ser, uma vez que deverão ser realizados totalmente. A diferença deve ser localizada na determinação da prescrição da conduta que resulta da sua interpretação142. Há duas maneiras de se estudar os princípios, uma sob o enfoque acrítico de sua importância, destacando os valores por eles tutelados, qualificando-os como alicerces ou pilares do ordenamento jurídico. Podem também ser examinados a partir de sua estrutura, objetivando a um procedimento racional de fundamentação que possibilite especificar as condutas necessárias para a realização dos valores por eles prestigiados e controlar sua aplicação através da reconstrução racional dos enunciados doutrinários e das decisões judiciais143. Sob uma perspectiva sistêmica e dialética que norteia esta proposta de estudos, opta-se pela abordagem estrutural dos princípios. 142 ÁVILA. Op. cit., p.55. ... os princípios não determinam diretamente (por isso prima-facie) a conduta a ser seguida, apenas estabelecem fins normativamente relevantes, cuja concretização depende mais intensamente de um ato institucional de aplicação que deverá encontrar o comportamento necessário à promoção do fim; regras dependem de modo menos intenso de um ato institucional de aplicação nos casos normais, pois o comportamento já está previsto frontalmente pela norma. 143 ÁVILA. Op. cit. p., , 56. 127 4.2 ESTRUTURA DOS PRINCÍPIOS A estrutura dos princípios passa por sua contextualização geral, no que é realizada a opção por algumas referências de caráter doutrinário quanto a interpretação e aplicação do direito. O direito como uma forma de expressão de linguagem permite afirmar que como tal ele se concretiza com o uso, e que demanda para sua aplicação da atividade do intérprete. Nestes termos, o intérprete assume um papel preponderante para uma adequada aplicação do direito, na medida em que sua atividade constitui os significados dos dispositivos. É importante observar que existe um conteúdo de significados pré-estabelecidos, incorporado pelo uso corriqueiro da linguagem, seja em seu sentido ordinário ou técnico. Isto estabelece para o intérprete um referencial mínimo de significação prévia e de vinculação com o sistema social. Basicamente o intérprete realiza duas operações, inicialmente identifica o texto legal (dispositivo) sob o qual foca sua observação (objeto da investigação) a partir disso utiliza-se da linguagem, atribuindo-lhe sentidos com o objetivo de encontrar o modo mais consentâneo de aplicação do preceito legal expresso através da lei, 128 devendo ter como pontos de referência de um lado o conjunto de dispositivos que integram o ordenamento jurídico, considerado sob o prisma de seus valores demarcados Constitucionalmente, e de outro lado deve-se observar a constituição do fato jurídico objeto da apreciação pelo órgão julgador, tomando em consideração o contexto que determinou aquela realidade. Desse quadro, deve surgir a norma como comando concreto externado pelo aplicador do direito. Ressalta-se que ora a norma jurídica se apresenta como regra, ora como princípio e, ainda em alguns casos, como postulados normativos. Pode ser afirmado que o dispositivo legal é o ponto de partida da interpretação, sendo que a norma é o resultado do trabalho do intérprete, de onde resulta a inadequação de atribuir aos dispositivos um conteúdo de regra ou princípio, pois a qualificação das normas depende da colaboração do intérprete. O processo para a obtenção do conhecimento é sempre complexo, pressupondo pelo menos um objeto a ser conhecido tendo em vista alguma coisa que é seu referencial e a forma como o sujeito cognoscente interage com este objeto para revelar ou descrever sua 129 existência ao mundo. A esse respeito têm sido desenvolvidas ao longo da história da humanidade inúmeras escolas144. O reconhecimento de um princípio é, sobretudo, um meio para estabelecer um referencial para o direito, norteado por fins a serem alcançados e objetivos que devem ser realizados através da interpretação do dispositivo e aplicação da norma. A questão está centrada na legitimação de critérios que permitam aplicar racionalmente os valores expressos através dos fins identificados nos princípios. Nisto, encontrase o objeto da teoria dos princípios. 144 VIEGAS, Wadyr, Fundamentos de metodologia científica, p.17-52. Nesse trabalho há uma abordagem a respeito do processo de conhecer a qual parece satisfatória para demonstrar o quanto isto é fundamental e complexo. Desse modo o processo de conhecer é entendido como uma abstração que cria imagens a respeito de objetos. Para a filosofia o conhecer ocorre através das ciências físicas e naturais, as quais observam o objeto pelas suas qualidades individuais; através das ciências matemáticas, que analisam seu objeto pela ótica da quantidade; e por meio das abstrações metafísicas. Na elaboração de referenciais para a construção do conhecimento podem ser identificados os escolásticos (adequação especulativa entre a mente e a coisa); Descartes (a idéia cria o conhecimento); Kant (síntese a priori); Fichte (O indivíduo cria a realidade); Hegel (dialética); Marx (aplicação da dialética) e Schiller, Dewey e William James (pragmatismo americano – verdade é o que funciona). A abstração que leva ao conhecimento é realizada através do intelecto humano que opera com pelo menos dois sistemas a razão e o sentimento, tendo por finalidade descrever e se possível explicar o mundo. Esse processo tem como referencial a verdade, entendida como a aproximação máxima entre o que o objeto do conhecimento efetivamente é o modo como é assimilado pelo humano. Compreender esse processo de interação entre a razão e os sentimento para a formulação do conhecimento dentro de um sistema aberto, permite o seguinte modelo; entradas → inputs → sensações, processamento → thruput → idéias, saída → output → conhecimento. O insight não tem sido negado, contudo não pode ser explicado. Nesse modelo a formação do conhecimento (imagens abstratas de um objeto) é produzido pelo intelecto através da interação entre razão e sentimento. O processamento se verifica através dos graus de relação produzidos entre sentimentos e razão que levam a diversos tipos de conhecimento, assim o ideológico, o religioso, o filosófico e o científico, cada qual com características próprias. O interesse nesse momento volta-se à elaboração de um tipo de conhecimento científico, pois o que se pretende é descrever e possivelmente explicar uma realidade de forma contingencial e factual ou realística tendo em vista a utilização de métodos que sejam adequados e possibilitem a diferenciação, como meio progressivo de substituição de padrões globais e difusos por funções especializadas das formas de conhecer adequados e possibilitem a diferenciação, como meio progressivo de substituição de padrões globais e difusos por funções especializadas das formas de conhecer.como meio progressivo de substituição de padrões globais e difusos por funções especializadas das formas de conhecer. 130 Sob uma perspectiva frontalmente pragmática e positivista, pode parecer sem importância esta investigação, no entanto, acredita-se que os paradigmas críticos-sociologistas do direito nos conduzem, necessariamente, à compreensão dos fenômenos em um contexto mais abrangente, ou seja, o direito deve ser estudado como um sistema que interage com outros sistemas, podendo ser destacadas as relações que se formam como o sistema social. 4.3 PRINCÍPIOS, REGRAS E POSTULADOS NORMATIVOS Os princípios devem ser investigados como fins a serem alcançados através de comportamentos necessários para a realização de um estado de coisas que se referem a situação qualificada por determinadas qualidades as quais se aspira conseguir, gozar ou possuir; e como o modo pelo qual esse estado de coisas será realizado, tendo em vista a aplicação do direito. Considerando uma teoria geral dos princípios, pode afirmar-se que estes apresentam uma dimensão imediatamente finalística, primariamente prospectiva, com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da 131 conduta havida como necessária à sua promoção. Os princípios se voltam para a realização de um fim relevante juridicamente. As regras são imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas com pretensão de decidibilidade e abrangência para cuja aplicação é exigida a avaliação da correspondência centrada na finalidade que lhe dá suporte. Sob uma perspectiva pragmática prescrevem comportamentos. A interpretação e a aplicação das regras exigem uma avaliação da correspondência entre a construção conceitual dos fatos e a construção conceitual da norma e de sua finalidade. As regras têm uma dimensão imediatamente comportamental. Os postulados normativos aplicativos são imediatamente metódicos, estruturando a interpretação e aplicação de princípios e de regras mediante a exigência, mais ou menos específica de relações entre elementos com base em critérios que são a ponderação de bens, a concordância prática, a proibição de excessos que será assegurada através da igualdade, da razoabilidade e a proporcionalidade a qual representa a utilização dos meios que devem ser adequados, necessários e proporcionais em sentido estrito. Os postulados têm uma dimensão imediatamente metódica. O direito como estrutura de linguagem deve ser aplicado através da interpretação realizada de acordo com critérios devidamente 132 explicitados. Tomando essa afirmação como um referencial, é possível estabelecer um conjunto de intrincadas relações entre os postulados normativos aplicativos, os princípios e as regras, as quais, como proposto, são identificados a partir da estrutura lingüística do dispositivo legal, tendo em consideração questões metodológica, finalística e prescritiva de comportamentos.145 Através deste trabalho propõe-se à realização de uma pesquisa que possa levar a identificação de elementos que possibilitem à formulação de uma síntese teórica que oriente o processo de execução no Brasil. A hermenêutica crítica historicista verticalizada na principiologia pode constituir um instrumento teórico que assegure melhores índices de efetivação na prestação jurisdicional executiva. Atribuída uma relevância significativa ao papel da interpretação é razoável que o processo de execução seja estudado a partir de seus aspectos próprios, procurando adequar métodos que viabilizem a solvência do devedor, porque, assim, a conseqüência natural será a quitação do crédito, o que traduz a efetividade e segurança da jurisdição. 145 O processo de execução tem sido estudado a partir das suas características pragmáticas, por visar, em última análise à realização concreta do comando previsto no título executivo. 133 Talvez se possa questionar que o problema da solvência do devedor não diz respeito ao processo de execução. Mas, então, há que se perguntar: Qual é o problema do processo de execução? Qual é a função jurisdicional a ser realizada através da execução? Durante um considerável período de tempo, pretendeu-se resolver o problema da efetividade processual, desconsiderando a realidade. As experiências permitem afirmar que é pouco provável que se obtenha a entrega do bem jurídico através do processo quando as circunstâncias que determinaram os fatos são enfocadas pela ótica legalista. A compreensão de que o Direito, formulado enquanto conhecimento científico é uno, remete este estudo a averiguações na esfera da teoria do direito, fim de contextualizar -se o processo em um quadro geral, o e será realizado com referência a uma reflexão hermenêutica crítica146 e a uma teoria da praxis da aplicação do direito. 146 GRAU, Eros Roberto. ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 100-101. A reflexão hermenêutica instala a verificação de que a interpretação se desenvolve a partir de pressuposições. ... A compreensão é, então, experiência. ... É necessário dizer, ainda, que a hermenêutica está ancorada na facticidade e na historicidade, de modo que entre a linguagem, instrumento necessário de que nos utilizamos para apreender o objeto a ser compreendido – os textos normativos, no caso da interpretação jurídica - ,e esse objeto interpõem-se os mundos da cultura e da história. Por isso o saber jurídico há de ser concebido como um processo de diálogo, de troca entre o ser e o mundo. 134 5 ALGUMAS QUESTÕES DA TEORIA DO DIREITO Pensar o direito criticamente remete a aspectos empíricos e pragmáticos do cotidiano da vida contemporânea. Boaventura de Sousa Santos, considerando as dificuldades para uma crítica, lembra que esta postura exige a disponibilidade e o compromisso com a transformação, tendo em vista aspectos de desajustamento social que justificam esta postura. Então, é necessária a percepção do que existe, e a avaliação da natureza e do âmbito das alternativas ao que está empiricamente dado147. Voltando à Teoria Geral do Direito, o professor André Franco Montoro, ao apresentar seu plano de trabalho, menciona cinco significados lingüísticos expressos pela palavra direito; o direito como ciência (epistemologia jurídica), o direito como justo (axiologia jurídica), o direito como norma (teoria da norma jurídica), o direito como faculdade (teoria dos direitos subjetivos) e o direito como fato social SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente.:contra o desperdício da experiência,. p..23 e segs. Não parece que faltem no mundo de hoje situações ou condições que suscitem desconforto ou indignação e nos produzam inconformismo. Basta rever até que ponto as grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas ou o seu cumprimento redundou em efeitos perversos. No que respeita à promessa da igualdade os países capitalistas avançados com 21% da população mundial controlam 78% da produção mundial de bens e serviços e consomem 75% de toda a energia produzida. ... No respeita a promessa da liberdade, as violações dos direitos humanos em países vivendo formalmente em paz e democracia assumem proporções avassaladoras. Quinze milhões de crianças vivem em regime de cativeiro na Índia ... No que respeita à promessa da paz perpétua ... Depois da queda do Muro de Berlim e do fim da guerra fria, a paz que muitos finalmente julgaram possível tornou-se uma miragem em face do aumento nos últimos 6 anos dos conflitos entre Estados e sobretudo dos conflitos no interior dos Estados. ... Horkheimer definiu melhor que ninguém. Segundo ele, a teoria crítica moderna é, antes de mais, uma teoria fundada epistemologicamente na necessidade de superar o dualismo burguês entre o cientista individual produtor autônomo de conhecimento e totalidade da actividade social que o rodeia: “A razão não pode ser transparente para consigo mesma enquanto os homens agirem como membros de um organismo irracional.” 147 135 (sociologia do direito). São mencionadas, ainda, as perspectivas de abordagem do direito, neste aspecto filia-se ao entendimento segundo o qual o valor fundamental que assegura ao direito seu sentido e dignidade é a justiça, vinculada a ordenação da convivência para o desenvolvimento dos povos e, portanto, para um processo de superação das desigualdades de oportunidades e promoção das transformações da sociedade148. Assim, o direito processual e, mais especificamente, o processo de execução, serão estudados com vista a uma análise dentro de um contexto em que seus fins estejam norteados por um conjunto de princípios identificados a partir da interpretação do texto Constitucional e como instrumento para a realização do justo, tendo em vista a paz social, em uma sociedade onde o indivíduo cidadão está paulatinamente sendo substituído pelo indivíduo consumidor. 5.1 EPISTEMOLOGIA JURÍDICA A epistemologia vincula-se ao problema da atitude que leva ao conhecimento. A característica da cientificidade foi atribuída ao conhecimento produzido a partir da epistemologia, que, como a ciência do conhecer, tem estabelecido critérios que possibilitam a formulação de 148 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito, p. 25-26. 136 métodos de averiguação pesquisadores. Admitindo-se das que proposições o apresentadas conhecimento pelos científico é convencional e temporal, seu comprometimento e razoabilidade dependem fundamentalmente da possibilidade da sua verificação por outros cientistas. Em outra oportunidade, manifestou-se, neste trabalho, a respeito da necessidade humana em conhecer o mundo que o circunda. Esta busca representa a possibilidade de conhecer a verdade, entendendo o que é a realidade. Ao longo da história da humanidade, formularam-se diversas formas de conhecimento, partindo de diferentes referenciais. Coube à epistemologia estabelecer a necessidade da escolha quanto à metodologia para que se produza uma espécie de conhecimento que possa ter uma validade admitida como científica. Dessa forma, afasta-se o conhecimento científico do senso comum. Ao longo da história, admitiu-se que o conhecimento estivesse internalizado no objeto, emanando deste, sendo que ao sujeito cognoscente restaria a sua descrição, afirmando-se, neste caso, a “crença no significado autônomo da realidade”149. A superação desta idéia é possibilitada pela epistemologia, que vincula o conhecimento através do método à interferência do sujeito cognoscente. 149 COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito, p. 56. 137 Curiosamente, o positivismo que é a primeira elaboração teórica fundada na epistemologia, representa o ápice da concepção do conhecimento autônomo da realidade, ou seja, um conhecer objetivo, conceitual e avalorativo150. Isto é compreensível, pois a teoria do conhecimento foi aplicada inicialmente em relação ao que se entendia como sendo a realidade. Dessa forma, o método deveria assegurar o isolamento do objeto através do quê este seria descrito ou conhecido da melhor maneira possível151. A objetividade do conhecimento que deveria ser garantida pelo princípio da verificação subordinava a verdade à verificabilidade da proposição, a critérios idênticos àqueles aplicados para os enunciados lógicos. Para as ciências naturais, a epistemologia representa uma real possibilidade de avanços, pois o processo de desenvolvimento do conhecimento é assegurado pelo método, que deve ser enunciado juntamente com os resultados do trabalho de investigação científica. 150 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à ciência do direito, p. 116. Cognoscível é apenas o valor legal, ou validade, que consiste na conformidade, objetivamente verificável pela razão, de uma norma com outra que lhe é superior. Por tal razão a ciência jurídica deve tão-somente procurar a base de uma ordem legal, ou seja, o fundamento objetivo e racional da sua validade legal, não num princípio metajurídico de moral ou direito natural, mas numa hipótese de trabalho lógico-técnicojurídico, supondo aquela ordem legal validamente estabelecida. ... Kelsen chegou a um positivismo jurídico radical, que concebe o direito positivo como sistema normativo; tornou a ciência jurídica completamente alheia a aferições valorativas, a influências políticas e às forças biopsicossociais. 151 COELHO. Op. cit.., p. 57. A partir de algumas teses de Carnap e Wittgenstein, sobretudo, o paradigma epistêmico do positivismo lógico propôs-se a desenvolver um discurso que assegurasse o autocontrole do discurso teórico e, por outro lado, estivesse apto a identificar-se como representação fiel do mundo, legitimada pela verificação, seja a compreensão empírica, seja a demonstração analítica. ... o resultado a que chegaram não encerra uma proposta teórica sistemática, mas somente um pensamento fragmentário, centrado basicamente em um postulado: o “princípio da verificação”. (grifo nosso) 138 Desse modo, o corpo integrante da comunidade tem a oportunidade de certificar-se a respeito dos resultados apresentados e contribuir com suas próprias observações. No campo das ciências sociais, sendo que com referência à epistemologia, acredita-se na relevância da sua contextualização geral em relação às ciências naturais, e, sobretudo, quando é abordada a questão do positivismo é possível afirmar que seus efeitos são negativos. Esta posição decorre da compreensão de que o positivismo, ao isolar o objeto de estudos, levou a uma equívoca idéia de que os fenômenos sociais, notadamente, aqueles de cunho cultural, como atualmente é assimilado o direito, são operacionalizados em sistemas fechados. A teoria do direito como sistema fechado está em processo de superação como já mencionado. Cabe à teoria do conhecimento a organização de novos mecanismos que possibilitem um saber válido sob uma perspectiva científica, mas, igualmente voltado para a vida humana, no sentido da construção de um mundo material e humanamente mais justo. Neste ambiente, surgem as condições necessárias e propícias ao pensamento crítico152. 152 COELHO. Op. cit. p., , 59. ... E a consciência científica passou a exigir novas posturas a partir do momento em que se verificou ser muito mais importante construir uma sociedade justa e compatível com a dignidade humana, do que descrever neutralmente como se processam as relações sociais, assim, o saber social passou a exigir a solução dos problemas que são objeto de seus estudos, em vez de simplesmente as descrever ou mesmo compreendê-las em sua dialeticidade. ... Seria preciso então, a partir deste ponto, repensar os paradigmas, abandonar a mentalidade positivista e seus métodos, cuja repercussão na sociologia, na ciência política, na história, na antropologia e nas ciências jurídicas, havia se revelado de pouca ou nenhuma utilidade. 139 A epistemologia assimila a crítica, o que significa trabalhar a produção do conhecimento numa visão mais ampla. A interdisciplinaridade pode ser admitida como o seu primeiro esboço, contudo, o novo paradigma do conhecimento, devendo ressaltar as ciências sociais, e, nesse contexto, o direito será estudado com base em uma visão dinâmica e holística. A partir daí, surge uma verdadeira epistemologia crítica que opera como o conceito de “construção objetiva”. Isto que dizer que o conhecimento se refere à ordenação da realidade com vistas à sua transformação. O conhecimento científico assume seu aspecto fragmentário, assim, a realidade é construída pelo cientista, logo, o conhecimento e a verdade não têm caráter absoluto. A racionalidade científica é construtivista e causal, de acordo com o paradigma da epistemologia crítica. O conhecimento científico resulta de um “programa de ação consubstanciado na crítica permanente da verificação empírica, a qual é sempre parcial, insuficiente e ilusória.”153 O fundamento básico do pensamento epistemológico crítico consiste em que o conhecimento não pode estar subordinado a axiomas ou dogmas ou ainda esteriótipos. O criticismo está ligado à criatividade construtivista, assim, a ciência não existe para o cientista, mas para a comunidade, logo, seu papel deixa de ser descritivo para tornar-se analítico pautado na dialética histórico-social. 153 COELHO. Op. cit. , p. 61. 140 Isso tem criado problemas, pois, conquanto a perspectiva da formulação do conhecimento tenha se ampliado, não parece possível identificar a ruptura do paradigma, de acordo com Kuhn. Retoma-se a idéia da crise do paradigma, onde postulados menores são contestados, mas a estrutura permanece inalterada. A referência é ao positivismo dogmático, ainda prevalecente no estudo do direito e, sobretudo, ao estudo das fontes criadoras da norma, tendo em vista o unitarismo jurídico decorrente do Estado, como único criador das regras de conduta154. Esclareça-se que os estudos jurídicos pautam-se em regras (leis) originárias da atividade legislativa estatal, seja de caráter típico ou residual. Quer-se com isso referir às atividades normais do Poder legislativo em qualquer de suas esferas, ou àquelas regiões intermediárias em que, subsidiariamente, os poderes executivo e judiciário regulamentam suas atividades internas e excepcionalmente, seu relacionamento com o administrado ou jurisdicionado. As teorias sobre as normas jurídicas são vastas e o assunto é complexo, não havendo a pretensão em tratar desse tema. O fato é que o ordenamento jurídico não é pluralista, o que significa afirmar, o direito brasileiro está atrelado à lei e ao Estado o que lhe atribui uma configuração positivista. Este é o paradigma vigente em crise. 154 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 5º, inciso II.Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. 141 O problema referido é que não há uma teoria epistemológica crítica, mas um conjunto de propostas para a crítica do direito enquanto sistema fechado, o que no plano da norma jurídica estaria vinculado ao unitarismo estatal e à dogmática positivista155. Portanto, é admissível o reconhecimento de inúmeras vertentes do pensamento crítico, todos susceptíveis de questionamentos156, uma vez que estão em fase de concepção. Acredita-se que a criatividade, no desenvolvimento das pesquisas relativas às ciências humanas, poderá levar ao surgimento de um novo paradigma que, substituindo o positivismo formalista estatal produza a ruptura que caracteriza as revoluções científicas. Pode ser afirmado que o direito “é saber ao mesmo tempo e que é prática social, e, a partir de sua positivação, prática social e discursiva institucionalizada”157. A ruptura do paradigma em crise no direito somente será possível a partir da quebra do monopólio do Estado legislador e do 155 CLÈVE, Clèmerson Merlin O direito e os direitos: elementos para uma crítica do Direito Contemporâneo, p. 65. A dogmática jurídica é uma manifestação discursiva que, almejando a condição de cientificidade, e falando em nome dela, o faz, não por meio de enunciados informativos e imbuídos da necessidade de encontrar a verdade (sujeitando-se à refutação e falsificação conforme Popper), mas mediante um discurso persuasivo, dirigido à decidibilidade de conflitos, assegurando certeza e segurança jurídicas, exigências do direito positivado do moderno estado capitalista. Ora, isso denuncia a dogmática como atividade classificatória e sistematizadora das normas jurídicas estatais. Sua realidade está limitada pela institucinalização do câmbio do direito operacionalizada pela sua positivação, o que reduz o saber jurídico às dimensões da atividade jurisdicional. (grifo nosso) 156 CLÈVE. Op. cit., p. 79. Nem todos os novos jusfilósofos pensam do mesmo modo. Várias linhas teóricas vão se abrindo. Afinal, a crítica do direito não constituiu movimento homogêneo e integrado. Antes é ‘um conjunto de vozes dissonantes que, sem constituir-se, ainda, em sistema de categorias, propõem um conglomerado de enunciações apto a produzir um conhecimento do direito capaz de fornecer as bases para um questionamento social radical’. 157 CLÈVE. Op. cit., p. 87. 142 reconhecimento pela comunidade jurídica de que o direito não tem um objeto específico de estudos, podendo operar ora com conceitos da sociologia ora com conceitos da psicologia ou da economia, ou ainda, de outros ramos do conhecimento, o quê, sob o prisma da ciência do conhecimento classicamente considerada é comprometedor de sua cientificidade, no entanto, não reduz a importância de seu papel como saber teórico e pragmático158. Sob um enfoque da teoria geral do direito, o tema da epistemologia está delineado, ressalta-se que há o desdobramento dessas teorias, sendo que no campo da epistemologia jurídica159, foram elaboradas diversas formas de estudo do direito, sendo que o culturalismo egológico quântico de Goffredo Telles Júnior e a teoria culturalista tridimensional do direito de Miguel Reale colocam o direito brasileiro em destaque. Igualmente importante no contexto da epistemologia jurídica são os estudos do professor Lourival Vilanova que, a partir das 158 CLÈVE. Op. cit., p. 88. Tais reflexões sugerem ser irrelevante provar a cientificidade do discurso jurídico. Se terreno epistemológico o situa como disciplina não científica, embora dotada de positividade. Não é mera ideologia, ou opinião. É um saber, formalizado segundo configuração própria. 159 DINIZ, Maria Helena.. Compêndio de Introdução à ciência do direito, p. 13-164. A autora discorre a respeito das concepções epistemológico-jurídicas relativas à cientificidade do conhecimento jurídico, identificando as seguintes teorias; jusnaturalismo, empirismo exegético, historicismo casuístico, positivismo sociológico e positivismo jurídico, racionalismo dogmático ou normativismo jurídico de Hans Kelsen e culturalimo jurídico. 143 estruturas lingüísticas do direito e da análise fundada na lógica formal, aborda os sistemas jurídicos sob uma perspectiva autopoiética160. A propósito da importância do culturalismo jurídico, é considerado adequado localizá-lo no contexto histórico da formação epistemológica do direito. Esta abordagem não visa ao aprofundamento do assunto, mas, a uma visão panorâmica a fim de que se compreenda sua posição e relevância para o direito brasileiro. 5.2 CULTURALISMO JURÍDICO A partir do final do Século XIX, as transformações decorrentes da modernidade levaram a elaboração de novas formas de abordagem para a formulação do conhecimento161, entre elas ressalta-se a teoria husserliana162 dos objetos segundo sua região ôntica163. 160 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia, p. 528. ... a ontologia parece ter como missão a determinação daquilo em que os entes consistem e mesmo daquilo em que consiste o ser em si. Então, é uma ciência das essências e não das existências; é, como se precisou ultimamente, uma teoria dos objetos. 162 Edmund Husserl é considerado o fundador da fenomenologia, tendo proposto um método de análise de como o entendimento intervém no conhecimento das realidades da experiência. Esse método consiste numa descrição da gênese dos conceitos, o que possibilita delimitar os elementos objetivos e subjetivos que intevêm no ato de conhecer. A fenomenologia em Husserl consiste num processo em que a existência dos conteúdos da consciência ou das vivências e do Eu é colocada entre parêntese enquanto sujeito psicofísico ou suporte existencial da consciência, assim reduzida ao eu puro, ou transcendental. A redução eidética reduz as vivências a suas essências, como objetos ideais que expressão significações, alheias ao tempo e ao espaço, o que os confere uma validade permanente. 163 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, p. 727. Ôntico. Existente: distinto de ontológico, que se refere ao ser categorial, isto é, à essência ou à natureza do existente. P. ex. a propriedade empírica de um objeto é uma propriedade ôntica; a possibilidade ou a necessidade é uma propriedade ontológica. 161 144 De acordo com a localização dos objetos164 de estudo tendo em vista sua essência, ou seja, o ser próprio ou peculiar da coisa, o direito é algo que tem existência real ou concreta e, portanto, identificada na experiência ou no mundo empírico, dotado de valor, sendo a cultura o seu objeto específico de estudo165. Tem se entendido como cultura os processos de criação desenvolvidos pelo Homem com referência a um sistema de valores166 constituídos historicamente, com a finalidade de atender aos seus interesses, o que permite atribuir à cultura uma natureza aperfeiçoadora das relações humanas167. O direito, sob a perspectiva culturalista, revela-se como um 164 Ibidem, p. 725. ... a palavra objeto é o termo mais geral de que dispõe a linguagem filosófica. ... É óbvio que o conceito de objeto não coincide inteiramente com nenhuma de suas especificações possíveis. As coisas, os corpos físicos, as entidades lógicas e matemáticas, os valores, os estados psíquicos, etc., são todos objetos, especificados ou especificáveis por meio de modos de ser particulares ou procedimentos de verificação particular; mas nenhuma dessas classes de objeto possui uma objetividade privilegiada e nenhuma se presta a exprimir, em seu âmbito, a característica de objeto em geral. 165 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova introdução ao Direito, p. 8. Sem entrarmos na pugna dos universais ou da essência universal do homem, podemos concluir que os valores, em seu momento de abstração constituem objetos ideais que caracterizam a humanidade em todos os tempos, fora da história, ao passo que, em seu momento de concreticidade, constituem objetos culturais que caracterizam a humanidade em cada mometo, dentro da história. 166 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova Introdução ao Direito, p. 4. A língua germânica é muito precisa ao distinguir o valor (Wert) e o o valer (Gelten). O valor é ponto ideal a que a humanidade tende. O valer é aquilo que tem eficácia no momento histórico. 167 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova Introdução ao Direito. P. 4. A Cultura é História. Os objetos culturais, por isso mesmo que constituem referências a valores, são objetos históricos, vivem na História e só historicamente assumem sentido. 145 sistema que se inter-relaciona com outros ambientes que não o jurídico, nesse caso, referido ao conjunto de leis que forma o ordenamento jurídico. É próprio afirmar que as teorias culturalistas assimilaram noções da teoria geral dos sistemas, representando um movimento de abertura do sistema jurídico que associado a questões históricas como o acirramento das desigualdades sociais no plano interno quanto à distribuição de riquezas e internacional através das políticas de proteção de mercados dos países mais ricos e exportadores de bens industrializados em detrimento dos países produtores de bens primários; produziu a crise dos paradigmas vigentes no positivismo jurídico formalista168. A propósito da formação das teorias culturalistas, é interessante lembrar a importância da Escola de Baden, à qual se filiaram filósofos como Emil Lask e Radbruch para, a partir do kantismo, tendo em vista a compreensão histórica do mundo, identificar o conceito de valor. Partindo dessa referência, foi constituída a Filosofia da cultura, que representa uma evolução da Filosofia dos valores neokantista. 168 REALE, Miguel. Teoria Tridimencional do Direito, p. XIII-XIV. A Ciência do Direito, sobretudo a partir da Segunda Grande Guerra, vem se caracterizando por uma crescente luta contra o formalismo, o que implica repúdio às soluções meramente abstratas. ... Essa tendência, no campo do Direito, não é senão expressão das diretrizes e do movimento que caracterizam, de modo geral., a cultura contemporânea . Vários fatores poderiam ser invocados nesse sentido, como, por exemplo: a) a preocupação pelos problemas da vida humana, o que se reflete em todas as formas da Filosofia existencial; b) a compreensão do indivíduo e, por conseguinte, de seus direitos e deveres, não em abstrato, mas na concreção de suas peculiaridades circunstâncias, como o demonstra a chamada Ética da Situação; c) a afirmação paralela, tanto nos domínios da Teoria do Conhecimento como os das ciências humanas, de que ‘é mister volver às coisas mesmas’, consoante fórmula amplamente divulgada pela Filosofia fenomenoógica. (grifo nosso) 146 A Filosofia da cultura parte da idéia segundo a qual entre a realidade e o valor há um elemento de conexão que é exatamente a cultura. Sob esta perspectiva, o direito existe em função de um suporte que pode ser considerado natural ou real que somente se justifica em virtude do valor, sendo a norma jurídica o elemento cultura encontrado entre esses dois suportes. Considerada esta estrutura do direito baseada na Filosofia da Cultura foram criadas diferentes teorias culturalistas169, assim denominadas porque apresentam a mesma base teórico-filosófica. As principais direções do culturalismo jurídico formaram a concepção raciovitalista de Recaséns Siches 170, 169 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, p. 70. Apesar de sua deficiência, representou um grande passo a idéia dos neokantistas de interpor, entre realidade e valor, um elemento de conexão: a cultura, significando o complexo das realidades valiosas, ou, como esclarece Radbruch, ‘referidas a valores’. Isto equivale a dizer que todo bem de cultura (e o direito é um deles) é tridimensional em razão de seu simples enunciado, uma vez que pressupõe sempre um suporte natural ou real, e, no meu modo de ver, também ideal, suporte esse que adquire significado e forma próprios em virtude do valor a que se refere. Foi em torno dessa problemática que se desenvolveram as diversas espécies de culturalismo jurídico, para saber-se, por exemplo, como é que tais elementos se correlacionam (através de mônadas de valor, dirá Sauer; mediante ‘categorias constitutivas’, sugerirá Lask etc) ou, então, pra negar a possibilidade de qualquer correlação entre eles (Radbruch, na primeira fase de seu pensamento, considerava-os gnoseologicamente antinômicos e irreconsiliáveis, só admitindo uma composição relativa no momento da práxis) ou, ainda, para determinar-se a ‘função” desempenhada por cada um dos referidos elementos no contexto ontognoseológico de cada momento da experiência jurídica. 170 DINIZ. Op. cit., p. 92-93. O raciovitalismo jurídico é a corrente que se liga à filosofia da razão vital de Ortega y Gasset, aplicada ao direito. A concepção orteguiana repercutiu enormemente na teoria jurídica do jusfilósofo Luis Recaséns Siches. ... O comportamento humano é consciente e tem um sentido que não existe nos fenômenos físico-naturais, que só podem ser explicados, uma vez que só os fatos humanos podem ser compreendidos, segundo Dilthey. ... Só o que é do homem pode ser justificado pelo homem, em razão dos fins que ele elege. ... Siches, influenciado por Ortega y Gasset, pondera que a vida humana nada tem de feito, de concluído ou acabado, pois deve fazer-se a si mesma. ... A partir dessa concepção orteguiana de vida humana, Recaséns Siches enquadra o direito entre os objetos culturais, porque criado pelo homem com o objetivo de realizar valores, considerando-se como pedaço de vida humana objetivada. 147 a teoria de Emil Lask171, a teoria tridimensional de Miguel Reale172 e a teoria egológica de Carlos Cóssio173. De acordo com o aspecto da cultura que se enfoque, serão constituídas as teorias objetivas ou subjetivas do culturalismo jurídico. Considerando a vida humana em seus aspectos mais concretos, ou seja, sob a ótica das relações externas travadas no mundo do direito, são criadas as teorias objetivas dentre as quais se destaca o tridimensionalismo de Miguel Reale174. Carlos Cossio aborda a cultura a partir das condutas humanas subjetivas ou intrínsecas, tomando como ponto de partida aspectos ligados a questões da ordem existencialista, podendo ser sua teoria 171 DINIZ. Op. cit., p. 133. A obra de Emil Lask, neokantiano da Escola de Baden (Windelband e Rickert), situa-se entre o jusnaturalismo e o positivismo, entre o historicismo e a fenomenologia, entre o empirismo jurídico e o culturalismo nascente. ... O direito é uma realidade cultural complexa, consistindo numa pluralidade de dimensões que apontam para uma estrutura aberta, e numa historicidade imanente; é, portanto, uma realidade inserida entre a realidade empírica e as próprias finalidades visadas pela ciência. A ordem jurídica é um fato cultural, uma realidade correspondente a um valor. Em suma, seria o direito ‘a realidade jurídica empírica, que se desenvolve historicamente’. (grifo nosso) 172 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, p. 65. Nas últimas quatro décadas o problema da tridimensionalidade do Direito tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à qual penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela demonstração de que: a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada signicação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor; 173 BATALHA. Op. cit., p. 144. O jusfilósofo argentino, Carlos Cóssio, fundador da Teoria Egológica do Direito, combate o normativismo de Kelsen, sustentando que o Direito não consiste em mera estrutura normativa, mas que o objeto do Direito é a conduta humana em interferência intersubjetiva , ao passo que a norma constitui esquema interpretativo dessa conduta. 174 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito., p. 132. Se o substrato do direito for um objeto físico, temos objeto cultural mundanal ou objetivo, que corresponde ao ‘espírito objetivo’de Hegel e à ‘vida humana objetivada’ de Recaséns Siches, e a corrente culturalista que o estuda será a teoria cultural objetiva, de que são representantes, dentre outros, Ortega y Gasset, Recaséns Siches e Miguel Reale. Se seu substrato for a conduta humana, será um objeto cultural egológico (de ego) ou subjetivo, estudado pela teoria egológica do direito, representada por Carlos Cossio, Aftalión e outros. 148 identificada como de caráter subjetivo. A ciência jurídica deve ocupar-se do estudo das condutas humanas em sua dimensão social, utilizando o método empírico-dialético175. No Brasil, foi elaborada pelo professor Goffredo Telles Júnior a teoria quântica do direito a qual representa um desdobramento da teoria egológica. De acordo com a professora Maria Helena Diniz, a teoria quântica do direito atribui ao direito natural, ao direito legítimo, a designação de direito quântico.176 É interessante observar que tal afirmação não tem o caráter de vincular a teoria quântica ao jusnaturalismo, o que seria ilógico, pois como desdobramento do egologismo isso não seria razoável. Direito natural para Telles Júnior “é o conjunto das normas em que a inteligência governante da coletividade consigna os movimentos humanos que podem ser oficialmente exigidos, e os que são oficialmente proibidos, de acordo com o sistema ético vigente”.177 A teoria culturalista egológica quântica do direito apresenta sutilezas e um determinado grau de abstração refinado, podendo 175 BATALHA. Op. cit., p. 278-279. Aftalión, García Olano e Vilanova (ob. cit, I, pp. 43 e segs.), eminentes expositores da teoria egológica do Direito, fundada com originalidade por Carlos Cossio, observam que há métodos distintos para o estudo dos objetos ideais, dos objetos da natureza e dos objetos culturais. ... O conhecimento dos terceiros constitui-se sobre a base de um ato de compreensão. O terceiro método é denominado empírico-dialético: empírico, porque os objetos de cultura são objetos reais, que está na experiência; dialéticos, porque o ser dos objetos de cultura não se esgota no substractum material que possam ter, mas depende do sentido espiritual que nesse substractum tem seu apoio, sentido que tem de ser vivenciado por alguém para adquirir existência. 176 DINIZ, Maria Helena . Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 48. 177 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p. 326. 149 perceber-se isto a partir da apresentação de um conceito específico do direito natural por seu formulador. As idéias a respeito da noção de juízo de valor que exige como seu pressuposto um sistema de referências elaborado pela inteligência humana que os constrói historicamente é fundamental para a concepção do direito quântico como expressão da experiência jurídica que é sempre a atualização objetiva de um estado de consciência de uma comunidade em determinado momento histórico e em determinado lugar.178 A partir dos elementos básicos apontados anteriormente, pode ser afirmado que a teoria quântica do direito se desenvolve através da constatação de que nem sempre o direito objetivo criado pelo Estado subordinante da sociedade é o direito objetivo desejado por essa mesma comunidade. Este direito desejado é o direito natural, porque tem uma existência constituída historicamente que produz sistemas éticos de referências. A compreensão a respeito desses sistemas éticos de referência parte da admissibilidade quanto à transmissão histórica de experiências desde o ácido nucléico até à constituição de uma inteligência, que relativamente ao ser humano, caracteriza-se pela solidariedade, sendo determinada pelo que o ser humano realmente é. 178 TELLES JÚNIOR. Ética. Do mundo da célula ao mundo dos valores, p. 237. 150 Logo, o ser humano real é histórico, formando um eu mesmo histórico179 como produto das próprias consciências individuais, tomando em consideração o que elas têm de comum dentro de uma determinada circunstância histórica. Disso resulta que o permanente no humano é a mudança, a transformação pautada na histórica comum dos indivíduos em sociedade180. É possível admitir, portanto, que para o humano o mundo é portador de um sentido que é por ele atribuído dentro das perspectivas e compreensões do eu histórico permanente, no sentido anteriormente referido. Através desse sentido, é formatado o sistema ético de referência a valores. Assim, “a pessoa humana passa a ser a medida de todos os valores”181. (grifo nosso). O bem primordial nesse contexto é a pessoa, porque é a partir dela que serão determinados os valores de todos os outros bens. 179 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p. 320. O eu histórico é um eu permanente, mas um eu permanente em contínuo perfazimento. É um ser considerado na sua realidade concreta, no que ele é por natureza. E o ser humano por natureza é um ser sempre tendido para bens que o perfazem, um ser ‘intencional’, um ser imantado pelo que ele julga ser seu bem. Porque é da condição da espécie humana, perfazer-se. 180 Ibidem, p. 321. ... pode-se dizer que a história do ser humano é causa e efeito dele próprio. É efeito de determinações da inteligência. E é causa das formas culturais (da ‘paisagem materna’ de Spengler), que, em cada circunstância, determina cada homem. 181 TELLES JÚNIOR. O direito quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p. 321. 151 Ressalta-se que essas idéias são desenvolvidas para identificar os fundamentos da experiência ética de onde é desdobrada a experiência jurídica a qual exige uma compreensão integral. Isto significa a superação do direito como simples ordenador de fatos objetivamente considerados, para considerá-lo também a partir de suas categorias subjetivas. Por sua vez, essas categorias subjetivas se referem aos sistemas de referência a valores, podendo ser também identificadas como categorias axiológicas. Se a pessoa é a medida elementar de valor de todas as coisas, o sistema de referência é o eu histórico, assumindo, este, portanto, um caráter apriorístico como condição subjetiva de compreensão das experiências objetivas. Como a priori o eu histórico representa a comunhão progressiva das consciências individuais em relação às experiências comunitárias, no processo da organização do humano para a constituição social. Este processo forma a cultura, que se confunde com o mundo dos valores. O direito objetivo desejado pela comunidade é a manifestação natural, no sentido de sua formação histórica, dos valores culturalmente 152 constituídos através dos processos identificados anteriormente. Desse modo, “o direito natural é o direito legítimo.”182 Em uma concepção empírico-positivista, o direito é exigível em virtude da validade da norma, entendida sob o prisma da obediência ao processo legislativo instituído pela Constituição Federal e à hierarquia do sistema legal. Para o culturalismo egológico quântico, a validade por si só não é suficiente, uma vez que nesse caso o preceito legal seria portador de uma artificialidade que, em última análise, compromete todo o sistema legal na medida em que leva à criação de modelos de organização social paralelos. Nesse sentido, o direito artificial assume um papel opressor que o torna ilegítimo porque não traduz as convicções éticas do meio onde assenta. Nessa situação, é importante afirmar que o direito natural (direito objetivo desejado) há de ser válido e legítimo, conquanto atendendo aos preceitos de ordem formal para a criação das normas jurídicas que sejam estas também a expressão espontânea das regras de convivência social. Dessa forma, o trabalho do legislador tem a finalidade de modelar as forças mesológicas imperantes na comunidade, logo, a fonte primária do direito é o povo, entendido aqui sob a ótica do eu histórico. Os legisladores enquanto representantes da coletividade são 182 TELLES JÚNIOR, Goffredo. O direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p. 326. 153 entendidos como autorizados a exercer secundariamente o poder de normatizar a respeito da organização social. Disso é possível concluir que pode haver referência a um direito válido e legítimo como há um direito válido e ilegítimo. O direito quântico é a nomenclatura utilizada para expressar a realidade normativa válida e legítima no sentido biológico, histórico, cultural e estrutural, o que teria a potencialidade de assegurar ao direito seu papel de natural ordenação jurídica da convivência. Através do direito quântico, percebe-se que a aceitação quanto à artificialidade da norma jurídica é um equívoco terrível cometido pelos juristas e legisladores, porque por mais brilhantes que possam ser as construções legal, doutrinária e científica há que concluir-se pelo descompasso crescente entre a realidade estruturada formal e as práticas sociologicamente institucionalizadas, tornando-se o direito um elemento de constrangimento social e, simultaneamente, afastando-se de seu papel de ordenador da convivência coletiva. 154 5.3 O DIREITO PROCESSUAL NO CONTEXTO DA TEORIA DA CIÊNCIA DO DIREITO O direito é antigo, estando sua história provavelmente ligada à própria história do Homem em seu processo de formação de uma experiência coletiva, na conquista da sociabilização, enquanto modo de autopreservação. Nesse tocante, a teoria do direito quântico ao afirmar a existência de mensagens genéticas emitidas pelo DNA como (ácido desoxiribonucléico) determinantes da vocação social do gênero humano, ou seja, o “impulso natural para a convivência”183, permite a localização remota do direito. Há que se compreender, no entanto, que aquela realidade histórica apresenta uma conformação distinta daquela que atualmente é vislumbrada. Aqui é válido lembrar o trabalho de Thomas Khun quanto a abordagem histórica dos fenômenos, principalmente, levando em consideração que cada fato precisa ser estudado em seu tempo e lugar. O deslocamento dos objetos da pesquisa no tempo e no espaço tem levado a equívocos de interpretação que pouco a pouco os historiadores da ciência estão desvelando. O direito não foge a tais considerações, porque tem sido estudado em qualquer tempo e lugar como se os dados disponíveis contemporaneamente fossem presentes no passado, o que não pode ser 183 TELLES JÚNIOR, Goffredo. O direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica., p. 329. 155 considerado real. Na Roma antiga ou entre os saxões e germânicos, a significação da linguagem do direito e seu papel na estrutura comunitária era distinta daquela verificada no final do século XIX e após a II guerra mundial e durante o século XXI. Essas considerações decorrem da importância para este trabalho de refletir as condições presentes sem esquecer que conquanto fossem inexistentes em um passado próximo, ali encontram os fundamentos que possibilitam conhecer, de forma mais abrangente, o direito. Esta maior abrangência se refere ao direito enquanto sistema autopoiético. A epistemologia jurídica é formatada a partir da jurisprudência dos interesses, sendo que a alteração do modo de produção feudal para o modo de produção industrial e a criação da indústria gráfica são fatores preponderantes para o surgimento e desenvolvimento de métodos que vinculassem a validade do conhecimento. Observa-se que esses fatos históricos tiveram o efeito de propiciar a disseminação das idéias e, em conseqüência disso, favoreceram a ampliação dos modos de conhecer, ou seja, surgem novos modelos de interação entre o Homem e o meio. A Teoria Geral do Direito e o processualismo científico são significativos da cristalização dos movimentos originados pela jurisprudência dos interesses. Pode ser afirmado, então, que a criação de 156 teorias adequadas ao direito entendido como ciência vincula-se ao surgimento de uma epistemologia positivista que, durante praticamente todo o século XX, identifica-se com a idéia da existência e validade do conhecimento produzido no campo do direito184. Nesse sentido, a base do direito, como ciência é única, podendo ser localizada na filosofia jurídica, a qual teria sido convertida na teoria geral do direito, com conseqüências reducionistas para aquela185. A dinâmica inerente ao conhecimento gerou novas abordagens tendo ressurgido uma filosofia do direito então identificada como teoria do direito186, com uma perspectiva interdisciplinar, como novo modo de estudar o direito. Em decorrência desses processos, ocorre uma 184 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Nomos, Fortaleza,v. 9/10 p. 49-82, jan/dez. 1990/91. Material para Estudos de Teoria do Direito, p. 49-50. A origem da Teoria Geral do Direito (allgemeine Rechtslehre) estaria em fins do século passado, na fase tardia da Escola Histórica, fundada por Hugo e V. Savigny, movimento conhecido como ´pandectismo´ Seu mais famoso epígono é sem dúvida Bernanrd Windscheid, se levarmos em conta que Ihering só integrou as suas fileiras até 1877, quando publica ´Der Zweck im Recht´ (A Finalidade no Direito, trad. Em 1950 com o tít. A Evolução no Direito, Liv. Progresso, Salvador, Ba.), aderindo ao utilitarismo de Bentham, e inaugurando um novo paradigma ou método de estudo do direito: a ´jurisprudência dos interesses´. Representativa daquele movimento pandectista com significado seminal para a TGD são obras como as de Karlowa, no direito civil e v. Bülow, no direito processual. 185 Ibidem, p. 50. A ´filosofia positivista´ teve em Karl Bergbohm, com sua obra fundamental ´Jurisprudenz und Rechtsphilosophie´ ( Ciência do direito e filosofia jurídica), de 1882, um de seus primeiros expositores. Já, antes, porém, Adolf Merkel em um pequeno ensaio intitulado ´Sobre a relação da filosofia do direito com a ciência jurídica ´positiva´ e a parte geral da mesma´, havia lançado as bases daquela ´filosofia´, reduzindo a filosofia do direito á TGD, da qual ele oferecerá um elaboração acabada em sua ´Enciclopédia jurídica´, de 1885. (grifo nosso) 186 Ibidem, p. 52-53. Em 1970, por exemplo Kelsen, funda, juntamente com Karl Engisch, Hart, Ulrich, Klug e Karl Popper, uma revista intitulada ´Rechtstheorie´ (Teoria do direito), editada em Berlim, que aparentemente se dedicaria a desenvolver a proposta analítica lançada pela teoria pura. ... Isso reflete a orientação já predominate, de estabelecer um campo teórico interdisciplinar para ´pesquisa fundamental´ (Grundlagenforschung) em direito. ... Nesse processo, a TGD é ´superada´ (aufgehobene) hegelianamente, quer dizer, incorporada e dissolvida, assim como antes ela fizera com a abordagem filosófica, que agora volta a ter sua dignidade restituída, sem, é claro, a posição ´majestática´ de antes. (grifo nosso) 157 multifacetação na produção do conhecimento do direito que passa desde a filosofia até à arte. Nesse ponto, vale a pena mencionar o seguinte: É o ´anarquismo metodológico´, propugnado por Paul Feyerabend, no qual ´everything goes´, desde que resulte em melhora de nosso conhecimento. É o signo da pós-modernidade, quando não mais se aceita o predomínio de um discurso com a pretensão de único verdadeiro, já que a complexidade do mundo atingiu tamanha proporção, que só a convergência dos diversos esforços para entendê-lo poderá ser de alguma valia. (grifo nosso)187 Com estas observações, acredita-se que tenha sido possível notar que uma abordagem do direito enquanto ciência deve ser realizada tendo em vista a sua posição quanto a sua história, seus aspectos epistemológicos e metodológicos. Não há nesse campo um espaço reservado ao direito material e ao direito processual, assim como não há um lugar específico para o direito privado e o outro para o direito público. Ao fracionar o direito, o que se pretende é conhecer um de seus aspectos, o que se torna impossível fora do contexto da teoria que orienta o estudo proposto. 187 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Material para Estudos de Teoria do Direito, p. 54. 158 5.3.1 O direito processual como objeto cultural O direito processual, para efeito desta pesquisa, será considerado a partir do processualismo científico, pois as bases sobre as quais se está trabalhando parte de uma teoria científica do direito, o que, na esfera do processo, ocorreu a partir da publicação na Alemanha da obra de Oscar Von Bülow em 1868. Destaca-se o trabalho de AlcaláZamora que, antes da publicação do livro de Von Bülow, já havia tratado do direito processual com fundamento teórico-científico. É adequado mencionar que com o surgimento de uma teoria do direito, desenvolvida a partir de uma epistemologia positivista, o processo, como parte da ciência do direito sofre seus influxos, havendo a sintetização da teoria do processo. Esta análise demanda reflexões profundas porque o direito caminha historicamente ao lado da economia e da política através de vínculos sutis que, em determinados momentos, são exacerbados levando à revelação desses laços, e à percepção de que há um estado de subordinação do direito à economia e à política, na medida em que convalida as práticas ali adotadas. Nesse sentido, os fatos que ocorreram entre a derrocada do feudalismo e a estruturação de uma sociedade industrial, no campo da 159 política, da economia e da filosofia, são determinantes para a elaboração da teoria do direito e por via de conseqüência da teoria do processo. É importante destacar a estruturação do Estado como ente público, representante dos interesses da nação e portador do direito enquanto norma de regulação das condutas humanas. Cronologicamente, isto ocorre no século XVIII, tendo sido importantíssimos os trabalhos de Rousseau188, Descartes e Montesquieu189. Ao pontuar filósofos e pensadores não há a intenção em desmerecer todos os estudiosos que contribuíram para a sistematização de uma corrente teórica, mas apenas delimitar as idéias. A par da gravidade quanto a afirmação do estado de subordinação do direito deve ser esclarecido ainda que esta constatação não lhe reduz a importância como mecanismo de estruturação das organizações societais, mas permite sua localização como objeto cultural de pesquisa. Ganham, nesse sentido, em profundidade, os estudos a respeito da crítica quanto às finalidades que o direito tem cumprido ao longo de sua história. Em conseqüência do cartesianismo que, posteriormente, alicerçou a metodologia de Descartes e que assegurou a estruturação do 188 Jean Jacques Rousseau. (Suíça, 1712/1778). 1762 – “O Contrato Social”. Teoria política do pacto social segundo o qual todos os homens são iguais perante às leis que são criadas de acordo com a vontade do povo expressa através do soberano escolhido pelo voto direito. 189 Charles Louis de Secondat – Barão de Montesquieu. (França, 1689/1755). 1748 - “O Espírito das Leis”, onde expôs a “Teoria da separação dos poderes”. 160 positivismo, foi incorporada entre os estudiosos do direito a idéia da existência de uma autonomia do direito processual desvinculada da teoria da ciência do direito. Este equívoco tem prejudicado o desenvolvimento do direito processual porque uma vez isolado está sendo desconsiderada sua referência como objeto cultural. Quer se referir ao fato de que, no campo do direito processual, têm crescido as correntes tecnicistas e, às vezes, até cientificistas em prejuízo da sua compreensão como integrante de uma ciência social aplicada, como atualmente tem se referido ao direito, cujo objeto central de estudos é o Homem em suas múltiplas maneiras de interatividade com o meio social e natural. O direito, assim, representa o elo regulador e garantidor dessas relações. Identificada a perspectiva teórica de abordagem do direito como ciência através de uma pesquisa baseada em uma hermenêutica crítica tendo em vista a crise do paradigma dominante proposto pela Revolução Francesa com os axiomas positivistas da “liberdade, igualdade e fraternidade”, o estudo ora realizado procura verificar no direito público, através dos preceitos fundamentais (princípios, regras e postulados normativos) erigidos na Constituição brasileira de 1988, as referências teóricas para a análise do direito processual e, mais 161 precisamente, do processo de execução em um contexto adequado à ciência do direito. É possível afirmar que os problemas relacionados à insatisfação que o processo está enfrentando quanto à morosidade na entrega da prestação jurisdicional e quanto ao questionamento a respeito da segurança jurídica estão ligados ao fato do equívoco anteriormente mencionado. Isto quer dizer que a linguagem do direito processual ainda está presa ao paradigma da epistemologia positivista, enquanto a ciência do direito está assimilando a linguagem de uma epistemologia crítica. Sob uma ótica sistêmica em que a teoria da ciência do direito orienta as partes integrantes do sistema jurídico e, simultaneamente, comunica-se com o meio exterior através do conteúdo cultural da linguagem, os sistemas de interação do direito processual não conseguem produzir um nível satisfatório de comunicação intrinsecamente em qualquer dos seus sentidos, criando para a estrutura do sistema jurídico um déficit comunicacional. A causa mais provável deste déficit deve ser pertinente à fragmentação nos estudos do direito processual como ramo autônomo da ciência do direito e, sobretudo, pelo fato de que ainda se estuda o direito processual como sistema fechado. 162 Não deve ser confundida a autonomia do direito processual em relação ao direito material e em relação à teoria da ciência do direito. Não se vislumbra a possibilidade da compreensão do direito processual fora da teoria do direito, embora, no sistema jurídico, possa ser reconhecida a autonomia do direito processual em relação ao direito material, entendidos como partes daquela organização. Essas colocações podem ser evidenciadas através da observação de que as transformações nos meios de produção levaram às mudanças nas estruturas de poder político, o que, por sua vez, produziu condições sócio-culturais para o florescimento das filosofias iluministas as quais refletiram o quadro do positivismo filosófico e científico e do empirismo lógico. O direito assimila este quadro através da teoria pura kelseniana. Há naquele momento histórico uma consonância, pois, a teoria geral do direito produz no campo do processo a teoria “geral” do processo. É perceptível a univocidade lingüística do sistema jurídico, concebido como fechado. Nesse sentir as estruturas lingüísticas estavam adequadamente organizadas e, portanto, eram capazes de realizar os fins aos quais se destinavam. Pode ser afirmado que havia a satisfatória entrega da prestação jurisdicional, que é onde se localiza o fim último do direito positivo. 163 Com isso quer se referir ao fato de que a “justiça” era considerada elemento intrínseco ao sistema, como ingrediente integrante da norma jurídica. As expectativas em relação ao cumprimento das promessas iluministas foram e, em certa medida, ainda estão sendo desencantadas. A substituição do conhecimento produzido pelo senso comum, pelo conhecimento científico não melhorou a vida humana sob uma perspectiva geral. Não parece razoável acreditar que o progresso materialista com a invenção de métodos de tratamentos revolucionários para a saúde, a criação de máquinas e equipamentos impensáveis em um passado próximo, a superestruturação das instituições do Estado e tantas outras novidades da vida contemporânea tenham sido capazes de resolver os problemas da humanidade. Isto é justificado pelo fato de que a ciência iluminista e moderna não previu ou sequer evitou as conseqüências irremediáveis da postura positivista. Na seara do direito, o holocausto para o mundo ocidental é revelador das possíveis conseqüências de uma ciência realizada com base em uma epistemologia positivista. No século XX, novos eventos históricos levaram aos questionamentos sobre o papel da ciência e do direito. Destaca-se a 164 segunda guerra mundial, a revolução comunista soviética, a alteração gradual do modo de produção industrial para o modelo constituído a partir da tecnologia e da informação, onde o trabalho manual é substituído por máquinas e não há espaço para a absorção das pessoas no trabalho técnico e científico. Sob todos os ângulos que se possa observar a vida contemporânea, é possível identificar um grau considerável de insatisfação humana quanto aos efeitos produzidos pela ação científica moderna. Isto não se deve pela ausência de resultados significativos quanto às conquistas que tenham melhorado setorialmente a qualidade da vida humana, mas em decorrência de que há um excesso de resíduos negativos produzidos por esta ciência que supervalorizou o objeto em relação aos sujeitos do conhecimento. No direito, isto se reproduz na medida em que este não tem conseguido realizar a prestação jurisdicional de forma compatível com os valores da eficiência e rapidez que orientam a modernidade. Esta insatisfação pode ser assimilada como consectário de uma epistemologia que desprestigiou os aspectos culturais da linguagem em favor de sua forma estruturalmente lógica, quando seria razoável que antes se considerasse o direito sob o enfoque de suas relações para então tratar dos aspectos formalistas que lhes são pertinentes. A questão em relação a 165 isto pode ser situada no fato de que mesmo após a teoria da ciência do direito ter assimilado este problema e operar com uma epistemologia positiva culturalista e, mais recentemente, com uma epistemologia crítica, o direito processual permanece preso à linguagem de uma epistemologia positivista em fase de superação. No campo do direito processual, foi criado um apego à idéia da autonomia, contudo, sem que se tivesse percebido que isto não poderia estabelecer uma desvinculação da teoria da ciência do direito, sob pena de se verificar um saldo residual deficitário nos procedimentos comunicacionais do direito processual em relação à realização efetiva e segura da jurisdição. O direito processual deve ser compreendido como parte integrante do sistema jurídico que é norteado pela teoria da ciência do direito, portanto, devendo ser estudado como objeto cultural. Compreendê-lo depende de reconhecer os vínculos que mantém com o meio social, econômico e político, através da linguagem que utiliza. A atual perspectiva do direito processual deve, ainda, observar os princípios Constitucionais da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal e do juiz natural, estabelecidos no artigo 5º; tendo como postulado fundamental a dignidade da pessoa humana, que está expresso no artigo 1º, III. 166 6 O DIREITO PROCESSUAL CONTEMPORANEAMENTE A proposta de estudos do direito processual sob o enfoque de uma hermenêutica constitucional crítico-historicista, pautada na teoria dos princípios, apresenta-se complexa, principalmente porque a morosidade para a entrega da prestação jurisdicional está exigindo uma resposta rápida da comunidade jurídica e dos Poderes Públicos, sendo crescente o descrédito dos jurisdicionados quanto à possibilidade de alcançar-se a “justiça” através dos meios institucionalizados presentemente. O reconhecimento dessa situação foi objeto do Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e Republicano, publicado em 16 de dezembro de 2004, no Diário Oficial da União, no 241, na seção 1, p. 8, onde os Excelentíssimos Senhores Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva; Presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim; Presidente do Senado Federal, José Sarney e Presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha proclamaram os seguintes compromissos fundamentais: implementação da reforma constitucional do judiciário, a reforma do sistema recursal e dos procedimentos, a estruturação das defensorias públicas e acesso à justiça, o contínuo desenvolvimento dos juizados especiais e da justiça 167 itinerante, a alteração da lei que regulamenta a execução fiscal, a proposta para a solução da problemática dos precatórios, a estruturação de mecanismos que visem ao enfrentamento do problema da violação dos direitos humanos, o avanço no processo de informatização do poder judiciário, a criação de meios para a produção de dados e indicadores estatísticos a respeito da distribuição da justiça, a instituição de orientações jurisprudenciais que visem à coerência na atuação administrativa e o incentivo a aplicação das penas alternativas. Ainda no sentido de obter-se melhores resultados no plano da otimização da prestação jurisdicional, a Emenda Constitucional no 45, de 8 de dezembro de 2004, acrescentou o inciso LXXVIII, ao artigo 5º, da CF/88, assim redigido; Art. 5º. LXXVIII. a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Há, pelo menos, 18 Projetos de Leis190, em diferentes 190 PL 4.724/2004 – Altera a forma de interposição dos recursos, o saneamento de nulidades processuais, o recebimento de recursos de apelação e outras questões. PL 4.726/2004 – trata das questões relativas a incompetência relativa, os meios eletrônicos, prescrição, distribuição por dependência, exceção de incompetência, revelia, carta precatória e rogatória, ação rescisória e vista dos autos. PL 4.727/2004 – trata dos agravos de instrumento e retido. PL 4.728/2004 – dispõe sobre a racionalização do julgamento de processos repetitivos. PL 4.729/2004 – regula o julgamento dos agravos. PL 4.723/2004 – trata da uniformização da jurisprudência nos Juizados Cíveis e Criminais. PL 4.725/2004 – possibilita a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual pela via administrativa. Na esfera trabalhista há os projetos: PL 4.730/2004 – altera os artigos 830 e 895 da CLT, que tratam da forma para a apresentação de documentos em juízo e do cabimento do recurso para instância superior. PL 4.735/2004 – altera o artigo 836 da CLT que dispõe sobre as decisões e sua eficácia. PL 4.731/2004 – que altera os artigos 880 e 884 da CLT. PL 4.733/2004 – altera o artigo 894 da CLT. PL 4.732/2004 – altera o artigo 896 da CLT. PL 4.734/2004 – revoga o artigo 899 e acrescenta o artigo 899A a CLT. PL 4.827/98 – trata sobre a mediação prévia e incidental. 168 estágios de andamento, tramitando no sentido de implementar a realização do novo inciso do artigo 5º, da CF/88, e dos 11 compromissos contidos no Pacto do Judiciário. Os Projetos de Leis 3.253/2004191 e 4.497/2004 que alteram a sistemática das execuções de títulos judiciais e extrajudiciais respectivamente, são particularmente interessantes para este trabalho. Sua abordagem específica, entretanto, será realizada oportunamente. Ressalta-se apenas a compreensão de que as alterações são mais de cunho estrutural sem, aparentemente, conseguir resolver o problema da complexidade do processo. É de fácil percepção que o movimento reformista do direito processual brasileiro e do Poder Judiciário é oportuno, mas sofre pelo fato de que está equivocado ao partir do pressuposto de que o processo muda a realidade dos jurisdicionados. Isto provoca uma inversão danosa, pois de instrumento para a realização de um fim o processo passa a ser o próprio fim a ser realizado na medida em que não consegue estabelecer uma razoável comunicação com o meio. Volta-se a advertir que o problema está situado em que o processo não deve ser encarado como um sistema fechado, mas, como um sistema que opera através da linguagem, portanto, através da comunicação com o meio social e político. 169 6.1 O DIREITO PROCESSUAL AUTOPOIÉTICO Sendo o direito um sistema lingüístico caracterizado por sua cientificidade, pois é admissível que seu objeto específico de estudos seja o conjunto de regramentos comunicados através da linguagem, que asseguram a organização, o desenvolvimento e as transformações sociais, e, vinculando-se o direito processual à teoria da ciência do direito, é-lhe atribuída a mesma característica. Não há novidade quanto a afirmação anterior, contudo, as pesquisas que melhor se desenvolveram naquele sentido abordaram o sistema de linguagem do direito através da lógica jurídica e, portanto, o enfoque dos estudos considerou a metalinguagem do direito como um sistema fechado, o que significa afirmar que, como ciência positivada, seu objeto existe e se realiza em si mesmo. O que se pretende é observar o direito processual sob uma perspectiva lingüística autopoiética. A teoria dos sistemas autopoiéticos desenvolveu-se na década de 1970, no campo da biologia molecular, sendo seus formuladores os chilenos Humberto R. Maturana e Francisco Varela. No campo das ciências sociais, a idéia da autopoiese foi introduzida por Niklas 191 Promulgada a Lei 11.232 de 22 de dezembro de 2005. 170 Luhmann, quando em 1984, publicou a obra Sistema social, esboço de uma teoria geral. Os sistemas autopoiéticos são simultaneamente abertos e fechados. Seu fechamento é operacional o que significa que os processos de reprodução das informações do sistema são internos. O ambiente não contribui para a reprodução do sistema e vice-versa. As operações de reprodução das informações são verificadas nos limites do interior do sistema. A abertura do sistema ocorre através do acoplamento estrutural, tendo em vista que estes são ambientados havendo a irradiação e a reciprocidade da comunicação entre os sistemas. Este processo gera influências que aparecem sob a forma de informações que são captadas pelo sistema a partir do meio. A ligação entre o meio e o sistema operacionalmente fechado ocorre através do acoplamento estrutural, que designa uma forma para as interdependências regulares entre os sistemas e as relações ambientais que não estão disponíveis operacionalmente, devendo ser pressupostas. As idéias de fechamento operacional e acoplamento estrutural são elementares para a concepção autopoiética dos sistemas. O que significa que há, no interior do sistema, a auto-organização e a autoprodução das estruturas, sendo, portanto, auto-referenciado. Nesse 171 contexto, o sistema se comunica e sofre a interferência do meio e de outros sistemas através das irradiações, mas opera com tais informações no interior do sistema de modo auto-referenciado. O direito processual pode ser pesquisado e conhecido através desse modelo, pois, suas estruturas lingüísticas, internas e operacionalmente fechadas, são acopladas estruturalmente ao meio ou ambiente social e ao sistema da ciência do direito, de onde irradiam as informações que ao serem captadas devem produzir internamente as operações que assegurem a realização dos fins prometidos pelo Estado através da jurisdição. 6.1.1 A autopoiése em Niklas Luhmann Sob o prisma sistêmico, é possível afirmar que o direito admite duas formas básicas referenciais para seu estudo, a partir de suas estruturas internas e tendo em vista suas conexões externas. As pesquisas que tomam o direito em seus aspectos internos são desenvolvidas com base em sua estrutura normativa legal. Nesse caso, são desconsideradas as possíveis relações estabelecidas entre o direito e outros sistemas. Através da autopoiese são pesquisadas as relações que o direito estabelece com o ambiente social e outros sistemas, desse modo, 172 constituindo-se como uma forma de análise das relações externas do direito, sendo levadas em consideração questões que não se restringem ao complexo normativo do direito. Luhmann cursou direito em Friburgo na Alemanha, mas até o início da década de 1960, quando foi estudar administração na Universidade de Harvard nos Estados Unidos da América, não são encontradas publicações de sua autoria192. Durante este curso, teve contato direto com o trabalho de Talcott Parsons, que era professor em Harvard, tendo se orientado inicialmente pelo paradigma do estruturalismo funcionalista desenvolvido por aquele professor. As teorias funcionalistas se baseiam no conceito de sistema social193 como o meio em que diferentes elementos operam e no qual os indivíduos interagem; e na idéia de ponto de equilíbrio do sistema, podendo localizar-se aí as funções194 ou as contribuições de cada um dos elementos do sistema para a manutenção do equilíbrio e da ordem social. 192 ROCHA, Leonel; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito. p. 151. Os primeiros trabalhos de Luhmann (1958-1968) datam de uma parte da sua carreira administrativa e são consagrados pela ciência da administração e da organização (Erros administrativos e proteção da confiança, 1963; Indenização pública, 1965; Teoria da ciência administrativa, 1966). 193 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à análise sociológica dos Sistemas Jurídicos, p. 158. Para se definir o conceito de sistema social, parte-se da ‘metáfora organicista’, segundo a qual a sociedade se constitui em sistema (de ação social), cujo funcionamento se assemelha ao de um organismo vivo, a exemplo do corpo humano. 194 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Op. cit., p. 159. ... todo sistema social requer quatro funções: 1. a função de ‘adaptação’; 2. a função ‘instrumental’; 3. a função de ‘integração social ou de controle social; 4. a função de ‘socialização’ 173 Os elementos do sistema social se apresentam como subsistemas, sendo identificados quatro por Parsons, subsistemas político, jurídico, econômico e cultural. O ponto de equilíbrio do sistema social que mantém sua ordem e coesão, portanto, impedindo sua desintegração, é um consenso social em torno de determinados valores culturais, interiorizados pelos indivíduos no processo de sociabilização vinculado ao seu status e aos papéis sociais. A matriz do pensamento de Parsons quanto ao sistema social foi admitida por Luhmann, que, no entanto, introduziu alterações nas teorias funcionalistas, como a inversão do binômio estrutura/função195 e a rejeição consecutiva das definições organicistas do conceito de função; e, ainda, a substituição gradual do conceito de ação social em favor do conceito de sistema de acordo com a sua teoria geral. O conceito de função em Luhmann se refere a “um esquema regulador de sentido que organiza um quadro comparativo de prestações equivalentes”196, o qual é mais próximo da matemática que da biologia. 195 ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ. Germano; CLAM. Jean. Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito, p. 62. Tendo em vista as diferenças em relação à teoria de Parsons, Luhmann inverte a lógica do paradigma estrutural funcionalista. Semanticamente, transmuda o binômimo, denominando-o de funcional estruturalista. Com esta simples mudança, traz novas idéias e outros elementos que tornam sua teoria única. Dessa forma, o sistema está orientado a partir de sua função, seu elementos essencial e fundamental, ... 196 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas . Op. cit., p. 164-165. 174 Nesta perspectiva, o funcionalismo supera as idéias referentes às dependências causais, que foram criticadas por seu caráter determinista. Partindo da teoria geral dos sistemas, desenvolveu-se uma concepção de dependência funcional no sentido de que uma mesma função pode ser desenvolvida de maneira equivalente por estruturas diferentes. Neste ponto, Luhmann propõe seu método através do qual a determinação das equivalências funcionais é explicada a partir da teoria dos sistemas autopoiéticos. A questão da determinação das equivalências funcionais é importantíssima, porque dela depende a ordem e a conservação do sistema, o qual tem sua existência ameaçada pelo mundo exterior (meio). Em Luhmann, esta ameaça é decorrente dos conceitos de contingência e de complexidade. Importante destacar que o sistema social é compreendido como um sistema que é, simultaneamente, de interações e de comunicação. Assim, os procedimentos desenvolvidos através do acoplamento estrutural colocam em risco a existência do sistema porque a troca de informações fica altamente comprometida pela contingência e pela complexidade da comunicação estabelecida. Dessa forma, a ordem social e a conservação do sistema dependem da redução da complexidade e da contingência, o que, 175 segundo Luhmann, é possível conseguir estabelecendo-se relações de sentido entre as ações sociais quê, por sua vez, são delimitadas pelo próprio sentido, que constitui as fronteiras do sistema. Nesse contexto, é possível visualizar a estrutura interna circularmente fechada do sistema a qual se reproduz mecanicamente. As operações básicas desta estrutura são a auto-referência, a autoobservação e a autodescrição. Este sistema, embora fechado, não se apresenta isolado, pelo contrário, sendo aberto cognitivamente para o meio de onde recebe as informações e os estímulos que alimentam seu funcionamento. Essa mesma estrutura se verifica no sistema jurídico, ou seja, o seu funcionamento ocorre de modo operacionalmente fechado e cognitivamente aberto. Pode se afirmar que, internamente o sistema jurídico opera através das relações entre as normas jurídicas de modo fechado, ou seja, auto-regulado, auto-observado e autodescritivo. A comunicação que o sistema jurídico mantém com o meio extrajurídico, contudo, não é uma relação normativa, mas sim, uma relação cognitiva. Observa-se que, no processo de acoplamento estrutural, as informações e os estímulos externos são transformados pelo sistema através do processo autoreferencial. 176 Essa transformação das informações e dos estímulos externos através da operacionalização do sistema jurídico, em seu interior, põe em questão dois problemas da maior relevância: qual é o grau de influência que as informações e os estímulos externos exercem sobre o funcionamento interno do sistema? E como conhecer as conseqüências dessa relação? A questão pragmática que se coloca em relação ao sistema jurídico se refere a que através de sua operacionalização interna ocorre sempre a auto-reprodução de normas que sofrem as influências do meio extrajurídico, embora não se possa precisar qual o grau e as conseqüências dessa influência. No entanto, apesar do sistema jurídico se caracterizar pela comunicação e interação, ele não consegue irradiar informações do meio interno para o meio externo, porque a relação interna é normativa e a relação com o meio social é cognitiva. Assim se justifica, porque a abertura cognitiva do sistema jurídico não resulta, necessariamente, na existência de comunicação com o meio social. O trabalho de Luhmann no desenvolvimento de uma teoria de grande reflexividade apresenta o estilo de uma superteoria, pois os conceitos fundamentais que formula são refletidos na própria teoria, ou 177 seja, sob a perspectiva das suas pesquisas chegou-se a constituição de um “design teórico”197 completo. 6.1.2 Complexidade, contingência e expectativa de expectativas O estudo do direito com referência aos seus aspectos extrínsecos ou, mais particularmente, com relação a teorias sociológicas, tendo em vista a análise do fato do dever ser sob o prisma da sua função, leva a questionamentos198 que podem ser considerados de caráter psicológico ou sociológico, porque as discussões que visam contextualizar o direito como sistema autopoiético parte da análise da experimentação e seu simbolismo. Esse problema é resolvido na teoria luhmaniana a partir da consideração de que é inexistente a separação total entre o meio e o sistema. É afirmado que deve-se partir de um campo da ação e da experiência sensorial, a partir de onde se constituem as personalidades e os sistemas sociais, como diferentes estruturações de complexões de sentido das mesmas experiência e ação. Tão-só diferenciação entre diversos sistemas de referência (o que, naturalmente, é facilitado 197 ROCHA; SCHWARTZ; CLAM. Op. cit. p., , 152. LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I, p. 43. Se quisermos ir mais ao fundo teremos primeiro que analisar o fato do dever ser. Não é suficiente apenas aceitar o dever ser de todas as normas como um dado básico do direito, ou supô-lo como uma qualidade, não mais definida, da experiência fática. Pode-se, ainda, indagar quanto ao sentido do dever ser, ou mais precisamente: quanto à sua função. O que afirma esse símbolo do dever ser? Qual o significado de que experiências e principalmente expectativas sejam experimentadas com essa qualidade do dever ser? Sob quais circunstâncias que essa qualificação é escolhida, e para quê? Quais temas são assim reforçados? E quais os comportamentos daí decorrentes? 198 178 pela existência de organismos humanos) estabelece a separação de personalidades e sistemas sociais enquanto estruturas distintas de assimilação da experiência, permitindo também o destaque da psicologia e da sociologia – mas o ‘material’ que constitui esses sistemas é o mesmo. Tão-só a indagação quanto à função de determinadas experiências ou ações com respeito à personalidade (ou uma determinada personalidade individual) caracteriza uma pesquisa como psicológica, ou seja, a partir da sua indagação e de determinadas premissas estruturais. No caso contrário, classifica-se a experiência e a ação no campo da sociologia quando tematizadas no contexto funcional e estrutural de sistemas sociais199. (grifo nosso) A formação do direito pode ser relacionada com a necessidade de ordenamento como base de suas estruturas e processos elementares. As questões pertinentes a esses mecanismos e sua superação estão vinculadas ao fato de que “a relação do homem com o mundo é constituída de forma sensitiva”200. As construções sistêmicas são decorrências de um elevado grau da complexidade dos problemas dos processos da experiência sensorial e da ação. Neste contexto, Luhmann fraciona a pesquisa quanto à formação do direito sob um prisma sociológico, fazendo a seguinte abordagem: 199 200 LUHMANN. Op. cit., p. 43-44. LUHMANN. Op. cit., p. 44. 179 Inicialmente (1) tentaremos captar a problemática do convívio humano sensorialmente orientado, através dos conceitos da contingência e da complexidade, tentando também mostrar como a sobrecarga aí localizada é atenuada pela formação de estruturas de expectativas. Isso também ocorre (2) através da diferenciação entre estruturas cognitivas e normativas de expectativas, dependendo se no caso de desapontamento está prevista sua assimilação ou não. Expectativas normativas são mantidas apesar da não satisfação. Daí seus problemas e suas condições de estabilização estarem vinculados (3) ao ajustamento de desapontamentos, que assegura a estabilidade no tempo, no sentido de estabelecer as condições de continuidade de expectativas. Ao lado dessas condições temporais é necessário considerar as condições sociais e materiais da generalização de expectativas. As primeiras (4) são discutidas no contexto do tema da institucionalização, e as segundas (5) no da identificação de complexões de expectativas. Tão-só a partir dessas pesquisas prévias será possível (6) definir e descrever a função do direito como congruente, ou seja, com generalização de estruturas de expectativas coerentes em todas as dimensões. Com relação a essa função (7) pode ser esclarecido em que medida o direito depende do poder físico sob diferentes condições sócio-estruturais...”.201 (grifo nosso) Esta pesquisa é orientada no sentido de colocar em questão a efetividade e segurança jurisdicional no campo do processo de execução, considerando o processualismo científico e a crise dos paradigmas da pós-modernidade. 201 LUHMANN. Op. cit., p. 44-45. 180 É admitida a possibilidade do estudo daquele problema a partir das idéias de Luhmann, partindo dos conceitos de complexidade, contingência e expectativa de expectativas. Assim, complexidade quer referir ao fato de que “sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar”202, uma vez que a capacidade de percepção, assimilação de informação, e ação atual e consciente do Homem é limitada. Embora o mundo para o Homem seja dado por suas experiências sensoriais, este mesmo mundo não está limitado pelo Homem através de suas experiências. Há, então, um espaço entre o mundo das experiências humanas e o “todo” do mundo. A contingência é entendida como “o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas;”203 desse modo existem possibilidades de ação diversas daquelas escolhidas em determinado momento diante de certas circunstâncias. A complexidade vincula-se à necessidade de escolhas através de seleções e a contingência significa o perigo de desapontamentos e a necessidade de assumir riscos. Esta situação dá origem a estruturas que absorvem e controlam o duplo problema que é a complexidade e a contingência visando a 202 203 LUHMANN. . Op. cit., p. 45. Ibidem, p. 45. 181 assimilação da experiência. Neste quadro, há premissas da experimentação e do comportamento que são selecionadas para a constituição de sistemas haja vista que possibilitam bons resultados no processo seletivo, estabilizando as possibilidades de desapontamentos por garantir certo grau de independência da experimentação diante das instabilidades surgidas em virtude de impressões momentâneas, impulsos instintivos, excitações e satisfações. As premissas da experimentação facilitam o permanente processo de seleção conseqüente da complexidade que, por sua vez, está relacionada a um horizonte de possibilidades ampliado e mais rico em alternativas. O processo seletivo é desenvolvido a determinados níveis em que ocorre a substituição das comprovações e das satisfações imediatas por técnicas de abstração de regras úteis para a seleção de formas adequadas de experimentação e de auto-certificação. O efeito da seleção neste estágio é percebido por criar e estabilizar as expectativas com relação ao mundo circundante. Na assimilação de experiências, a complexidade e a contingência se revelam como estruturas imobilizadas do mesmo modo que o mundo. As formas de seleção indicam o sentido o qual pode ter sua identidade apreendida “com coisas, homens, eventos, símbolos, 182 palavras, conceitos, normas”204. As expectativas são fundadas nas possibilidades decorrentes da seleção e, portanto, do sentido que seja apreendido. Os sentidos que podem ser atribuídos por um Homem não esgotam todas as possibilidades, sendo que outros Homens podem ter assimilações de experiências e ações originais205. Essas realidades se comunicam e se integram, logo, as possibilidades de cada indivíduo podem ser também as de todos os indivíduos. Este intercâmbio de perspectivas, representadas pelas possibilidades de cada indivíduo se inter-relacionando, ampliam os horizontes do Homem (eu) com uma redução considerável de tempo. Dessa forma, é assegurado o aumento da seletividade imediata da percepção. O aumento da seletividade imediata da percepção, contudo, tem, como conseqüência, a potenciação do risco através da elevação da contingência simples206 do campo da percepção ao nível da dupla contingência do mundo social. Isto implica diretamente no reconhecimento do alter-ego sob o prisma da igualdade quanto a liberdade de ação e ao mundo complexo e contingente em que se vive. 204 Ibidem, p. 46. Ibidem, p. 46. Nesse mundo complexo, contingente, mas mesmo assim estruturalmente conjecturável existem, além dos demais sentidos possíveis, outros homens que se inserem no campo de minha visão como um ‘alter ego’, como fontes eu-idênticas da experimentação e da ação originais. 206 Ibidem. p. 47. Frente à contingência simples erigem-se estruturas estabilizadas de expectativas, mais ou menos imunes a desapontamentos – colocando as perspectivas de que à noite segue-se o dia, que amanhã a casa ainda estará de pé, que a colheita está garantida, que as crianças crescerão ... 205 183 Nesse contexto, verifica-se o perigo dos desapontamentos. A inconfiabilidade é o resultado extremado da absorção de perspectivas estranhas. A dupla contingência opera com estruturas de expectativas complicadas e condicionadas, pois é verificada na dupla relevância da experimentação e da ação. Dessa forma, considera-se o nível das expectativas imediatas de comportamento na satisfação ou no desapontamento daquilo que se espera do outro, e os termos de avaliação do significado do comportamento próprio em relação à expectativa do outro. O comportamento do outro é indeterminado, somente podendo ser expectado diante das possibilidades da seleção, logo, as expectativas devem considerar igualmente o comportamento e as próprias expectativas do outro, uma vez que sejam desejadas soluções integráveis e confiáveis no controle da complexão de interações sociais. Da integração entre os níveis das expectativas imediatas de comportamentos (satisfação/insatisfação) e os termos de avaliação do significado do comportamento próprio em relação à expectativa do outro é localizada a função normativa – o direito. 184 A questão das expectativas das expectativas ocorre em diversos planos porque em um sistema social sempre poderá ser identificada a expectativa de alguém em relação a outrem207. Há duas alternativas para resolver o problema das expectativas das expectativas decorrentes da dupla contingência, podendo ocorrer através da adaptação social da reflexidade das expectativas208 e através da criação de “reduções, simplificações e abrandamentos” da complexidade. As reduções de complexidade são adequadas e necessárias diante da crescente complexidade e do acúmulo de situações problema nos sistemas sociais. É importante ressaltar que a complexidade e a referência mútua das expectativas têm como efeitos a elevação da complexidade e dos riscos de erros. Por isso as simplificações, através da redução da complexidade, são imprescindíveis na busca de orientação e na imunização contra os riscos de erros. Assim, as simplificações devem cumprir uma função estruturalizante. 207 Ibidem. p. 50. O fato de que as expectativas se sobrepõem, formando conjuntos imperscrutáveis de rejeições, pode ter sua raiz na causalidade dos contatos humanos. A função da complexidade dessas estruturas é a de aumentar a complexidade dos sistemas físicos e sociais, aumentar o âmbito das experiências e da ação expectáveis de forma a adequar-se a um mundo complexo, com múltiplas situações e exigências instáveis. (grifos nossos) 208 Ibidem, p. 50. A adaptação social da reflexidade das expectativas ainda pode ser possível em sistemas sociais pequenos e constantes, em famílias e grupos de amigos, nas faculdades tradicionais o u em pequenas unidades militares. 185 A redução da complexidade nos sistemas psíquicos é tratada como uma questão interna ao sujeito, ou seja, com referência às suas próprias condições de interação, o que significa a capacidade de interagir com os comportamentos do outro, assim como, com as expectativas pessoais quanto a isso, e também quanto às expectativas que o outro sujeito pode desenvolver. Dessa forma, as esquematizações interpretativas flexíveis são eficientes no controle dos riscos de erros em relação a expectativa fática e ao comportamento do outro209, portanto, criando as imunizações. A equivalência funcional entre a autocaracterização e as caracterizações do outro é o produto da imunização. A equivalência funcional visa à satisfação de necessidades psíquicas. Nos sistemas psíquicos, espera-se que as expectativas entre os sujeitos fortaleçam a identidade do próprio sistema210. Embora seja pertinente mencionar, ainda que de forma suscinta, como é operacionalizado o sistema psíquico sob o prisma autopoiético luhmaniano, a finalidade desta abordagem é restrita ao fato 209 Ibidem, p. 51. ... Tais expectativas sobre expectativas podem, com o auxílio de esquematizações altamente flexíveis, ser praticamente imunizadas contra a refutação através da expectativa fática e do comportamento do outro. ... (grifos nossos) 210 Ibidem, p. 51. ... Na medida em que essa imunização dê resultado, produz-se, para a satisfação de necessidades psíquicas, a equivalência funcional entre a auto-caracterização e as caracterizações do outro: tanto faz perceber a si mesmo ou ao outro como agressivo, por ambos os caminhos chega-se à descarga (ab-reação) das tensões psíquicas através do comportamento inamistoso. ... Evidentemente o grau de proximidade à realidade das assimilações projetivas da experimentação está fortemente relacionado à amplitude, à riqueza em alternativas, à capacidade de abstração, ou seja à complexidade do sistema psíquico correspondente. (grifos nossos) 186 de que o mundo circundante sistemicamente observado está, segundo esta concepção, vinculado ao sistema psíquico e ao sistema sociológico, através dos processos de comunicação. Os sistemas sociais estabilizam expectativas objetivas que orientam as pessoas através de generalizações que criam sínteses regulativas do sentido, as quais constituem a sua função. Assim, evidencia-se a afirmação de que “Toda convivência humana é direta ou indiretamente cunhada pelo direito”211 A função normativa do sistema social não é bem compreendida quando é enfocada apenas na visão da expectativa comportamental, o que leva a colocar a questão da segurança exclusivamente na garantia do comportamento de acordo com as expectativas. Para Luhmann, a compreensão do direito depende da assimilação de que sua função está centrada “no plano reflexivo da expectativa sobre expectativas, criando aqui segurança em termos de expectativas, à qual se segue, apenas secundariamente, a segurança sobre o comportamento próprio e a previsibilidade do comportamento alheio”212. 211 212 Ibidem, p. 7. Ibidem, p.52. 187 Nesse contexto, a diferença entre a expectativa da garantia do comportamento e a expectativa da expectativa revela-se fundamental, sobretudo, porque comumente realiza-se a inversão desses pólos, enfocando-se a questão da função normativa do sistema social na garantia de se obter os comportamentos esperados. Dessa forma, a questão da segurança jurídica é desfocada e sua referência elementar deixa de ser as expectativas das expectativas. Observa-se que as regras ou sínteses comportamentais anonimizadas funcionam como espécies de fórmulas curtas simbólicas para a integração de expectativas concretas. Assim, são reduzidos ou controlados os riscos de erros da expectativa, porque as divergências entre os comportamentos e as regras ocorrem no plano da ação alheia errônea213. Sobressalta a situação inversa, partindo-se da experimentação e do comportamento fático e sabendo-se que as regras nem sempre são cumpridas. Isto está associado a fato relativo às condições para esperar expectativas ou expectativas de expectativas, em termos fáticos. A partir da não-realização das expectativas se torna admissível a rediscussão da regra, retornando ao nível em que se procura a 213 Ibidem, p. 53. A orientação a partir da regra dispensa a orientação a partir das expectativas. Ela absorve, além disso, o risco de erros da expectativa, ou pelo menos o reduz, isso porque, graças à regra, pode ser suposto que aquele que diverge age erradamente, que a discrepância se origina, portanto, não da expectativa própria, mas da ação (alheia) errada. Nessa medida a regra alivia a consciência no contexto da complexidade da contingência. 188 adequação concreta em termos de expectativas. Desse processo resulta um entendimento mútuo que fornece as bases para um comportamento que altere, modifique ou transcrida a norma, ocorrendo a flexibilidade da estrutura normativa. A questão da mudança das estruturas normativas está relacionada com a vigência da norma214, uma vez que sua realização se torna impossível em todos os momentos e para todas as expectativas de todas as pessoas. 6.2 O DIREITO COMO ESTRUTURA DE SIMPLIFICAÇÃO DA COMPLEXIDADE É possível afirmar, com base em Luhmann, que o mundo é constituído sensorialmente, resultando da percepção como antes mencionado, um nível da realidade psicológica e outro sociológica. O ato de selecionar a percepção para atribuir uma referência à realidade é alguma coisa muito interessante, porque é revelador da função das estruturas. Diferentemente daquilo que se possa pressupor, as estruturas são modeladas para cumprir uma função que está ligada à necessidade de compreensão e explicação dos fenômenos ou objetos, como preferido. Assim, em última análise, pode ser afirmado que as estruturas como 214 Ibidem, p. 53. ... a vigência de normas reside em última análise na complexidade e na contingência do campo da experimentação, onde as reduções exercem sua função. 189 mecanismos de seleção cumprem uma função redutora da complexidade, na medida em que são criadas para assegurar a descrição de uma realidade215. Como mecanismo que cumpre uma função de seleção quanto à descrição da realidade, visando a uma simplificação do mundo, as estruturas podem ser entendidas como reducionistas em relação a todas as hipóteses e situações que desconsideram através do processo seletivo. Ou seja, para cumprir sua função as estruturas abandonam inúmeras possibilidades existentes em relação ao “todo”. Com isto, sedimentam determinadas possibilidades como expectáveis, as quais são susceptíveis de não realizár-se. Ao cumprir sua função de seleção, as estruturas criam expectativas comportamentais e assumem, por conseguinte, o risco do desapontamento. Por isso, a adequação estrutural está ligada ao problema do desapontamento. Assim, as estruturas realizam sua função quando conseguem equilibrar a relação entre uma complexidade sustentável e a carga suportável de desapontamentos. Pode ser afirmado que as estruturas para se manter sólidas não podem ignorar os desapontamentos, logo, sua manutenção fica condicionada a admissibilidade dos riscos. 215 Ibidem, p. 54. Mesmo quando as estruturas são incontestavelmente aceitas na vida cotidiana, e não são apreendidas como decisões seletivas, a análise sociológica tem que captar, em seu conceito de estrutura, a seletividade e com isso também o questionamento da auto-evidência de todas as estruturas, fornecendo assim uma descrição da realidade com um grau de complicação e de riqueza em alternatias maior que o percebido por aqueles que nela vivem. 190 Há uma relação direta entre a complexidade e os riscos, de modo que o aumento em um provoca o mesmo efeito no outro, podendo levar a “um nível insustentável de tensões e problemas de orientação”216. Essa situação é enfrentada pelo sistema social da sociedade entendido com referência ao “todo” através da admissibilidade de possibilidades contrárias de reação a desapontamentos. Isto significa que a expectativa frustrada diante de uma realidade passa por transformações para se adaptar. Nesse processo de adequação da expectativa à realidade, pode ocorrer que ela seja sustentada ou abandonada, sendo substituída por outra expectativa. No entanto, em qualquer desses casos, a estrutura será conservada, porque operacionaliza com os riscos e admite aquelas duas alternativas. O sistema social sob essa perspectiva admite dois estilos de expectativas, que serão cognitivas ou normativas217, conforme assimilem o desapontamento e se adaptem à realidade frustrada, ou não realizem o processo de absorção do desapontamento, conservando a expectativa e criando mecanismos para exigir a sua realização218. 216 Ibidem, p. 55. Ibidem, p. 56. Ao nível cognitivo são experimentadas e tratadas as expectativas que, no caso de desapontamentos, são adaptadas à realidade. Nas expectativas normativas ocorre o contrário: elas não são abandonadas se alguém as transgride. ... as expectativas cognitivas são caracterizadas por uma nem sempre consciente disposição de assimilação em termos de aprendizado, e as expectativas normativas, ao contrário, caracterizam-se pela determinação em não assimilar os desapontamentos. (grifos nossos) 218 Ibidem, p. 56. ... a diferenciação entre o cognitivo e o normativo não é definida em termos semânticos ou pragmáticos, nem referenciada aos sistemas afirmativos que as fundamentam ou à contradição entre afirmações informativas e diretivas – mas sim em termos funcionais, tendo em vista a solução de um determinado problema. Ela aponta para o tipo de antecipação da absorção de 217 191 A não-ocorrência da expectativa estruturalmente selecionada gera o desapontamento219. Esta questão se revela absolutamente fundamental, pois o problema enfocado gravita em torno do desapontamento do jurisdicionado em relação à segurança e efetividade da prestação jurisdicional220. Sob o prisma da constituição das expectativas, a sua satisfação ou não é irrelevante, porque, como já referido, ela operacionaliza admitindo os riscos do desapontamento, baseando-se, portanto, em “processos de neutralização simbólica”221. desapontamentos, sendo assim capaz de fornecer uma contribuição essencial para o esclarecimento dos mecanismos elementares de formação do direito. (grifos nossos) 219 Ibidem, p. 55. ... todas as estruturas contêm imanentemente o problema do desapontamento – e isso não só no sentido de uma insuficiência (temporária) do conhecimento, ou de uma maldade do homem (que infelizmente sempre volta a se manifestar), mas sim no sentido de uma especificação de problemas, realizada justamente pela estrutura. 220 Estas são “promessas” não cumpridas pelo processualismo científico, sendo interessante observar que no Brasil a compreensão do processo sob a ótica do praxismo e do procedimentalismo não chegou a ser abandonada. Com isto quer-se afirmar que, embora, o Código de Processo Civil de 1973 tenha adotado uma sistemática de compartimentação dos processos e um rigor característico no tratamento de cada um dos institutos do procedimento, por questões as mais diversas possíveis, podendo, mencionar-se uma em especial, qual seja, o fato de que em 1973 o Brasil passava por um momento histórico marcado pela supressão das liberdades e garantias fundamentais, não houve, por assim dizer, uma efetivação das novas práticas trazidas pelo Código então promulgado. No momento atual da história brasileira parece haver consenso quanto ao fato de que o Poder Judiciário, como outras instituições integrantes do Estado, não usufruíam de plena autonomia e liberdade durante o período da “ditadura militar iniciada em 1964”. Dessa forma, a interpretação e a aplicação do Código de Processo Civil de 1973 ficaram parcialmente prejudicadas, pois, os pressupostos fundamentais da técnica calcada na ciência são a liberdade e a autonomia, os quais, como antes mencionado, estavam em regime de contenção. Desde então, tem existido um conjunto de regras baseadas no processualismo científico e, paralelamente, têm sido adotadas práticas procedimentais incompatíveis com aquelas regras, na medida em que o “Estado” não demonstrou ao longo deste período o interesse em ver o Poder Judiciário operacionalizando com os paradigmas da ciência. Um fato mais danoso ainda pode ser verificado ao observar que no Brasil se tem lançado mão dos aspectos particulares do processualismo científico para conturbar o procedimento e tornar a prestação jurisdicional mais complexa220. Em conclusão às observações dos parágrafos anteriores, deve ser afirmado que no Brasil a situação do direito processual está comprometida por um elevado grau de desapontamento devido à existência de um evidente descompasso entre as regras procedimentais, os princípios processuais contidos na Constituição Federal e no Código de Processo Civil e as condutas adotadas pelos profissionais da área jurídica, sejam advogados, integrantes da magistratura ou membros do ministério público. 221 Ibidem, p. 57. 192 A partir da questão do desapontamento, observa-se que “as normas são expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafáticos”222. Isto quer dizer que não há uma relação direta entre fatos e normas. O sentido da norma tem como implicação ou conseqüência que sua vigência não é condicionada à sua satisfação fática. A vigência da norma é institucionalizada. O símbolo do dever-ser expressa principalmente a expectativa dessa vigência independente da realização fática da norma. Não se discute a satisfação fática ou não da norma. O sentido e a função do dever-ser, por conseguinte estão vinculados à vigência da norma que, por sua vez, não está condicionada à satisfação fática ou não das expectativas que o dever-ser expressa. O sentido do dever-ser orientado de modo independente quanto à sua realização fática ou não, não é menos fático que o sentido do ser223. Pode concluir-se que o fático abrange o normativo. Por isso a contraposição entre o fático e o normativo deve ser abandonada, porque o normativo e o fático integram igualmente o campo das expectativas. Não é adequado excluir o dever-ser/normativo do campo das expectativas. O oposto adequado ao normativo é o cognitivo. A opção coerente entre o cognitivo e o normativo se relaciona com a maneira que 222 LUHMANN, p. 57. 193 é tratada a questão do desapontamento. Assim, a compreensão a respeito da função da diferenciação entre o cognitivo e o normativo está no fato de que criam duas estratégias diferentes, mas com funções equivalentes para resolver o problema do desapontamento. Estas estratégias são a assimilação ou não-assimilação do desapontamento. Embora estas sejam orientações contrárias, preenchem a mesma função, qual seja, resolver o problema do desapontamento. A diferenciação entre o normativo e o cognitivo não deve traduzir uma oposição à priori entre ser e dever-ser. A função dessa diferenciação está ligada à necessidade de adaptação e continuidade após o desapontamento. As expectativas cognitivas e normativas interagem para assegurar duas estratégias diferentes, mas funcionalmente equivalentes diante do desapontamento. Dessa forma, a partir de orientações contrárias pode ser realizada a mesma função, encontrando-se aí a possibilidade do sucesso na superação do desapontamento. A partir da diferenciação entre as expectativas cognitivas e normativas, a sociedade pode resolver o problema do desapontamento através da adaptação à realidade ou da manutenção das expectativas. Poderão ser institucionalizadas expectativas comportamentais através da 223 Toda expectativa é um fato, seja esta satisfeita ou não. Realizado ou não o comportamento expectado, a expectativa não deixa de ser um fato. 194 adaptação da expectativa à realidade da ação, assim como poderão ser articuladas as expectativas ao nível normativo tendo em vista fatores ligados à segurança e à integração social das expectativas. Essa dupla estratégia reduz o risco dos desapontamentos em todas as estruturas. O risco, neste caso, é localizado na forma de encaminhamento dos problemas. Assim, a complexidade e a contingência se tornam sustentáveis. Com a crescente complexidade da sociedade, crescem os riscos estruturais, que devem ser prevenidos através de uma maior diferenciação entre as expectativas cognitivas e as normativas. A esse respeito, observa-se que a diferenciação entre o cognitivo e o normativo é uma decorrência do desapontamento. Por sua vez, o nível dos riscos dos desapontamentos fica controlado através do encaminhamento do problema para o nível cognitivo ou normativo. Estes procedimentos ocorrem simultaneamente, através do desencadeamento que atende a uma ordem a qual pode ser descrita da seguinte forma: Expectativa constituída no sistema social → desapontamento → encaminhamento do problema → expectativa cognitiva ou expectativa normativa → redução dos riscos estruturais em face da assimilação ou não da frustração quanto à expectativa. 195 O quadro ilustra as situações corriqueiras, nas quais as estruturas são mantidas a partir de decisões a posteriori em relação às expectativas e ao risco e problema dos desapontamentos. Luhmann constata quê, mesmo após este procedimento, as expectativas podem permanecer no campo do desapontamento, pois não há garantias de que o encaminhamento do problema resulte como esperado. Nessa situação e diante dos casos em que seja inviável abdicar-se da expectativa pelo impacto que isto possa representar sobre as realidades constituídas, surge o Direito como um mecanismo simplificador da complexidade e redutor da contingência, porque, como estrutura normativa a priori, ele estabiliza um nível de expectativas que deverão ser realizadas, ficando os sujeitos de direitos vinculados ao seu cumprimento, através da autorização legal224 concedida ao interessado para exigir do Estado a intervenção naquela situação a fim de assegurar, ainda que através da coerção, a realização daquela expectativa assimilada pelo Direito. Há casos em que a diferenciação entre o nível cognitivo e normativo é inviável diante da especificidade das expectativas comportamentais, formando-se uma unidade coesa a qual não é captada 224 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Direito Quântico, p. 268. A norma jurídica se define: imperativo autorizante. Ela é um imperativo por que é um mandamento. E é autorizante porque autoriza a reação contra a ação que a viola. 196 pelo Direito225. Surgem construções alternativas para resolver o problema dos desapontamentos em relação àquelas situações nãoevidentes. Assim é utilizado o critério da determinação a priori como forma de diferenciar o nível cognitivo do nível normativo, decidindo de antemão sobre a manutenção ou o abandono das expectativas desapontadas226. Há riscos elevados nesses casos, o que exige estratégias para sua minimização, o que é obtido através de um momento estranho ao estilo da expectativa se introduzindo a possibilidade do comportamento oposto. “A solução do problema reside na admissão de uma contradição, que deve persistir como tal, de forma latente.”227 No caso das expectativas cognitivas esta contradição consiste em que não há uma imediata e necessária adaptação ao desapontamento, mas, pelo contrário, através da referência a hipóteses adicionais e de explicações oficiais é mantida a expectativa e o desapontamento é interpretado como228 uma exceção. 225 Ibidem, p. 60. Nos casos crassos de repetidas transgressões graves, opta-se tipicamente pela saída da declaração do ator desapontador como doente mental, excluindo-o assim da comunidade dos sujeitos humanos, suas experimentações, suas expectativas e suas visões mundo. Isso demonstra que transgressões às expectativas nessa esfera freqüentemente são tratadas como transgressões à verdade, como incapacidade para reconhecer o mundo – um sistema nítido de que não se diferencia os estilos cognitivo e normativo das expectativas. 226 Ibidem, p.62. É tão-somente nessa esfera das expectativas não auto-evidentes que surge uma diferenciação entre expectativas cognitivas e normativas, essa diferenciação como que substitui a auto-evidência. 227 Ibidem, p.63. 228 Ibidem, p. 63. O esquema regra/exceção, a concepção de desdobramentos normais e irregulares, e ainda a construção de uma complicada visão de mundo, sustentada por hipóteses básicas abstratas e quase irrefutável, garantem um alto grau de imunização perante desapontamentos também no caso de expectativas cognitivas. 197 Esta situação é verificada nos casos em que a expectativa cognitiva é estruturalmente central. As expectativas normativas por sua vez podem assimilar aspectos da realidade quando o desapontamento for reiterado e referir-se a aspectos periféricos da estrutura normativa.229 Admitidas essas contradições através das quais ora as expectativas cognitivas interagem com a realidade, preservando o padrão de comportamento expectado, através da admissibilidade de exceções; ora as expectativas normativas flexibilizam admitindo a assimilação de comportamentos diversos daqueles esperados, tem-se os casos atípicos ou irregulares, que são eficazes no controle das situações de risco de desapontamentos, assegurando, através de estratégias funcionalmente equivalentes, o controle da complexidade. Desta forma o padrão normal ou de regularidade dos comportamentos em relação às expectativas cognitivas ou normativas realizam o controle dos riscos por meio da admissibilidade da contradição através da utilização de comportamentos contrários àqueles expectados como normais, ou seja, a não assimilação do desapontamento 229 Ibidem, p. 63. ... a elasticidade da formulação de algumas normas permite procedimentos adaptativos – por exemplo no caso do tão discutido aperfeiçoamento da legislação através da jurisprudência. Existe, portanto, mesmo no direito, uma assimilação apócrifa, e nas sociedades muito complexas com direito positivo temos até mesmo mudanças legais do direito, assimilação legitimada. (grifos nossos) 198 pela expectativa cognitiva e a aceitação de um comportamento diverso daquele a priori exigido através da expectativa normativa. Identificados os estilos cognitivo e normativo quanto aos comportamentos expectados são aceitas contradições como um recurso no controle dos riscos estruturais diante da alta complexidade e da necessidade da superação dos desapontamentos para garantir e preservar o sistema. Pode ser afirmado que são constituídos três modos de combinação entre as expectativas visando à minimização dos riscos estruturais e a superação dos desapontamentos. Até aqui foi tratada da questão do entremeamento indiferenciado e da subordinação de possibilidades contrárias. Um terceiro modo de combinação entre as expectativas se refere às expectativas sobre expectativas as quais foram abordadas de forma geral no item 6.1.1, deste capítulo. 6.3 REFLEXIVIDADE ENTRE EXPECTATIVAS COGNITIVAS E NORMATIVAS A compreensão sobre a formação e a função do direito sob a perspectiva luhmaniana é centrada na reflexividade entre expectativas, as quais no, campo sociológico, poderão ser cognitivas ou normativas. Para Luhmann, é na questão da expectativa sobre expectativas que é 199 criada a idéia de segurança, entendida como controle dos riscos quanto aos desapontamentos. Assim, a questão que envolve os comportamentos em relação às expectativas normativas e cognitivas, no que se refere ao desapontamento será abordada quanto à possibilidade de se ter expectativas sobre expectativas. Nesse sentido, são estabelecidos elos entre estilos opostos, “formando cadeias de expectativas, que acomodam ao mesmo tempo possibilidades de assimilação e possibilidades de nãoassimilação”230. O quadro ilustra como determinada expectativa pode corresponder ou não àquela expectativa que o sujeito tem em relação ao que se espera dele. Cognitivo ↔ cognitivo Cognitivo ↔ normativo Normativo ↔ cognitivo Normativo ↔ normativo Neste caso, observa-se a existência de quatro possibilidades em virtude da dupla reflexividade (cognitivo/normativo), sendo que o número de possibilidades cresce conforme a freqüência da reflexividade. 230 Ibidem, p. 64. 200 A reflexividade se relaciona com a reciprocidade das expectativas dos comportamentos dos sujeitos. Assim, as expectativas, sejam elas normativas ou cognitivas, de X em relação a Z criam determinadas expectativas (cognitivas/normativas) de Z em relação às próprias expectativas que X tem em relação ao seu comportamento. Dizse, então, que as expectativas (cognitivas/normativas) de Z em relação às expectativas (cognitivas/normativas) que X tem em relação ao seu comportamento são expectativas sobre expectativas. A diferenciação entre as expectativas cognitivas e normativas decorre de uma opção que foi objeto de uma expectativa constituída através do convívio humano231. Esperar e diferenciar comportamentos em nível cognitivo ou normativo está relacionado com determinadas escolhas humanas232 a partir das quais são criadas as expectativas233. “É só a partir dessa base que podem formar-se expectativas especializadas no estilo normativo e na sua manutenção, mesmo no caso de desapontamentos.”234 231 Ibidem, p. 58. A separação entre ser e dever ser, ou entre verdade e direito não é estrutura do mundo dada a priori, mas uma aquisição da evolução. 232 Há aspectos comportamentais no convívio humano que são considerados evidentes, tendo em consideração fatores de ordem história e cultural. Poderia mencionar-se o caso do cumprimento amistoso entre as pessoas conhecidas, praticamente, todos os povos têm o hábito de estabelecer saudações entre as pessoas ao se encontrarem e ao se despedirem, isto não exige um processo complexo de diferenciação. Os comportamentos diferentes desse padrão serão considerados esquisitices ou em casos graves até transtornos mentais. A estrutura de diferenciação entre os estilos cognitivo e normativo surge para resolver o problema da não-evidenciação entre expectativas. 233 Ibidem, p. 65. Uma diferenciação entre os estilos cognitivo e normativo das expectativas só se estabelece se a própria opção por um desses estilos é expectável só assim ela torna-se socialmente regulada, só assim ela pode ser prevista. (grifos nossos) 234 Ibidem, p. 65. 201 As expectativas normativas submetem às regras normativas, ou seja, se X tem uma expectativa normativa em relação a Z, este (independentemente de qual seja sua expectativa sobre a expectativa de X) será submetido à realização do comportamento expectado normativamente. Nisto consiste a institucionalização da opção pelo estilo normativo, não haverá a assimilação de um comportamento diferente, ainda que o sujeito não pretenda submeter-se, serão criados meios para exigir-lhe aquele comportamento. A realidade social criada sociologicamente não é estática, pelo contrário, ela está permanentemente susceptível a mudanças. Igualmente mutável é a forma de encaminhar os problemas quanto aos estilos das expectativas. Uma expectativa normativa pode ser encarada pela comunidade como uma expectativa cognitiva, dependendo da situação de tempo e lugar. Desse modo, as expectativas sobre as expectativas são distorcidas para evitar conflitos, “é necessário, nesses casos, que se espere cognitivamente que os outros esperem normativamente que se tenha expectativas cognitivas”235. A necessidade da institucionalização da opção quanto às expectativas normativas se refere, portanto, aos efeitos em relação ao convívio humano quanto às escolhas socialmente reguladas como situações diferenciadas no que tange aos desapontamentos. 202 Relativamente às expectativas cognitivas de expectativas o ponto central é a assimilação individual do comportamento expectado, independentemente do aspecto da regulamentação social. Havendo uma reformulação das expectativas pelos outros membros do grupo, o indivíduo está em condições de adaptar-se. No caso das expectativas cognitivas sobre expectativas o indivíduo não estabelece normas, mas adapta-se às expectativas do grupo236. Observa-se que através da reflexividade entre expectativas é operacionalizada a diferenciação entre os estilos cognitivo e normativo. Nesse processo, é localizada a formação do direito, na medida em que através da seleção entre expectativas de expectativas vão se constituindo os padrões possíveis de assimilação e aqueles insusceptíveis de admitirse a adaptação a um comportamento diferenciado daquele expectado de onde se origina o direito. O direito em Luhmann é o resultado de um processo de comunicação237 que ocorre tendo como referências a necessidade da redução da complexidade e da contingência, o que se verifica através de 235 Ibidem, p. 65. Ibidem, p. 65. ... por exemplo quando é promulgada uma nova lei, uma decisão jurídica inesperada, ou quando se alteram os hábitos normatizantes da vida cotidiana, quando a moda muda, a moral se liberaliza. 237 Ibidem, p. 68. Muitas transgressões às normas são superadas, ou despidas de suas implicações simbólicas, apenas por serem ignoradas. Isso ocorre tanto nos pequenos contextos, quanto nos mais abrangentes. Esse ignorar tem em vista não os fatos, mas a norma ele a protege contra informações discrepantes que a questionam, e protege aquele que se desaponta da obrigação de reagir. Essa proteção está baseada na circunstância de que as normas se enraízam em comunicações, e não em fatos. 236 203 estruturas seletivas de expectativas, as quais, por sua vez, operacionalizam com as idéias da assimilação ou não do desapontamento frente ao comportamento expectado. No primeiro caso, têm-se as expectativas cognitivas, as quais se situam no plano do interesse individual e não geram para o sujeito a possibilidade da reação do Estado no sentido de coagi-lo a adotar o comportamento esperado. As expectativas normativas, por sua vez, vinculam-se a regulamentação social, não assimilando os comportamentos divergentes, os quais são rejeitados, em determinados casos sendo ignorados e, em situações graves, ensejando a interferência do Estado através da autorização para que o sujeito desapontado possa exigir o comportamento normatizado. 6.4 O PARADIGMA DA AUTOPOIESE NO PROCESSO DE EXECUÇÃO Sem explorar em profundidade a teoria autopoiética em Luhmann, mas com fundamento em seus conceitos estruturais básicos e principalmente após ter-se demonstrado que o direito se origina no processo comunicacional formulado através dos comportamentos humanos em face dos desapontamentos. Considerando, ainda, que a função estrutural do direito é a redução da complexidade, podem se identificados os elementos que traçam o perfil de um novo paradigma 204 para o direito processual e, mais especificamente, para o processo de execução. Através do processo seletivo dado em decorrência da experimentação, referida a análise e observação prática dos fenômenos, e dos desapontamentos no campo do sistema social foram realizadas opções quanto a não-assimilação de determinados comportamentos originando-se daí a regulamentação social e o próprio direito. Seletivamente, optou-se por um direito como mecanismo de regulação, pois a ordem constituída impositivamente a partir da experiência obtida com os desapontamentos gerados pela autodefesa pode levar à constatação segundo a qual a força como instrumento básico de organização grupal é insuficiente. Foi admitido um nível de regulação segundo a expectativa de que alguns elementos do grupo poderiam representar as mesmas expectativas que o grupo em sua totalidade. Observa-se que ao longo do processo de consolidação das relações humanas socialmente até a cristalização do Estado moderno sob a égide da idéia da soberania nacional e ainda mais recentemente sob o desenvolvimento da teoria dos Estados comunitários, com a formação dos blocos de desenvolvimento como ocorre na União Européia, a complexidade e a contingência foram crescentes e acompanhadas pelos 205 riscos estruturais, o que teve como conseqüência, a elevação dos casos de desapontamentos quanto às expectativas cognitiva e normativa. Foi desvelada a expectativa da representação da comunidade organizada politicamente. É admitida a hipótese de que a representação é restrita aos grupos que puderam articular-se economicamente na conquista do poder político. Logo, o poder econômico e o poder político se tornaram indissociados. Nesse contexto, o direito passou a representar as expectativas daquela camada da coletividade ascendente ao Poder, que conquanto economicamente seja mais significativa, numericamente é menor. A expectativa da segurança e da efetividade erigida no Século XVIII representa a opção da burguesia que ascendeu ao poder e criou estruturas para garantir a manutenção do seu prestígio econômico e político. O direito assimilou tais idéias, desprestigiando o caráter da “justiça” como meio para equilibrarem-se as forças que estão em jogo no cenário social, promovendo o desenvolvimento eqüitativo dos indivíduos e dos povos. O direito processual que existe acoplado estruturalmente ao direito como sistema constituído sociologicamente, durante todas as suas fases de desenvolvimento, recebeu informações, comunicando-se com os demais sistemas, como o político e o econômico, aos quais está 206 acoplado. O processo seletivo de expectativas sobre expectativas sob um prisma cognitivo ou normativo está corrompido, porque foi desarticulado historicamente o viés que unia os indivíduos integrantes das coletividades as quais foram se estruturando politicamente até a concepção dos Estados moderno e contemporâneo. O direito representa as expectativas normativas daquela faixa da comunidade que ascendeu ao poder político ou/e econômico. Disso resulta uma univocidade normativa legal. Por outro lado, há uma pluralidade de experimentações de normas as quais são consideradas como desapontamentos causadores de insegurança entre os ascendentes ao Poder, mas quê, no entanto, são os comportamentos expectados em relação àquela outra camada politicamente representada de forma deficiente, na medida em que suas experiências traduzem expectativas diferentes daquelas constituídas entre os ocupantes dos Poderes econômico e político. Com isso não se pretende afirmar que não existam os riscos estruturais e os desapontamentos. Eles existem em relação a um modelo funcionalmente fechado, porque este não admite que o processo de formação do direito é verificado no sistema de experimentação social, entre expectativas cognitivas e normativas, conforme a assimilação ou não dos desapontamentos. 207 Através da análise da autopoiese luhmanniana, pode ser afirmado que os desapontamentos quanto à segurança jurídica na esfera do processo de execução se restringem às camadas específicas dos grupos sociais ocupantes dos poderes econômicos e políticos. Esta afirmação se refere ao fato de que, como já mencionado, a segurança jurídica se vincula ao controle dos riscos quanto aos desapontamentos, portanto, estando ligada a segurança econômica e política no sentido que lhe empregou a burguesia ascendente ao poder com a revolução industrial e com o iluminismo, ou seja, a garantia da permanência do status quo vigente238. Dessa forma, a segurança jurídica está relacionada com a garantia de retorno do investimento e do capital e com a certeza da permanência no poder. Caberia ao Pode Judiciário, nestes termos, assegurar que os bens deslocados para quaisquer fins pudessem retornar à sua origem ainda com rendimentos. A camada da população que não dispõe de bens para integrar aquele grupo de investidores (detentores dos poderes econômico e/ou político) não pode sofrer de fato o desapontamento da insegurança jurídica, porque não tem a expectativa quanto à manutenção de uma situação que efetivamente não chegou a 238 No Direito Civil a força vinculativa dos contratos através do pacta sunt servanda é ilustrativa da importância que foi atribuída a autonomia privada da vontade, como liberdade para contratar e obrigatoriedade em se executar o contratado. 208 experimentar239. Ressalta-se que não há o objetivo de discutir a questão referente ao direito quanto ao recebimento, mas, sim, os meios para a consecução deste. Questão completamente diversa é a da efetividade da jurisdição. Neste caso, as expectativas estão sendo desapontadas entre todas as camadas dos grupos sociais. Identifica-se este problema no fato de que o direito processual não tem sido estudado como um sistema autopoiético, levando-se em consideração a questão do acoplamento estrutural. Tem-se um processo com um bom nível técnico, mas, demasiadamente oneroso para um Estado endividado interna e externamente como é o caso do Brasil. Nesse tocante, é desconsiderado o ambiente econômico em que a técnica é aplicada. O Estado está consolidando sua estrutura democrática, onde deve haver a harmonia e independência entre os poderes240. Nem sempre, contudo, essa estrutura funciona como deveria, podendo ser identificado um determinado grau de entrelaçamento institucional entre os Poderes 241, sobretudo, do Poder Executivo em relação aos 239 Quando o setor financeiro, o comércio ou mesmo a indústria atuam assumem riscos que procuram cobrir com a aplicação de mecanismos de correção. O custo operacional em última análise acaba sendo rateado entre o consumidor (juros altos) e a sociedade (elevada carga tributária). 240 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 241 Ibidem. Art.84 . Compete privativamente ao Presidente da República: XIV – nomear após aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, ...; XVII – nomear os magistrados, nos casos previstos nesta Constituição, e o AdvogadoGeral da União. 209 poderes Legislativo e Judiciário 242. Esta situação acaba se reproduzindo nas relações informais que existem entre os Poderes da República. Algumas ilações são possíveis a partir daquelas premissas 243 constituídas com referência ao acoplamento estrutural, o Poder Judiciário não consegue realizar satisfatoriamente a prestação jurisdicional, porque não há a disponibilidade de recursos econômicos suficientes para estruturá-lo adequadamente, ampliando as vagas para os cargos de servidores público, juiz e membro do Ministério Público, bem como quanto ao aparelhamento físico das instalações e equipamentos necessários para uma prestação de serviços satisfatórios. Como mencionado, os procedimentos inerentes ao processo brasileiro são sofisticados, com um elevado número de formalidades as quais requerem uma organização mais complexa e, portanto, mais onerosa. 242 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal,. p. 24. No atual sistema constitucional brasileiro, temos realmente uma Corte Constitucional federal, consubstanciada no STF, ... Com efeito, em países que possuem tribunais constitucionais, como por exemplo a Alemanha, esse tribunal é órgão constitucional de todos os Poderes, situando-se no organograma do Estado ao lado do Executivo, Legislativo e Judiciário, não sendo, portanto, órgão do Poder Judiciário e nem se situando acima do Poderes Executivo e Legislativo. É formado por pessoas indicadas pelos Três Poderes, com mandato certo e transitório, vedada a contínua ou posterior recondução. O tribunal constitucional é, pois, suprapartidário. Nesse país, o Tribunal Federal Constitucional (Bundesverfassungsgericht - BVerfG), a mais alta corte do país, é composto por duas câmaras com oito juízes cada uma (§ 2º , BVerfGG). Três juízes de cada câmara, no total, portanto, de seis, devem ser eleitos dentre os magistrados que integram as mais altas cortes do país (um dos cinco tribunais superiores) e que tenham estado ativos, no mínimo, por três anos (§ 2º , BVerfGG). O mandato dos juízes da Corte Constitucional federal alemã é de doze anos. 243 A referência é a aceitação das seguintes afirmações: há uma relação direta entre a tecnicidade do processo e a sua onerosidade; o Brasil é um país endividado; a democracia brasileira está em fase de estruturação. 210 Quanto à situação dos custos da viabilização econômica operacional do processo, duas possíveis alternativas podem contornar o problema. Ou constitui-se um modelo procedimental simplificado, sob a ótica da economia, e então, reforma-se o processo, eliminando-se as formalidades; ou, se investe recursos econômicos em quantidade suficiente para viabilizar a aplicação eficiente dos procedimentos que hoje integram o processo. Pensar um modelo simplificado para o processo, considerando os custos econômicos de sua realização para os poderes públicos implica em admitir a alteração de alguns valores que foram prestigiados pelo positivismo clássico e incorporados pelo processualismo científico. Dessa forma a natureza jurídica publicística do processo poderia ser flexibilizada se atribuindo às partes a obrigação quanto à prática de determinados atos procedimentais. Nesse sentido, pode ser mencionada a remessa dos atos de comunicação processual, atualmente, estes são da responsabilidade do Poder Judiciário, através dos servidores oficiais de justiça, por correspondência com aviso de recebimento, ou através da publicação nos diários oficiais. Poder-se-ia pensar um sistema procedimental em que as varas e secretarias dos juízos expedissem os mandados de citação, intimação, penhora, etc.; cabendo a responsabilidade quanto ao seu cumprimento às próprias partes 211 interessadas, estabelecendo-se regras quanto a isto. No mesmo sentido, se reduzir-se-iam as hipóteses de cabimentos dos recursos. O processo tem uma trajetória espiralada durante a cognição, indo e vindo concluso ao juiz a cada requerimento que exija uma decisão interlocutória. Todos estes atos poderiam ser realizados pelos auxiliares do juízo, escrivão, escrevente, técnico judiciário, enfim, a remessa ao juiz seria restrita para as audiências e para a sentença. Estas considerações têm o objetivo de demonstrar que há alternativas ao modelo vigente. Há inúmeros aspectos procedimentais que se alterados levaria a agilização econômica do processo. Deve, contudo, ser avaliado o grau de riscos estruturais que tais medidas introduziriam quanto às garantias asseguradas através do processo de natureza publicística, portanto, realizado no âmbito do Poder Judiciário. A questão da destinação de verbas orçamentárias em maiores quantidades a fim de investir-se na melhoria geral quanto aos serviços prestados pelo Poder Judiciário é extremamente complexa e foge aos propósitos deste trabalho. Deve ser mencionado, contudo, que o Estado deve priorizar a prestação jurisdicional porque as democracias se consolidam através das instituições. Neste sentido, o Poder Judiciário assume uma notável significação, uma vez que lhe compete precipuamente dar aplicabilidade 212 às leis o que significa que no Estado Democrático de Direito244 a vontade da lei se concretiza através do juiz245. É possível argumentar-se que todos os setores das atividades estatais estão penalizados pela insuficiência de recursos econômicos, mas sobre tal alegação deve pesar o fato de que a efetividade da prestação jurisdicional se caracteriza como um interesse público246 ou geral247 primário na medida em que todos os atos jurídicos se submetem a apreciação do Poder Judiciário. O enfretamento quanto ao problema do desapontamento com a prestação jurisdicional deve ser observada sob a ótica da adoção de estruturas seletivas de expectativas, as quais reduzam a complexidade e a contingência. O direito em si mesmo se constitui em uma estrutura de 244 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art.1º.. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 60-61. O intérprete autêntico completa o trabalho do autor do texto normativo; a finalização desse trabalho pelo intérprete autêntico, é necessária em razão do próprio caráter da interpretação, que se expressa na produção de um novo texto sobre aquele primeiro texto. Aqui me permito lembrar que sempre foi assim independentemente de cogitarmos de ‘criação’ de direito pelo juiz tem de ser assim. ... afirmo a ‘criação’ de direito pelos juízes como conseqüência do próprio processo de interpretação. ... a interpretação é transformação de uma expressão (o texto) em outra (a norma), sustento que o juiz ‘produz’ o direito. 246 BORGES, Alice Gonzalez. Interesse Público: um conceito a determinar. p. 113. ... em uma ordem democrática, se relacionam a parte com o todo, isto é, o interesse individual dos cidadãos e o interesse público (do bem comum, ou interesse geral, ou que outro nome tenha). 247 Ibidem. p. 112. ANDRÉ DEMICHEL prefere, à denominação corrente de interesse público, a de interesse geral, justificando: ‘O vocábulo público se mostra aqui ambíguo, na medida em que poderia fazer pensar em um interesse ou uma utilidade próprias do Estado. O termo interesse geral expressa melhor a idéia, que é do Estado burguês, segundo a qual existe um interesse comum a toda a sociedade, pelo qual o Estado é o responsável. Para DEMICHEL, a noção de interesse geral – que, irreverentemente, qualifica de illusion idéologique, a servir de cobertura exata para todas as finalidades da atuação administrativa e para todas as técnicas jurídicas que ela pode utilizar para consegui-lo – admite duas concepções possíveis: ou pode ser concebida como um interesse específico da sociedade, distinto, por sua própria essência, dos interesses particulares; ou, mais modestamente, como uma arbitragem entre os diversos interesses individuais (este é, entre outros, segundo assinala, o pensamento de GEORGES VEDEL e o de JEAN RIVERO) (grifos nossos) 245 213 simplificação, a qual, no entanto, em face da elevação da complexidade da vida contemporânea, exige a adoção de medidas específicas no âmbito do sistema legal248 a fim de lhe garantir a preservação da estrutura que se encontra demasiadamente comprometida. No processo de execução, discute-se a efetividade em termos pragmáticos e sem maiores preocupações técnicas ou científicas. Diferentemente em relação ao processo de conhecimento, tem havido um elevado grau de abstração teórica, sempre com vista às garantias processuais relacionadas com o devido processo legal. Em relação à execução, houve aqueles que lhe negaram o caráter jurisdicional e a autonomia, reservando-lhe um papel complementar ao processo de conhecimento, este sempre identificado com o mais alto nível teórico do processualismo249 250. 248 A Lei 9.307/96 (Lei de Arbitragem) representa uma tentativa de introduzir-se no sistema legal uma alternativa para a redução da sua complexidade crescente. No mesmo sentido foi promulgada a Lei 9.958/2000 a qual criou o Título VI-A da Consolidação das Leis do Trabalho estabelecendo as normas básicas para a constituição e funcionamento das Comissões de Conciliação Prévia de âmbito trabalhista. 249 CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil, v. 1. p. 221-222. Uma exigência de ordem me aconselha considerar como rigorosamente distintas a função jurisdicional e a função processual. A segunda é o genus e a primeira, a species. Nem todo processo implica exercício de jurisdição, e sim tão apenas aquele cuja finalidade será explicitada no primeiro dos capítulos em que este título se divide. Especialmente, é processo, e não jurisdição, a execução forçada. ... O processo executivo e, em geral, os outros tipos de processo permaneceram até ontem mesmo na sombra, e desse modo a noção de jurisdição absorveu integralmente a noção do processo. Mas se a história impõe à ciência seus fatos, não deve lhe impor nem as idéias nem as palavras. Apenas assim pode-se avançar na ciência. A sinonímia entre função processual e função jurisdicional implica uma imperfeição da linguagem e do pensamento, que a ciência do processo deve corrigir, se a primeira exigência de seu progresso é a pureza dos conceitos e a propriedade dos vocábulos. (grifos nossos) 250 Ibidem. p. 289. ... elementares considerações para mostrar, desde já, o conteúdo diverso e, quase diríamos, a diversa matéria do processo jurisdicional e do processo executivo. Não seria temerário sublinhar esta diferença por meio da antítese entre a razão e a força: na realidade, aquela é um instrumento do processo jurisdicional e esta, o do processo executivo. Destarte, compreende-se também a subordinação normal do segundo ao primeiro até que não se tenha estabelecido a razão, não deve ser usada a força. Mas se compreende, por sua vez, a necessidade do processo executivo junto ao processo jurisdicional, para assegurar a ordem jurídica: se a razão não serve por si só, terá que usar a força. (grifos nossos) 214 Apesar das construções teóricas no sentido de evidenciar que o processo de execução é autônomo e tem caráter jurisdicional, portanto, estando integrado à teoria geral do processo no Brasil, verifica-se uma tendência a localizar e restringir o desapontamento com a efetividade da prestação jurisdicional nos procedimentos inerentes à execução. Desse modo, não são considerados nos estudos que visam às reformas processuais os aspectos da complexidade e contingência, bem como do acoplamento estrutural do processo em relação ao processo de conhecimento, ou mesmo, relativamente à teoria geral do processo. Deve ser mencionado que a crítica ao reformismo processual não se localiza nas iniciativas em si mesmas, mas na ausência de referências claras quanto às expectativas normativas, aqui identificadas aos valores que devem presidir o modelo da prestação jurisdicional no Brasil, assim como os objetivos almejados com a configuração desse novo modelo. Sabe-se que a resposta imediata está vinculada às idéias da efetividade sob a orientação da simplicidade e celeridade na entrega do bem da vida ao jurisdicionado251. Não se considera, contudo, adequado que o sistema legal seja modificado estruturalmente, sem que sejam identificadas as causas reais dos problemas que lhe são afetos. 251 CHIOVENDA, Giuseppe.. Instituições de Direito Processual Civil., v. 1. p. 67. A vontade da lei tende a realizar-se no domínio dos fatos até as extremas conseqüências praticamente e juridicamente possíveis. Por conseguinte, o processo deve dar, quanto for possível praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir. (grifos nossos) 215 Entende-se igualmente que seja fundamental a discussão prévia sobre os meios utilizados para controlar os riscos estruturais decorrentes dos desapontamentos. Somente dessa forma se acredita que possa ser produzido um resultado efetivo quanto à redução da complexidade e contingência, com a conseqüente produção dos efeitos esperados quanto à efetividade da prestação jurisdicional. O funcional estruturalismo de Niklas Luhmann, sintetizado na teoria autopoiética dos sistemas sociais oferece uma alternativa metodológica viável para o estudo e análise dos problemas referentes à insatisfação dos jurisdicionados quanto aos resultados obtidos através da prestação jurisdicional. Verifica-se que, através dos sistemas autopoiéticos, podem ser abordados os aspectos intrínsecos e extrínsecos do objeto de estudo, no caso, é possível, sem distorções, avaliar o processo de execução em relação às questões que não estão vinculadas diretamente ao direito processual, mas que afetam drasticamente a entrega da prestação jurisdicional. 216 7 PANORÂMICA HISTÓRICA DO DIREITO PROCESSUAL Os estudos a respeito da constituição histórica do direito processual estão ligados a duas questões prévias que são a identificação quanto ao momento do seu surgimento em relação ao direito material e o reconhecimento da autodefesa como método de solução dos conflitos. Ao afirmar-se que a história do direito se confunde com a história do próprio Homem na terra, o que se pretende é mencionar a existência pré-histórica das regras de conduta ou de alguma possível técnica de pacificação de conflitos? A resposta a este questionamento leva à tomada de posição quanto ao reconhecimento ou não da existência de um direito primitivo entre os grupos humanos que não dominavam nenhuma forma de escrita. Ao associar-se a história do direito ao surgimento de uma escrita melhor elaborada na mesopotâmia252 253,é possível admitir que as formas de resolução dos conflitos lhe precedem, e, portanto, com referência a este posicionamento se entende que seja adequado 252 WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. p. 35. ... o processo de invenção e consolidação da escrita possui estreita ligação com o surgimento das cidades e das modificações que a revolução urbana acabou por trazer). Isso porque, se forem desconsideradas formas muito pouco evoluídas de inscrição – como, por exemplo, puras representações pictográficas ou fichas de argila com indicações de mera quantidade -, é também na Mesopotâmia que se manifesta a primeira escrita mais complexa, com um maior número de sinais com aspectos ideográficos e fonéticos: a escrita cuneiforme. (grifos nossos) 253 Ibidem. p. 35-36. ... a escrita cuneiforme surge na região da Baixa Mesopotâmia, por volta de 3100 a. C. 217 reconhecer que o “direito processual” surgiu antes do direito material. Se de outro modo, a compreensão quanto ao reconhecimento da existência do direito se der no campo da antropologia, entendendo-se que a vontade individual que não tenha sido objeto de nenhuma regulamentação ou registro possa ser assimilada como direito, então se torna possível admitir a existência do “direito material” antes da autodefesa, a qual visaria à tutela daquele. As controvérsias a respeito do momento histórico do surgimento das técnicas de pacificação dos conflitos está também relacionada com a admissibilidade da autodefesa como método de solução de conflitos. Convencionou-se, entre os processualistas, que há três fases ou etapas de desenvolvimento do direito processual: a autodefesa, a autocomposição e a heterocomposição. A partir de uma ótica contemporânea pode parecer estranho que a força pudesse ser o elemento de equilíbrio e estabilidade entre grupos humanos primitivos, de modo que as necessidades divergentes entre seus integrantes se resolvessem pela capacidade da imposição da vontade individual através da força. Tal fato, contudo, tem pertinência com um contexto histórico onde a vida humana se desenvolvia de uma forma rudimentar e praticamente selvagem. Naquele momento não havia sequer o mais remoto vestígio de organização institucional. 218 Acredita-se que, durante todo o processo de constituição e desenvolvimento da história da humanidade, houve formas de pacificação entre os conflitos dos membros dos grupos societais. Ainda que não houvesse sido criada uma simbologia que codificasse uma forma de transmissão das experiências254 e, posteriormente, autênticos signos lingüísticos255, as divergências sempre tiveram algum modo de ser resolvidas. Somente assim tornou-se possível a agregação dos grupos e a constituição de regras comportamentais exigíveis entre seus membros. A utilização da palavra direito no contexto primitivo das organizações dos grupos humanos parece inadequada, uma vez que sua conceituação básica pressupõe a existência de um conjunto de regras de conduta incidentes sob determinados indivíduos. Pretende-se afirmar que não sendo possível ignorar os antecedentes antropológicos e históricos da humanidade, a autodefesa precede o reconhecimento de qualquer regra imposta a um grupamento de indivíduos. Sob uma perspectiva conceitual do direito, a escrita lhe é fundamental, e neste caso, as primeiras regras escritas tinham caráter material, visando a ordenação das condutas dos indivíduos. 254 NOVA Enciclopédia Barsa, v. 5. p. 480. Na pré-história, o homem serviu-se de diversos meios de expressão, mas nenhum deles se destinava a representar a linguagem verbal. 255 Ibidem. p. 480. A invenção da escrita realizou-se de várias maneiras, em momentos distintos e em diversos pontos do mundo, e correspondeu sempre a necessidades da civilização urbana, em sociedades dotadas de unidades fabris relativamente desenvolvidas, comércio ativo e estado organizado. 219 O direito como é reconhecido atualmente não existiu em sociedades primitivas sob a forma material ou processual256. É inegável, no entanto, que em todos os momentos históricos houve a assimilação e a transmissão de costumes através da fala e de desenhos, assim como a pacificação dos conflitos257. Apenas pela ausência de uma denominação apropriada e específica estas práticas podem ser chamadas de direito, acredita-se que melhor é considerá-las como antecedentes históricos e antropológicos do direito258. Considerando que, somente a partir do final do Século XIX ou início do Século XX, foram realizadas as escavações antropológicas259 que permitiram um dimensionamento mais concreto sobre os modos de vida das sociedades primitiva e antiga é correto afirmar que os estudos a 256 WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Cap. 1. O direito nas sociedades primitivas. Antonio Carlos Wolkmer. p. 23. Esse direito antigo, tanto no Oriente quanto no Ocidente, na explicação de H. Summer Maine, não diferenciava, na essência, a mescla de prescrições civis, religiosas e morais. Somente em tempos mais avançados da civilização é que se começa a distinguir o direito da moral e a religião do direito. Certamente, de todos os povos antigos, foi com os romanos que o direito avançou para uma autonomia diante da religião e da moral. 257 Ibidem, p. 20. ... ainda que prevaleça uma consensualidade sobre o fato de que os primeiros textos jurídicos estejam associados ao aparecimento da escrita, não se pode considerar a presença de um direito entre povos que possuíam formas organização social e política primitivas sem o conhecimento da escrita. Autores como John Gilissen questionam a própria expressão “direito primitivo”, aludindo que o “direito arcaico” tem um alcance mais abrangente para contemplar múltiplas sociedades que passaram por uma evolução social, política e jurídica bem avançada, mas que não chegaram a dominar a técnica da escrita. Assim sendo, as inúmeras investigações científicas têm apurado que as práticas legais de sociedades sem escrita assumem características, por vezes, primitivas, por outras, expressam um certo nível de desenvolvimento. (grifos nossos) 258 Ibidem. p. 24. Por último, Gilissen chama atenção par o fato de que os direitos primitivos são “direitos em nascimento”, ou seja, ainda não ocorreu uma diferenciação efetiva entre o que é jurídico do que não é jurídico. 259 Ibidem. p. 43. Há que se ponderar, de imediato, que o estudo do direito das sociedades préclássicas representa um campo relativamente novo na história do direito. Muitas das descobertas fundamentais, no terreno da arqueologia, são posteriores ao início do século XX. As principais expedições foram enviadas à Mesopotâmia e ao Egito nos anos 20: as célebres escavações em Ur lideradas por Wooley (1922-1929) e a descoberta e catalogação dos tesouros da tumba de Tutankhamon, efetuadas por Carter, no Vale dos Reis (1922-1924). 220 esse respeito se pautam em parte em constatações obtidas através da arqueologia e, em parte, decorrem do processo de abstração da historiografia260. Pode questionar-se a precisão e cientificidade desses dados, mas não a ocorrência de fatos que culminaram com a formação da sociedade261 e do direito. Sob o ponto de vista da superação da fase da pré-história, a criação e o desenvolvimento da escrita são fundamentais para o direito. O avanço do direito grego e, sobretudo, o período do legislador Sólon (594-593 a.C.) representam o marco do reconhecimento da existência de regras com caráter instrumental. Sólon262 é considerado um dos melhores legisladores de Atenas, sendo, ainda, reconhecido como um dos fundadores da democracia e um dos sete sábios da Grécia. É fundamental mencionar que foi o autor de um código de leis que alterou profundamente aspectos institucional, social e econômico em Atenas. Destaca-se a proibição da escravidão por dívida e a libertação dos escravos por esta mesma causa. 260 DICIONÁRIO Brasileiro da Língua Portuguesa, p. 931. Historiografia. s. f. (historio + grafo + ia). 1. Arte de escrever a História. 2. Estudos críticos acerca da História. (grifos nossos) 261 WOLKMER. Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Cap. 1. O direito nas sociedades primitivas. Antonio Carlos Wolkmer. p. 29. Não há comprovações científicas de que a legalidade acompanhou e refletiu os diversos estágios das sociedades primitivas de acordo com a premissa evolucionista. 262 NOVA Enciclopédia Barsa, v. 13. p. 346-347. Sólon nasceu em Atenas no ano 640 a.C. De família nobre empobrecida, dedicou-se na mocidade ao comércio, mas ganhou notoriedade ao liderar os atenienses, em 600 a. C., na tomada da ilha de Salamina, que se encontrava sob o domínio de Mégara. Chegou ao poder num período em que Atenas era dominada por uma aristocracia hereditária, cujos integrantes recebiam o nome de eupátridas. Estes possuíam as melhores terras e monopolizavam o poder que suscitava rivalidade entre facções, com violentas lutas políticas. ... morreu em 560 a.C. 221 Foi eliminada a hipoteca sobre pessoas e bens. Criou quatro classes sociais divididas de acordo com os impostos pagos, sendo que os tetas, embora fossem isentos do pagamento dos impostos, tinham alguns direitos, como a participação na assembléia e no tribunal populares. O que mais chama a atenção na legislação de Sólon é o fato de ter criado regras com conteúdo instrumental como o direito de apelo aos tribunais e a possibilidade de reclamar em nome dos injustiçados. Na Grécia, também pode ser identificada as origens de um processo judicial263, com a criação da arbitragem privada264 e pública265, e o surgimento de profissionais da área jurídica, como o advogado, o que, no entanto, ocorreu em um período avançado de sua história. A Grécia e, principalmente, Atenas tiveram um direito evoluído, tendo influenciado o direito romano e alguns institutos atuais, como o júri popular266. O direito grego e o direito romano constituem as fontes históricas antigas mais importantes para o direito ocidental. Os fatos 263 WOLKMER. Op. cit.,cap. 3. O direito grego antigo. Raquel de Souza. p. 78. Embora os gregos não estabelecessem diferença explícita entre direito privado e público, civil e penal, é no direito processual que se encontra uma diferenciação quanto à forma de mover uma ação: a ação pública (graphé) e a ação privada (diké ). 264 Ibidem. p. 77-78. A arbitragem privada era um meio alternativo mais simples e mais rápido, realizado fora do tribunal, de se resolver um litígio, sendo arranjada pelas partes envolvidas que escolhiam o árbitro (ou árbitros) entre pessoas conhecidas e de confiança. Nesse caso o árbitro (ou árbitros) não emitia um julgamento, mas procurava obter um acordo, ou conciliação, entre as partes. 265 Ibidem. p. 78. ... a arbitragem pública visava a reduzir a carga dos dikastas, sendo utilizada nos estágios preliminares do processo de alguns tipos de ações legais. Nesse caso, o árbitro era designado pelo magistrado e tinha como principal característica a emissão de um julgamento, correspondendo á moderna arbitragem. 266 Ibidem. p. 91. 222 relacionados com a preferência dos gregos pela retórica da persuasão e questões de ordens geográfica e militar, possibilitaram uma maior influência do direito romano na formação dos institutos do direito contemporâneo267. 7.1 AUTODEFESA, AUTOCOMPOSIÇÃO E HETEROCOMPOSIÇÃO A existência humana é embasada na convivência da qual decorrem relações que podem ser amistosas ou não. Quando as relações entre os indivíduos são conflituosas, observa-se a necessidade de resolver as questões que geraram a divergência. A primeira forma para compor os interesses conflituosos entre os indivíduos ocorreu através da autodefesa268, sendo que, neste caso, o sujeito ou o grupo mais forte impunha sua vontade ou interesse àqueles que divergissem. Dessa forma, era resolvido o problema e restabelecida a paz entre os elementos do grupo. 267 WOLKMER. Op. cit. p., , 30. ... três fatores adicionais contribuíram para o direito grego não ocupar a importância que merece. Primeiro, o desenvolvimento da escrita e a publicação de textos em material durável aconteceu paralelamente à evolução da sociedade grega e do direito. Em segundo lugar, a obstinação dos gregos em não aceitar a profissionalização do direito, sendo bem apropriadas as palavras de Robert J. Bonner: “Tivessem os advogados sido livres para falar pelo litigante como o logógrafo estava, Atenas teria rapidamente desenvolvido um corpo de peritos legais comprável ao juris consulti romano ou aos modernos advogados”. 268 ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo, p. 12. Formada do prefixo auto (próprio) e do substantivo defesa, equivale a “defesa própria” ou “defesa por si mesmo”. Se fosse entendida literalmente, ficariam de fora da autodefesa na poucas manifestações que na mesma se incluem, como a legítima defesa de terceiro e o estado de necessidade. 223 Considerando-se o objetivo fundamental do processo, qual seja a garantia da paz no ambiente social, restabelecendo-se o equilíbrio entre os membros do grupo, ou entre grupos distintos, o modelo da força bruta, imposta pela autodefesa, é admitido como a primeira “técnica” de composição de conflitos. A solução é encontrada entre os próprios contendores, não existindo a figura do juiz, logo, o conflito se resolvia através da imposição da vontade de uma das partes à outra269. A formação histórica não é linear, desse modo, não é possível estabelecer um momento cronologicamente preciso quando teria se encerrado o predomínio da autodefesa e se constituído outras formas de pacificação social. De fato, contemporaneamente, ainda subsistem casos em que a autodefesa é admitida270. Este modelo é considerado imperfeito porque a idéia de justiça está ligada a um tipo de solução imparcial, o que faz pressupor uma solução extrapartes271. 269 CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Romano Moderno, p. 278. No início, os primitivos romanos, como inúmeros outros povos, fazem justiça com as próprias mãos, defendendo o direito pela força. Dessa fase de vingança privada, que se dirige contra o autor do dano, passam os romanos por várias, até que, num alto estágio de progresso, o Estado toma a seu cargo a tarefa de resolver os litígios entre particulares. 270 BRASIL. Código Civil (2002). Artigo 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado. § 1º. O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse. (grifo nosso) Lei no 7.783/1989. Dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências. 271 CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil, v. p. 373. A conclusão da investigação até agora levada a termo pode se resumir nesta fórmula: o processo se desenvolve para a composição justa do litígio. “Paz com justiça” poderia ser, dessa fórmula, o lema do Direito processual. Nem paz sem justiça, nem justiça sem paz. Nada de paz sem justiça porque o processo, como se viu, não tende a compor o litígio de qualquer modo, e sim segundo o Direito. Nada de justiça sem paz porque o Direito não se aplica ou não se realiza por quem está em conflito, e sim por quem está sob o conflito: supra partes, não inter partes a fim de compor um litígio e não de tutelar um interesse. 224 A autocomposição se refere à situação em que os indivíduos ou grupos de indivíduos interessados na celebração da paz ante um conflito estabelecem condições em que a mesma se realiza sem o emprego da força material. Essa situação pode decorrer de concessões mútuas ou do reconhecimento de uma das partes quanto à inviabilidade de sua pretensão em face da outra, seja pela ameaça da imposição da força, ou pelo reconhecimento espontâneo do direito alheio. Dessa forma, podem ser identificadas três formas de autocomposição, que são a transação, a submissão ou a renúncia272. Não há uma separação demarcada no tempo entre os períodos em que era aplicada a autodefesa e a autocomposição, admite-se, no entanto, que este modelo seja mais adequado à realização dos fins do processo que aquele. Entre o “tudo” ou “nada” da autodefesa, a autocomposição representa uma evolução considerável, pois as expectativas se renovam e se refazem a cada momento diante dos fatos da vida e, mais particularmente, no caso das relações entre os indivíduos. A autodefesa pressupõe um quadro estático, enquanto a autocomposição operacionaliza com a dinâmica da realidade. Uma melhor assimilação, e conseqüente compreensão das relações entre os indivíduos, levou a autocomposição e criou as condições para a heterocomposição. 272 ALVIM. Op. cit., p.15. 225 A constituição de um modelo em que as partes se subordinam a uma decisão imparcial tomada por um terceiro alheio aos seus interesses representa um importante marco no evolver histórico, o qual se encontra ainda em fase de desenvolvimento273. Sob a ótica da heterocomposição, o direito material encontrava-se em um estágio de relativo desenvolvimento. É pertinente mencionar que a arbitragem é um antecedente do modelo do processo jurisdicional. Pode ser afirmado que a arbitragem privada converteu-se na moderna mediação274. A arbitragem pública teria propiciado as origens da arbitragem atual e do processo jurisdicional275. Coube aos gregos estabelecer, primeiramente, a diferenciação entre as leis material e processual. Como já mencionado, Sólon estabeleceu leis com nítido caráter instrumental276. 273 CARNELUTTI. Op. cit. p., , , 47. Se, na fase atual de evolução de nossos estudos, a teoria geral estivesse já solidariamente elaborada, e se com respeito a ela tivesse intervindo também o princípio da divisão do trabalho, que funciona de modo eficiente entre a ciência e a história, a introdução poder-seia limitar, em boa parte, em extrair conseqüências de premissas já estabelecidas e o professor de Direito processual, em lugar de fazer teoria geral, poderia apoiar-se nos resultados do trabalho alheio. Mas não é assim. Este trabalho da rota de nossa ciência encontra-se ainda em construção; nele trabalham pouco, e sem muita ordem, quase todos os cultores das ciências jurídicas específicas, que têm forças para elevar-se até sua altura. 274 WOLKMER. Op. cit. p., 78. 275 ALVIM. Op. cit., p. 17. De facultativa, a arbitragem, pelas vantagens que oferece, torna-se obrigatória, e, com o arbitramento obrigatório, surge o processo, como última etapa na evolução dos métodos compositivos do litígio. 276 WOLKMER. Op. cit. p., , 76-77. 226 Considera-se que a lei das XII Tábuas foi elaborada por uma comissão de magistrados277 278que para tanto estudaram as leis de Sólon. Não é pacífica a doutrina quanto ao número de membros integrantes da comissão. A Tábua III expressamente se referia ao processo tratando da execução em caso de confissão por dívida. Estabelecia a regra segundo a qual, após a condenação, o devedor teria 30 dias para pagar, se não o fizesse seria preso e levado à presença do magistrado, caso em que se permanecesse inadimplente sofreria penalidades que iriam desde a prisão a ferros de 15 libras aos pés até à escravização e a pena de morte279. As primeiras manifestações no sentido de se obter a realização da justiça se deram através de um regime privado, sendo que os indivíduos deviam proceder de modo razoável segundo os costumes estabelecidos entre os membros do grupo ao qual estavam integrados, não se identificando, neste período, normas de conduta originadas de uma organização central. 277 WOLKMER. Op. cit. p., 127. A Lei das XII Tábuas foi elaborada por uma comissão de três magistrados ...; 278 LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias, p. 45. No período republicano redige-se a Lei das XII Tábuas, por volta de 450 a.C. Fruto das lutas políticas internas, resulta de uma conquista dos plebeus a lei pretende reduzir a escrito (lex, de lego, ler?) as disposições e mandamentos que antes eram guardados pelos patrícios e pontífices. ... Conta a tradição que no meio das lutas entre patrícios e plebeus foi escolhida uma comissão de dez homens (Decemviri) que foram a Atenas estudar a legislação de Sólon para aprender sua técnica. 279 WOLKMER. Op. cit. p., 128. Isto se explica porque nesse período a Realeza vivia situação precária, só depois o erário romano se enriqueceu com os saques (pilhagens de outros povos). Sérvio Túlio, sexto rei, institui a estatística: tudo era cadastrado e os censores vasculhavam cada canto do reino à procura de riqueza para pagar impostos e ampliar as receitas. 227 Com o aumento dos contingentes populacionais, criação e organização das cidades, estruturação de organismos centralizadores do poder, as relações entre os indivíduos gradualmente tornaram-se complexas e exigiram como condição para o desenvolvimento da humanidade a constituição de regras/normas de caráter público, ou seja, foram criadas leis que ordenavam as condutas dos grupos, as quais eram emanadas da autoridade detentora do poder280. Dessa forma, surgiu um regime de justiça pública em princípio aplicada por chefes tribais e, posteriormente, por magistrados e juízes vinculados às estruturas do poder281. É importante destacar que não se passou do regime da justiça privada para o regime da justiça pública. Houve um período em que estes regimes existiam simultaneamente como foi o caso em Roma. Embora o direito na Grécia e, sobretudo, em Atenas tenha se desenvolvido a ponto de ser fonte inspiradora para o direito romano, os historiadores do direito são unânimes em reconhecer que, em virtude da 280 WOLKMER. Op. cit. p., 73. À medida que as cidades aumentavam em tamanho e complexidade, reconheciam a necessidade de um conjunto oficial de leis escritas, publicamente divulgadas, para confirmar sua autoridade e impor a ordem na vida de seus cidadãos. 281 PRATA, Edson. História do Processo Civil e sua projeção no direito moderno, p. 60. Dois sistemas de direito processual vigoraram em Roma: a) – sistema da justiça privada (“ordo judiciarum privatorum”), que se inicia com a fundação da cidade, em 754, e vai até 342 d.C.. b) – sistema da justiça pública (“extraordinária cognitia” ou “cognitia extra ordinem”), que vigora entre 342 d. C. a 568 d. C. (morte de Justiniano). 228 escassa documentação do direito grego282 e em contrapartida a existência de boa documentação do direito romano, tornou-se freqüente reconhecer uma maior importância a este em detrimento daquele. No que se refere aos estudos de processo, o direito em Roma inicia sua história com a acción real, e desenvolve modelos procedimentais através da legis actiones, das per formulas e da cognitio extraordinaria. Há uma seqüência cronológica entre cada um destes sistemas procedimentais na mesma ordem em que são apresentados. 7.2 PROCESSO ROMANO Os romanos se notabilizaram na estruturação de regras procedimentais para assegurar a aplicação do direito, nesse sentido, chegaram a delinear a autonomia do direito processual em relação ao direito material, bem como a natureza jurídica publicística do processo. O direito em Roma inicia seu processo de formação por volta de 753 a.C., quando após os etruscos subjugarem os povos do antigo Lácio com a derrota da Liga Setimonial e da Liga Albana, “fundaram” 282 WOLKMER. Op. cit. p., 75. Os gregos não elaboraram tratados sobre o direito, limitando-se apenas à tarefa de legislar (criação das leis) e administrar a justiça pela resolução de conflitos (direito processual). ... Com o direito grego aconteceu um processo diferente do tratamento dispensado à filosofia, literatura e história. Enquanto estes foram copiados, recopiados e constantemente citados, nada se fez com relação às leis gregas, não havendo compilações, cópias, comentários, mas pouquíssimas citações. 229 ou “dominaram” a cidade de Roma283. Embora não haja consenso quanto ao papel dos etruscos em relação à cidade de Roma, a história do Império Romano se inicia sob a dominação daquele povo284. São identificadas quatro fases históricas de organização política do Império Romano que são o período da Realeza (aproximadamente 753 a.C. até 510 a.C.), o período da República (510 a.C. até 27 a.C), o período do Principado (27 a.C. até 285 d. C.) e o período do Baixo Império (285 até 585 d. C.). A divisão dessas fases ou períodos está vinculada à forma de organização social, jurídica e política de Roma285. Durante o período da Realeza, as regras de processo estiveram vinculadas à vontade do Rei286 que exercia seus poderes em nome dos Deuses. 283 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano, v. 1. p. 7-8. Vários autores defendem a tese de que foram os etruscos que a fundaram. Os povos do antigo Lácio, para melhor resistir a seus inimigos, agrupavam-se em ligas, das quais a mais importante foi a Albana. Entre as demais, figurava a Setimonial, formada por sete núcleos de população instalados nos montes Palatino, Esquilino e Célio. No meado do século VIII a. C., a liga Setimonial foi derrotada pelos etruscos, que, posteriormente, fundaram a cidade de Roma, em duas etapas. ... A opinião dominante, porém, é a de que Roma não foi fundada pelos etruscos, mas, sim, pelas próprias populações do Lácio. Isso se procura demonstrar com o fato de que as mais antigas instituições romanas têm denominações de origem latina, como, por exemplo, rex, tribus, magister, cúria. Roma, portanto, já existia quando os etruscos a subjugaram. 284 ALVES, José Carlos Moreira. Op. cit. p., 7. O certo, porém, é que os etruscos – nação altamente civilizada para a época – exerceram grande influência sobre os primitivos romanos. 285 LOPES. José Reinaldo de Lima. O Direito na história. p. 43. Em grandes linhas, Roma conheceu também três grandes “regimes constitucionais”, com longas e freqüentes crises. A realeza ou monarquia vai desde a fundação (753 a..C.) até a expulsão dos Tarquínios (509 A.C.), quando a sua autonomia com relação aos etruscos fica praticamente consolidada. ... A República vai de 509 a.C. até 27 a.C., início do Império, pelo principado de Augusto. O Império divide-se em duas grandes partes: o Principado, de Augusto (27 a.C.) até Diocleciano (284 d. C.) e o Dominato, de Diocleciano até o desaparecimento do império. 286 CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Romano Moderno, p. 278. Segundo a tradição romana, a justiça civil nos primeiros tempos era distribuída pelos reis, que julgavam as divergências entre particulares, as lides (lites), o que teria ocorrido até mais ou menos a implantação da República. 230 Nesse contexto, podem ser identificadas regras procedimentais na acción real que foi denominada sacramentum, porque no período da Realeza, o Estado romano era teocrático, de modo que o rei era um magistrado único, vitalício e suas decisões tinham caráter sagrado e decorriam de costumes locais287 adotados segundo a interpretação dos pontífices. A acción real consistia em uma ação através da qual era reivindicado o direito sobre determinada coisa. Essa reclamação sobre a posse de um determinado bem era realizado diante do sacerdote ou pontífice que, nesse caso, assumia os papéis de autoridade religiosa e “jurisdicional”. Não havia um conjunto organizado de regras procedimentais de caráter público que orientassem o sacerdote na aplicação da “justiça”. O procedimento se baseava na condução do réu pelo próprio autor à presença do pontífice que ouvia o juramento e determinava o depósito da coisa ou da aposta288 até que se decidisse sobre o direito alegado. Caso não houve por parte do réu a prova da 287 WOLKMER. Op. cit. p., 124. PRATA, Edson. História do processo civil e sua projeção no direito moderno, p. 63. Consiste numa aposta, “no simulacro de um combate, após o recitativo de palavras rigorosamente ritualísticas, que o magistrado interromperá para a tomada de um juramento, ou aposta, a qual se considerará perdida em favor do culto (“ad sacra publica”) primitivamente, depois do Tesouro público, pela parte que cair em perjúrio, tal como o aure o árbitro, na fase “aud judicem” (J.M. OTHON SIDOU, em “A vocação publiscística do Procedimento Romano”. Editora Câmbio, Recife, 1955, página 70); A aposta gira em torno das quantias entre 50 e 500 asses; As quantias apostadas eram entregues ao pontífice mais tarde, apenas se prometia pagar a aposta perante ao pretor (após a Lei das XII Tábuas). Alguns romanistas afirmam eu as partes simplesmente garantiam o pagamento da aposta, mediante caução ou apresentação de fiadores, chamados então “praedes sacramenti”. 288 231 inexistência do direito do autor ou a restituição do bem ou de coisa equivalente, aquele sofreria pessoalmente a execução. Até 450 a.C., quando foi criada a Lei das XII Tábuas, tornando-se possível o estudo do processo com base em dados concretos. Há dificuldades na pesquisa a respeito dos detalhamentos sobre os procedimentos que eram aplicados para a realização da justiça. Na primeira fase da Realeza, o Rei era a suprema autoridade e praticava o direito dos deuses de acordo com a interpretação dos costumes segundo os Pontífices. A partir de 450 a. C., surgem regras mais claras, iniciando-se o sistema da ordo judiciarum privatorum289, durante o qual foram desenvolvidos dois modelos procedimentais distintos, quais sejam, o da legis actiones290 e o per formulam291. Entre 342 e 585 d.C., vigorou, em Roma, o sistema da justiça pública através dos procedimentos da cognitio extraordinária. As datas apresentadas têm um caráter aproximado e uma finalidade didática a fim de se organizar cronologicamente os fatos no contexto histórico. Ressalta-se o fato de que houve um entrelaçamento entre os períodos que foram se sucedendo, de modo que os diferentes sistemas 289 Sistema da justiça privada. Período das ações da lei. Aproximadamente 450 a.C. até 149 a.C. Fase da República. 291 Período formulário ou das Fórmulas da Lei. 123 ou 149 a.C até 342 d. C. Somente se tornou obrigatório a partir de 17 a.C. Fases da República, do Principado e na primeira fase do Baixo Império. 290 232 coexistiam, havendo, contudo, o predomínio de um modelo sobre os demais, o que imprimiu as características de cada procedimento do processo romano. 7.2.1 Sistema da justiça privada ou da ordo judiciarum privatorum De acordo com o modelo da justiça privada, o Estado não tinha a obrigação de realizar a “justiça”, cabendo aos particulares interessados em resolver suas divergências e providenciar os meios a fim de assegurar o resultado pretendido. Nessa situação, havia apenas a idéia da manifestação do direito por parte do magistrado, sendo que a produção dos efeitos práticos decorrentes de sua decisão ficava a cargo do autor. No sistema da justiça privada o procedimento se divide em duas fases, que são, in iure e in iudicio. A fase in iure se desenvolve diante de um magistrado que representa o Estado romano e ao qual competia receber a ação, a qual sendo aceita levava à segunda fase; ius, nesse caso significa tribunal. A fase in iudicio ou apud iudicem se processa diante de um iudex que é o juiz ou árbitro o qual não mantinha vínculos com o Estado, ou seja, tratava-se de um particular que recebia as provas e proferia a decisão. 233 Foram constituídos dois sistemas jurídicos distintos, mas que se processavam de acordo com o modelo privado, assim houve o período das legis actiones (ações da lei) e o período das per formulas (formulário). Durante o sistema privado do direito romano o direito não tem uma função social, sendo eminentemente individualista e a concepção a respeito da “justiça” está associada à satisfação do sentimento de vingança. 7.2.1.1 Ações da Lei ou Legis actiones Como mencionado anteriormente não é possível estabelecer com precisão o momento do surgimento do processo das ações da lei, contudo, após a Lei das XII Tábuas pode ser identificado um conjunto de procedimentos que modelam o primeiro sistema de processo em Roma. Com exceção da actio per pignoris capionem292, as ações da lei eram processadas em duas fases, como ocorria no sistema privado. Todo o procedimento era oral e extremamente rígido, sendo obrigatória a 292 ALVES, Moreira José Carlos. Op. cit. p., 204. A pignoris capio se distingue das demais legis actiones, porque ela não se desenrola diante do magistrado (in iure). Por isso, e ainda porque não era necessária a presença do adversário, e poderia a pignoris capio realizar-se em dias nefastos, alguns jurisconsultos romanos não viam nela uma legis actio, com o que, porém, outra corrente – seguida por Gaio – não concorda, porquanto, e isso bastava para caracterizar a pignoris capio como a ação da lei, eram pronunciadas palavras solenes. 234 observância das palavras e dos gestos solenemente previstos para cada tipo de ação. O processo se iniciava com a condução do réu à presença do magistrado pelo próprio autor que, para tanto, ao lhe encontrar, proferia os termos solenes de chamamento do réu a juízo293. Havendo a recusa do réu em acompanhar o autor poderia ser usada a força desde que uma testemunha acompanhasse a tudo. O réu tinha a faculdade de não comparecer à presença do magistrado se encontrasse um vindex294. Diante do magistrado, iniciava-se a fase in iure, onde eram recitadas as fórmulas solenes e os gestos ritualísticos específicos para cada ação. Admitida a ação, e confessado pelo réu o direito do autor, ou não havendo uma defesa adequada, o que deveria obedecer ao mesmo sistema formal, concretizava-se o direito com a entrega da coisa ao autor, ou caso se tratasse de direito pessoal ficava resguardado o direito à proposição da ação de executória295. Não havendo a confissão do réu, e sendo sua defesa conveniente, as partes solicitavam ao magistrado que nomeasse um juiz popular (iudex), que era uma pessoa do povo não representando o 293 ALVES. Moreira José Carlos. Op. cit. p., 194. uerba certa. ALVES. Moreira José Carlos. Op. cit. p., 94. uindex, ..., alguém que o substituísse, ligando em seu lugar. 295 ALVES. Moreira José Carlos. Op. cit. p., 195. actio per manus iniectionem. 294 235 . governo ou o Estado ao praticar a jurisdição , sendo, contudo, eleito 296 pelo senado297. Diante do iudex, desenvolvia-se a fase apud iudicem, que era iniciada alguns dias após a nomeação pelo magistrado do juiz popular. Nesta fase, o procedimento é informal e a presença das partes, fundamental, sendo que se o réu não comparecesse, seria condenado. Uma vez presentes as partes, era apresentada a ação (causae coniectio) e, posteriormente, as razões do pedido e da defesa (causae peroratio). O procedimento seguia com a apresentação das provas, que não sofriam restrições uma vez que o juiz não necessitaria de apresentar uma fundamentação para justificar o seu convencimento. Superadas essas etapas do procedimento que deveriam se desenvolver sem solução de continuidade, o juiz proferia uma decisão que tinha um conteúdo condenatório, determinando o pagamento de uma quantia ou a restituição de uma coisa ou a realização de uma obrigação de fazer. Poderia ocorrer o indeferimento da ação quando o réu era absolvido. 296 ALVES, Moreira José Carlos. Op. cit. p., 186. No direito romano, o conceito de iurisdictio é muito controvertido, e constitui um problema até hoje não resolvido satisfatoriamente. ... A palavra iurisdictio deriva de ius dicere, que significa dizer o direito, isto é, declarar, com relação a um caso concreto e com efeito vinculante para as partes, a vontade da norma jurídica. Ocorre, no entanto, que esse significado somente se ajusta ao processo extraordinário (cognitio extraordinária), em que o magistrado – como ocorre atualmente – não apenas conhece do litígio, como também o decide na sentença, onde declara a vontade da lei. ... 297 PRATA. Edson. Op. cit. p., 61. ... o juiz (“iudex”) ou árbitro (“arbiter”), eleito entre os senadores, mas pessoa do povo, que não dependia do governo e não o representava quando praticava a jurisdição. Esses juízes poderiam ser singulares ou coletivos, sendo os mais importantes, dentre estes últimos os “tres arbitri”, os recuperadores, os decênviros, os centúviros, os “tresviri Capitales”. 236 Após a sentença, terminava a função do juiz, pois este, como particular escolhido pelas partes, não dispunha de poderes para obrigar ao cumprimento de sua decisão. Não havendo concordância quanto à realização da obrigação estabelecida na sentença, caberia ao credor propor uma nova ação com a finalidade de obter a concretização da sentença, a qual era irrecorrível. As ações da lei poderiam ter funções cognitivas, objetivando uma declaração ou funções executivas. As primeiras eram a Legis actio per sacramentum, a Judicis postulatio e a Condictio. As ações executivas eram a Manus injectio e a Pignoris capio. As ações de execução visavam a assegurar a concretização da situação jurídica já reconhecida pela lei, pelo costume ou por um juramento, sendo dirigida contra a pessoa do obrigado, ou seja, a execução era pessoal e não patrimonial. Tem sido considerada a mais antiga das ações romanas, a Legis actio per sacramentum298 que, no início, era a única forma de pedir perante o magistrado, e que, após a Lei das XII Tábuas, já no sistema identificado como das Legis actiones, tornou-se uma espécie de ação comum, no sentido de que poderia ser empregada em qualquer caso que 298 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 283. As formalidades que cercam a actio per sacramentum são o símbolo da intervenção da autoridade religiosa e dos magistrados da cidade nas controvérsias entre particulares. 237 não houvesse uma ação específica. As Legis actio per sacramentum poderiam ter caráter pessoal (sacramentum in personam) ou real (sacramentum in rem). O perdedor pagava uma multa ao Estado. Através da iudicis postulatio, era promovida a divisão da herança e a cobrança de créditos decorrentes da sponsio. Foi considerada uma ação especial porque sua finalidade era bastante restrita. Há divergências quanto ao dever do perdedor de pagar uma pena/multa, pois autores como José Carlos Moreira Alves299 afirmam que esta não era devida; enquanto José Cretella Júnior300 menciona o contrário, ou seja, haveria para o litigante perdedor o dever de indenizar à parte vencedora, o que seria proporcional ao valor atribuído à ação. A condictio301 ou per conditionem era mais simplificada e tinha por finalidade a cobrança de dívidas em dinheiro ou de prestações de coisa certa. Foi considerada uma ação abstrata, porque o autor não precisaria fundamentar a origem da obrigação exigida. Pode ser entendida como uma derivação da Legis actio per sacramentum visando a fins específicos. A manus injectio era uma ação de caráter executivo, aplicada inicialmente para dar efetividade às sentenças proferidas na actio 299 MOREIRA ALVES. Op. cit. p., 200. Ibidem, p. 285. 301 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 285. Define-se a condictio como uma intimação em termos solenes que o demandante dirige ao demandado para que este compareça diante do magistrado, dentro de 30 dias, para tomar conhecimento da demanda. 300 238 sacramenti, na iudicis postulatio ou na condictio, quando se tratasse de condenação a pagamento de quantia certa302. Era igualmente cabível contra aquele que, na fase in iure, confessasse o direito do autor. Esta ação sofreu consideráveis modificações ao longo da história do processo romano, passando de uma fase rudimentar por ocasião da Lei das XII Tábuas a um bom nível de elaboração posteriormente. No sistema primitivo da manus injectio, o devedor deveria pagar ou apresentar um uindex303 que se obrigaria “conjuntamente” com aquele, e ainda, seria obrigado ao pagamento em dobro da dívida primitiva caso fossem alegados fatos inverídicos quanto à sua obrigação. Se nenhuma dessas situações ocorresse, o devedor responderia corporalmente pela obrigação, quando seria aprisionado pelo credor, que após conduzi-lo por três feiras sucessivas perante o magistrado, no comitium, e não havendo acordo ou o pagamento, aquele seria morto ou vendido como escravo no estrangeiro304. 302 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 202. A manus iniectio somente podia ser utilizada para a execução de quantia certa. Portanto, quando alguém condenado a restituir alguma coisa, ou a fazer algo, ou a pagar importância incerta, era preciso que se reduzisse a condenação a quantia certa para que fosse possível a execução pela manus iniectio. Para isso, parece, utilizava-se de um processo sobre o qual, em verdade, quase nada sabemos o arbitruim liti aestimandae. 303 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 202. Para livrar-se da execução, ou o devedor pagava a dívida, ou apresentava um uindex, isto é, um parente ou um amigo que, em seu lugar, contestasse a legitimidade do pedido do autor, salientando, por exemplo, eu a sentença condenatória era nula, ou, então, que a dívida já fora paga. 304 PRATA. Op. cit. p., 64. Não conseguindo fiador, o pretor entregava o devedor ao credor e este o prendia em casa, até por sessenta (60) dias neste período, o credor levava o devedor ao mercado por três vezes se não achasse quem lhe pagasse a dívida (amigo ou parente do devedor), podia vendê-lo como escravo fora de Roma (“Trans Tiberim”), ou matá-lo neste caso, sendo vários os credores, distribuía-se o corpo do devedor entre os credores. 239 Em uma fase transitória entre o período das Legis actiones e o período das per formulas praticamente na era clássica do direito romano, a manus injectio ampliou suas hipóteses de admissibilidade para casos em que se pretendia a cobrança de crédito a que se referiam determinadas leis, como a Lei Publilia305 e a Lei Fúria de sponsu306. A Lei Márcia permitia o emprego da manus iniectio pelo devedor para a cobrança de juros usuários, sendo interessante mencionar que esta lei em alguns casos exigia que o devedor declarasse o fundamento do direito pleiteado307. Também nessa fase foram se tornando mais brandos os efeitos corporais da execução, sendo que após a Lei Poetelia Papira de nexix, datada de aproximadamente 326 a.C., ficou proibida a venda como escravo e a morte do devedor, porém, poderia o credor conduzi-lo até sua casa para que pagasse o débito através de seu trabalho. A Pignoris capio é uma ação de natureza executiva que apresenta algumas particularidades que a diferenciam das demais Legis acciones, entre aquelas pode ser mencionado o fato de que seu procedimento se desenvolve em uma única fase, exclusivamente in 305 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 203. ... a Lei Publilia concedia ao sponsor (fiador) que tivesse pago a dívida, manus iniectio contra o devedor principal que não o reembolsasse dentro de seis meses. 306 Ibidem. p. 203. ... a lei Furia de sponsu – na hipótese de haver vários fiadores garantindo o pagamento de uma dívida, e de o credor cobrar de um deles mais do que a parte a que estava obrigado – dava ao fiador manus iniectio contra o credor. 307 Dizia-se manus iniectio pura quando o devedor não precisasse fundamentar a origem da obrigação. Na manus iniectio pro iudicato não havia a necessidade de fundamentação da dívida. 240 iudicio, diante do juiz, a não-obrigatoriedade da presença do executado durante o processo e sua tramitação em dias nefastos. Essa ação308 era cabível relativamente aos débitos decorrentes do soldo, pelo soldado contra o tribunus aierarii; pelo soldado de cavalaria contra as partes que estavam obrigadas a contribuir para a compra e a manutenção do cavalo; pelo vendedor de animal destinado a sacrifício religioso contra o comprador, com relação ao preço; pelo locador de um animal de carga contra o locatário, desde que este se destinasse a ser aplicado em sacrifício religioso; e, pelo publicano contra o contribuinte, com relação ao imposto (uectigal) devido. Consistia a picnoris capio, basicamente na apreensão de uma coisa móvel do devedor pelo credor, o qual a mantinha em sua posse, até o término da ação, com o pagamento do débito ou com o reconhecimento da inexistência do crédito pelo juiz através de uma sentença. 7.2.1.2 Processo formular ou per formulam Como mencionado, não houve uma ruptura abrupta entre as fases de desenvolvimento do processo romano, sendo que o período em 308 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 286. Pignoris capio (“opero-me do penhor”) é a ação da lei pela qual o credor, empregando formas especiais (certis verbis), mas sem autorização preliminar do magistrado, faz a apreensão de objeto pertencente ao devedor e o conserva, como garantia, até que a dívida seja paga. 241 que vigorou o processo formular se constitui como uma seqüência em relação ao período das Legis acciones, sendo alterados alguns aspectos do procedimento a partir da Lex Aebutia que data de aproximadamente 149-126 a.C., a qual foi modificada pela Lex Iulia, em 17 a.C, durante o principado de Augusto, que tornou o processo formular obrigatório. Durante o período compreendido entre a promulgação da Lex Aebutia e a Lex Iulia o processo formular era facultativo, coexistindo simultaneamente com as ações da lei. A predominância do processo formular vai até aproximadamente 342 d.C.. O procedimento das ações ocorria em duas fases, tal como se verificava no período anterior, logo, a instrução e a sentença permaneceram como ato de um juiz privado309. A citação do réu é uma obrigação do autor, que, no entanto, não mais poderia praticar arbitrariamente atos de violência na condução do réu. Caso este se recusasse, o autor pedia ao magistrado uma actio in factum que culminava ao réu uma multa caso não atendesse à citação. Se ainda assim o réu permanecesse relutante em comparecer à presença do magistrado, sua recusa seria considerada um delito e punida como tal. 309 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 207. ... o processo formulário se distingue nitidamente do sistema das ações da lei pelas seguintes características principais: a) é menos formalista e mais rápido; b) a fórmula – documento escrito – tira-lhe o caráter estritamente oral de que se revestiam as ações da lei; c) maior atuação do magistrado no processo; e d) a condenação se torna exclusivamente pecuniária. 242 Fundamentalmente, o que se modifica é o fato de que o magistrado não mais se limitava a aceitar ou não a ação da lei proclamada pelo autor310. No processo formular, o autor expunha suas pretensões de forma simples, dispensando-se as palavras solenes e os gestos simbólicos, o magistrado poderia criar a ação, ou melhor, a fórmula311 para entregá-la às partes. Esta criação das fórmulas ocorria através dos editos dos pretores. Na fase in iure, o magistrado, ao receber o pedido do autor, verificava se aquele caso poderia ser convertido em um conflito susceptível de ser julgado pelo juiz312 na fase in iudicio. Definida a fórmula, as partes firmavam um compromisso diante de testemunhas: estava caracterizada a lide, portanto, a litis cum testatio313. A aceitação da fórmula pelos litigantes tinha a natureza de um contrato judiciário, o qual estabelecia um vínculo entre as partes no momento em que o autor, diante de testemunhas, lia a fórmula em voz alta para o réu que concordava e recebia uma cópia. 310 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 288. O processo formular assinala um momento culminante na história da vida judiciária romana, porque só agora a figura do pretor se impõe, para resolver com auxílio da eqüidade os casos concretos, antes submetidos ao frio e desumano rigorismo da formalidades. 311 LOPES. Op. cit. p., 48-49. A fórmula consistia na designação do juiz (iudex) e no “quesito”. Ela era, porém, negociada pelas partes perante o pretor: ou seja, as partes discutiam até que se esclarecesse qual era efetivamente o ponto a ser decidido (uma questão à qual o árbitro/juiz pudesse responder sim ou não) e o pretor se convencesse de que o ponto era compatível com a proteção anunciada no edito. 312 LOPES. Op. cit. p., 49. O serviço de juiz ou árbitro (iudex) era um encargo próprio dos cidadãos, ao qual muitos procuravam escapar, mas que se considerava em geral um ônus compatível com a honra e o respeito devidos aos cidadãos superiores. 313 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 290. Litis contestatio define-se, por tanto, como o ato mediante o qual as partes concordam em submeter a controvérsia, nos termos da fórmula, ao julgamento de um terceiro. 243 No momento em que se formava a litis contestatio, extinguiase o direito do autor que havia determinado o processo, surgindo um novo direito que era o de receber em dinheiro, através de uma espécie de indenização, a reparação pelos danos causados pelo réu, caso este fosse condenado. Dessa forma, pode afirmar-se que com a litis contestatio ocorria simultaneamente a extinção e a novação de direitos. Ao que tudo indica, as fórmulas eram compostas por duas partes; uma que seria considerada principal ou essencial, sendo idêntica para todos os casos, por isso considerada rígida, era o caso da institutio judicis, da intentio314, da demonstratio, da condenatio e da adjudicatio, em algumas ações315. A parte acessória ou acidental é variável e redigida de acordo com cada caso, é integrada pela exceptio, praescriptio, replicatio, duplicatio e da triplicatio. É correto afirmar que a fórmula equivalia à petição inicial na sistemática de processo atual. Retomando a questão do edito através do qual se originavam as fórmulas, é interessante mencionar que os magistrados ou pretores, utilizando-se de seus poderes de imperium e da honra que lhes era conferida, promulgavam anualmente normas relativas ao exercício do seu cargo, estas eram denominadas editos e faziam parte do direito 314 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 293. A intentio poderia ser in jus e in factum; in rem e in personam; certa e incerta. 315 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 212. A adjudictio é a parte da fórmula na qual se permite ao juiz adjudicar a coisa a algum dos litigantes. Ela somente se encontra nas fórmulas das ações divisórias, que eram três: a actio familiae erciscundae, a actio communi diuidundo e a actio finium regundorum. 244 pretoriano. Tratava-se o edito de uma proclamação verbal da tribuna, a qual era escrita através de memoriais. Nos primeiros tempos, o magistrado não era obrigado a atender o edito, sendo que, após a Lex Cornelia que data de 67 a.C., as partes passaram a ter poderes para invocar a subordinação do magistrado ao edito como se este fosse verdadeiramente uma lei. Se o magistrado ou pretor entendesse que fosse necessário, poderia proclamar o edito repentino, que visava a alteração do edito ao longo do ano de sua vigência. Durante o principado de Adriano, no período compreendido aproximadamente entre 125-138 d. C., este determinou a Sálvio Juliano que criasse um regulamento para todos os editos, que é reconhecido como o edito perpétuo. Interessante é observar que os efeitos da coisa julgada existiam nesta fase de desenvolvimento do processo romano, contudo, esta não decorria da sentença, mas da litis contestatio. Isto se explica porque a autoridade estatal era do magistrado, portanto, quando este redigia a fórmula e as partes a aceitavam, tornava-se imutável a ação, ou seja, não mais seria possível pedir uma nova fórmula para o mesmo caso, independentemente do resultado do julgamento proferido pelo juiz. Na fase in iudicem, o juiz era subordinado aos termos da fórmula, logo, sua função se restringia a propor um acordo entre as 245 partes, averiguar as provas sobre as alegações e responder aos questionamentos ali contidos. O julgamento consistia em uma decisão do juiz sobre a existência ou não do direito do autor sempre de acordo com a fórmula. Sendo condenado o réu, seguia-se o cálculo de um determinado valor em dinheiro para o pagamento do autor. Desse modo, a sentença substituía a pretensão originária da ação. Em caso de acordo, imediatamente se realizava o cálculo, sem a prolação da sentença. Não havia critérios objetivos para a realização do cálculo, que, portanto, ficava a cargo do juiz estabelecer. O sistema probatório foi estruturado paulatinamente, tendo sido admitidas as provas por testemunhas, confissão, juramento, documentos, perícias e inspeções oculares. A produção das provas cabia àquele que alegava o fato a ser provado. Em princípio, não eram admitidos recursos, contudo, ao longo do desenvolvimento e estruturação do processo romano, surgiram meios de discussão da sentença, podendo ser mencionados a intercessio, a revocatio in duplum e a restitutio in integrum. No período imperial, foi criado o recurso de apelação da decisão do juiz ao magistrado que redigia a fórmula. Dessa forma, organizou-se um sistema recursal em que, posteriormente, recorria-se da decisão do magistrado inferior ao 246 magistrado superior e, assim sucessivamente, até o recurso ao Imperador. Ressalta-se que a apelação tinha efeito suspensivo. Após a conclusão do processo, e não sendo cumprida a sentença pelo réu no prazo de 30 dias, o autor, diretamente, deveria praticar os atos executivos316 os quais seriam dirigidos contra a pessoa do devedor317. No processo formular, os atos de execução são controlados pelo Estado através do magistrado, permanecendo, contudo, o direito de escravização do devedor para que pagasse com seu trabalho o débito. O direito de execução da dívida, através da morte do devedor, tornou-se proibido. Posteriormente, a execução é promovida contra o patrimônio do devedor318 através da venditio bonorum319. Em uma fase evoluída e humanizada do processo em Roma, foi criada a Missio in possessionem, que se tratava de uma ordem dada pelo magistrado/pretor ao interessado para que tomasse posse de bens do réu ou devedor, dependendo do caso, a fim de assegurar o cumprimento da sentença. 316 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 226. Se não a cumprisse, o autor intentava contra ele a actio iudicati, que, no processo formulário, substituiu a manus iniectio das ações da lei. 317 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 224. Proferida a sentença, produzida ela os seguintes efeitos: a) se fosse condenatória, daria ao autor o direito de exigir do réu o pagamento do valor da condenação, direito esse que era protegido pela actio iudicati (pela qual, como veremos adiante, o autor procederia à execução da sentença quando o réu não a cumprisse espontaneamente); ... 318 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 227. Demais, por uma lei Júlia, da época do Imperador Augusto, permitiu-se que o réu se subtraísse à execução sobre sua pessoa, desde que fizesse a cessio bonorum, isto é, cedesse todos os seus bens ao autor. 319 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 227. Quanto à execução sobre os bens do réu (uenditio bonorum), seu processamento é mais complexo. Segundo tudo indica, a uenditio bonorum foi criada pelo pretor Públio Rutílio Rufo, em 118 a.C., a princípio apenas contra o iudicatus (réu condenado, que não cumpre a sentença); mais tarde, foi estendida ao confessus in iure (o que confessava, in iure – diante do magistrado -, dívida certa em dinheiro, e que, por isso, se equiparava ao iudicatus) e ao indefensus (o que não se defendia convenientemente). 247 No final do período formulário, havia hipóteses em que o magistrado poderia diretamente julgar a causa, surgindo, assim, a decisão extra ordinem320. Acredita-se que durante o período formulário já seria possível nortear o fortalecimento da figura do magistrado em relação ao juiz, pois este exercia um papel restrito, uma vez que a fórmula delimitava as questões relativas ao processo. A sentença seria objeto de recurso ao magistrado em casos excepcionais, e havia hipóteses em que os magistrados poderiam sentenciar. Aproximadamente em 342 d.C., passou a ser adotado em Roma como sistema geral o processo público extraordinário, revestido de particularidades que permitem afirmar a existência de uma terceira fase do processo em Roma. 7.2.2 Sistema da justiça pública ou da extraodinaria cognitio Em relação ao processo extra ordinem, é válida a observação 320 ALVES MOREIRA. Op.cit. p. 241. O processo extraordinário surgiu, em Roma, para dirimir questões de natureza administrativa ou policial. Não se tratando de matéria sujeita à jurisdição cível, os magistrados, para solucionar esses conflitos, não se atinham às regras do ordo iudiciorum priuatorum, e, assim, mandavam citar, para comparecer à sua presença, a pessoa contra a qual alguém se queixara; a ausência do querelado não os impedia de conhecer do litígio e de decidi-lo; não se fazia mister a elaboração de fórmulas nem a nomeação de iudex privado, pois todo o processo se desenrolava diante dos magistrados, que afinal, decidiam a lide – enfim, os magistrados poderiam empregar todos os meios, inclusive de coerção, para prontamente dirimir questões de ordem administrativa ou policial. 248 segundo a qual não houve uma substituição brusca de uma forma procedimental por outra. Assim, em relação aos processos que envolvessem matérias de natureza administrativa ou penal, era adotado um sistema pelo qual o Imperador conhecia e julgava a ação, portanto, paralelamente à legis acciones e às fórmulas, vigorava um modelo procedimental diferenciado, considerado extraordinário, tendo em vista as causas que envolvessem a jurisdição de natureza pública. 321 A partir do século I d. C., no período do principado, o processo da cognicio extraordinária começou a ser adotado em hipóteses especiais relativas a causas de natureza civil ou privada. Estas situações eram restritas a direitos subjetivos criados pelas constituições imperiais, constituindo o ius extraordinarium, como era o caso do fideicomisso e as obrigações alimentares322. Durante o período de assimilação até a generalização do processo da cognitio extraordinária, houve uma gradual aplicação desse sistema nas províncias, para somente mais tarde se tornar obrigatório e geral em Roma. Não parece adequado estabelecer uma data precisa a partir da qual o processo da cognicio extraordinária tenha prevalecido nas causas 321 WOLKMER. Op. cit. p., 403. Quando Justiniano mandou compilar o trabalho dos juristas do período clássico, o processo e o rito que se refletiram na sua compilação eram típicos da cognitio extra ordinem. Nesse sentido, o processo romano que sobreviveu até Justiniano muito pouco teve a ver com o processo formular, origem da literatura jurídica clássica. 322 ALVES Moreira. Op. cit. p., 243. 249 cíveis, contudo, a doutrina tem admitido que a partir do governo de Diocleciano323 a justiça tenha se tornado pública em Roma, no entanto, coexistindo com o processo formulário. No ano de 342 d. C., uma Constituição teria extinto o processo formulário, ocorrendo a generalização do sistema da justiça pública com a estatização ou publicização do processo324. É interessante observar que esta característica do processo prevalece ainda no início do século XXI. Podem ser identificadas características comuns entre o processo da cognitio extraordinária e o modelo procedimental praticado atualmente, como se verifica relativamente ao cabimento dos recursos e ao emprego da força pública na execução das sentenças. Em Roma, o problema da celeridade no andamento dos processos era objeto de preocupações, sendo esta uma das causas determinantes da adoção do procedimento da cognitio extraordinária, pois o processo se desenvolvia em uma única fase diante do magistrado, o que assegurava maior rapidez no julgamento da ação com a prolatação da sentença. A conseqüentemente mais importante da generalização da cognitio extraordinária foi que o processo tornou-se público, assim 323 NOVA enciclopédia Barsa, v. 5. p. 181. Caio Aurélio Valério Diocleciano nasceu perto de Salona na costa da Dalmácia, por volta do ano 245. ... foi reconhecido pelo Senado em 285 d. C., após o assassínio do irmão de Numeriano, o co-imperador Carino. 324 LOPES. Op. cit. p., 53. Como sempre na história de Roma, a mudança justifica-se pela restauração da república, mas de fato é substancialmente algo novo. 250 como o exercício da função do magistrado325 passa a ter idêntica característica; deixaram de ser redigidas as fórmulas; generalizaram-se as hipóteses dos recursos, estabelecendo-se graus hierárquicos entre os funcionários públicos que exerciam a magistratura; os processos passaram a ser julgados de acordo com o direito objetivo; as partes passaram a pagar custas processuais; passaram a prevaler os atos praticados por escrito. Segundo o professor Arruda Alvim, nesta fase o processo começa a ser entendido como um meio para a “realização do direito material (res in judicium deducta)”326. Tendo em vista a existência de aspectos comuns entre a cognitio extraordinária e o processo atual é interessante observar que a citação do réu ocorria através da intervenção do magistrado. Houve várias formas de citação, dependendo cada uma da presença ou da ausência do réu na localidade onde tramitava o processo, ou mesmo se estivesse em local indeterminado. A citação poderia ocorrer por intermédio de um funcionário do Estado ou do próprio autor, que, neste caso, disporia de autorização expressa neste sentido. Aproximadamente no século V estava consolidado o sistema segundo o qual o procedimento tinha início a partir do libellus 325 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 297. Os magistrados são os juízes superiores, os ordinários e os pedâneos. 326 ARRUDA ALVIM. Manual de Direito Processual Civil., v. 1, parte geral, p. 44. 251 conuentionis (petição de citação) e prosseguia com a manifestação do réu no libellus contraditionis. O autor redigia pessoalmente através de um funcionário do Estado ou do tabularius o requerimento dirigido ao magistrado que, reconhecendo a existência da tutela legal ao pedido, e após a prestação da caução, determinava que fosse expedida a citação por libellus conuentionis. A citação ocorria através de um funcionário público denominado exsecutor, o qual entregava ao réu o libellus conuentionis e recebia as sportulae, que eram custas proporcionais ao valor da causa. O réu, a partir do recebimento do libellus conuentionis ou conveintionis, tinha 10 (dez) dias para apresentar garantias de que compareceria em juízo (cautio iudicio sisti) bem como negar por escrito e de forma sumária as alegações do autor. Este documento era denominado libellus contradictionis e seria enviado para o conhecimento direto do autor. As partes durante o direito justinianeu tinham 20 (vinte) dias para comparecerem diante do juiz. A figura do procurador representante das partes em juízo surge nesta fase do processo romano, contudo, a idéia da representação ainda não era reconhecida como atualmente, pois a sentença era proferida em relação à parte que comparecia em juízo. 252 Um outro aspecto inovador se refere a que o processo poderia tramitar sem a presença de uma das partes diante do juiz. Esta situação caracterizava a contumácia que, em relação ao réu, poderia ocorrer quando não fosse localizado para a citação ou quando, embora citado, deixasse de comparecer em juízo em qualquer momento do processo. Poderia ocorrer a contumácia do autor quando este, após iniciado o processo com a citação do réu, deixasse de comparecer em juízo para dar prosseguimento ao processo apresentando a litis contestatio; neste caso, o réu poderia pedir ao juiz que, decorridos 10 (dez) dias sem o comparecimento do autor, aquele fosse absolvido da instância e o autor condenado a realizar o pagamento de uma multa ao réu igual ao dobro das custas que este tivesse pagado. Após a superação da fase inicial, se o autor abandonasse o processo por dois anos e meio, e após ter sido intimado por 3 editos, não comparecendo, a causa seria julgada, podendo o réu ser absolvido ou condenado, entretanto, o autor seria nesta situação sempre condenado a pagar as custas processuais, como penalidade pela contumácia. A contumácia era a exceção, pois, normalmente, as partes compareciam à presença do juízo no dia designado, o que poderiam fazer pessoalmente ou através de um procurador. Não era exigida a caução nas 253 ações reais, quando as partes compareciam pessoalmente, das pessoas ilustres e daqueles que não possuíssem bens. Havia a obrigação das partes e de seus procuradores, quando estes fossem constituídos, da prestação do iusiurandum calumniae, que consistia no juramento de calúnia, ou seja, as partes perante às escrituras juravam que estavam em juízo por acreditar na defesa do direito requerido e não por chicana. O contraditório era valorizado, sendo que em audiência as partes debatiam oralmente suas alegações, sendo que a complexidade da causa determinava a forma e o número de vezes em que isso ocorria. Era admitida a reconvenção. Era estabelecido um prazo para o julgamento da ação, sendo que a partir da litis contestatio, o magistrado tinha 3 (três) anos para proferir a sentença. As provas escritas tinham prevalência sobre as demais327. Prevalecia a regra segundo a qual o ônus da prova incumbe a quem alega. Em ordem de prevalência às provas, era atribuído o seguinte valor: documentos públicos redigidos por funcionários no exercício de suas funções; instrumenta publica ou instrumenta publice confecta, documento redigido em praça pública por notários ou pelos tabelliones, 327 ALVES Moreira. Op. cit. p., 249. Exposta a questão ao juiz, fazia-se mister que cada um dos litigantes procurasse demonstrar a veracidade dos fatos que alegara. Daí, a fase probatória, onde as partes produziam suas provas. Na extraordinária cognitio, ..., não gozava o juiz de ampla liberdade para a avaliação das provas, pois, os imperadores, em constituições imperiais, estabeleceram algumas regras em virtude das quais não só certas provas deveriam ser consideradas superiores a outras, como também a algumas não poderia dar o juiz qualquer valor. 254 que não eram funcionários do Estado, mas gozavam de fé pública; instrumentos privados, cujo valor dependia de terem sido redigidos perante testemunhas e assinados pelas partes e por estas. A prova testemunhal não desconstituía a prova documental, ressalvada a hipótese da invalidação através da perícia do documento escrito. Nos casos em que fossem ouvidas testemunhas, estas deveriam prestar o juramento de dizer a verdade. Admitia-se ainda a prova pericial328, o juramento329, a confissão330, o interrogatório em juízo e a presunção331, que poderia ser praesumptio hominis (extraída pelo juiz dos elementos da demanda) ou praesumptio iuris (estabelecida pela lei, podendo ser iuris tantum – admite prova em contrário, ou, iuris et de iure – é absoluta. É interessante observar que a publicidade dos atos processuais é limitada, pois, enquanto nos períodos anteriores os atos procedimentais ocorriam em grandes espaços abertos, nesta fase, surgem os recintos e ambientes restritos onde são realizadas as audiências. Excepcionalmente, quando a causa demandasse grande 328 Ibidem, p. 250. ... os peritos valem-se de processos ainda hoje utilizados, como a comparatio litterarum (comparação de letras) e a manus collatio (cotejo entre o documento impugnado e outro escrito pelo punho de quem deveria ter sido o autor do primeiro); ... havia as comadres, que eram peritas a quem incumbia verificar se uma mulher estava, ou não grávida. 329 Ibidem, p. 250. ... o juiz, sendo insuficientes as provas apresentadas, pode deferir o juramento a uma das partes, que, se o prestar, se exime de ter de produzir outra espécie qualquer de prova, pois, se considera provado o fato objeto do juramento; 330 Ibidem, p. 250. ... no processo extraordinário, valia como causa para a condenação, ... , ao que confessou era concedido prazo para ser executado; demais, nem sempre a confissão tinha força probante: assim, por exemplo, não era ela suficiente para transformar um colono um homem livre; 331 Ibidem. p. 250. ... no processo extraordinário, o juiz podia valer-se, desde que a presunção fosse séria e estivesse em relação direta com o fato que se pretendia provar, ... 255 dificuldade, o magistrado poderia determinar a contultatio, que consistia na remessa dos autos a um magistrado superior ou ao Imperador332 para o julgamento. A sentença era escrita e, obrigatoriamente, conteria a condenação ou absolvição do réu, sendo publicada em audiência e registrada em livro. As sentenças definitivas poderiam ser impugnadas no prazo de 10 dias pelo recurso333 de apelação, que era recebido com o efeito devolutivo e suspensivo. Somente em caso de ilegalidade da apelação, o magistrado poderia deixar de recebê-la, nas outras situações, ao receber a apelação, redigia o “libelos demissórios” enviando-o com o processo para o julgamento na instância superior. Para recorrer, exigia-se o pagamento de custas processuais. O surgimento dos recursos na cognitio extraordinária teve relação direta com a profissionalização do direito.334 332 PRATA. Op. cit. p., 76. Não estando o juiz em condições de compor a lide, pode remeter os autos ao Imperador que, pessoalmente ou através de sua assessoria, prolata a sentença mediante preescrito. 333 WOLKMER. Op. cit. p., 402. Ao contrário da jurisdição ordinária, dos pretores, nela (cognitio extra ordinem) havia a possibilidade de apelo ao imperador, pois as decisões dos funcionários eram feitas por delegação do poder imperial, e a este competia rever os atos de seus delegados. 334 WOLKMER. Op. cit. p., 402. Estando na mão de leigos e não-burocratas, o procedimento formular abriu-se à influência dos juristas. Inicialmente os juristas eram homens da nobiliarquia romana que davam seus conselhos em vários assuntos a outros cidadãos ... .Eram, nessa fase clássica, apenas cidadãos privados, cuja autoridade provinha de sua posição social somada ao reconhecimento de seu saber a respeito das fórmulas e formas jurídicas, , e de sua sabedoria prática. Sob Augusto, receberam autorização para falar em nome do príncipe, isto é, do primeiro cidadão ( ex auctoritate principis). No entanto, foi com o desenvolvimento de uma burocracia imperial, centralizada em torno da Corte, que os juristas se transformaram, já a partir de meados do segundo século A.D., num grupo profissional. Servindo o imperador, participavam da administração sendo escolhidos por força de seu conhecimento jurídico. Este, por seu turno, deixara de ser apenas tradicional para transformar-se num aprendizado que se fazia em escolas, em torno dos juristas mais velhos. 256 As conseqüências da apelação eram graves, podendo chegar a casos em que ocorria o desterramento temporário e perda parcial do patrimônio do recorrente perdedor; era admitida a reforma in pejus. O sistema recursal não estava bem estruturado, sendo que, em princípio, poderia se apelar tantas vezes quantos fossem os magistrados hierarquicamente superiores, até ao Imperador. As restrições aos recursos eram mais de ordem pragmática do que propriamente procedimental, pois as condições para recorrer, como o pagamento das custas, assim como as conseqüências da derrota do recorrente, eram fatores limitantes. O procedimento na fase recursal era similar àquele adotado na primeira instância, inclusive, sendo admitida a produção de provas nos recursos. Não havendo o exercício do direito aos recursos, ou quanto se esgotassem todas aquelas possibilidades, o demandante vencedor, diante da ausência do cumprimento espontâneo pelo demandado da obrigação constituída na sentença, poderia iniciar o processo de execução através da actio iudicati. 257 7.2.2.1 A execução forçada no sistema da justiça pública em Roma O processo da cognitio extraordinária também inovou no que se refere ao processo de execução. Alguns aspectos devem ser destacados, como a criação da execução para entrega de coisa, de fazer e não-fazer; a execução passa a ser patrimonial e, excepcionalmente corporal, no entanto, neste caso, o devedor seria detido em cárcere do Estado. Adotava-se o princípio da execução menos onerosa para o devedor, logo, a expropriação se limitava aos bens necessários para a satisfação da obrigação. Antes de dar início à execução, era concedido ao devedor um prazo para o cumprimento da obrigação. Há controvérsias quanto ao tempus iudicati, o qual poderia ser determinado pelo juiz, que, no entanto, não o fazendo, deveria ser de 4 (quatro) meses, de acordo com o direito justinianeu. Decorrido o prazo sem que o devedor cumprisse a sentença espontaneamente, o credor poderia exigir a satisfação da obrigação através da actio iudicati. O devedor poderia admitir a inadimplência ou se defender alegando a nulidade da sentença ou o cumprimento da obrigação. Neste caso era adotado um procedimento semelhante ao 258 processo de conhecimento, contudo, da sentença, não era admitido nenhum recurso. De acordo com cada caso, a execução seria manu militari ou pignus judicati causa captum. A execução manu militari dizia respeito aos casos em que a obrigação era para a entrega de coisa, logo, o executado seria obrigado à restituição, caso se recusasse, ficaria sujeito à força pública que promoveria a constrição patrimonial contra a vontade do devedor. Havia situações em que se tornava impossível a entrega da coisa, havendo o seu perecimento, assim também quando a obrigação fosse para fazer ou não-fazer, ou, ainda, quando se tratasse de obrigação de quantia certa; nestes casos, havia procedimentos próprios. A pignus judicati causa captum era a ação pela qual se fazia a apreensão de bens do devedor através dos apparitores do juiz. Esses bens se restringiam ao necessário para o pagamento, sendo que o quantum era obtido por meio da venda em leilão. Havendo excedente após o pagamento do credor, seria entregue ao devedor. Outra modalidade de execução era a cessio bonorum ou concurso de credores. O devedor poderia ter mais de um credor, neste caso, também ocorria a apreensão de bens, mas estes não eram vendidos em conjunto; procedia-se ao distractio bonorum, que consistia na venda 259 parcelada dos bens, de modo que uns eram vendidos após os outros, até que fossem pagos todos os credores. Em qualquer caso, a execução era limitada pela obrigação constituída, logo, o credor somente poderia exigir daquilo que fosse objeto do débito. Apenas excepcionalmente a obrigação de entrega de coisa, de fazer ou não-fazer seria convertida em obrigação pecuniária, ou seja, tais casos ficavam restritos à impossibilidade do cumprimento nos termos inicialmente estabelecidos. Ressalta-se que, no caso da venda de bens do devedor para satisfação do credor, este receberia somente o valor devido; devolvendose excedentes acaso existentes ao devedor. O devedor que não tivesse bens poderia sofrer a pena de prisão, mas esta seria cumprida em cárcere público, ou seja, nesta fase não era admitido ao credor prender e escravizar o devedor, assim como não poderia vendê-lo ou matá-lo. Não havia se desenvolvido a teoria a respeito da classificação das ações em conhecimento, execução e cautelar como foi admitido posteriormente. Entretanto, os atos procedimentais para obter a cognição ou a execução eram realizados de forma independente. Assim eram praticados atos para obter a certeza do direito aplicável ao caso concreto, 260 e somente após o conhecimento do direito que deveria reger o caso, é que se iniciavam os atos objetivando a execução forçada. Observa-se, portanto, que a estruturação do processo foi se constituindo segundo uma lógica que tendia à segurança e à efetividade. É possível afirmar que, desde as suas origens, o processo se vinculava à idéia de estabilização da organização societária. Acredita-se que para estabilizar as relações humanas é necessária a existência de garantias mínimas que possibilitem o desenvolvimento de um senso coletivo. Os meios inerentes à concretização prática dessas garantias são afetos ao processo, sendo que os romanos tiveram essa compreensão, podendo ser atribuído a isto um dos fatores que explicam o bom nível de desenvolvimento que a sociedade romana obteve. Neste aspecto, focaliza-se a importância da segurança jurídica. Sob este ponto de vista, pode ser afirmado que o direito consiste em um eficiente mecanismo para a superação do individualismo. Ocorre, contudo, que não é suficiente a existência das garantias, é necessário, ainda, que a promessa garantida encontre as condições para sua efetivação no plano concreto. No plano da efetividade jurídica, em princípio, o Estado emprega sua força para que o indivíduo possa usufruir daqueles direitos que lhe tutelam. 261 Os romanos não sintetizaram teorias a respeito da segurança e da efetividade jurídica, mas construíram um modelo jurisdicional que permite a afirmação de que durante o período histórico compreendido aproximadamente entre 753 a. C. e 476 d. C., foi delineada a noção que a segurança jurídica está voltada para a interação entre os indivíduos e conseqüente constituição dos pontos de conexão que forma a teia social. Por sua vez, a efetividade jurídica volta-se em sentido oposto àquele, a fim de que o indivíduo, como uma unidade concreta e para o qual tende toda a formulação jurídica, tenha assegurado o bem jurídico de acordo com as regras estabelecidas, seja através de normas prévias e abstratamente estabelecidas, ou através de costumes consolidados. Por estes aspectos, entre outros, tem havido historicamente inúmeras discussões sobre formas de realização da “justiça”, sob um ponto de vista meramente procedimental, os debates e alterações legais são intermináveis. Sob uma perspectiva hermenêutico-crítico- historicista, e considerando que o direito romano representa a estrutura do “DNA” do direito ocidental é afirmado que a questão precípua está na modulação entre o contexto dos interesses coletivos com caráter sociológico e o contexto da proteção que o direito deve assegurar ao indivíduo, no caso específico, quanto aos seus bens. 262 Destacam-se alguns aspectos que caracterizam o fim da fase clássica do direito romano, como a centralização e concentração de poderes políticos, o fim das tradições republicanas e o afastamento progressivo dos leigos das tarefas de decisão dos conflitos335. 7.3 PROCESSO ROMANO-BARBÁRICO Cronologicamente, a Alta Idade Média, quando se desenvolveu um modelo diferente de organização jurídica, compreende aproximadamente meados do século II, quanto se iniciou a invasão dos bárbaros ao Império Romano até o século XI. Ressalta-se que no ano 476 d.C., ocorreu a tomada de Roma por Odoacro, sendo este fato considerado o marco histórico do final do predomínio da civilização romana336. Os invasores eram bárbaros de origem franca, ostrogoda, saxônica, angla, bávara, sueva, lombarda, visigótica, entre outros, sendo os seus costumes semelhantes, podendo ser mencionadas como características desses povos o fato de serem sedentários, mas estarem em peregrinação por causa de guerras e fome; não tinham uma organização 335 WOLKMER. Op. cit. p., 402. ... com o passar do tempo o processo deixava seu habitat leigo e concentrava-se nos círculos do novo poder do Estado. 336 NOVA enciclopédia Barsa. v. 12, p. 442. O rei godo Alarico saqueou Roma no ano 410. As forças imperiais, somadas às dos aliados bárbaros, conseguiram entretanto uma última vitória ao derrotar Átila nos Campos Catalaúnicos, em 451. O último imperador do Ocidente foi Rômulo Augústulo, deposto por Odoacro no ano 476, data que mais tarde viria ser vista como a do fim da antiguidade. O império.oriental prolongou sua existência, com diversas vicissitudes, durante um milênio, a´te a conquista de Constantinopla pelos turcos, em 1453. 263 urbana de vida; não tinham regras que garantissem direitos individuais. Há unanimidade entre os historiadores em reconhecer que durante a Alta Idade Média, houve um retrocesso no sistema de organização social, e, por via de conseqüência, no modelo jurídico. O contato entre os povos bárbaros e a civilização romana produziu uma cultura fundida entre os costumes considerados primitivos dos primeiros e os modelos de organização social constituídos no Império Romano ao longo de seus períodos históricos de desenvolvimento. Para o surgimento desse sistema, podem ser apontados dois fatores muito importantes que são o reconhecimento por parte dos povos bárbaros de que o direito romano era superior e importante para o seu desenvolvimento; bem como a influência da igreja católica, que se encontrava em processo de expansão. Os povos germânicos, como ficaram conhecidos os invasores bárbaros, adotaram um processo onde prevalecia o individualismo, a jurisdição era decorrência da eleição em assembléia de um juiz, as normas procedimentais existentes eram incipientes, apoiando-se em preceitos divinos e as regras processuais coexistiam com a autodefesa. A aplicação do direito romano-barbárico prevalece no período compreendido entre o ano 568 até 1.088. A fusão entre a tradição clássica romana e os costumes dos povos bárbaros não se encaixa em um 264 quadro de desenvolvimento da cultura jurídica sob a ótica processual337. Contudo, o pragmatismo germânico, a ausência de um conjunto de direitos e garantias a priori que tutelassem os indivíduos e a fragmentação do poder do Estado, propiciaram o surgimento de um modelo procedimental simplificado que visava à solução efetiva da causa338, ainda que ao custo da relativização da segurança jurídica, de modo que a proteção do indivíduo por regras de organização grupal não era relevante, assim como não havia a preocupação com a estabilização social ou institucional, pois o modus vivendi se desenvolvia em um regime tribal.339 Até o século XI, quando surgiram novas condições para o direito, os germânicos com o auxílio de juristas romanos haviam transformado parte de seus costumes em regras legais, sendo que a Lex Romana Visigothorum, era caracterizada como uma lei romana 337 PRATA. Op. cit. p., 82. O direito germânico primitivo era essencialmente costumeiro, na sua primeira fase, que termina por volta do ano 500 ... . Os invasores não formavam uma nação, porém um punhado de tribos. Daí porque podemos afirmar que o direito germânico primitivo era um direito tribal ... . 338 WOLKMER. Op. cit. p., 227-228. ... a partir do século V o direito romano não se furtará de conviver paralelamente com o direito germânico dos povos do norte, e, até o século VIII, observa-se a progressiva condensação desses vários direitos. Antes de tal processo realizar-se totalmente, e levando-se em conta o desmembramento do poder do Estado na Europa medieval, a segunda observação possível dessa genealogia é a característica descentralização da justiça, isto é, a dissolução da resolução das contendas particulares pelas várias autoridades temporais – os senhores feudais – agora investidas de jurisdição. ... Na alta Idade Média, a partir do momento em que deixa de existir um poder judiciário organizado, a liquidação das contendas era feita entre os indivíduos: ... (grifos nossos) 339 LOPES. Op. cit. p., 75. ... o processo era oral e o sistema de provas era o dos ordálios, cheios de testemunhas, desafios e duelos. Nas aldeias e no campo predominavam, em casos criminais, os julgamentos por ordálios, assistidos por todos. A corte senhorial é presidia pelo senhor da região, mas são os pares (vassalos) que julgam seus pares. As cortes julgam, mas são também órgãos de conselhos e de grandes deliberações. 265 barbarizada ou vulgar e tem sido considerada uma das fontes legais importantes desse período. A Alta Idade Média é historicamente uma época de crises estruturais profundas as quais determinaram uma fase de decadência, pois houve um atraso considerável em decorrência do primeiro modelo produtivo feudal340. Nessa fase, até o prestígio da igreja católica chegou a ser afetado, pois as populações, vivendo nas regiões rurais isoladas, voltaram a adotar credos primitivos. 341 A partir do século XI até o século XVI, surgiram as condições para a retomada do desenvolvimento social, econômico e cultural na Europa, sendo reconhecido para o direito o marco inicial de uma nova fase durante a Baixa Idade Média342. 340 LOPES. Op. cit. p., 74. No primeiro feudalismo (do século VIII ao XI) os reinos eram etnias sob um rei, comunidades de cristãos sob um rei, não eram territoriais propriamente. ... A diffidatio será importante para a teoria política porque será a base do direito de resistência ao tirano, ao senhor injusto. Será também importante, porque Gregório VII, durante a querela das investiduras, tomará para si o privilégio de dissolver os laços de vassalagem, interferindo diretamente no arranjo político da época. 341 LOPES. Op. cit. p., 71-72. Um ato a destacar é que a Igreja, no império ocidental, vê-se ameaçada em sua hegemonia por dois fatores: a religião pagã dos próprios bárbaros e a adesão dos mesmos bárbaros a versões heréticas do cristianismo (especialmente o arianismo). Apesar de progressivamente converter os reis (que buscavam assim uma aliança com seus súditos romanos ou romanizados) durante os primeiros séculos a Igreja foi incapaz de conter a “regressão” do paganismo. Cidades antes florescentes e sedes de catedrais e bispados foram abandonadas. Regressão ao paganismo cujo sinal é a longa vacância de sedes episcopais ... . No campo, as populações voltaram a crer no encantamento dos bosques e nas forças da natureza, na mesma medida em que as áreas cultivadas e as estradas iam sendo abandonadas. 342 WOLKMER. Op. cit. p., 403. Entre Justiniano e o século XI da Era Cristã, quando os textos jurídicos que mandara reunir passaram a ser recuperados e estudados na Itália setentrional (Bolonha)), a porção latinizada da Europa conheceu o fim das organizações relativamente estáveis e centralizadas do Império Romano 266 7.4 PROCESSO JUDICIALISTA Não há uma coincidência quanto às datas referentes à fase denominada período ou processo judicialista e o início da Baixa Idade Média ou Segundo Feudalismo343. No entanto, é possível verificar a existência de uma proximidade cronológica, pois entende-se que o período judicialista começa no ano de 1088 com a fundação da Escola de Bolonha e se encerra em 1563 com a publicação do livro “Prática Civil e Criminal e Instrução dos Escrivões”, de autoria de Moterroso. A Baixa Idade Média, que é caracterizada pela última fase do feudalismo, estende-se entre os séculos XI e XV. Os aspectos culturais, econômicos, sociais e políticos da baixa idade média refletiram no tipo do modelo jurídico adotado naquele período histórico. A economia autosuficiente e tipicamente agrária foi substituída gradativamente por uma economia comercial. No plano social a estrutura rígida dos feudos foi cedendo lugar ao surgimento da burguesia que era uma nova classe social originária da acumulação de bens decorrentes das práticas mercantis. Politicamente foram se 343 LOPES. Op. cit. p., 74-75. O segundo feudalismo, ..., estabelece-se entre 1050-1150, justamente no período de surgimento do direito canônico e civil nas universidades. ... Há paralelamente um sistema de justiça feudal e senhorial. A justiça é o centro da vida jurídica. Dar regras gerais (ou seja, legislar) e dar regras particulares (julgar) são apenas duas formas de se fazer justiça. ... Nestes termos, a atividade legislativa é uma forma de justiça. ... Governar é sobretudo administrar a Justiça. Antes do estabelecimento de poderes estatais nacionais, as decisões de justiça retributiva ou corretiva eram muitas vezes proferidas por assembléias populares: ... 267 constituindo as condições para a centralização do poder e o surgimento das monarquias nacionais européias. Durante esse período, ocorreram as Cruzadas que representam a importância da Igreja e da grande religiosidade do homem medieval. Conquanto durante o período da Alta Idade Média não tenha havido um satisfatório desenvolvimento dos estudos a respeito do direito, com a criação da Escola de Bolonha esta situação se altera e o direito romano, sobretudo, o Corpus iuris civilis passa a ser estudado sistematicamente pelos glosadores344. O ambiente social da Baixa Idade Média propiciou o aprofundamento dos estudos de direito fazendo ressurgir as preocupações com sua organização e com as instituições que lhe estruturam a aplicação. As relações sociais apresentam uma dinâmica que historicamente parece apontar para ciclos que levam à concentração do poder e subseqüente esfacelamento da sua estrutura. Este fenômeno pode ser associado à tentativa de preservação do status quo vigente para os integrantes dos grupos de poder, o que termina por criar resíduos345 negativos no ambiente, de onde emergem os quadros diferenciados na 344 WOLKMER. Op. cit. p., 229. Estabelecida a legitimidade divina no decorrer da baixa Idade Média, resta saber como essas leis foram organizadas. Um momento fundamental para compreender o fenômeno do direito canônico, por ser este um direito escrito, é o de sua compilação. Após intensa atividade jurisdicional, a Igreja passou a considerar o antigo direito romano como legislação viva – embora esparsa -, que deveria ser interpretada por doutores abalizados pelo clero nas universidades como a de Bolonha, responsáveis pelo sentido oficial dos textos romanos. (grifo nosso) 268 reorganização social. Esse cenário tende a um processo de repetição contínua, porém, sempre diferenciada. Durante a primeira fase do feudalismo, a Igreja enfrentou algumas dificuldades as quais estiveram vinculadas à descentralização do poder, entre outras causas, no entanto, esta mesma situação tornou propícia a ascensão do Direito Canônico como forma de ocupação do poder. Assim, o processo judicialista representa um dos aspectos do ressurgimento do direito romano e também uma das pontes para a estruturação do direito canônico e da própria dogmática jurídica. A Igreja como detentora do poder passou a justificá-lo também sob o ponto de vista laico, desse modo após Irnérios346 ter descoberto em Pisa um exemplar do “Digesto” e tê-lo estudado juntamente com seus alunos, a Universidade de Bolonha foi credenciada como um grande centro de estudos na Itália, uma vez que, inicialmente, havia o controle do clero sob a interpretação literal que era realizada a respeito dos textos legais originários de Roma. Podendo ser afirmado que a Universidade de Bolonha era o centro onde se desenvolvia sob o controle da Igreja os estudos a respeito do direito. Paralelamente a isto, outro aspecto 345 DICIONÁRIO brasileiro da língua portuguesa, v.2, p.1502. Resíduo ... . 8. Sociol. Elemento cultural que sobreviveu a mudanças com as quais está em contradição. 346 PRATA. Op. cit. p., 100. Irnérius, fundador da Universidade de Bolonha, em 1088, alcunhado “archote do direito”, “lucerna iuris”, “primus illuminatur scientiae nostrae”, assumiu a cátedra de direito romano, criando escola, fazendo recrudescer o seu prestígio que mais salientava pela interpretação dada aos textos romanos acomodada à prática das instituições vigentes. 269 importante para a organização do processo judicialista se refere ao interesse dos monarcas em concentrar poderes através da adoção de um direito comum que subtraísse o poder dos nobres, que aplicavam uma legislação local. A Universidade de Bolonha marca historicamente a retomada do progresso nos estudos do direito processual. Mesmo durante a fase de maior desenvolvimento das instituições processuais, em Roma não havia uma organização entre os juristas daquela época que tivesse possibilitado estudos sobre as normas processuais. Tais preceitos decorriam mais de uma estrutura de organização governamental, devendo ressaltar-se que sequer havia uma formulação sobre a existência das regras de caráter material e instrumental. A Escola dos glosadores caracterizou-se pelo respeito ao texto original e ao apego sistemático ao Corpus Juris Civiles, buscando uma interpretação literal daquela lei romana. As glosas eram anotações realizadas junto ao texto da obra de Justiniano, apostas nas laterais e às vezes em entrelinhas, com o objetivo de aclarar o texto da lei romana347. Havia a preocupação em não se alterar o sentido do texto originário. 347 PRATA. Op. cit. p., 101. ... quase sempre a força e o prestígio das glosas cresceram assustadoramente, tanto que, na prática, aplicava-se mais a glosa do que o texto original. 270 Os glosadores visavam, inicialmente, constituir um direito comum que assegurasse a manutenção do poder da Igreja, tanto que esta apoiou seus estudos, prestigiando seus trabalhos. Não houve êxito no objetivo de popularizar o direito fundado na interpretação literal do Corpus Juris Civilis.348 Deve ser lembrado que durante a Idade Média ocorreu a ascensão da filosofia sob um prisma teológico. Aos glosadores coube também a elaboração das sumas que eram pequenos compêndios a respeito do direito processual. Através desses documentos, surgiu a idéia de fases processuais encadeadas através de um sistema de procedimentos que se sucedem uns aos outros, denominados tempos. Esses estudos levaram ao reconhecimento do instituto da preclusão. O Corpus Júris Civilis apresentava obscuridades e contradições, sendo que o seu estudo completo pelos glosadores demorou por um século e meio, o que, no entanto, não alterou aquelas características, uma vez que a fidelidade ao texto original era uma exigência. Associado a isto, ocorreu o acirramento da disputa entre os poderes seculares da Igreja e imperiais. Esses fatos estavam intrinsecamente ligados com as profundas alterações sociais que 348 WOLKMER. Op. cit. p., 403. A Idade Média conheceu também o problema político central da separação entre Igreja e Estado, separação de jurisdições, autonomia dos respectivos representantes e disputas de poder entre eles. Se a cristandade era inerentemente unitária, quem detinha o poder final de dizer o direito? Essa disputa, como se verá, está na origem do processo moderno. (grifos nossos) 271 ocorriam com o surgimento do processo de acumulação de riquezas através das práticas mercantis e com a crescente consolidação da classe social denominada burguesia. Esse ambiente foi propício para o desenvolvimento dos Estados Nacionais, para a unificação da jurisdição e estruturação do direito processual. Nesse contexto de mudanças, a Escola dos Glosadores tornouse obsoleta, tendo ocorrido o aparecimento da Escola dos Ultramontanos caracterizada pela tentativa, por parte de seus autores, em encontrar, na aplicação do direito romano, soluções para problemas práticos do cotidiano da sociedade dos séculos XII e XIII. A Escola dos Ultramontanos também não conseguiu superar os problemas decorrentes das incongruências do Corpus Júris Civilis. No século XIV, surgiu a Escola dos Pós-glosadores349 que procurou adaptar o direito romano ao contexto histórico daquele tempo. Para tanto, admitiram uma interpretação mais elástica do direito justinianeu, não raras vezes afastando-se do Corpus Juris Civilis, criando verdadeiramente novos preceitos que tinham como inspiração o trabalho já produzido pelos glosadores através das glosas e sumas. A Escola dos Pós-glosadores é caracterizada pelo empenho em 349 PRATA. Op. cit. p., 104. Surgiu no século XIV a chamada Escola dos Pós-Glosadores, também denominada Escola dos Comentadores, porque seus integrantes se valeram dos comentários aos textos romanos estudados, assim como os glosadores da glosa se utilizaram. 272 dar aplicabilidade prática ao direito, de modo que este tivesse uma utilidade para o povo. Algumas questões devem ser observadas, como é o caso da preocupação com a criação de instrumentos que assegurem a aplicação do direito, inicia-se uma valorização do direito processual e, por conseqüência, os estudos a seu respeito passam a ter uma dinâmica diferenciada, ou seja, abre-se espaço na cultura jurídica para o reconhecimento do direito processual como um ramo específico do direito. A emergente estrutura social e política, por sua vez, visando à centralização do poder como meio de elevar a burguesia, que já era detentora do controle econômico, ao centro das decisões políticas, procurou oferecer à população uma alternativa para a realização da “justiça”, de modo que foram constituídos os mecanismos para que o povo tivesse acesso ao direito. A Igreja neste cenário teve seu prestígio e poderio abalado porque o “bem” e a “justiça” não seriam realizados exclusivamente no ambiente estabelecido por ela, mas, gradualmente se organizaram os meios para sua concretização no plano laico. Este foi o quadro que levou à separação entre a Igreja e o Estado. A burguesia detentora do poder econômico pôde separar-se do Vaticano e, para isto, um dos meios usados foi a disseminação do direito para o povo e a promessa da realização da “justiça” entre os homens com base em valores humanos. 273 Deve ser destacado que os princípios aplicados pelas jurisdições vinculadas à instituição do Estado que estava se estruturando eram originados da jurisdição do clero. Havia uma similaridade entre a aplicação da “justiça” realizada pela Igreja e pelos reis e imperadores, sendo que a diferença fundamental estava nos seus fundamentos 350. Nesse contexto de disputa de espaço na organização e estruturação da sociedade medieval, duas questões foram relevantes para a Escola dos Pós-glosadores, uma se refere à necessidade de adaptar o direito romano clássico à realidade do século XI e seguintes; outra, relaciona-se com a importância do método escolástico351 o qual propiciou a realização de estudos sistemáticos a respeito da aplicação da “justiça”. 350 WOLKMER. Op. cit. p., 405. Os conselheiros dos reis também freqüentavam as universidades e influenciavam as decisões quanto à justiça: os reis mesmos precisavam organizar suas cortes de modo a fazê-las atraentes para os súditos. Com isto podiam neutralizar tanto os poderes locais (cortes baronais e senhoriais) quanto os tribunais eclesiásticos (que pretendiam jurisdição sobre negócios contratuais _ por força da promessa e do juramento ali implicados, como sobre heranças e testamentos). Por outra parte, muitos eram os casos em que por negociação as partes submetiam suas diferenças ao arbitramento segundo as regras do processo canônico; tratava-se de uma competição clara, obrigando o rei a adaptar-se ao novo processo e a impô-lo. Os julgamentos régios destacavam-se, progressivamente, da pessoa do rei e da corte (conselho ou parlamento) para serem entregues a conselhos especialmente criados, compostos por letrados, isto é, juristas treinados nas universidades. O processo ali desenvolvido, em geral, seguia os moldes do processo canônico, sempre que possível. (grifo nosso) 351 NOVA Enciclopédia Barsa, v. 5. p. 469. Entende-se em geral por escolástica o ensino teológicofilosófico da doutrina aristotélico-tomista ministrado nas escolas de conventos e catedrais e também nas universidades européias da Idade Média e do Renascimento. Como sistema filosófico e teológico a escolástica tentou resolver, a partir do dogma religioso e mediante um método especulativo, problemas como a relação entre fé e razão, desejo e pensamento; a oposição entre realismo e nominalismo e a probabilidade da existência de Deus. 274 Durante o período judicialista, desenvolveu-se também a Escola Humanista ou Histórico-Crítica ou Cujaciana352. Seus trabalhos foram realizados na Alemanha, França e Itália, no século XVI, principalmente. Essa escola do direito pautava-se fundamentalmente na história remota do direito, realizando seus estudos através da tradução de textos da Grécia e da Roma antiga. As traduções feitas pela Escola Humanista foram importantes para a compreensão do direito e da necessidade de sua inovação. Podem ser criticados por terem defendido a preservação integral e a aplicação do direito antigo, o que significaria um retrocesso.353 No final da Idade Média no século XV, o ambiente social europeu estava transformado, sendo que a separação do trabalhador e dos meios de produção através do trabalho assalariado sinalizou para o surgimento de um novo modelo que possibilitou a acumulação econômica nas mãos da burguesia e a concretização dos Estados Nacionais, com a queda dos regimes absolutistas e a separação dos poderes do clero e laico. O trabalho dos juristas no sentido de dar uma aplicação prática ao direito que deveria regulamentar esta nova 352 PRATA. Op. cit. p., 110. A Escola Humanista não prestou grande contribuição ao direito processual. Merece, entretanto, uma referência especial a obra do alemão Benedito Carpzow. Preferimos, todavia, incluí-lo ente os componentes da escola dos práticos. 353 PRATA. Op. cit. p., 108. As interpretações humanistas caíram ruidosamente no conceito dos doutos, enquanto a glosa e os comentários dos bartolistas cresceram a tal ponto de serem considerados os verdadeiros fundadores do direito moderno. Mesmo assim, “ofereceram uma grande contribuição tão somente para ilustrar o direito mais antigo. Neste sentido, a obra e a atividade de Donelo e Cujácio foram verdadeiramente maravilhosas”. (Riccobono) 275 sociedade, havia se desenvolvido bem, e prenunciava o surgimento da escola praxista do direito. 7.4.1 Direito Canônico Há um consenso no sentido de reconhecer a importância do direito canônico354 para o ocidente, podendo ser afirmado que coube à Igreja o papel de preservar a cultura dos romanos e de, posteriormente, transmiti-la através das universidades. Durante a Idade Média foram observadas crises recorrentes no sistema de organização da sociedade, acreditando-se que estas situações decorriam da ausência de uma estrutura mínima de regras que regulamentassem as relações entre as pessoas e entre estas e as coisas, e, principalmente, de um modelo padronizado de solução dos conflitos que surgiam entre as pessoas. Coube à Igreja recuperar o Corpus Iuris Civilis, fundar as universidades para o estudo do direito romano e criar regras mais ou menos uniformes para a solução dos casos que estivessem afetos à sua jurisdição. Os princípios do direito canônico foram fundamentais para a constituição do direito contemporâneo ocidental, sobretudo, no que se 354 TUCCI, José Rogério Cruz; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de processo civil canônico (história e direito vigente), p. 15. O ius canonicum pode, pois, ser definido como “o conjunto de normas jurídicas, de origem divina e humana (mas sempre de inspiração divina), reconhecidas ou promulgadas, por autoridade da Igreja Católica, que determinam a organização e atuação da própria Igreja e de seus fiéis, em relação aos fins que lhe são próprios”. 276 refere à preocupação com a humanização das relações jurídicas e com a importância da constituição das regras eqüitativas para o regulamento das relações sociais. A filosofia cristã fundada no amor ao próximo, no perdão e na caridade afastou do direito, a partir do século XI, as penas cruéis, os sacrifícios sangrentos próprios das ordálias e dos juízos dos deuses germânicos355. Também foi repelida a autodefesa. O direito canônico foi organizado a partir do papado de Gregório I (Gregório Magno) que ocorreu entre os anos de 590 e 604. A Igreja não era centralizada e hegemônica, sendo que as primeiras iniciativas no sentido de se alcançar aqueles objetivos foram tomadas por Gregório I que determinou o envio de monges missionários aos lugares mais distantes do ocidente com o objetivo de unificar a Igreja. As cruzadas que foram organizadas pela Igreja entre 1096 – Primeira Cruzada e 1270 – final da oitava Cruzada tiveram finalidades semelhantes. Dessa forma, não se tratava apenas de divulgar a fé cristã, mas da estruturação do poder em uma sociedade desorganizada por conflitos decorrentes das invasões bárbaras e da ausência de um modelo 355 TUCCI,José Rogério Cruz; AZEVEDO. Luiz Carlos de. Lições de processo civil canônico (história e direito vigente), p. 39. A Igreja condena as ordálias, que somente seriam utilizadas como instrumento subsidiário de convencimento do juiz. A prova racional suplanta então o sistema probatório germânico. 277 de administração das questões relativas à vida em comunidade, inclusive no que se refere a aplicação do direito.356 Pode ser afirmado que durante o período de 400 anos, desde Gregório I até Gregório VII, a Igreja buscou a centralização, hegemonia e uniformização das suas práticas. Desse modo, por volta do século X, estavam criadas as condições para as reformas promovidas na Igreja por Gregório VII, as quais serviram de modelo para a constituição dos Estados Nacionais.357 A importância das reformas promovidas por Gregório VII se relaciona com o fato de que até então havia a confusão entre o poder político e espiritual dos reis. Não havia se estabelecido a idéia de limites e esferas do poder, de competência para o exercício do poder. Desse modo, a Igreja ficava subordinada em cada região ao poder do imperador, que, por sua vez, poderia adotar práticas que divergiam dos 356 LOPES. Op. cit. p., 84. O evento que marca um ponto de passagem na história do direito canônico é a transformação radical liderada por Gregório VII (papa entre 1073 e 1085). Até então, a Igreja do Ocidente havia sido uma comunidade sacramental, espiritual, não jurídica e muito mais uma federação de Igrejas nacionais do uma rígida monarquia centralizada em Roma. A disciplina comum era muito menos intensa do que se pode imaginar. Certo que o esforço do bispo de Roma, o papa, havia sido sempre no sentido de exercer uma hegemonia sobre a Cristandade latina, Gregório Magno (papa entre 590 e 604) enviara missionários (monges) até os confins do Ocidente, encarregara Agostinho de Cantuária de estabelecer o cristianismo firmemente na Inglaterra ... 357 LOPES. Op. cit. p., 85. Nestes termos, a tradição latina anterior a Gregório VII é mais pluralista e também mais sujeita à influência política. Para contrapor-se a esta espécie de subordinação ao poder civil, as medidas desencadeadas por Gregório VII constituirão um conjunto destinado a marcar o Ocidente. Tornam-se exemplares do que virá a ser o Estado: dominação burocrática (conforme a tipologia weberiana) racional, legal, formal. Neste espaço político é que se desenvolve o direito canônico. ... Gregório VII propõe-se libertar a Igreja Ocidental inteira, e isto só pode ser feito organizando um poder político que seja mais eficaz do que o de seus adversários. Terá sucesso, e daí por diante serão os institutos de direito canônico, particularmente o desenvolvimento racional e formal do processo canônico, que serão imitados por reis, príncipes e senhores seculares. Por este caminho é que a Europa reencontrará sua tradição jurídica racionalizante e formalizante. 278 princípios cristãos. De fato, havia várias Igrejas de origem católica, como ainda hoje, sabe-se da Igreja Anglicana e na Igreja Ortodoxa. Gregório VII organiza a Igreja através de uma burocracia racionalizada, estabelece que a autoridade e a capacidade de governar é limitada a um povo em determinado território; que o Papa é a autoridade suprema da Igreja; que os bispos somente podem ser nomeados pelo Papa. 358 Com a reforma gregoriana, a Igreja estava organizada de modo centralizado, hegemônico, uniforme e burocrático359. A partir de então, tem ocorrido o aperfeiçoamento do modelo adotado primeiramente pela Igreja através do direito canônico. A reforma provocou conflitos que culminaram com a guerra das investiduras360 e com a Concordata de Worms361, de modo que na eleição dos bispos o imperador teria o direito de participar, mas a investidura seria exclusiva do Papa362. 358 LOPES. Op. cit. p., 88. O império era, pois, uma entidade militar/espiritual, não geográfica. Vigorava ainda muitas vezes o princípio da personalidade (ou pessoalidade) das leis e, sobretudo, a força dos costumes locais. O rei legislava pouco, eventualmente decidindo como árbitro. Contra esta concepção de império, a reforma de Gregório será um golpe fatal. 359 LOPES. Op. cit. p., 89. A reforma gregoriana teve um aspecto revolucionário, na media em que um dos atores sociais predominantes no tempo, o clero, mudara de posição e impusera reformas institucionais de maneira consciente e rápida. A convulsão social parece ter sido grande e violenta. A Reforma de Gregório VII é considerada por Berman a primeira revolução do mundo do mundo Ocidental, pois foi rápida, total, universalizante, socioeconômica. 360 TUCCI, AZEVEDO. Op. cit. p., 46. Desse embate de poderes surge a célebre “querela das investiduras”, iniciada entre Henrique IV e Gregório VII, ensejando profícua discussão teórica e, conseqüentemente, uma rica literatura entre os juristas da época, a respeito da soberania e da lei. 361 TUCCI, AZEVEDO. Op. cit. p., 47. Tal concordata entre soberanos e pontífices não significava apenas um protocolo de intenções entre as hierarquias civil e eclesiástica, mas sim o desejo de uma eficaz colaboração recíproca, deveras necessária, quer sob o aspecto espiritual, quer sob aquele político-jurídico. 362 LOPES. Op. cit. p., 89. Com isto, no Ocidente não se afirmou uma teocracia. Nem os reis conseguiram afirmar-se como donos e líderes das respectivas religiões nacionais, nem o clero conseguiu colocar-se acima da lei e julgar o Estado civil. 279 A obra fundamental desse período para o direito canônico surgiu aproximadamente no ano 1140, sendo conhecida como Decreto de Graciano ou Concordia Discordantium Canonum, tratava-se de uma coletânea de mais de 3.800 textos cuja aplicação não era obrigatória para os juízes, mas que tinham grande utilidade na solução das antinomias dos cânones. Para tanto eram empregados quatro critérios: a) ratione significationis; b) ratione temporis; c) ratione loci; d) ratione dispensationis. Os canonistas estudiosos do Decreto de Graciano eram chamados decretistas363. Nesse contexto em que a Igreja exerceu um papel decisivo para o direito, as decretais364 foram significativas porque representavam uma fonte do direito canônico. Os concílios365 também foram 363 LOPES. Op. cit. p., 95. Começava na Igreja uma crescente hegemonia de canonistas, que foram constituindo uma espécie de carreira e de burocracia. Aliás, foi a primeira burocracia moderna do Ocidente. 364 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 29. ... também se verificou a praxe de consultar-se diretamente o Papa acerca de alguma questão relativa à disciplina monástica, ao matrimônio, à penitência etc. Em resposta ao consulente, filho da Igreja ou membro do clero, o Papa emitia uma epistula decretalis. A regra contida em tal manifestação, a exemplo dos rescripta dos imperadores romanos, passa a gozar de força normativa (fins do séc. IV) e, portanto, é fonte de revelação do direito canônico, conservada nas compilações canônicas. A autoridade do Pontífice é marcada pelo emprego nas decretais da terminologia decernimus, constituimus, praecipimus, definimus, prohibimus ... (grifos nossos) 365 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 28. Apesar da notícia da realização de alguns concílios nos primeiros séculos do cristianismo, foi somente a partir do século IV que ganharam importância. A disseminação permitida da religião cristã na sociedade romana, a multiplicação das comunidades de fiéis, o substancial aumento patrimonial da Igreja e a ocorrência de graves discórdias religiosas impuseram a convocação dos bispos para se reunirem em concílios ecumênicos e regionais. ... Os concílios são presididos geralmente pela autoridade que os convoca. Durante a Idade Média o próprio Papa passa a dirigir os concílios ecumênicos. Nessa época também, especialmente nos séculos XII e XIII, houve uma célebre polêmica acerca da supremacia dos concílios sobre o Sumo Pontífice ou viceverso. Da atividade doutrinária e judiciária dos concílios são extraídos os cânones, que constituem importante fonte de direito canônico. (grifo nosso) 280 importantes, sendo que o IV Concílio de Latrão realizado em 1215366, destacou-se porque representou um avanço na consolidação do direito canônico quanto à organização e unificação das normas adotadas pela Igreja. Nesse cenário de unificação da Igreja, destacam-se os tribunais da Inquisição, que visavam a imposição da fé aos hereges. Há notícias de condenações à morte de hereges pela Igreja desde o século II, contudo foi no IV Concílio de Latrão que ficou instituído o processo inquisitorial. A criação do primeiro Tribunal do Santo Ofício367 ocorreu por iniciativa do Papa Gregório IX em 1236. Os tribunais da inquisição foram extintos em 1859. Se por um lado no IV Concílio de Latrão foi estruturado o processo através da adoção do sistema inquisitorial e, posteriormente, organizados os Tribunais do Santo Ofício com o objetivo de impedir a adoção de práticas religiosas distintas daquelas pregadas pela Igreja, também neste concílio foi proibido aos clérigos participarem como testemunhas de processos em que o julgamento dependesse de ordálios ou juízos de Deus. Com isso é possível perceber que conquanto o sistema processual, sobretudo, quanto às provas fosse muito violento nos 366 LOPES. Op. cit. p., 95. Inocêncio III (reinado de 1198 a 1216), papa durante o IV Concílio de Latrão (1215), formado em cânones em Bolonha, deixou outras tantas decretais e racionalizou especialmente o processo. 367 LOPES. Op. cit. p., 95. Porque escapavam da jurisdição ordinária (dos bispos locais) e porque dispunha de regras processuais próprias, a inquisição constituiu um tribunal de exceção. 281 Tribunais da Inquisição, isto não se devia a adoção das práticas germânicas quanto as ordálias. A Igreja institucionalizou um modelo processual inquisitorial em que a denúncia da heresia poderia ser feita por qualquer pessoa independentemente da apresentação de provas, as investigações eram secretas e havendo suspeitas caberia ao acusado provar sua inocência. O objetivo do processo era obter a sujeição do acusado ao catolicismo, neste sentido chegou a ser admitida a tortura, que sofria restrições, como a limitação das sessões a apenas alguns minutos e a proibição de se quebrar ossos do torturado. Neste caso, a tortura visava mais ao arrependimento e a conversão do acusado que propriamente a prova do fato. A confissão não era o objetivo principal, sendo que neste caso o acusado que se arrependesse, embora passasse por humilhações públicas era absolvido da pena capital. A obra clássica a respeito do direito processual canônico foi as Decretais do Papa Gregório IX, tendo sido encomendadas ao dominicado espanhol Raimundo de Penaforte368. Essas decretais foram divididas em 5 livros, tratando o segundo a respeito do processo canônico. 368 PRATA. Op. cit. p., 112. As Decretais de Gregório IX não são uma simples compilação, porém um verdadeiro código, cuja redação se encomendou ao dominicado espanhol Raimundo de Penaforte, confessor do Papa Gregório IX, antigo professor de Lógica em Barcelona e de direito canônico em Bolonha. 282 O direito processual canônico se desenvolvia a partir do comparecimento do autor perante o juiz369 370 que lhe concedia um prazo para que trouxesse seu pedido por escrito371, devendo constar do mesmo os nomes completos do autor e do réu; a motivação da causa; o procedimento escolhido pelo autor e o nome do juiz. A citação do réu era realizada pelo juiz, sendo, contudo, a petição entregue ao demandado diretamente pelo demandante na presença do juiz. Havia diferenças quanto a forma do pedido nas ações reais e pessoais, quanto àquelas deveria haver maior detalhamento na elaboração do escrito. Em sua defesa, o réu poderia alegar as exceções dilatórias a respeito das quais se manifestava o juiz antes de abrir o prazo para a litis contestatio372 373 . O réu poderia também reconvir, sendo que neste caso, a competência do tribunal eclesiástico era prorrogada, pois, segundo o direito canônico, o tribunal da Igreja estava investido de competência universal. Em seguida, as partes prestavam o juramento que consistia em 369 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 37. Os detentores do poder jurisdicional, no âmbito da igreja, eram os bispos, os metropolitanos, os arcebispos, os patriarcas, os pontífices e o sínodo. Este era um órgão colegiado, composto de diáconos, presbíteros e bispos. 370 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 38. Os juízes tinham competência plena e exclusiva no âmbito territorial de suas respectivas paróquias (dioceses). A competência em razão do valor não guardava qualquer aspecto com a expressão econômica do litígio, mas, sim ,com a relevância que esta possuía. 371 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 38.O processo se iniciava com a tentativa de conciliação, que consistia em um ato informal cuja finalidade era a concórdia entre os litigantes. O fundamento desse instituto processual advém de valores da ética cristã. 372 PRATA. Op. cit. p., 114. A entrega da demanda pelo demandante e sua oposição à mesma pelo demandado constitui a litis contestatio. Por este ato formal que representa o fundamentum et initium ipsius iudicii, formaliza-se o objeto do litígio e seu respectivo processo, vedando-se daí por diante qualquer alteração unilateral da demanda. 373 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 61. A presença das partes era imprescindível para a celebração da litis contestatio. 283 um ato formal, através do qual era firmado o compromisso de não caluniar e mentir em juízo374. O processo canônico valorizou a ética como um preceito na relação jurídico-processual. No direito processual canônico, surgiu a noção a respeito da preclusão, pois desenvolveu-se a idéia a respeito das fases do processo, as quais eram desenvolvidas de modo encadeado e sucessivo. A fase probatória era regida pela lei, admitindo-se as provas documental, testemunhal, pericial e a inspeção judicial. A confissão desonera o acusador da prova do fato admitido pelo acusado. O ato de comunicação da sentença ocorria na presença das partes, sendo aquela proferida após o encerramento da instrução pelo juiz. A sentença deveria designar o prazo para o seu cumprimento, que não deveria ser inferior a 15 dias nem superior a 6 meses. O recurso de apelação era admitido das decisões injustas, contudo, em caso de revelia, de juízo arbitral e depois de dois recursos interpostos pela parte, não era cabível a via recursal. A apelação devolvia integralmente a causa para novo julgamento, logo, todos os aspectos da demanda poderiam ser revistos. Em relação às sentenças nulas, o recurso adequado era o de cassação. Via de regra, os recursos apresentavam o 374 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 61. O autor que houvesse oferecido prova plena de seu direito não estava, todavia, obrigado a jurar. 284 efeito devolutivo e suspensivo, sendo conhecidos e julgados por autoridade hierarquicamente superior. As sentenças transitadas em julgado poderiam ser executadas através de requerimento do exeqüente ou de ofício pelo juiz375. Naqueles casos em que não tivesse sido fixado o prazo para o cumprimento da obrigação da sentença, o executor deveria fixá-lo, respeitando os limites temporais antes mencionados376. O juízo competente para a execução era o mesmo da cognição, excepcionando-se os casos em que as partes fossem religiosos, então a execução seria instaurada perante o superior daquele que proferiu a sentença. Com fundamento nesta observação, “a doutrina especializada reconhece a natureza prevalentemente administrativa da execução”377. Era admitida a execução provisória que, contudo, poderia ficar sujeita a prestação da caução quando houvesse o risco do dano irreparável. 375 TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 145. A via do processo de execução é aberta após o “decreto executório” constante do próprio título judicial ou proferido em momento ulterior (c. 1651). E isto se justifica porque, em algumas hipóteses, impõe-se prévia liquidação da sentença (c. 1652). 376 TUCCI;AZEVEDO. Op. cit. p., 146. Tratando-se de ação real imobiliária, determina o cânone 1.655, § 1º, que a entrega do bem ao exeqüente deve ser cumprida em imediata seqüência ao trânsito em julgado. 377 TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 145. 285 Havendo a nulidade da sentença ou a restitutio in integrum378, o executor poderia deixar de promover a execução, comunicando tal fato às partes e devolvendo o processo ao juízo de origem. Apresentados sumariamente alguns aspectos do direito processual canônico, considera-se importante mencionar que o mesmo passou por diversas alterações, sendo que, em 1317, João XXII que exerceu o papado entre 1316 e 1334, através da bula Quoniam nulla reconheceu oficialmente as clementinas que instituíram o processo sumário. Após a publicação, em 1500, por Jean Chappuis de uma coleção de textos reunindo o Decreto de Graciano, as Decretais de Gregório IX, o Sexto de Bonifácio VIII, as Clementinas e as Extravangantes considerou-se instituído o Corpus iuris canonici, o qual foi alterado por diversas vezes até que em, 2 de junho de 1582, a Santa Sé aprovou e publicou uma edição oficial do Corpus iuris canonici. Neste texto, estavam incluídas as Instituições de Paolo Lancelotto que continha, no livro 3, as normas de processo civil. Em 1917, foi promulgado pelo Papa Benedito XV o Codex Iuris Canonici que vigorou a partir de 1918 até 1983, quando entrou em 378 TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 156. A restitutio in integrum constitui um remédio extraordinário de impugnação da sentença injusta, aparentemente válida, já transitada em julgado. 286 vigor o atual Código de Direito Canônico379. Durante os séculos XII a XV, o direito canônico ao lado do estudo do direito romano teve grande preponderância, inclusive exercendo um papel fundamental na constituição do direito comum adotado contemporaneamente. Atualmente, este conjunto de lei da Igreja Católica Apostólica Romana tem aplicação restrita às causas que dizem respeito às questões eclesiásticas e relacionadas com os membros do clero ou dos fiéis que professam o seu credo. Ressalta-se, no entanto, que quanto aos princípios éticos ou morais, o direito canônico conserva sua importância. Podem ser enumerados os seguintes princípios do direito canônico que são basilares para o direito processual em geral: princípios éticos como o dever de dizer a verdade, a adoção da eqüidade nos julgamentos e da boa-fé das partes; limitações aos poderes do juiz, que, embora, inicialmente, não precisasse fundamentar a sentença, com a evolução dos institutos do direito canônico submeteu suas decisões à lógica e às regras de experiência da vida; valorização da solução negociada diretamente entre as partes, buscando, através da conciliação prévia, da transação e da arbitragem, a composição direta dos interesses conflituosos. Além desses princípios, podem ser mencionadas, ainda, a 379 TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 76. O novo Código de Direito Canônico para a Igreja católica latina foi promulgado pela constituição apostólica Sacrae disciplinae leges Catholica Ecclesia, do Papa João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983, tendo entrado em vigor em 27 de novembro deste mesmo ano. 287 adoção do procedimento escrito, a admissão das exceções, a regulamentação do sistema probatório e a exigência da caução. Estes princípios foram desenvolvidos pelo direito canônico. O processo canônico foi desenvolvido com vistas à unidade, à segurança e à organização. Esteve voltado para a busca da perfeição, considerando-se que a finalidade da Igreja foi e ainda é em grande parte vinculada à realização da “justiça” de Deus na terra380. Para alcançar este objetivo serviu-se o processo canônico da lógica. Apesar da nobreza e grandiosidade do processo canônico, este sempre esbarrou no problema da morosidade381. Seu procedimento era complexo e demorado porque comportava uma infinidade de atos processuais, sendo o desafio da celeridade uma das constantes no direito processual canônico. Esta afirmação fica evidenciada com a criação de um rito sumário onde os prazos foram reduzidos e a oralidade sempre tem uma grande importância. Há que se ressaltar, entretanto, que os valores do direito processual canônico estão voltados para a fraternidade, harmonia, eqüidade e solidariedade, donde se conclui que sua realização muitas vezes demanda um considerável período de tempo. 380 TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 162. A preocupação quanto à realização da justiça, ao dispor o direito canônico que a coisa julgada só corria depois de três sentenças conforme ... ,depois reduzida a duas sentenças conformes ... . Além disso, a colocação tradicional de que as sentenças proferidas nas causas sobre o estado das pessoas jamais passariam em julgado. É o que ocorre também na atualidade. 288 Afirmar que o direito processual comum ocidental está embasado no Corpus Iuris Civilis tem algumas implicações dentre as quais a de maior relevância é o fato do transcurso do longo período de tempo existente entre o período justinianeu até à contemporaneidade. Por outro lado, há os aspectos inerentes às transformações social, econômica e, por via de conseqüência, jurídica ocorridas ao longo desses quase dois mil anos de história. Acredita-se que o fio condutor da história do direito ocidental, o viés das experiências jurídicas ao longo do tempo, a partir do século II, pode ser atribuído ao direito canônico, o qual associou valores cristãos do direito romano e do direito germânico para organizar um direito processual consentâneo com os valores socioeconômico e cultural da Baixa Idade Média e do início da Idade Moderna. As realidades sociais e o modelo econômico implantado a partir da Idade moderna alteraram significativamente a forma da jurisdição e o direito processual. Foi estruturado, durante o período do processo judicialista, um modelo jurisdicional canônico que era compartilhado pelos Estados nacionais nascentes. Como já afirmado, o sistema processual dessa época era complexo e moroso, tornando necessários os estudos de caráter mais 381 LOPES. Op. cit. p., 99. É no campo da jurisdição e do processo que a influência do direito canônico torna-se determinante. 289 pragmáticos que possibilitassem soluções práticas mais adequadas a uma sociedade mercantilista. 7.5 PROCESSO PRAXISTA O período dos práticos inicia na Idade Moderna em 1563 e termina na Idade Contemporânea em 1806, estando intrinsecamente vinculado com a necessidade de dar maior agilidade e praticidade a aplicação da “justiça”. A Idade Média é uma época de transição, ocorrendo a negação do mundo medieval, a formação do capitalismo, a consolidação dos ideais de progresso e desenvolvimento e o reforço do pensamento racionalista e individualista. Os valores da burguesia ascendente se contrapõem à ideologia católico-feudal, tendo em vista o objetivo de conquistar o espaço social, político e ideológico. Outros aspectos importantes como a alfabetização da população, o surgimento da indústria gráfica e a publicação das obras no idioma local foram preponderantes para que o sistema feudal fosse enfraquecido até à consolidação do predomínio do capitalismo. Tais circunstâncias podem ser atribuídas a fatores diversos, mas acredita-se que a burguesia tenha interferido em todos estes acontecimentos, uma 290 vez que tinha interesses na desestruturação do feudalismo, onde não lhe era reservado um espaço de poder. Dessa forma, foi buscar apoio entre o povo proclamando os ideais da liberdade, onde se questionava os tributos cobrados pelos senhores feudais para a locomoção em seus territórios e sobre as transações ali realizadas; da igualdade, discutindo o papel da nobreza decaída; e da fraternidade, questionando o papel da Igreja quanto à disseminação da ideologia do amor ao próximo. Os estudos do direito realizados nesse período são voltados para a solução de problemas práticos relativos ao funcionamento da justiça, havendo uma despreocupação e um afastamento em relação às questões teóricas que caracterizaram o período anterior. Podem ser reconhecidas as seguintes causas que justificam o surgimento do praxismo: as dificuldades que os juristas enfrentavam para realizar os estudos dos textos em latim do direito romano; a necessidade de conhecer as coisas locais e contemporâneas; o surgimento de um mercado de livros e a necessidade de obras jurídicas que tratassem das questões práticas do direito. Os estudos realizados pelos praxistas não tinham uma sistematicidade ou um método. Nos comentários produzidos nesse período, os autores se limitavam a se repetir uns aos outros as obras, 291 embora tivessem um conteúdo prático, não apresentavam nenhuma didática. O direito era tratado como arte, havia uma preocupação com o embelezamento do comentário produzido, neste sentido os praxistas chegavam a afastar-se do texto legal, distorcendo o seu sentido por considerarem que seu trabalho era mais importante que a própria lei. Com base na herança do direito romano, os praxistas382 entendiam que o processo tinha a natureza jurídica de um quase-contrato, uma vez que uma de suas características seria o livre consentimento das partes. A litis contestatio era um ato bilateral, de modo que a ausência da manifestação da vontade de uma das partes impedia a formação da relação jurídico-processual. No direito romano clássico, a primeira fase do processo tramitava frente a um juiz que representava a autoridade romana e a segunda fase se desenrolava de acordo com a escolha das partes, as quais manifestavam sua vontade em submeter a causa a um terceiro para o julgamento. O direito processual era considerado adjetivo em relação ao direito material que era substantivo, dessa forma, estabeleciam uma 382 PRATA. Op. cit. p., 131. Praxistas seriam os autores que escreveram sobre matéria processual e práticas notariais. 292 relação de dependência do processo ao direito material383. O direito processual era considerado simplesmente como o estudo da prática forense e da beleza da forma. Os estudos do processo realizados pelos praxistas foram muito criticados, porque suas obras se limitavam a tratar das práticas forenses que deveriam ser adotadas sem preocupações técnicas ou teóricas. Assim, seus trabalhos apresentavam falhas, porque não adotaram um método de estudos e nem mesmo se preocuparam com a coerência na apresentação. Também não há notícias de que tenham almejado o resultado pretendido, ou seja, não conseguiram simplificar e agilizar o processo.384 Apesar das críticas que foram feitas em relação ao trabalho produzido pelos praxistas385, houve contribuições para o direito que se desenvolveram nesse período. Considera-se que a principal contribuição foi a popularização do direito, o que ocorreu em virtude da alfabetização da população, da adoção do idioma local nas obras literárias e do surgimento da indústria gráfica que fornecia as obras jurídicas para os 383 PRATA. Op. cit. p., 128. Outra crítica injusta é a de que os praxistas misturavam normas de direito processual com as de direito material. Ora, todos os escritores procediam assim. Até nosso Código Civil, do início do século, está recheado de normas do direito processual. Não podemos nos esquecer de que o direito processual nada mais era do que direito adjetivo. 384 PRATA. Op. cit. p., 127. Quem quiser examinar a obra dos praxistas com sério cuidado científico terá que se lembrar, antes de mais nada, que eles produziram seus livros durante o período mais negro da História da Humanidade, qual seja o da Inquisição. 385 PRATA. Op. cit. p., 127. Esta imagem, dos praxistas, na realidade, foi algo distorcida pelos pregoeiros do processualismo científico, cujos estudos merecem toda consideração dos doutos. 293 estudos. No contexto do surgimento e posterior consolidação dos Estados Nacionais a disseminação do direito teve preponderância. Os praxistas produziram importantes trabalhos a respeito do recurso de apelação, do conceito de instâncias e da intervenção de terceiros. Embora seus trabalhos não apresentassem um método, tiveram a preocupação de entender o processo como o desenvolvimento de situações jurídicas, ou seja, como uma relação sucessiva de atos processuais. A citação era considerada um instituto de direito natural. Esse período teve uma importância considerável para o direito português, sendo que o termo praxista foi usado em algumas situações para designar todos os juristas portugueses. O praxismo português se originou do direito romano e do direito canônico, havendo o predomínio deste principalmente naqueles aspectos em que o direito português dessa fase apresentou melhores níveis teóricos e científicos. Considerando que no Brasil inicialmente foi aplicado o direito de Portugal, considera-se adequado afirmar que a formação do direito brasileiro está vinculada ao praximo português.386 O conteúdo das obras jurídicas desse período se referia a apresentação de modelos de formulários que deveriam ser adotados em 386 PRATA. Op. cit. p., 142. O praxismo brasileiro descende dos portugueses, especialmente de Pereira de Sousa, Lobão, Correia Teles, Manuel Mendes de Castro e outros. ... O direito processual brasileiro origina-se diretamente do direito lusitano. Mesmo depois da Independência nacional, os doutrinadores portugueses continuaram influindo grandemente na formação da cultura jurídica pátria. 294 cada caso. A parte artística da prática forense era a jurisprudência formulária387. Conquanto durante o processo praxista a finalidade dos juristas tenha sido dar operacionalidade e rapidez ao processo, houve abuso por parte dos juízes e dos advogados que ignoravam as formalidades, transformando a argumentação forense em uma ginástica de chicanas, confundindo a prudência com a astúcia. Ao praxismo foi sucedido pelo período procedimentalista que manteve como centro de suas preocupações as questões pragmáticas relativas a aplicação do direito, mas que estudou o processo não apenas como prática forense. 7.6 PROCESSO PROCEDIMENTALISTA Este período da história do direito processual representa uma fase intermediária entre um momento em que o processo foi confundido com o procedimento e seus estudos eram voltados para a criação de modelos no estilo formulários e a constituição de um arcabouço teórico que possibilitou o reconhecimento de sua autonomia e da sua 387 PRATA. Op. cit. p., 134. Consiste ela na confecção da forma literal dos fatos jurídicos, isto é, das fórmulas forenses. O complexo das fórmulas forenses, para serem aplicadas mutatis mutandis a cada caso particular, denomina-se – formulário forense. 295 cientificidade. O procedimentalismo está intimamente ligado com a Revolução francesa388 que, naquele momento histórico, representou os maiores avanços quanto à organização de um novo sistema de produção, tendo havido a superação da economia feudal e a estruturação da economia capitalista.389 A Revolução Francesa é a demonstração de que a burguesia estava pronta para assumir o poder e abrir o espaço necessário para o desenvolvimento do capitalismo. A primeira fase do movimento revolucionário que compreende o período entre 1789 e 1799, foi bastante tumultuado, contudo, permitiu que fossem estabilizadas as disputas existente em os burgueses, sobretudo, entre os girondinos e os jacobinos. No século XVIII, a burguesia dominava a economia francesa, porque o comércio, a indústria e as finanças estavam prevalentemente sob seu controle. No entanto, o poder político permanecia com a nobreza 388 PRATA. Op. cit. p., 158. A França é a pátria do procedimentalismo, razão pela qual se constitui numerosa a galeria dos adeptos da corrente no país. 389 WOLKMER. Op. cit. p., 417. A grande tentativa de reforma e ruptura do sistema judicial e processual deu-se com a Revolução Francesa, no que diz respeito ao direito continental. As funções judiciais haviam sido apropriadas por toda parte como cargos patrimoniais, como são até hoje os cartórios privados. O processo revolucionário desejava incluir a justiça na esfera da cidadania formal e liberal, e para tanto impôs novas características. Em primeiro lugar, toda justiça precisava ser (re)ligada diretamente ao Estado as jurisdições não estatais foram supridas (como a eclesiástica) ou consideradas existentes por permissão e sob a supervisão do Estado (como os tribunais mercantis). Em segundo lugar, considerando que a soberania popular se exercia pela eleição dos oficiais públicos, havia dois caminhos a seguir quanto ao aparelho judicial ou se elegiam os juízes (solução adotada inicialmente e para algumas jurisdições), ou se subordinavam os juízes à vontade popular expressa nas leis votadas pelos representantes eleitos (solução que se generaliza). Nesse segundo caso, o aparelho judicial transformou-se num corpo profissionalizado de servidores públicos, gozando de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Trata-se de um novo processo de profissionalização, que cooperava para o isolamento de uma corporação profissional dentro do Estado, ao lado do Exército regular e profissional que também se estabeleceu. (grifo nosso) 296 e o clero que gozavam de privilégios fiscais e judiciários, os quais não se estendiam àqueles. Esta situação criava contradições e contrastes insuperáveis, pois, o Rei Luis XVI exercia seu poder de forma absoluta, embasado na teoria do direito divino dos reis com o quê a burguesia era excluída do centro das decisões, entretanto, sendo obrigada a arcar com os custos da manutenção daquele Estado absolutista. Há outros fatores que influenciaram a revolução, a respeito dos quais se optou por não estudá-los para evitar o distanciamento do tema central. Em 1789, com a queda da Bastilha, foi inaugurada uma nova fase na política francesa, a qual estava amparada ideologicamente pelo Iluminismo e pelos princípios da igualdade perante a lei, o direito de propriedade e o direito da resistência à opressão. A primeira Constituição da França data de 1791 e estabeleceu uma monarquia Constitucional, sendo a autoridade estatal exercida por três poderes, executivo, legislativo e judiciário; o voto era censitário; previa a proibição da greve e da associação de trabalhadores. Através desta Constituição, houve a separação entre a burguesia e o povo. Também em 1791, foi proclamada a república na França. Em 1793, o Rei Luis XVI foi guilhotinado o que gerou a primeira coligação dos países da Europa contra a França, visando à contenção da burguesia, que poderia insurgir-se em outros locais caso a 297 Revolução Francesa obtivesse êxito. Nesse momento, a burguesia ocupava o poder estando dividida entre os girondinos que desejavam consolidar as conquistas burguesas, estancar a Revolução e evitar a radicalização. Nas reuniões do parlamento, sentavam-se à direita; os deputados da planície sentavam-se no centro, estes não tinham uma posição política previamente definida; e à esquerda, localizavam-se os jacobinos que representavam a pequena burguesia que liderava os sansculottes, defensores do aprofundamento da Revolução. O termo sans-culottes refere-se ao povo, porque usavam calças compridas em vez dos calções até ao joelho usados pela burguesia. Indicava socialmente os pequenos comerciantes e assalariados, posteriormente, o termo foi restringido às pessoas do povo que tivessem engajadas no processo político revolucionário. Esses grupos disputaram espaços durante todo o período da Revolução Francesa, sendo que após várias fases se sucedendo no domínio do poder, em 1799, com o golpe do 18 brumário foi instalado na França o regime do Consulado representado por três elementos que eram: Napoleão, Sieyès e Roger Ducos. Napoleão, que representava os girondinos, exercia uma clara liderança sobre os demais membros do Consulado, iniciando-se a era napoleônica. 298 O poder exercido por Napoleão foi uma decorrência de seus êxitos como membro do exército, tendo chegado a general aos 24 anos de idade, o que lhe atribuía a característica da disciplina e comando; da insatisfação da burguesia com a instabilidade permanente que atrapalhava o seu crescimento econômico; e do apoio do campesinato para o qual havia garantido a posse das terras expropriadas da Igreja e da nobreza emigrada. É importante perceber o contexto político em que se constitui o procedimentalismo, principalmente porque está associado à Revolução Francesa que tem significado o momento final do feudalismo e a implantação do capitalismo. Houve uma completa alteração nos paradigmas que, naturalmente, refletiram-se no campo do direito. Estavam sendo constituídas as condições para uma sociedade organizada e progressista, contudo, mais excludente. Em 1804, foi promulgado o Código Civil de Napoleão e, em 1º de maio de 1807, entrou em vigor o Código de Processo Civil da França o qual influenciou todo o direito processual no continente europeu, sobretudo, os países que foram dominados pela França. O Código de Processo Civil francês de 1807 caracteriza-se pelo procedimentalismo, portanto, sendo supervalorizada a questão probatória e o procedimento, ou seja, os atos praticados pelas partes, pelo juiz e auxiliares da justiça 299 no processo. Fundamentalmente, os procedimentalistas diferenciaram-se dos praxistas porque adotaram um método de estudo, preocupando-se com a criação de uma técnica processual que pudesse assegurar resultados efetivos na prestação jurisdicional. Considera-se interessante mencionar que a França, em 1667, através da “Ordennance” de Luis XIV, havia codificado o direito processual de forma metódica, desde então, cogitando a separação entre o direito formal e o direito material. Em 1790, houve um movimento reformista do processo civil francês, o qual visava a redução dos prazos para apelar; a obrigatoriedade da fundamentação das sentenças; a simplificação das formalidades processuais; o ius postulandi que posteriormente foi substituído pela obrigatoriedade do profissional do direito e o retorno da Corte de Cassação. Nesse ambiente, o Código de Processo civil francês de 1807 se insere em uma seqüência histórica de desenvolvimento do direito naquele país, onde desde a fase praxista eram vislumbradas questões técnicas e teóricas ainda ignoradas em outras regiões da Europa. Justifica-se, portanto, o papel de destaque da França no procedimentalismo que atualmente ainda é a referência teórica adotada naquele país. 300 Entende-se adequado afirmar que, sob o prisma historicista, os contornos do processo contemporâneo foram introduzidos na Revolução Francesa e, através do procedimentalismo, nesse sentido alguns aspectos são relevantes como a profissionalização da justiça e a busca da uniformização dos procedimentos. O sistema recursal era fundamental, pois permitia a supervisão e o controle político permanente das instâncias inferiores pelas instâncias superiores. A profissionalização da justiça e a uniformização do procedimento se traduziram em uma crescente formalização do processo que passou a operacionalizar com o conceito de verdade formal, o que, no campo probatório, repercutiu na medida em que o convencimento do julgador passou a ter parâmetros mais estreitos e, por outro lado, possibilitou a revisão das provas através dos recursos. Ainda naquele sentido, eram admitidos os recursos fundados em questões de natureza meramente formal. Percebe-se a existência de um fundamento ideológico na reforma do processo ocorrido na Revolução Francesa que se refere à estabilização dos meios da aplicação da lei e da realização da “justiça” através exclusivamente do Estado burguês. As implicações dessa atitude são inúmeras, mas uma pode ser prontamente identificada, como haver independência e harmonia entre os poderes da República? 301 Ideologicamente, a estabilização da direita girondina na França dependia da criação de uma estrutura de controle ligada ao Estado burguês. A burguesia francesa soube manejar bem com essas questões, entretanto, no plano funcional e finalístico do direito processual, as conseqüências têm sido lamentáveis, porque nesse quadro a prestação jurisdicional é excessivamente onerosa inviabilizando a existência de um Poder Judiciário tão eficiente quanto seguro, sobretudo, nos países periféricos do sistema. O procedimentalismo sob um ponto de vista técnico estruturou-se melhor que as fases anteriores, contudo, não conseguiu resolver o problema da realização da “justiça” célebre, segura e efetiva. 7.7 PROCESSO CIENTÍFICO Seriam os pressupostos do conhecimento científico capazes de oferecer respostas aos problemas relativos a aplicação do direito material através do direito processual? A segurança e a efetividade da prestação jurisdicional podem ser obtidas através do direito processual? Não parece ser possível, de forma conclusiva, responder a tais questões. Algumas considerações, contudo, podem ser feitas. 302 Sob o ponto de vista teórico, o processualismo científico representa um ganho qualitativo para as técnicas de aplicação do direito material. Quanto à operacionalidade do sistema processual há dúvidas sobre os seus reais benefícios em termos de funcionalidade e finalidades a serem realizadas pelo processo. Estas afirmações remetem a um ponto fundamental do final do século XX, o paradigma da ciência está corrompido, porque não conseguiu oferecer respostas a inúmeras questões atinentes à solução efetiva dos problemas do Homem. No campo do direito estão ocorrendo experiências similares àquelas verificadas nas ciências naturais. O direito processual como instrumento reflete, de forma clara, as frustrações produzidas através da quebra das expectativas em relação à possibilidade de uma “vida melhor construída pela ciência”. O reconhecimento do processo como uma relação jurídica que se desenvolve de acordo com determinados requisitos lógicos, que lhe impõem princípios ordenadores e asseguradores de um resultado pautado na eqüidade, foi sintetizada na fase científica do processo, contudo, houve um período de formulação daquela compreensão, sendo que, desde a história do direito na Grécia390, há notícias de preocupações com 390 WOLKMER. Op. cit., p. 76. Algo notável no direito grego era a clara distinção entre lei substantiva e lei processual. Enquanto a primeira é o próprio fim que a administração da justiça busca, a lei processual trata dos meios e dos instrumentos pelos quais o fim deve ser atingido, regulando a conduta e as relações dos tribunais e dos litigantes com respeito à litigação em si, enquanto que a primeira determina a conduta e as relações com respeito aos assuntos litigados. 303 o aperfeiçoamento da técnica do direito processual391. Do desenvolvimento desta história resultaram as concepções jurídicas que formaram o processualimo científico. A doutrina do processualismo científico foi inaugurada com a publicação, em 1868, da obra “Teoria das Exceções Dilatórias e dos pressupostos processuais”, cujo autor é Oscar Von Bülow. Foram valorizadas questões de caráter teórico, como o problema da autonomia do processo e sua cientificidade. Em relação aos períodos anteriores de desenvolvimento do direito processual, sobretudo, em relação ao praxismo e ao procedimentalismo, foram abandonados os estudos meramente descritivos e analíticos das práticas forenses. Em substituição, surgiram estudos ligados aos pressupostos do conhecimento científico contemporâneo, ou seja, aqueles realizados a partir da definição do objeto da investigação, da problematização, da justificativa, da formulação de uma metodologia de abordagem, da adoção de uma nomenclatura própria para a descrição e explicação do objeto estudado e 391 WOLKMER. Op. cit., p. 70/71. Antes do século VII a.C. os gregos não tinham leis escritas porque a arte da escrita se perdera (escrita linear B) com o término do período Micênico. A escrita, ... , somente foi reaprendida pelos gregos no século VIII a.C. e um dos usos dessa nova arte foi a inscrição pública de leis. ... o povo grego, em determinado ponto da história (por volta do século VII a.C.), começou a exigir leis escritas para assegurar melhor justiça por parte dos juízes. ... As palavras de Teseu nas Suplicantes de Eurípedes (produzida por volta de 420 a.C.) têm sido utilizadas como apoio a essa posição: ‘Quando as leis são escritas, o pobre e o rico têm justiça igual.’ ... É interessante que as maiores inovações introduzidas pelos legisladores, nas novas leis escritas, era com respeito ao processo, justamente o ponto da queixa de Hesíodo. (grifos nossos) 304 a validação pela comunidade científica do conhecimento produzido. Nesse contexto, o direito processual teve reconhecida a sua natureza jurídica publicística, uma vez que sua aplicação está diretamente ligada ao interesse do Estado392 em assegurar determinados meios aos indivíduos ou mesmo às coletividades, visando à manutenção ou restabelecimento da paz social393. Assim, foram definidos os pontos que separam o direito processual e o direito civil e comercial, estes com reconhecida natureza jurídica privatística. Tendo em vista o caráter científico reconhecido ao direito processual foram elaborados os conceitos fundamentais que deram sustentação à Teoria Geral do Processo. Neste sentido, Ramiro Podetti identificou a trilogia estrutura da ciência processual394, qual seja, jurisdição, ação e processo. Os codigos de processo do século XX surgiram como 392 ALVIM. Op. cit. p., , 91. Se o processo é meio a perseguir um fim – que se aceita como axioma – põe-se relevante que a técnica é elemento fundamental no tratamento da disciplina. O escopo do processo é, na realidade, não exclusivamente a consecução de um interesse privado das partes, mas principalmente de um interesse público de toda a sociedade. 393 ALVIM. Ob.cit. p. 89. Em 1868, Oskar von Bülow publicou célebre obra, intitulada ‘Teoria das Exceções Dilatórias e dos Pressupostos Processuais’, em que distinguia, com nitidez, o direito material controvertido e o processo, através do qual se resolvia aquela. A relação material litigiosa (res in judicium deducta) era, pois, algo de diferente da relação jurídica processual (judicium). Esta conceituação foi de extraordinária importância, eis que o processo ficou conhecido como verdadeiro ‘continente’ e a lide (retrato do direito material expressado no processo – arts. 128, 460, caput) como o seu ‘conteúdo’. A partir desta distinção passou-se a identificar, na principiologia do processo, a predominância da marca do Direito Público. 394 J. Ramiro Podetti. Teoria y Técnica del Processo Civil da Trilogia Estructual de la Ciencia del Processo civil. 305 decorrência da estruturação do direito processual395, sendo significativos modelos de sistematicidade, organização e método. Os temas são apresentados de forma compartimentada e de acordo com a classificação das ações segundo a eficácia pretendida no pedido, o que demonstra o comprometimento com os paradigmas constituídos pela ciência do processo396.397 O processualismo científico reflete um momento histórico onde se cristalizaram as teorias positivistas. O século XIX pode ser considerado um período de transição entre o mundo clássico e a modernidade com seus estilos romântico e realista se sucedendo. O Estado moderno se estruturou nesse período e o direito como instrumento de regulação nos Estados nacionalistas teve seu campo de atuação definido, ou seja, os ambientes sócio-político-jurídico estavam 395 PRATA. Op. cit. p., 187. O Código de Processo Civil de 1939 trouxe no seu bojo os postulados abraçados pela nova ciência processual. Aproveitou a doutrina chiovendiana da oralidade processual. Disciplinou condignamente o processo de conhecimento, mas manteve o processo de execução preso a um sistema de cognição, desfigurando-o até certo ponto. Assim, apesar do grande avanço num confronto com os códigos estaduais, por ele revogados, o estatuto processual elaborado por Pedro Batista Martins não conseguira renovar a legislação processual brasileira como se esperava, fato este que os estudiosos iriam observar desde logo ... (grifo nosso) 396 O Código de Processo Civil de 1973 é ilustrativo da adoção do processualismo científico no Brasil. Observa-se o rigor na abordagem dos temas, assim, o Livro I trata das questões conceituais próprias da Teoria Geral do Processo, dos procedimentos no processo de conhecimento, dos processos nos tribunais e dos Recursos; o Livro II dispõe a respeito do processo de execução; o Livro III regulamenta o processo cautelar; o Livro IV trata dos procedimentos especiais; e o Livro V regula as disposições finais e transitórias. Como se verifica houve a preocupação por parte da comissão relatora do Código em lhe dar uma vertente teórica. 397 Exposição de Motivos do Código de Processo civil de 1973. Alfredo Buzaid. Capítulo I. As palavras do insigne mestre italiano que servem de epígrafe a esta Exposição de Motivos, constituem grave advertência ao legislador que áspera a reformar o Código de Processo Civil. Foi sob a inspiração e também sob o temor desse conselho que empreendemos a tarefa de redigir o projeto, a fim de pôr o sistema processual civil brasileiro em consonância com o progresso científico dos tempos atuais.(grifo nosso) 306 preparados para a superação do pluralismo jurídico e a adoção de um direito unicamente originado do Estado. Deve ser considerado o fato de que o processualismo científico e a teoria pura do direito estão inseridos em um momento histórico conhecido pela racionalização do poder398. As teorias constituídas nesse período têm o mérito de apresentar um elevado nível científico, inclusive, porque estavam ligadas à idéia da importância do método de investigação. Observa-se que conquanto seja possível identificar um bom nível teórico-científico neste período, o problema concernente à complexidade da aplicação prática do arcabouço conceitual criado ainda não foi resolvido. Esta questão se torna mais evidente nos países cuja estrutura do Estado apresenta-se desgastada seja pelo endividamento interno e externo ou pela burocracia anacrônica que abre espaços para a corrupção. Dessa forma, os contornos da questão da efetividade e da segurança da prestação jurisdicional pode ser objeto tanto do direito como da administração pública, uma vez que o Poder Judiciário não tem 398 DINIZ. Op. cit. p., , 116-117. O racionalismo dogmático, ou melhor, a teoria kelseniana, expressão máxima do estrito positivismo jurídico, é uma repercussão ideológica de sua época, é uma conseqüência da decadência do mundo capitalista-liberal, marcado pela Primeira Guerra Mundial. Para a ciência jurídica, segundo essa doutrina, não importa o conteúdo do direito. Isto porque, como nos ensina Machado Neto e Legaz y Lacambra, essa teoria, fruto da época denominada “racionalização do poder”, devia reconhecer a existência de ordens jurídicas de conteúdo político, diverso do conteúdo liberal ou social-democrático que exibia nos povos europeus ocidentais. Deveria constituir-se numa teoria do direito que tivesse condições conceituais para admitir a existência ao lado do direito democrático-liberal, de um direito soviético, fascista, nazista. 307 autonomia financeira, portanto, permanecendo na “dependência” orçamentária da União e dos Estados, e, ainda, do Poder Legislativo, na medida em que não tem plena autonomia gerencial para determinar a criação dos órgãos jurisdicionais399. A importância da formulação dos conceitos e métodos próprios elaborados pelo processualismo científico através da Teoria Geral do Processo e a posterior Constitucionalização dos princípios processuais como meio de resguardar os direitos individuais e coletivos postos em juízo pode ser considerada fundamental para a segurança jurídica. Inegável, contudo, é a insatisfação dos jurisdicionados com os resultados apresentados pelo Poder Judiciário em termos da realização efetiva da prestação jurisdicional. Esta situação agravou-se após 1988, pois, com a promulgação da Constituição brasileira se reconheceram novos direitos, o que levou o legislador a criar as leis que os regulamentasse. A ampliação das tutelas individual e coletiva provocou a expansão da jurisdicionalização das relações jurídicas e a sobrecarga de trabalho do Poder Judiciário, o qual já se encontrava abarrotado. 399 Exposição de Motivos do Código de Processo civil de 1973. Alfredo Buzaid. Capítulo I. Depois de demorada reflexão, verificamos que o problema era muito mais amplo, grave e profundo, atingindo a substância das instituições, a disposição ordenada das matérias e a íntima correlação entre a função do processo civil e a estrutura orgânica do Poder Judiciário. Justamente por isso a nossa tarefa não se limitou à mera revisão. Impunha-se refazer o Código em suas linhas fundamentais, dando-lhe novo plano de acordo com as conquistas modernas e as experiências dos povos cultos. Nossa preocupação foi a de realizar um trabalho unitário, assim no plano dos princípios, como no de suas aplicações práticas. (grifos nossos) 308 Embora não se esteja trabalhando com dados estatísticos, mas com verificações obtidas a partir dos registros doutrinários e com as justificativas dos movimentos reformistas do direito processual no Brasil, há consideráveis razões para admitir a transformação do sistema processual, bem como a ruptura com os postulados da sua cientificidade, o que há indícios de que já tenha ocorrido. Acredita-se na necessidade da identificação das novas referências teóricas do direito processual no Brasil, pois não parece ser possível obter a estabilização, no sentido da segurança e efetividade, das relações jurídicas no campo jurisdicional a partir de casuísmos, sobretudo, porque os ambientes sócio-político-cultural onde incide o direito contemporaneamente é altamente complexo e extremamente susceptível à influência do ambiente econômico. Observa-se que, desde 1994, quando se intensificou o movimento de reforma do Código de Processo Civil brasileiro, o modelo adotado em 1973 vem passando por alterações consideráveis, sendo mais relevantes sob o ponto de vista científico aquelas que implicaram na obstrução dos compartimentos que separam os processos de acordo com a eficácia pretendida no pedido, ou seja, não há nenhum critério razoável para a classificação das ações atualmente, logo, o sistema ternário adotado pelo Código não corresponde à situação atual, assim como a 309 classificação quinária segundo as potências contidas na sentença apresentada por Pontes de Miranda400 também se revela insuficiente para explicar a ocorrência dos atos executivos no âmbito da cognição, do mesmo modo no que se refere à antecipação da tutela, com sua natureza acautelatória. O paradigma atual do direito processual brasileiro se assenta na sua instrumentalidade, acredita-se, contudo, que ainda não tenha sido sintetizado pela doutrina o adequado aparelhamento teórico que resguarde o processo dos influxos dos ambientes sócio-políticoeconômico. Esta é uma das causas pela qual o direito processual está sendo apropriado como meio para a realização dos interesses dos grupos que dominam a cena política e econômica no Brasil.401 Logo, questões teóricas basilares como aquelas referentes aos critérios para a classificação das ações, parecem irrelevantes, ou pouco importantes, ou, objeto de discussões sem caráter pragmático. 400 MIRANDA, Pontes de Francisco Cavalcante. Tratado das ações., t.1. BECKER. L. A.; SANTOS, E. L. Silva. Elementos para uma Teoria Crítica do Processo, p. 47. A instrumentalidade do processo surge como necessidade de criar um novo tipo de discurso nada científico – já que sua finalidade é conferir o atributo de disciplina nada científica a esse ramo da mecânica – ... Qualquer linguagem pseudocientífica, inclusive as da robótica, nesse passo, ajuda a preservar nichos de poder, seja o do economista, seja o do processualista, seja o do robô. ... O direito em geral e o processo em particular, para que sejam estudados com um mínimo de seriedade, precisam constantemente ser acompanhados da seguinte questão: afinal, a que interesse econômico tal ou qual instituto jurídico (processual) visa a defender? A questão não é ‘justiça de quem’ (Macintyre), mas ‘justiça para quem’ (ver Horkheimer, Max, Op. cit. p., , 45). Sem essas questões, que lhes expõem a ideologia, os operadores do direito continuarão comendo a poeira dos economistas (que, aliás, na é pouca) a ponto de serem descartados pelo mercado que defendem tão ardorosamente, qual velhas vassouras esquecidas na despensa. 401 310 As referências teóricas elaboradas pela ciência, no entanto, têm sido consideradas os pontos de sustentação do conhecimento contemporâneo, por isso a verdade sobre um determinado objeto de investigação é sempre relacionada com as teorias e métodos que estão sendo utilizados para seu estudo. Isto pode ser considerado importante porque assegurou, ao longo do século XX, o desenvolvimento de todos os setores da vida contemporânea, em que pese não ter sido possível trilhar todo o caminho na “longa batalha pela luz”. 311 8 O PROCESSO DE EXECUÇÃO INSTRUMENTAL A Revolução Francesa representa um momento de transição paradigmática porque houve a substituição da concepção da vida pautada em valores metafísicos pela humanização das relações sociais. As idéias iniciadas na Idade Moderna e que predominaram até à 2ª Guerra Mundial, correspondem a um momento histórico conhecido como modernidade402, nesse período, ocorreu a afirmação do Homem como o centro de referência de todas as coisas. A ciência foi escolhida como o meio para nortear as ações humanas. Dessa forma, o indivíduo é central e a ciência é o seu Deus. A Tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, por artesãos, operários, camponeses e servos franceses é ilustrativa daquilo que se sucederia nas camadas sociais, pois demonstra a necessidade da criação de um sistema de inclusão econômica, social, cultural e legal das 402 TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade, p. 9. A idéia da modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada mais eficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animada pelo interesse, mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões. Sobre o que repousa esta correspondência de uma cultura científica, de uma sociedade ordenada e de indivíduos livres, senão sobre o triunfo da razão? Somente ela estabelece uma correspondência entre a ação humana e a ordem do mundo, o que já buscavam pensadores religiosos, mas que foram paralisados pelo finalismo próprio às religiões monoteístas baseadas numa revelação. É a razão que anima a ciência e suas aplicações; é ela também que comanda a adaptação da vida social às necessidades individuais ou coletivas; é ela, finalmente, que substitui a arbitrariedade e a violência pelo Estado de direito e pelo mercado. A humanidade, agindo segundo suas leis, avança simultaneamente em direção à abundância, à liberdade e à felicidade. É esta afirmação central que foi contestada ou rejeitada pelos críticos da modernidade. 312 massas desprivilegiadas de bens, títulos e honras. Através da razão lógico-científica, buscou-se equacionar um sistema onde pudessem ser acolhidas todas as reivindicações dos diferentes segmentos de organização da sociedade. Assim foram instaladas as condições para a criação das novas tutelas jurídicas compreendidas pelos direitos de liberdade e ao desenvolvimento, identificadas como, respectivamente, direitos de segunda e terceira geração. Os direitos materiais foram expandidos de forma significativa, surgindo as tutelas econômica, social, cultural, ao meio ambiente, à paz e consumeira. Em conseqüência desses fenômenos, cada indivíduo passou a ser portador de um amplo conjunto de direitos a serem efetivados no plano concreto, ou seja, a abstração legal necessariamente deve ser aplicada, ainda que de modo coercitivo, diante do descumprimento da lei. Neste caso o Estado atribuiu ao Poder Judiciário a autorização para exigir de forma coercitiva o comportamento previsto na lei, logo, através do processo de execução é possível obter a realização forçada do direito. Considerado os paradigmas humanistas do individualismo e da racionalidade exacerbada, optou-se por um modelo que adotou como premissa a igualdade. Ao direito processual, a partir daqueles pressupostos, atribuiu-se um caráter eminentemente técnico; ao juiz, a 313 obrigação da imparcialidade e adotou-se o postulado da verdade formal no processo civil, em detrimento da busca da verdade real. Estes são alguns dos aspectos que compõem o quadro das relações jurídicoprocessuais voltadas para aquela concepção social da modernidade. Observa-se que se por um lado o direito material orientou-se no sentido de incorporar os problemas inerentes ao contexto sóciohistórico-cultural através da ampliação das tutelas, o direito processual, permaneceu hermético e, portanto, distante da necessidade da implementação daqueles direitos de segunda e terceira geração. No Brasil, as discussões à respeito da inadequação do processo em seu modelo clássico e científico para atender às novas demandas somente foram intensificadas a partir de 1988. Essa discrepância entre o direito material e o direito processual tem estado ligada a uma compreensão equivocada quanto ao sentido da proclamada autonomia do direito processual. A questão da autonomia do direito processual está resolvida sob o ponto de vista da sua teleologia, pois sua existência vincula-se a realização de finalidades diferenciadas em relação ao direito material. Esta questão é reputada de considerável importância, porque da afirmação anterior, não se pode concluir que o direito processual não esteja ontologicamente ligado à ciência do direito. Logo, podem ser 314 mencionadas as finalidades próprias e específicas do direito processual e aquelas outras finalidades de caráter geral, as quais são compartilhadas por toda a ciência do direito, entre estas se destaca a estabilização das relações jurídicas. Acredita-se que a instrumentalidade do direito processual deve estar referida aos fins gerais da ciência do direito, e sob este ponto de vista representa um importante avanço na busca da segurança e da efetividade da jurisdição. 8.1 A TEORIA DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO Diante das questões relativas à ampliação das tutelas de direito substancial, como já mencionado, e da dificuldade em obter a realização efetiva do direito, surgiram concepções a respeito dos problemas que afetam a prestação jurisdicional, bem como dos possíveis meios para resolvê-los. Nesta seara, destaca-se o conjunto de postulados a respeito da instrumentalidade do processo403. 403 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, p. 25. É a instrumentalidade o núcleo e a síntese dos movimentos pelo aprimoramento do sistema processual, sendo consciente ou inconscientemente tomada como premissa pelos que defendem o alargamento da via de acesso ao Judiciário e a eliminação das diferenças de oportunidades em função da situação econômica dos sujeitos, nos estudos e propostas pela inafastabilidade do controle jurisdicional e efetividade do processo, nas preocupações pela garantia da ampla defesa no processo criminal ou pela igualdade em qualquer processo, no aumento da participação do juiz na instrução da causa e da sua liberdade na apreciação do resultado da instrução. 315 A Teoria da Instrumentalidade do processo propõe a democratização do acesso ao Poder Judiciário e a garantia de uma célere e efetiva prestação jurisdicional a partir da releitura da Teoria Geral do Processo e dos princípios Constitucionais de processo404. É considerado pelos instrumentalistas que a ciência processual é portadora de um bom nível de abstração conceitual e metodológico, o que leva à identificação de duas conseqüências principais; por um lado, o enrijecimento formal das concepções positivistas do processo, e de outro, o amadurecimento necessário do processo, o que autorizaria uma nova interpretação e aplicação dos princípios Constitucionais de direito processual. A partir dessas idéias básicas, é proposta a flexibilização da segurança jurídica em prol do trinônimo certeza, probabilidade e risco405. Nesse ambiente, a lei processual e os princípios Constitucionais de processo podem ser considerados como pontos de referência para guiar a interpretação e a aplicação concreta do direito processual, que teria, como finalidade última, o amplo e irrestrito acesso à jurisdição célere, 404 DINAMARCO. Op. cit. p., , 27. A tutela constitucional do processo tem o significado e escopo de assegurar a conformação dos institutos do direito processual e o seu funcionamento aos princípios que descendem da própria ordem constitucional. 405 DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do Processo Civil, p. 17. Nesse clima e com esse espírito, as Reformas do Código de Processo Civil dispuseram-se a transgredir dogmas tradicionalmente levados a extremos perversos. De modo consciente, quiseram transigir racionalmente em relação aos pilares da segurança jurídica dos litigantes, para poder cumprir com mais eficiência a promessa constitucional de acesso à justiça. Uma boa ordem processual não é feita somente de segurança e das certezas do juiz. Ela vive de certezas, probabilidades e riscos. Onde houver razões para decidir ou para atuar com apoio em meras probabilidades, sendo estas razoavelmente suficientes, que se renuncie à obsessão pela certeza, correndo algum risco de errar, desde que se disponha de meios aptos a corrigir os efeitos de possíveis erros. 316 “justa” e efetiva. No centro do instrumentalismo estão as idéias de que para o positivismo os princípios e a Teoria Geral do Processo teriam finalidades específicas as quais estariam voltadas para a auto-realização da ciência e do método. Embasado nessa premissa, é afirmado que o processo científico é excessivamente formalista, afastando-se do interesse pragmático da jurisdição que seria a realização da paz social através da “justiça”. Desse modo, pode ser concluído que através da aplicação do processo instrumental seria possível a construção de uma sociedade mais pacífica e justa. A reforma do direito processual brasileiro tem alguns aspectos de estrangulamento ou ruptura com a ciência processual, sendo que neste tocante a justificativa passa pela idéia de que o individualismo no processo é fruto das remanescências de sua vinculação ao direito privado406. A partir deste fato é proposta a separação entre os fins da ação segundo os efeitos pretendidos na sentença e a classificação das 406 DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p.52. Apesar da revolucionária abertura favorável ao reconhecimento da natureza pública da relação processual, da ação e de todo o sistema processual enfim, nos espíritos permaneceu a marca da idéia privatista. Os germânicos abandonaram as preocupações centrais com a ação (Rechtsschutzanspruch) e passaram a referir-se ao direito de demandar (Klagerecht), sem maior empenho e desviando para o objeto do processo (Streitgegenstand) o centro metodológico do sistema processual. Mas os latinos, italianos à frente permaneceram metodologicamente ligados à ação e às preocupações com ela e seu conceito e seus elementos e suas condições, assim é, de modo superlativo, a orientação predominante entre os processualistas brasileiros, caracterizada na “Escola Processual de São Paulo”. Numa palavra, a ciência dos processualistas de formação latina apresenta a ação como pórtico de todo o sistema, traindo com isso a superada idéia (que, conscientemente, costuma ser negada) do processo e da jurisdição voltados ao escopo de tutelar direitos subjetivos.. 317 ações ou tipos de processo. Assim também se justifica a fusão entre os procedimentos previstos no Código, donde, na cognição são realizadas a execução e a antecipação da tutela. O processo de execução e o processo cautelar são esvaziados sob o argumento da necessidade da celeridade para a obtenção da efetiva entrega do bem da vida ao jurisdicionado. Tudo se realizando ao fundamento da possível reversibilidade da situação anterior em casos de erros. Após a apresentação geral dos aspectos fundamentais da Teoria da Instrumentalidade do Processo, deve-se, ainda, mencionar que a figura do julgador é central para a operacionalização da instrumentalidade, porque o princípio dispositivo cede espaço ao princípio inquisitivo, sendo que o juiz deve assumir uma postura ativa em face da condução do processo e da aplicabilidade da lei, sempre tendo em vista o contexto sócio-histórico-cultural atual ao momento do julgamento, objetivando a uma justiça com conteúdo substancial. O núcleo da Teoria Instrumental consiste na realização do objeto substancial do processo que deve ser a “justiça”. Axiologicamente, a “justiça” se vincularia à garantia do acesso ao Poder Judiciário e à prestação jurisdicional célere e efetiva. As construções tendentes à realização daquelas finalidades são realizadas no campo da principiologia Constitucional e da Teoria Geral do processo. Nesse 318 contexto, há uma pretensão de se discutir o direito processual a partir da sua abertura sistêmica em relação aos ambientes sócio-cultural. No tocante ao reconhecimento da comunicação entre os ambientes jurídico e sócio-cultural, a partir da axiologia do processo, e da sua compreensão no âmbito da Teoria da Ciência do Direito, a Teoria Instrumental está cumprindo um papel importante na incansável busca da realização da prestação jurisdicional satisfatória. 8.2 A CRISE DOS PARADIGMAS E SEUS REFLEXOS NO DIREITO Deve ser lembrado que a insatisfação quanto aos meios de realização da “justiça” é um fenômeno histórico, assim, em todos os tempos, lugares e civilizações houve tentativas que procuraram contornar os problemas inerentes a adoção de um método eficiente para a aplicação do direito. Neste sentido, o objetivo primordial do processo tem sido assegurar a paz social através da aplicação das normas jurídicas de direito material. Através de uma observação superficial poderia parecer que o processo não tem um fim em si mesmo, repousando sua existência sob o direito material. Esta aparente vinculação entre o direito formal e o material, foi superada com o processualismo científico, no entanto as questões relativas ao modo como a jurisdição é operacionalizada continuaram 319 apresentando algumas dificuldades diante da incapacidade do Poder Judiciário em atender, em tempo razoável, a demanda dos serviços que lhe é exigido. A partir dessas considerações pode ser afirmado que o direito processual não está enfrentando uma crise de paradigmas, porque seus conceitos e métodos não estão sendo substituídos, bem como não se está diante de novos problemas a serem enfrentados pela ciência processual. A comunidade jurídica especula a respeito das maneiras que possam tornar os resultados da prestação jurisdicional céleres, efetivos e “justos”. Nesses problemas reside, praticamente, toda a história de formação do direito processual. Deve observar-se que, embora através da Teoria da Instrumentalidade exista uma tentativa de abertura do ambiente jurídico processual, o que possibilitaria admitir o seu acoplamento estrutural, isto efetivamente não ocorre, porque as propostas apresentadas através daquela teoria são referidas ao fechamento operacional, ou seja, o problema da efetividade da jurisdição não ultrapassou as fronteiras da ciência processual para ser discutida nos ambientes econômico-políticosocial-cultural a saturação do Poder Judiciário. Acredita-se que o “justo”, seja qual for o sentido que se pretenda lhe atribuir, não se realizará como um bem inerente ao direito 320 processual, porque a amplitude e a magnitude dessa expressão não podem ser limitadas a um ambiente restrito. Ao tratar da crise dos paradigmas o que se pretende é remeter à teoria dos sistemas autopoiéticos, estabelecendo os critérios para o estudo da instrumentalidade do processo a partir das relações que este pode estabelecer com ambientes extra-processuais. Logo, a crise está localizada nos resíduos que a modernidade produziu como consectários das transformações verificadas após a Revolução Francesa407, as quais 407 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: para um novo senso comum, v. 1. p. 23-24. Não parece que faltem no mundo de hoje situações ou condições que nos suscitem desconforto ou indignação e nos produzam inconformismo. Basta rever até que ponto as grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas ou o seu cumprimento redundou em efeitos perversos. No que respeita à promessa da igualdade os países capitalistas avançados com 21’% da população mundial controlam 78% da produção mundial de bens e serviços e consomem 75% de toda a energia produzida. Os trabalhadores do Terceiro Mundo do sector têxtil ou da electrónica ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e da América do Norte na realização das mesmas tarefas e com a mesma produtividade. Desde que a crise da dívida rebentou no início da década de 80, os países devedores do Terceiro Mundo têm vindo a contribuir em termos líquidos para a riqueza dos países desenvolvidos pagando a estes em média por ano mais de 30 biliões de dólares do que o que receberam em novos empréstimos. No mesmo período a alimentação disponível nos países do Terceiro Mundo foi reduzida em cerca de 30%. No entanto só a área de produção de soja no Brasil daria para alimentar 40 milhões de pessoas se nela fossem cultivados milho e feijão. Mais pessoa morreram de fome no nosso século que em qualquer dos séculos precedentes. A distância entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres no mesmo país não tem cessado de aumentar. No que respeita a promessa da liberdade, as violações dos direitos humanos em países vivendo formalmente em paz e democracia assumem proporções avassaladoras. Quinze milhões de crianças trabalham em regime de cativeiro na índia; a violência policial e prisional atinge o paroxismo no Brasil e na Venezuela, a violência sexual contra as mulheres, a prostituição infantil, os meninos de rua, os milhões de vítimas de minas antipessoais, a discriminação contra os toxicodependentes, ... . No que respeita à promessa da paz perpétua que Kant tão eloquentemente formulou, enquanto no século XVIII morreram 4,4 milhões de pessoas em 68 guerras, no nosso século morreram 99 milhões de pessoas em 237 guerras. Entre o século XVIII e o século XX a população mundial aumentou 3,6 vezes, enquanto os mortos na guerra aumentaram 22,4 vezes. Depois da queda do Muro de Berlim e do fim da guerra fria, a paz que muitos finalmente julgaram possível tornou-se uma miragem em face do aumento nos últimos 6 anos dos conflitos entre Estados e sobretudo dos conflitos no interior dos Estados. Finalmente, a promessa da dominação da natureza foi cumprida de modo perverso sob a forma de destruição da natureza e da crise ecológica. ... Nos últimos 50 anos o mundo perdeu cerca de um terço de sua cobertura florestal. Apesar da floresta tropical fornecer 42% da biomassa vegetal e do oxigênio, 600.000 hectares de floresta mexicana são destruídas anualmente. As empresas multinacionais detêm hoje direitos de abate de árvores em 12 milhões de hectares da floresta amazônica. A desertificação e a falta de água são os problemas que mais vão afectar os países do Terceiro Mundo na próxima década. Um quinto da humanidade já não tem hoje acesso a água potável. (grifos nossos) 321 afetam o direito a partir de seu estudo como sistema acoplado estruturalmente. A crise dos paradigmas da modernidade ocidental pode ser localizada nas concepções a respeito da ciência e do direito, como formas articuladas de poder social. Considera-se útil e necessário definir que, no âmbito desta pesquisa, os paradigmas da modernidade são a regulação408 e a emancipação409. Tendo em vista a complexidade e o aspecto revolucionário que a modernidade representou em relação ao mundo clássico, seu projeto criou contradições internas que levaram ao que pode ser identificado como os excessos e os déficits da regulação e da emancipação.410 408 SANTOS. Op. cit. p., , 50. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, formulado essencialmente por Hobbes, pelo princípio do mercado, desenvolvido sobretudo por Locke e por Adam Smith e pelo princípio da comunidade, que domina toda a teoria social e política de Rousseau. O princípio do Estado consiste na obrigação política vertical entre cidadãos e Estado. O princípio do mercado consiste na obrigação política horizontal individualista e antagônica entre os parceiros de mercado. O princípio da comunidade consiste na obrigação política horizontal solidária entre membros da comunidade e entre associações. (grifos nossos) 409 Ibidem,p. 50. O pilar da emancipação é constituído pelas três lógicas de racionalidade definidas por Weber; a racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura, a racionalidade cognitivoinstrumental da ciência e da tecnologia e a racionalidade moral-prática da ética e do direito. (grifo nosso) 410 Ibidem, p. 50. O paradigma da modernidade pretende um desenvolvimento harmonioso e recíproco do pilar da regulação e do pilar da emancipação, e pretende também que esse desenvolvimento se traduza indefectivelmente pela completa racionalização da vida, colectiva e individual. Esta dupla vinculação – entre os dois pilares, e entre eles e a práxis social – vai garantir a harmonização de valores sociais potencialmente incompatíveis, tais como justiça e autonomia, solidariedade e identidade, igualdade e liberdade. ... Cada um dos pilares, e porque ambos assentam em princípios abstractos, tende a maximizar o seu potencial próprio, quer pela maximização da regulação quer pela maximização da emancipação, prejudicando, assim o êxito de qualquer estratégia de compromissos pragmáticos entre ambos. Para além disso, os referidos pilares assentam em princípios independentes e dotados de diferenciação funcional, cada um dos quais tende a desenvolver uma vocação maximalista: ao lado da regulação, a maximização do Estado, a maximização do mercado ou a maximização da comunidade; no lado da emancipação, a esteticização, a cientificização ou a juridicização da praxis social. (grifo nosso) 322 Os excessos foram considerados como desvios fortuitos e os déficits como deficiências temporárias, os quais deveriam ter sido resolvidos com a utilização dos recursos material, intelectual e institucional criados na modernidade. A reordenação dos excessos e dos déficits foi confiada à ciência que subordinou o direito411, o qual manteve um papel determinante412. Os critérios científicos da eficiência e da eficácia se tornaram hegemônicos em relação ao outros pilares da emancipação na medida em que a ciência assumiu o seu papel como força produtiva, Sob a regência do conhecimento identificado como científico se estabeleceu uma relação circular de cooperação entre o direito e a ciência, sendo, contudo, a racionalidade moral-prática e cognitivoinstrumental colocadas aos serviços dos pilares da regulação. A respeito da relação de cooperação entre o direito e a ciência, a conseqüência fundamental se refere a despolitização da vida social através da gestão científica da sociedade. Em um ambiente com tais 411 Ibidem, p. 51-52. ... tanto a micro-ética – um princípio de responsabilidade moral reportada exclusivamente ao indivíduo – como o formalismo jurídico – uma vasta constelação intelectual jurídica que se estende das pandectas germânicas ao movimento da codificação (cujo marco principal é o Código Napoleônico de 1804) e à teoria pura do direito de Kelsen (1967) – são valorizados de acordo com a sua adequação à necessidades da gestão científica da sociedade. (grifo nosso) 412 Ibidem, p. 52. ... a racionalidade moral-prática do direito, para ser eficaz, teve de se submeter à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência ou ser isomórfica dela. Mas, apesar de subordinada, foi também uma participação central porque, pelo menos a curto prazo, a gestão científica da sociedade teve de ser protegida contra eventuais oposições através da integração normativa e da força coercitiva do direito. Por outras palavras, a despolitização científica da vida social foi conseguida através da despolitização jurídica do conflito social e da revolta social. (grifo nosso) 323 características, os princípios do Estado, do mercado e da comunidade encontram condições favoráveis a exacerbação das suas práticas.413 O desequilíbrio entre a regulação e a emancipação ocorreu sob o predomínio da regulação, identificando-se uma das causas que pode justificar esta situação como a necessidade da neutralização dos conflitos e revoltas sociais que pudessem desestruturar as organizações de poder consolidadas pela burguesia, que após a Revolução, sonegou ao proletariado o espaço que lhe havia sido prometido através da igualdade, mitigando seu lugar através das políticas intervencionistas nas relações trabalhistas e após a 2ª Guerra Mundial, nas relações consumeiras.414 O direito na transição entre o mundo clássico e o moderno pretendeu ocupar um papel emancipatório ao lado das artes e da ciência. Fatores diversos, como o modo pelo qual ocorreu a recepção do direito romano pelos glosadores transformando-o em um sistema lógico, rígido de estruturas formais baseadas na complexa combinação entre autoridade, racionalidade e ética. A subordinação dos paradigmas da 413 Ibidem, p. 57. A redução da emancipação moderna à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e a redução da regulação moderna ao princípio do mercado, incentivadas pela conversão da ciência na principal força produtiva, constituem as condições determinantes do processo histórico que levou a emancipação moderna a render-se à regulação moderna. Em vez de se dissolver no pilar da regulação, o pilar da emancipação continuou a brilhar, mas com uma luz que já não provinha da tensão dialética inicial entre regulação e emancipação – tensão que ainda pode ser percebida, já sob o crepúsculo, na divisa do positivismo oitocentista - ordem e progresso -, mas sim dos diferentes espelhos que reflectiam a regulação. Neste processo, a emancipação deixou de ser o outro da regulação para se converter no seu duplo. 414 Ibidem, p. 57. A absorção da emancipação pela regulação – fruto da hipercientificização da emancipação combinada com a hipermercadorização da regulação - , neutralizou eficazmente os receios outrora associados à perspectiva de uma transformação social profunda e de futuros alternativos. 324 modernidade ao desenvolvimento do capitalismo a partir do momento em que este assumiu a posição de modo de produção dominante nos países centrais, e ainda, a burguesia tendo se tornado uma classe hegemônica; alteraram o papel do direito que se transformou em uma das espécies do conhecimento-regulação. A ordem é a forma do saber para o conhecimento-regulação. Dessa forma, ocorreu a juridicização dos conflitos no ambiente social, sendo que, ao ampliar horizontal e verticalmente sua autoridade reguladora sobre operacionalização a sociedade, funcional, o direito politizando-se comprometeu excessivamente, sua e desequilibrando sua autoprodução normativa.415 É considerada muito complexa a questão da crise dos paradigmas da modernidade ocidental e suas repercussões no ambiente jurídico, acreditando-se, contudo, que o desequilíbrio entre a regulação e a emancipação verificado a partir da vocação maximalista dos pilares que lhe dão sustentação e, principalmente, tendo como referências a dominação do direito pela cientificização do conhecimento, como única forma de saber válido, e da preponderância da regulação sobre a emancipação, podem ser admitidos como os pontos onde são mais 415 Ibidem, p. 158. ... as disfunções redundam numa ineficácia do direito: é muito provável, ou até quase certo, que a discrepância da lógica interna e da autoprodução dos padrões do direito com os das outras esferas da vida social por ele reguladas torne a regulação jurídica ineficaz ou contraproducente. (grifo nosso) 325 perceptíveis os reflexos da crise sobre o direito. Quanto à tendência maximalista dos pilares da emancipação é especialmente relevante o fato da judicização da praxis social416 porque aí podem ser localizados alguns problemas operacionais do direito regulatório, tais como a demora e os custos da prestação jurisdicional; o congestionamento dos tribunais; a insuficiência dos serviços da justiça que estão associados a fatores de ordem financeira e humana, principalmente; as discrepâncias entre o direito escrito e o direito aplicado, entre outros fatores.417 8.3 QUESTÕES INSTRUMENTAIS E PARADIGMÁTICAS DA ALTERAÇÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO Através do direito processual, deve ser assegurada a prestação jurisdicional revestida das características da segurança jurídicas e da efetividade. O conteúdo desses valores atribuídos ao processo tem demandado discussões intermináveis, as quais são travadas entre todos os setores do ambiente jurídico. 416 Ibidem, p. 151. A juridicização da prática social significou a imposição de categorias, interacções e enquadramentos jurídicos estatais, relativamente homogéneos, nos mais diversos e heterogêneos domínios sociais (família, vida comunitária, local de trabalho, esfera pública, processos de socialização, saúde, educação, etc.). A manejabilidade do direito estatal pressupunha a maleabilidade dos domínios sociais a regular juridicamente. 417 Ibidem, p. 161. ... para além do limitado – mas importante – nível “operacional”, esses problemas não são jurídico-técnicos: são problemas políticos. Isto é sobretudo evidente em dois dos defeitos da juridicização da vida social salientados pelos processualistas e os autopoieticistas: ineficácia e materialização (sobrecarga). (grifo nosso) 326 A propósito da questão da segurança jurídica é possível demarcar três dimensões as quais são acreditas como fundamentais: sob o ponto de vista técnico-jurídico Constitucional, o princípio do devido processo legal e suas garantias é uma referência; a instrumentalidade do processo para a realização do pacta sunt servanda é representativa de outra esfera de incidência da segurança jurídica, neste caso, enfocada teoricamente. Considerando aspectos metodológicos, a segurança jurídica pode assumir um importante papel no controle dos riscos quanto aos desapontamentos ocorridos diante da potencial frustração das expectativas verificadas no ambiente jurídico. A efetividade apresenta um conteúdo mais restrito, podendo ser vinculado à garantia da concretização do comando legal contido na norma jurídica através do aparelho estatal, ou seja, por meio da ação do Poder Judiciário, que para obter o resultado pretendido, poderá adotar atos de violência institucional. Esta afirmação está ligada à idéia largamente aceita e difundida de que o direito tutela a autonomia da vontade, logo, quando ocorre a imposição da realização de atos contrários à vontade, não é impróprio reconhecer-se a violência, e ainda mais, que todo o sistema legal estará operacionalizando de forma invertida. 327 É questionável a afirmação corrente que associa a efetividade à celeridade e à “justiça” da prestação jurisdicional. Estes também são reconhecidos como importantes características da prestação jurisdicional, mas não se confundem com a garantia da realização prática do direito através do poder judiciário. Desta forma, os problemas que podem afetar a efetividade nem sempre são iguais àqueles que comprometem a celeridade, ou ainda, a “justiça”. A celeridade é um substantivo feminino que se refere àquilo que apresenta “grande atividade ou rapidez”418. O processo, pela sua própria natureza e pelo seu estágio moderno de desenvolvimento, vincula-se a certos valores que naturalmente comprometem as idéias que tenham o objetivo de torná-lo algo essencialmente rápido. Nesse diapasão, deve ser lembrado o princípio do contraditório e da ampla defesa e a garantia do duplo grau de jurisdição, entre outros preceitos normativos que instruem o sistema processual. Observa-se que tais preceitos estruturantes da ordem processual vinculam-se ao princípio fundamental da constituição do Estado Democrático de Direito419. As idéias concernentes à “justiça” têm uma amplitude 418 419 AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa., v, 1. p. 670. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 1º 328 epistemológica, subjetividade histórica e relatividade espacial que permite afirmar que o “justo” somente pode ser realizado considerandose aquelas contingências. O processo de execução no Brasil tem apresentado bons níveis de segurança jurídica, pois não há notícias de privação de bens ou direitos sem a observância das garantias inerentes ao devido processo legal420. Quanto à efetividade, não se vislumbra uma crise institucional da República, onde a desobediência civil apresente proporções elevadas ao ponto dos órgãos judiciários não conseguirem realizar as suas funções. Logo, o problema do direito processual e, sobretudo, da execução não está relacionado com a segurança jurídica e nem mesmo com a efetividade da entrega da prestação jurisdicional. Ressalta-se, ainda, que estes são valores distintos e complementares, não se admitindo o pressuposto da existência de fortes contradições e contraposições entre eles. Deve ser questionado, então, quais são as justificativas para o movimento de reforma do direito processual e do poder judiciário no Brasil. E mais, por que os jurisdicionados e os operadores do direito 420 Deixa-se de adentrar nos problemas da legitimação da ordem jurídica e do pluralismo legal porque extrapolam os propósitos deste estudo. 329 manifestam um elevado grau de insatisfação com a prestação jurisdicional? Acredita-se na impossibilidade de se apresentar soluções para tais problemas com base restritivamente nos elementos do ambiente do sistema jurídico. É necessário reportar ao que foi identificado como a crise dos paradigmas da modernidade ocidental, tendo havido o predomínio da regulação sobre a emancipação e a maximização dos seus pilares, os excesso e os déficits geraram como resíduos da modernidade, entre outros, a incapacidade do Direito em responder à sua máxima autoprodução normativa e à juridicização das práticas sociais. O ponto central está em que a reforma do processo de execução está sendo realizada com base em uma confusão entre o que vem a ser a efetividade, a segurança, a celeridade e a “justiça” no contexto do direito processual e do funcionamento do Poder Judiciário. Como salientado, cada uma daquelas características são distintas e autônomas entre si. Os problemas somente poderão ser adequadamente enfrentados e resolvidos na medida em que houver o reequilíbrio entre os pilares da emancipação e da regulação e a interpretação e a aplicação do direito com base em teorias sistêmicas que admitiam o acoplamento estrutural. 330 É desagradável a constatação angustiante de que as possíveis soluções para o problema da insatisfação generalizada com os serviços prestados pelo judiciário não possam ser viabilizadas através dos postulados da teoria da instrumentalidade processual ou da sanção de uma nova lei. O que está sendo tentado é uma “saída” que, economicamente, não torne a estrutura do Poder Judiciário ainda mais onerosa. No entanto, o que se está colocando em risco é a própria ordem institucional do Estado brasileiro, porque as reformas estão sendo promovidas ao sabor da ampliação dos poderes da magistratura, e do emprego de uma linguagem processual indefinida e de conteúdo muito vago. Desta forma, corre-se o alto risco de não serem resolvidos os problemas quanto à insatisfação com a prestação jurisdicional e, ainda, criarem-se outros problemas decorrentes da subjetividade do julgador e da qualidade duvidosa da técnica da linguagem e do procedimento. 8.4 PRINCIPAIS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 11.232 DE 22/12/2005. Na exposição de motivos no 204, de 15/12/2004421, foram assumidos compromissos qualificados como fundamentais pelos Três Poderes da República tendo em vista a morosidade dos processos 421 Pacto de Estado em favor de um judiciário mais rápido e republicano. 331 judiciais e a baixa eficácia de suas decisões. No mesmo sentido é a exposição de motivos do Projeto de Lei que tramitou na Câmara com o no 3.253-B de 2004, e no Senado, com o no 52/2004, tendo sido sancionado em 22 de dezembro de 2005, na Lei 11.232. O Instituto Brasileiro de Direito Processual exerce um importante papel nas reformas que estão sendo promovidas porque, através de seus membros, dentre os quais destaco a professora Ada Pellegrini Grinover e o professor José Manoel de Arruda Alvim Neto; estão sendo promovidas as discussões que têm resultado nos textos legais aprovados, assim como as jornadas de estudos e os seminários, com a participação da comunidade jurídica. Sob o ponto de vista estrutural e legal, as reformas representam grandes mudanças e terão repercussões profundas na operacionalização dos procedimentos judiciais, acreditando-se que as novas normas processuais possam ser hábeis ferramentas na realização da prestação jurisdicional satisfatória. Enfocando os aspectos estruturais, verifica-se que a Lei 11.232/2005 rompe definitivamente com o modelo compartimentado do Código de Processo Civil de 1973. Desta forma, a separação entre a cognição e a realização prática do comando legal concreto externado na sentença, que se embasava na classificação das ações segundo a eficácia 332 pretendida na petição inicial, perde consideravelmente sua importância para a doutrina processual brasileira. As conseqüências dessa mudança serão percebidas de diferentes maneiras, quer-se destacar seu possível alcance sob a perspectiva procedimental. Para tanto, tome-se a petição inicial a qual tem a finalidade precípua de nortear a pretensão objeto da causa. Logo, nos requerimentos da inicial, deve ser mencionado tudo aquilo que se pretenda obter através do processo. No modelo anterior, os pedidos visavam, por exemplo, ao conhecimento a fim de que o poder judiciário declarasse, constituísse ou condenasse, relativamente aos fatos argüidos e provados. Necessariamente, a sentença se subordinava à pretensão, daí não poder ser proferida extra, ultra ou citra petita422. Há de se questionar, na petição inicial,se deverá ser manifestada a pretensão quanto à liquidação e ao cumprimento da sentença nos termos dos recém-criados Capítulos IX e X, do Título VIII, do Livro I do Código de Processo Civil? Ressalta-se que a sentença não terá o efeito de terminar o processo423, uma vez que os atos realizados para o seu cumprimento 422 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, v. 1, p. 456. A função do juiz é compor a lide, tal como for posta em juízo. Deve proclamar a vontade concreta da lei apenas diante dos termos da litis contestacio, isto é, nos limites do pedido do autor e da resposta do réu. São defeitos, assim, os julgamentos extra petita (matéria estranha à litis contestatio); ultra petita (mais do que pedido) e citra petita (julgamento sem apreciar todo o pedido). 423 Lei 11.232/05. Artigo 162 § 1º. Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei (CPC). 333 serão praticados como uma simples decorrência desta. O julgador poderá ex officio promover os atos que se seguem à sentença a fim de obter o seu efetivo cumprimento? Havendo sido requerido pela parte na petição inicial que o julgador na sentença, em caso de condenação, determine a liquidação e o comprimento da mesma, tal pedido vincula sua manifestação para a caracterização dos defeitos que podem atingi-la? Em caso positivo, caberá embargos de declaração? Admitindo-se que a petição inicial possa apresentar requerimentos mistos, objetivando a condenação, a liquidação e o cumprimento da sentença de modo sucessivo; proferida a sentença condenatória, que neste caso, teria efeitos constitutivos integrativos e executivos, e permanecendo inerte o órgão jurisdicional, ou seja, o Juízo deixando de promover os atos tendentes à efetivação da sentença, poderá, posteriormente, ser aplicada a prescrição intercorrente à parte? O artigo 475-P, parágrafo único da Lei 11.232/05 dispõe sobre a possibilidade legal da escolha pelo exeqüente quanto ao foro para a tramitação do cumprimento da sentença. Neste caso, isto ocorrerá através da carta precatória, ou através de um novo processo? Nesta segunda situação, qual será o procedimento adequado? Observe-se que o cumprimento da sentença, nos moldes das alterações, não caracteriza um 334 novo processo, mas apenas um conjunto de procedimentos realizados na continuidade da cognição. Tratando-se de sentença condenatória líquida em obrigação de pagamento de quantia certa, portanto, dispensada a fase de liquidação, qual o procedimento que deve ser adotado? Verifica-se que os artigos 475-I a 475-R, da Lei 11.232/05, que regulam o cumprimento da sentença não mencionam, na hipótese aventada, como seria iniciado o procedimento, limitando-se no artigo 475-J a afirmar que o nãopagamento pelo devedor no prazo de 15 dias gera direito ao credor a uma multa de 10% (dez por cento). Como deverá ocorrer a comunicação processual do devedor para que efetue o pagamento? Quanto aos meios de impugnação do procedimento de cumprimento da sentença, embora o artigo 475-M, da Lei 11.232/05, tenha estabelecido como regra geral a não-concessão do efeito suspensivo. Em sua segunda parte, prevê a possibilidade da suspensão do andamento do processo “desde que relevantes seus fundamentos e o prosseguimento da execução seja manifestamente suscetível de causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação”. Neste tocante, verifica-se que o legislador confiou ao julgador a apreciação dos critérios para a suspensão, pois a medida da relevância e os riscos efetivos dos 335 danos deverão ser averiguados segundo a sua compreensão diante dos fatos. Restaram ainda os embargos à execução da fazenda pública, o que dispensa comentários diante dos reclamos dos operadores do direito pela isonomia entre as partes no processo, ressaltando-se o fato de que pode ser atribuída à fazenda pública boa parte dos problemas do Poder Judiciário, tendo em vista seus privilégios processuais e as práticas prograstinatórias que adota. Pode transparecer certo pessimismo e resistência quanto às inovações criadas, mas não é o caso. Realmente não se pode deixar de notar um retrocesso na técnica utilizada, sobretudo, na linguagem adotada. Os termos e expressões lingüísticos em muitos pontos são portadores de uma indefinição que se acredita ser inadequada ao direito processual. O intérprete e aplicador da norma jurídica processual precisa ter bem demarcadas as maneiras através das quais fará atuar concretamente o direito. Este fato consiste em um importante elemento de segurança jurídica. As situações levantadas comportam soluções, ora contidas no texto legal, ora construídas através da analogia. Ao que tudo indica, o legislador pretendeu assimilar o modelo praxista adotado no processo 336 trabalhista onde, sabidamente, o andamento dos processos consome menos tempo. Ressalta-se, ainda, que são adotadas fórmulas, algumas vezes casuísticas para resolver os problemas que afetam o processo trabalhista. Há, contudo, uma justificativa teleológica para as práticas procedimentais da justiça do trabalho, trata-se do reconhecimento pacificado segundo o qual entre as partes na lide trabalhista há diferenças intransponíveis, resquícios da “questão social”424 , a qual jamais chegou a ser superada, principalmente nos países periféricos do sistema capitalista. A autonomia do processo trabalhista em relação ao direito do trabalho é reconhecida, mas entre eles pode ser observada uma relação vertical, neste sentido, a instrumentalidade do processo tem um caráter mais profundo, donde há importantes doutrinadores que reconhecem a aplicação dos princípios da 424 NASCIMENTO, Amaury Mascaro do. Curso de Direito do Trabalho, p. 4. A expressão questão social não havia sido formulada antes do século XIX, quando os efeitos do capitalismo e as condições da infra-estrutura social se fizeram sentir com muita intensidade, acentuando-se um amplo empobrecimento dos trabalhadores, inclusive dos artesãos, pela insuficiência competitiva em relação à indústria que florescia. ... Daí porque Utz intenta delimitar a questão social nos seguintes termos: 1) deve tratar-se de uma perturbação do corpo social; 2) mediante essa perturbação resultam prejuízos a um ou diversos grupos sociais; 3) não se trata de um fenômeno individual e transitório, mas coletivo e prolongado de irrealização do bem comum; 4) é definida como ‘problema ou procura das causas das perturbações que dificultam a realização do justo social na totalidade da sociedade e igualdade o esforço para encontrar os meios para superar essas causas’. 337 proteção 425 e da finalidade social426 no processo trabalhista em atenção ao princípio protecionista do hipossuficiente econômico do direito do trabalho. O artigo 791, da Consolidação das Leis do Trabalho427, está vigente, ressurgindo desse fato a manutenção do ius postulandi na justiça do trabalho, o que representa um outro aspecto que diferencia o modelo procedimental trabalhista do civilista. Em decorrência dessa característica do procedimento na justiça do trabalho, o princípio inquisitivo é aplicado na condução do processo a fim de tutelar o reclamante. Traçar um paralelo analítico entre o processo trabalhista e o processo civil a fim se defender a adoção daquele modelo é temerário, porque a relação jurídico-material sobre a qual se desenvolve o processo 425 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho, p. 66-67. Entre os autores pátrios que reconhecem ser o princípio da proteção peculiar ao processo do trabalho, destacamos Wagner D. Giglio, para quem, ‘embora muitas outras fossem necessárias, algumas normas processuais de proteção ao trabalho já existem, a comprovar o princípio protecionista. Assim, a gratuidade do processo, com isenção de pagamento de custas e despesas, aproveita aos trabalhadores, mas não aos patrões, a assistência judiciária gratuita é fornecida ao empregado, mas não ao empregador, a inversão do ônus da prova por meio de presunções favorece o trabalhador, nunca ou raramente o empregador, o impulso processual ex officio beneficia o empregado, já que o empregador, salvo raras exceções, é o réu, demandado, e não aufere proveito da decisão ... . A desigualdade econômica, o desequilíbrio para a produção de provas, a ausência de um sistema de proteção contra a despedida imotivada, o desemprego estrutural e o desnível cultural entre os sujeitos do processo do trabalho certamente são realidades que são trasladadas para o processo do trabalho. 426 Humberto THEODORO JÚNIOR. Os princípios do direito processual civil e o processo do trabalho. in Alice Monteiro de BARROS (Coord.). Compêndio de direito processual do trabalho. p. 61. ... o primeiro e mais importante princípio que informa o processo trabalhista, distinguindo-o do processo civil comum é o da finalidade social, de cuja observância decorre uma quebra do princípio da isonomia entre as partes, pelo menos em relação à sistemática tradicional do direito formal. (grifo nosso) 427 BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Art. 791. Os empregados e os empregadores poderão reclamar pessoalmente perante a justiça do trabalho e acompanhar as suas reclamações até o final. 338 do trabalho apresenta como característica fundamental a desigualdade substancial das partes. A Justiça do Trabalho foi criada e existe para exercer um papel de anteparo entre o capital e o trabalho, tanto que os países que conseguiram promover o estado do bem-estar social não precisam desse órgão jurisdicional especializado. Ressalta-se, ainda, que o crédito trabalhista tem natureza alimentar. As partes no processo civil apresentam-se em pé de igualdade e a relação obrigacional discutida parte de diferentes pressupostos ligados à capacidade negocial e no interesse na obtenção do lucro, neste caso, ressalvadas algumas situações específicas, onde uma das partes objetive beneficiar a outra, como na doação428. No processo comum, não se verificam aquelas particularidades que caracterizam e diferenciam consideravelmente o processo do trabalho, isto não significa que seja impossível adaptar o modelo trabalhista ao procedimento civil, mas não podem ser olvidados fatos históricos, aspectos sociológico, cultural e jurídico que exigem uma modulação na implantação desse sistema procedimental. As alterações promovidas no processo civil e, particularmente, na execução de sentença de obrigação de quantia certa que, doravante será 428 denominada cumprimento de sentença, BRASIL. Código Civil Brasileiro, art. 538 a 564. não levaram em 339 consideração algumas questões que se procurou evidenciar quanto a aspectos estruturais, procedimentais e teleológicos. Não se defende um preciosismo tecnicista formalista e em avançado estágio de superação, mas a adoção de um referencial teórico claro que leve em consideração aspectos metodológico e histórico através de uma análise crítica429, tomando-se como ponto de partida uma abordagem autopoiética do processo. 429 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da ração indolente, p. 23. A análise crítica do que existe assenta no pressuposto de que a existência não esgota as possibilidades da existência e que portanto há alternativas susceptíveis de superar o que é criticável no que existe. O desconforto o inconformismo ou a indignação perante o que existe suscita impulso para teorizar a sua superação. 340 9 CONCLUSÃO Acredita-se que o ato de conhecer pressuponha necessariamente referências para a formulação das proposições lingüísticas que serão produzidas. Assim, o mesmo objeto pode ser validamente conhecido de diferentes maneiras. Dessa afirmação, resulta o reconhecimento da possibilidade da existência de variadas teorias igualmente aceitas para a descrição ou explicação de um mesmo objeto. Estas diferentes linguagens levam o Homem a um estado de perplexidade. Provavelmente este seja um dos fatores preponderantes na compreensão do seu estado atual a que se referiu inicialmente. Reconhecendo-se a imprescindibilidade da adoção de uma metodologia para a realização do trabalho, optou-se por estudar o processo a partir da problemática da segurança e da efetividade jurisdicional sob o prisma da contextualização sistêmica do processo de execução. A pesquisa foi desenvolvida admitindo-se como pressuposto básico que o direito pode ser conhecido cientificamente. Essa afirmação teve como conseqüência a necessária estruturação de um projeto que delineasse alguns objetivos, hipóteses, 341 justificativas, problemas, métodos e a definição de uma teoria de base que foi utilizada como ferramenta de trabalho na abordagem do assunto problematizado. No desenvolvimento do trabalho, não houve a preocupação com a confirmação ou não das hipóteses, em razão disso, em determinados aspectos, a pesquisa pode ter apresentado uma aparente contradição entre afirmações a respeito das questões relativas ao objeto estudado, qual seja, a segurança e a efetividade da jurisdição sob o ponto de vista do cumprimento das sentenças das obrigações privadas para o pagamento de quantia certa. Foi necessário que o trabalho alcançasse um considerável desenvolvimento para que se pudesse concluir que o sistema processual brasileiro não está comprometido pela insegurança e inefetividade da prestação jurisdicional. De outra parte, foi possível verificar que, com relação ao método funcional estruturalista de Niklas Luhmann, devem ser diferenciadas as questões inerentes à segurança, à efetividade, à celeridade e à “justiça” na entrega da prestação jurisdicional. Dessa forma, ficou evidenciado o equívoco em se confundir aqueles termos, 342 pois tem-se tomado como problemáticas situações onde há o controle dos riscos estruturais.430 As alterações processuais são pertinentes a problemas decorrentes do reconhecimento da juridicização dos conflitos sociais, o que ocorreu através da cristalização de um Direito excessivamente regulatório dominado pelo paradigma da cientificização de todo o conhecimento produzido na modernidade.431 O direito processual, sob o enfoque da Teoria da Instrumentalidade do processo, não assimilou as novas realidades jurídicas criadas através do paradigma dominante da regulação científica e jurídica. Dessa forma, identificou-se um descompasso profundo entre a ampliação das tutelas privadas e coletivas em contraposição com a permanência do direito processual em um estágio de letargia histórica e metodológica. Em conseqüência, ocorreu um distanciamento entre as 430 VILANOVA, Lourival. Escritos Jurídicos e Filosóficos,v,.1. p. 418. Sem a norma – sem lei constitucional, ou sem lei ordinária, sem decreto executivo - ,seja qualquer a espécie exigida, sem ela, plano nenhum de governo, programa nenhum de desenvolvimento econômico ou social passaria para o campo concreto da realização. Por aí se está vendo como carece de fundamento a crítica que se faz da crise do direito, tomando a crise como agonia de todo um sistema social juridicamente orientado. Em toda a parte, salvo os hiatos de civilização e de cultura, ali onde há sociedades ainda com largos setores de vida interna indesenvolvida, o processo nem é lento, passo a passo num tempo social sem pressa, nem é espontâneo, desprogramado. É rápido e orientado, dentro de planos com previsão para medir a velocidade e o alcance da ação. (grifo nosso) 431 Ib idem. p. 418. A racionalização do processo de desenvolvimento confere a globalização: desenvolvimentos só setoriais desarticulam a composição do conjunto. Requer a politização: só um agente, com o poder, dispõe de substância econômico-financeira, decisão sobre o todo do desenvolvimento, duração e fins que ultrapassam a duração e os fins de indivíduos e, até, de gerações, somente o poder político capacita-se para a programação dessa mudança que, pelo compasso e velocidade, é mudança revolucionária, ultrapassando a singela fórmula do progresso dentro da ordem, do Estado liberal-democrático. Requer planejamento. Tudo isso necessita mais Estado e, exigindo mais Estado, exige mais direito.(grifo nosso) 343 exigências da sociedade contemporânea, altamente tutelada, tecnificada e dotada de um sistema de comunicação rápido e acessível e o instrumento processual estruturado para ser aplicado em uma sociedade onde os valores e as práticas eram outros, principalmente porque ainda não havia ocorrido a maximização dos pilares do Estado, da comunidade e do mercado, o que somente pode verificar-se com a desestruturação do modelo econômico soviético. Sob o ponto de vista dos sistemas fechados, como aquele idealizado na Teoria Pura do Direito, observou-se que seria impossível a abordagem das interações e comunicações estabelecidas entre o direito processual e a Teoria da Ciência do Direito, e ainda, com os sistemas social, econômico e político. A contextualização do direito, em relação à teoria dos sistemas, tornou-se fundamental porque levou a identificação de uma sistêmica jurídica embasada no estudo crítico da hermenêutica da Constituição Federal. Há uma crescente tendência ao reconhecimento de um conjunto de preceitos legais desvinculados da praxis social. Paulo Bonavides e Eros Roberto Grau trataram dessa problemática e suas repercussões para o intérprete e aplicador do direito. Considerada a importância da segurança jurídica, procurou-se compreender a sua dimensão dogmática através do estudo da teoria dos princípios. A esse respeito, foi adotado um referencial que 344 estruturalmente diferencia os princípios, as regras e os postulados normativos, tendo em vista suas funções. Em certo momento, duas questões assumiram muita relevância, a Ciência do Direito e a apresentação dos conceitos elementares da Teoria autopoiética dos sistemas sociais. Isto se justificou porque a partir do estudo do direito como sistema fechado e tendo como base a teoria husserliana das regiões ônticas, seu objeto é classificado como ideal ou avalorativo, na medida em que a lei expressaria em si mesma todo o conteúdo dos valores eleitos pelos seus destinatários. Rompido o axioma dos sistemas jurídicos fechados, foi necessário explicar como o direito processual pode ser estudado como objeto cultural, portanto criado pelo Homem e dotado de uma gama valorativa localizada nas proximidades do sistema jurídico, mais precisamente nos sistemas com os quais interage e se comunica através do acoplamento estrutural. Nesse tocante, foi considerada fundamental a compreensão de que o direito é uma estrutura lingüística que objetiva à simplificação da complexidade do ambiente onde o Homem desenvolve sua existência. Detectou-se uma relação diretamente proporcional entre a elevação da complexidade e dos riscos estruturais e o surgimento de novas estruturas, as quais têm a função de reduzir a complexidade e os riscos. 345 Deve ser esclarecido que o Homem é considerado o ambiente do qual emanam ou se desenvolvem todos os sistemas. Para efeito deste trabalho, o Homem é a figura central de onde provém tudo aquilo que lhe é circundante. Assim, o sistema jurídico é uma estrutura que visa à redução da complexidade da vida humana, porque lhe assegura, o controle das expectativas e dos desapontamentos. Identificadas a metodologia para a análise do objeto de estudo, as questões teórico-científicas e dogmático-Constitucionais do trabalho se entendeu que seria relevante a realização da abordagem dos fatos históricos que demarcaram o direito processual desde os períodos préhistórico quando não havia sido criada a escrita. Assim, a autodefesa é considerada como a primeira forma de pacificação social e o processualismo científico o ápice de seu desenvolvimento, tomando-se como referência as idéias de técnica, método e arcabouço teórico. A Teoria da Instrumentalidade processual foi assimilada como uma tentativa de ruptura com a macroteoria do sistema jurídico fechado, concluindo-se, entretanto, que a ausência da definição dos métodos de abordagem e de procedimento comprometeu seus resultados. Observa-se que os objetivos e as justificativas formulados pelos instrumentalistas são consetâneos com a problemática do direito processual contemporâneo, mas suas proposições são equivocadas na medida em 346 que realizam sua abordagem do processo com vista a aspectos que lhe são intrínsecos, desconsiderando questões fundamentais como aquelas referentes aos sistemas social, político e econômico que interagem com o sistema jurídico. Esta afirmação pode ser comprovada ao observar-se que há, por parte dos adeptos da teoria da instrumentalidade, a tendência a admitir a concentração dos poderes dos juízes, assim como a ampliação de suas funções procedimentais. Quanto aos poderes que devem ser atribuídos ao julgador sob o argumento de que ele deve ter a sensibilidade social e o preparo jurídico para sopesar, de forma razoável e proporcional, os fatos e valores que envolvem cada caso, alguns problemas podem ser mencionados. A magistratura é exercida por pessoas susceptíveis ao ambiente onde exercem suas funções, arcando, contudo, com o ônus da imparcialidade no exercício do cargo público que lhes impõe o dever de interpretar a lei, aplicando-lhe aos fatos jurídicos, assim, tornando a norma abstrata em concreta através da sentença. Admitindo-se que o direito e sua interpretação se manifestam através da linguagem e que todo processo comunicacional pressupõe interferências ou ruídos, assim como sofrem influências as quais podem ser identificadas como históricas e culturais, há que se concluir que a 347 concentração dos poderes do juiz terá, como conseqüências, a variabilidade nas decisões e a prevalência dos interesses econômicos sobre quaisquer outros. Decisões variadas e divergentes, ainda que de caráter procedimental, no âmbito do Poder Judiciário, deverão agravar os riscos institucionais quanto ao desacreditamento na eqüidade e “justiça” dos provimentos jurisdicionais.432 Em relação à questão econômica, é corrente, tanto entre os operadores do direito quanto entre as pessoas em geral, que o modelo econômico capitalista exacerbou no sistema social o valor da economia e, portanto, tem lhe assegurado uma posição de predomínio em relação a outros valores sociais.433 O magistrado interage e se comunica com aquele meio, logo, 432 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente, p. 181. Esta dimensão, sem precedentes, do risco e do perigo desgastou a credibilidade da confiança proporcionada pelo Estado. Por um lado, como alguns dos riscos e perigos foram globalizados, o seu controlo é agora uma tarefa que está muito para além das capacidades dos Estados individuais e o sistema inter-estatal não foi, de modo algum, concebido para compensar as deficiências de regulação dos Estados através de acções internacionais concertadas. Por outro lado, a crescente consciencialização dos riscos e dos perigos evidenciou as limitações estruturais dos mecanismos jurídicos usados pelos Estados para os gerir (critérios estreitos de legitimidade processual, responsabilidade, prova relevante, dano; sistemas judiciais lentos, frustrantes, selectivos, dispendiosos ou inacessíveis).(grifo nosso) 433 Ibidem, p. 213. As formas de direito distinguem-se também segundo o tipo de projecção da realidade social que adoptam. A projecção é o procedimento através do qual a ordem jurídica define as suas fronteiras e organiza o espaço jurídico no interior delas. ... Segundo o tipo de projecção adoptado, cada ordem jurídica tem um centro e uma periferia. Isto significa, em primeiro lugar, que, à semelhança do que se passa com o capital financeiro, o capital jurídico de uma dada forma de direito não se distribui igualmente pelo espaço jurídico desta. Tende a concentrar-se nas regiões centrais, pois é aí que é mais rentável e tem mais estabilidade. Nessas regiões, o espaço é catografado com mais detalhe e absorve mais recursos institucionais, tais como tribunais e profissionais de direito, e mais recursos simbólicos, como sejam os tratados e os pareceres dos juristas e a ideologia e cultura jurídicas dominantes. Inversamente, nas regiões jurídicas periféricas, o espaço jurídico é catografado com traço muito grosso, absorve poucos recursos institucionais (justiça inacessível, assistência judiciária de baixa qualidade, advogados mal preparados, etc.) e igualmente poucos recursos simbólicos (práticas jurídicas menos prestigiadas, teorização jurídica menos sofisticada, etc.) (grifo nosso) 348 sendo natural que esteja influenciado por esse ambiente. Esperar que adote um padrão comportamental desvinculado deste contexto não parece razoável sob qualquer ponto de vista. Em relação a ampliação das funções procedimentais da magistratura, observa-se que os prazos que lhe são atribuídos pelo Código de Processo Civil434 não são cumpridos sob o argumento da sobrecarga de trabalho. Não parece viável, diante disso, atribuir-lhes mais atividades, uma vez que um dos fatores apontados como responsáveis pela morosidade na entrega da prestação jurisdicional é a incapacidade da magistratura em atender à excessiva demanda de trabalho que recebe. Segundo o que foi averiguado através dessa pesquisa, as estruturas sistêmicas são redutoras da complexidade. Não há dados concretos que permitam afirmar que ao modelo compartimentado do Código de Processo Civil brasileiro possa ser atribuída a morosidade do Poder Judiciário. Por outro lado, observou-se que as alterações promovidas pela Lei 11.232/2005 não chega a criar uma nova dinâmica procedimental através da supressão de atos processuais. De fato, promove o deslocamento dos atos que implicam a coerção estatal para o processo de conhecimento, preservando aqueles procedimentos que antes 434 BRASIL. Código de Processo Civil, art. 189. O juiz proferirá: I – os despachos de expediente, no prazo de 2 (dois) dias; II – as decisões, no prazo de 10 (dez) dias. 349 gozavam de uma autonomia teleológica, tais como, o requerimento para o cumprimento da sentença quê, anteriormente, realizava-se através da petição inicial executiva; a necessidade dos atos de acertamento ou liquidação da sentença; não houve, ainda, a modificação dos atos expropriatórios. As modificações são mais de forma que propriamente de conteúdo. Quanto às questões relativas às citações para cada processo (execução, liquidação), o que passa a ocorrer através da intimação dos advogados, há que questionar-se como se resolverá o problema quando o mandato procuratório for restrito até a prolatação da sentença. Esta situação não deverá ser incomum, uma vez que a sistemática para a fixação dos honorários não foi alterada, ou seja, sua cobrança é determinada por etapas processuais. No modelo anterior, havia clareza quanto ao término de um processo e o início de outro, o que doravante se modifica, pois a quantificação, a constrição e a expropriação ocorrerão no próprio processo de conhecimento. Não são conhecidos mecanismos procedimentais que autorizem a imposição ao advogado da obrigação à prática de atos para os quais não tenha poderes. Não se tratou de realizar uma abordagem desconstrutiva da teoria da instrumentalidade do processo, pretende-se contribuir para a ampliação das discussões em torno do problema generalizado 350 socialmente com a insatisfação quanto à prestação jurisdicional no Brasil, a qual é considerada ineficiente e injusta em face da demora excessiva entre o início do processo e o seu resultado final. Há aspectos que, conquanto sejam atinentes aos sistemas social, político e econômico, poderão produzir resultados positivos se forem adequadamente abordados no campo do sistema jurídico, através do reconhecimento das interações e comunicações estabelecidas entre os sistemas por meio do acoplamento estrutural admitido pela teoria autopoiética. Quanto ao sistema social, não se vislumbra a possibilidade do re-equacionamento da juridicização dos conflitos sociais, contudo, pode ser admitida a hipótese do pluralismo jurídico435 como uma alternativa através da qual poderão ser constituídos modelos paraestatais para a composição dos conflitos436. Dessa forma, a própria comunidade desenvolveria técnicas que observados, os princípios fundamentais da Constituição Federal, pudessem resultar na pacificação do ARNAUD, Arnaud, André-Jean. Dicionário enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. p. 585. Pluralismo jurídico – 1. Em direito; a) Existência simultânea, no seio de uma mesma ordem jurídica, de regras de direito diferentes aplicando-se a situações idênticas; b) Coexistência de pluralidade de ordens jurídicas distintas estabelecendo ou não relações de direito entre si. 2. Em sociologia do direito; coexistência de pluralidade de quadros ou sistemas de direito no seio de uma determinada unidade de análise sociológica (sociedade local, nacional ou mundial). 435 351 conflito de interesses entre seus membros 437. Neste sentido, ressalvado a prática de atos de expropriação patrimonial, que poderiam ficar sujeitos ao controle jurisdicional, podendo a parte interessada demonstrando liminarmente a causa impeditiva da alienação do bem por meio de simples petição, já devidamente instruída com as provas dos fatos alegados, assegurar-se de eventuais danos irreparáveis. Tomando como referencial o sistema político438 aqui entendido como aquelas estruturas articuladas que se referem à organização e ao exercício do poder através do Estado em uma determinada sociedade, destaca-se a questão da complexidade relativa à independência e à harmonia entre os poderes. Verifica-se uma interdependência entre os poderes, interessando, particularmente, a vinculação estabelecida entre o 436 A Lei da Arbitragem (Lei 9.307 de 23/9/1996 ) se coaduna com a proposta da ampliação dos modelos heterocompositivos para a solução dos conflitos de interesses decorrentes dos fatos jurídicos. Acredita-se, contudo na possibilidade da simplificação quanto à criação e ao acesso a tais meios. 437 SANTOS, Boaventura de Sousa. O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. p. 11-12. ... com a valorização progressiva dos terrenos em que se implantaram as favelas e a especulação selvagem daí decorrente, cresceram as pressões da burguesia urbana sobre o aparelho do estado no sentido de remover em bloco para os arredores os bairros marginais da cidade, libertando os terrenos para empreendimentos urbanísticos. Perante isto, os habitantes das favelas sempre procuraram organizar-se de modo a melhorar as condições de habitabilidade, criando várias redes de água e de electricidade administradas pelos utentes, constituindo brigadas de trabalho (sobretudo nos fins de semana) para melhoria das ruas e outras infrastruturas colectivas. Procuraram sobretudo maximizar o desenvolvimento interno da comunidade e garantir a segurança e a ordem nas relações sociais entre os habitantes com o objectivo de, fortalecendo as estruturas colectivas, fazer subir os custos políticos e sociais para o aparelho do estado de uma eventual destruição ou remoção forçadas. Estas formas organizativas desenvolveram-se sobretudo no início da década de 60, numa conjuntura populista do poder político burguês, e as lutas mais avançadas tiveram lugar à volta das associações de moradores, que então se constituíram (ou reconstituíram) para coordenar as acções dos vários níveis da vida colectiva e sobretudo para defender os interesses das comunidades perante as agências do aparelho de estado. Com o tempo, algumas dessas associações passaram a assumir funções nem sempre previstas directamente nos estatutos, como, por exemplo, a de arbitrar conflitos entre os vizinhos, ...(grifos nossos) 438 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, v. 2. Sistema Político. 1. Definição – Em sua acepção mais geral, a expressão Sistema político refere-se a qualquer conjunto de instituições, grupos ou processos políticos caracterizados por um certo grau de interdependência recíproca. 352 Poder Judiciário e o Poder Legislativo. Nos Estados Democráticos de Direito, a administração e o orçamento público são vinculados à lei que os regulamenta. Dessa forma, a ampliação dos serviços públicos e, por conseguinte, dos órgãos do poder judiciário, bem como os recursos financeiros para sua operacionalização dependem de uma decisão política tomada na esfera do Poder Legislativo através da aprovação dos projetos de leis que visem à melhoria e ampliação dos serviços prestados na esfera do Poder Judiciário. Entende-se que seriam positivas as ações em que os operadores do direito analisassem a problemática das estruturas organizacionais do Poder Judiciário em face das questões que envolvem suas relações com os poderes executivo e legislativo, tendo em vista a possibilidade da ampliação dos meios que garantissem o acesso à jurisdição através da criação de órgãos aparelhados e cargos suficientes para atender as demandas dos conflitos sociais, principalmente naquelas causas que envolvessem direito indisponíveis e preceitos de ordem pública. Não há a pretensão de colocar em discussão o controle legal ou o princípio da legalidade da administração pública, mas de ressaltar que as iniciativas para resolver os problemas decorrentes da baixa eficiência do Poder Judiciário quanto à realização concreta do comando legal, 353 poderiam ser objeto de propostas que não se restringissem às reformas do modelo processual, abrangendo-se, também, a situação dos déficits quanto à estrutura e organização do Poder Judiciário. No que tange ao sistema econômico, ressalta-se que este promove suas ações no campo do “risco”, isto significa afirmar que seus ganhos resultam da oferta do crédito como mecanismo de propulsão de sua própria atividade. Ou seja, a rentabilidade financeira do sistema econômico está diretamente vinculada com a possibilidade da inadimplência, até porque, admitindo-se como pressuposto que a economia não dependesse do crédito, não haveria inadimplência e, por sua vez, restariam controlados os “riscos” estruturais decorrentes dos desapontamentos quanto ao processo de cumprimento de sentenças e da execução. Não se trata de desconsiderar os problemas do descumprimento das obrigações privadas de pagamento de quantia certa. No entanto, é pertinente, sob o ponto de vista sistêmico realizar análises que objetivem a identificação do papel do Poder Judiciário no controle dos riscos que são inerentes à atividade do sistema econômico. É pouco provável que se consiga reduzir, de forma significativa ou eliminar os riscos financeiros, pois este é parte integrante do próprio sistema econômico. 354 Desta forma, acredita-se que o direito processual não é capaz de apresentar respostas satisfatórias aos problemas que envolvem a lentidão na entrega da prestação jurisdicional, sobretudo, quando abordado como um sistema fechado. As alterações realizadas a partir de 1994 não têm sido capazes de reduzir o tempo de espera dos jurisdicionados, o quê por si só é um indicador da pertinência na abordagem dos problemas inerentes ao sistema jurídico tendo em vista suas relações com os sistemas social, político e econômico. Interessa, fundamentalmente, demonstrar que a abordagem do direito processual deve levar em consideração os seus mecanismos de contato com outros ramos do direito, com a Teoria da Ciência do Direito e com os demais sistemas que compõem o ambiente onde se desenvolvem as relações humanas. Desta forma, as referências anteriores aos possíveis efeitos positivos dessa análise sistêmica não têm o objetivo de sugerir respostas ou soluções de lege ferenda, mas de demonstrar que há aspectos que, se considerados, poderão produzir efeitos satisfatórios quanto aos resultados apresentados pelo Poder Judiciário na realização da “justiça”. Não houve o propósito de prescrever fórmulas que pudessem indicar mecanismos capazes de resolver os problemas que afetam a eficiência quanto à prestação jurisdicional no Brasil. O aspecto central a 355 respeito do qual gravita este trabalho esteve relacionado com as causas que tornam a questão do adimplemento através da ação do Estado alguma coisa insusceptível de realizar-se de forma satisfatória. Desse modo, procurou-se realizar a identificação e a descrição de algumas das prováveis causas que justificam os problemas e, particularmente, que ofereçam possibilidades de propostas mais abrangentes e compatíveis com a complexidade do ambiente da modernidade. O objetivo da pesquisa foi o desenvolvimento de análises que pudessem exercer uma contribuição complementar aos trabalhos que têm sido realizados no campo dogmático. A construção de uma teoria de caráter especulativo a qual foi denominada hermenêutico-crítico-historicista como método para o conhecimento do processo e aplicação das normas instrumentais, sobretudo, quanto ao cumprimento da sentença e execução, está diretamente referida à principiologia Constitucional de processo, através da qual se acredita na possibilidade de avançar no campo pragmático relativamente às necessidades da sociedade contemporânea quanto a aceleração dos procedimentos e acesso à jurisdição sem aumentar os riscos estruturais ligados à instituição das organizações e organismos estatais. 356 O referencial crítico se fez presente na adoção da autopoiese dos sistemas sociais luhmanniano como mecanismo para a descrição das relações que o objeto do estudo estabelece, através dos processos de interação e comunicação decorrentes do reconhecimento da existência do acoplamento estrutural entre os diversos sistemas que compõem o ambiente humano. Adotado o pressuposto khuniano, segundo o qual o desenvolvimento do conhecimento ocorre através da acumulação dos saberes e experiências constituídas historicamente, entendeu-se que não havia a possibilidade de produzir conclusões a respeito do estudo sem que fosse percorrida a trajetória do direito processual ao longo do tempo. Neste caso, observando-se que a insatisfação dos jurisdicionados com os serviços prestados pelo Estado, no campo da realização no mundo dos fatos dos comandos jurídicos, elaborados abstratamente através da lei revelam-se como um fenômeno histórico. Nesta seara, ressurge a pergunta: Qual o real problema do Direito Processual historicamente e contemporaneamente quanto à realização da “justiça”? Entendeu-se que seja um problema vinculado ao método sistêmico. Finalmente, pode ser afirmado que se o Direito Processual não poderá sozinho, resolver o problema da morosidade na aplicação dos 357 procedimentos judiciais, com certeza será um instrumento poderoso na construção da “utopia”439 de um direito emancipatório, propulsor das transformações esperadas, sobretudo, nos países periféricos. 439 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente, p. 167. O conhecimento emancipatório pós-moderno a que tenho feito apelo visa descobrir, inventar e promover as alternativas progressistas que essa transformação pode exigir. É uma utopia intelectual que torna possível uma utopia política. ... Tais transições ocorrem quando as contradições internas do paradigma dominante não podem ser geridas através dos mecanismos de gestão de conflitos e de ajustamento estrutural desenvolvidos pelo paradigma em causa. (grifo nosso) 358 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. AULETE, Francisco Caldas. 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