Silzia A C Pietrobom - Sapientia

Propaganda
SÍLZIA ALVES CARVALHO PIETROBOM
O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O
PROCESSUALISMO CIENTÍFICO E A CRISE
DOS PARADIGMAS
Programa de Estudos Pós-graduados em Direito
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
2006
SÍLZIA ALVES CARVALHO PIETROBOM
O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O
PROCESSUALISMO CIENTÍFICO E A CRISE
DOS PARADIGMAS
Programa de Estudos Pós-graduados em Direito
Tese
apresentada
à
banca
examinadora
da
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de DOUTORA em Direito
das Relações Sociais, sob a
orientação da professora Doutora
Haydeé Maria Roveratti.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
2006
SÍLZIA ALVES CARVALHO PIETROBOM
O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O PROCESSUALISMO
CIENTÍFICO E A CRISE DOS PARADIGMAS
Tese defendida no Programa de Estudos Pós-graduados em Direito da
Pontifica Universidade Católica de São Paulo, para obtenção do título de Doutora
em Direito das Relações Sociais, aprovada em ________ de ______ de
__________________, pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes
professores:
____________________________________________
Profª. Drª. Haydeé Maria Roveratti.
Orientadora
____________________________________________
___________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
Dedico
Este trabalho à vovó Norica pela
lição mais preciosa que seu exemplo de
vida ensina: o amor.
AGRADECIMENTOS
A todos que acreditaram na
viabilidade deste projeto, oferecendo o
seu
apoio
compreensão,
incondicional,
carinho
e
a
sua
dedicação.
Especialmente, agradeço à professora
Haydeé Maria Roveratti, à minha mãe,
Luzia Alves Carvalho, e às minhas
filhas, Sulanne e Francine.
Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia.
(Mário Quintana)
RESUMO
Admitindo-se que há discussões a respeito do caráter científico do
direito, a pesquisa é iniciada com uma abordagem sobre as condições atuais do
conhecimento científico. A partir disso, procurou-se contextualizar o direito
cientificamente e no campo da teoria dos sistemas, a qual orienta
metodologicamente o trabalho.
Sob uma perspectiva sistêmica, tratou-se de demonstrar que o
conhecimento do direito está estruturalmente vinculado à Constituição Federal.
Neste aspecto, foi destacado o reconhecimento da existência de um Sistema
Constitucional, que demandou estudos sobre as teorias materiais e a
hermenêutica crítica da Constituição. O estudo dos princípios Constitucionais de
processo foi realizado com o objetivo de estabelecer uma conexão entre a
hermenêutica Constitucional e o direito processual.
Ainda quanto à teoria dos sistemas, foi explicitado o referencial teórico
adotado, apresentando-se os conceitos básicos e fundamentais da teoria
autopoiética luhmanniana, através da qual o objeto do estudo foi examinado.
A historicidade do processo foi realizada demonstrando-se que os seus
problemas, atualmente em discussão, fazem parte de sua existência ao longo do
tempo, portanto, a insatisfação com a prestação jurisdicional é um fenômeno
histórico.
Apresentada a análise sobre a instrumentalidade do processo no contexto
da modernidade, tomou-se como referencial a crise dos paradigmas como
proposto por Boaventura de Sousa Santos a fim de verificar as condições atuais
do sistema jurídico em face dos sistemas social, político e econômico.
Conclui-se por afirmar que os problemas ligados à realização prática do
direito são sistêmicos, logo, dificilmente propostas dogmáticas que enfoquem o
direito como sistema fechado terão êxito na obtenção de uma prestação
jurisdicional célere e justa.
ABSTRACT
Admitting that there are some discussions concerning the scientific
character of law, this research begins with an approach on today’s scientific
knowledge. From this, it was tried to put the law in two contexts: first, the
scientific one and second, in the field of systems theory, which methodologically
directs the paper.
Under a systemic perspective it was aimed to demonstrate that the law
knowledge is structurally linked to the National Constitution. In this aspect, it
was highlighted the acknowledgement of the existence of a constitutional system,
which required some studies about the material theories and the Constitutional
hermeneutic criticism. The study of the principles of constitutional process was
performed aiming to establish a connection between the constitutional
hermeneutic and the processual law.
Still concerning the system theories, the adopted theoretical referential
was explained by presenting the fundamental and basic concepts of the
Luhmann´s autopoietic theory through which the study object was examined.
The process historicity was performed demonstrating that its problems that
are being discussed at present, are part of its existence throughout the time,
therefore, the dissatisfaction with the jurisdictional role is historical.
After presenting the analysis over the process instrumentality in the
modernity context, it was adopted as a referential the paradigm crisis, as
proposed by Boaventura de Souza Santos, aiming to verify the present conditions
of the juridical system concerning the social, political and economical systems.
In conclusion, it is possible to state that those problems related to the
practical performance of law are systemic, and so, it is very difficult that
dogmatic and other proposals, which focus the law as a close system, will
succeed in obtaining a fast and fair jurisdictional performance.
SUMÁRIO
RESUMO ................................................................................................. 06
ABSTRACT .............................................................................................. 07
1
INTRODUÇÃO ........................................................................................ 11
2
UMA PERSPECTIVA PARA A PESQUISA ........................................ 18
2.1
CONSTRUINDO A CIÊNCIA ................................................................. 21
2.2
A CIÊNCIA EM THOMAS KHUN .......................................................... 24
2.3
CIÊNCIAS NATURAIS E CIÊNCIAS SOCIAIS .................................... 42
2.4
QUESTÕES A RESPEITO DO ESTUDO DO DIREITO. ....................... 51
2.5
COMO CONHECER O DIREITO? .......................................................... 52
3
O DIREITO NO CONTEXTO DA TEORIA DOS SISTEMAS............... 66
3.1
TEORIA GERAL DOS SISTEMAS ........................................................ 66
3.2
CIÊNCIA DOS SISTEMAS ...................................................................... 69
3.3
SISTEMAS SOCIAIS ................................................................................ 70
3.4
SISTEMA JURÍDICO ............................................................................... 73
3.4.1
Posição do Direito em relação à teoria dos sistemas jurídicos............. 76
3.4.2
A tradicional sistêmica do Direito .......................................................... 78
3.4.3
Sistemas jurídicos teleológicos ou finalísticos ....................................... 82
3.4.4
O sistema jurídico no marxismo ............................................................. 87
3.4.5
Atualidades a respeito da sistêmica jurídica.......................................... 94
3.5
SISTEMA CONSTITUCIONAL .............................................................. 102
3.5.1
Constituição formal e Constituição real ................................................ 104
3.5.2
Teorias materiais da Constituição .......................................................... 106
3.6
HERMENÊUTICA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL............ 112
4
120
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O PROCESSO DE
EXECUÇÃO..............................................................................................
124
4.1
A TEORIA DOS PRINCÍPIOS..................................................................
4.2
ESTRUTURA DOS PRINCÍPIOS............................................................. 127
4.3
PRINCÍPIOS, REGRAS E POSTULADOS NORMATIVOS................... 130
5
ALGUMAS QUESTÕES DA TEORIA GERAL DO DIREITO......... 134
5.1
EPISTEMOLOGIA JURÍDICA ................................................................
5.2
CULTURALISMO JURÍDICO ................................................................. 143
5.3
O DIREITO PROCESSUAL NO CONTEXTO DA TEORIA DA
CIÊNCIA DO DIREITO ...........................................................................
135
154
5.3.1
O direito processual como objeto cultural ............................................ 158
6
O DIREITO PROCESSUAL CONTEMPORANEAMENTE.............. 166
6.1
O DIREITO PROCESSUAL AUTOPOIÉTICO....................................... 169
6.1.1
A autopoiése em Niklas Luhmann .......................................................... 171
6.1.2
Complexidade, contingência e expectativa de expectativas................. 177
6.2
O DIREITO COMO ESTRUTURA DE SIMPLIFICAÇÃO DA
COMPLEXIDADE ....................................................................................
6.3
REFLEXIVIDADE ENTRE EXPECTATIVAS COGNITIVAS E
NORMATIVAS .........................................................................................
6.4
188
198
O PARADIGMA DA AUTOPOIESE NO PROCESSO DE
EXECUÇÃO ..............................................................................................
203
7
PANORÂMICA HISTÓRICA DO DIREITO PROCESSUAL........... 216
7.1
AUTODEFESA, AUTOCOMPOSIÇÃO E HETEROCOMPOSIÇÃO...
7.2
PROCESSO ROMANO ............................................................................ 228
7.2.1
Sistema da justiça privada ou da ordo judiciarum privatorum............. 232
222
7.2.1.1 Ações da Lei ou Legis Acciones. ............................................................... 233
7.2.1.2 Processo formular ou per formulam .......................................................... 240
7.2.2
Sistema da justiça pública ou da extraordinaria cognitio..................... 247
7.2.2.1 A execução forçada no sistema da justiça pública em Roma....................
257
7.3
PROCESSO ROMANO-BARBÁRICO ................................................... 262
7.4
PROCESSO JUDICIALISTA ................................................................... 266
7.4.1
Processo canônico ................................................................................... 275
7.5
PROCESSO PRAXISTA. ......................................................................... 289
7.6
PROCESSO PROCEDIMENTALISTA ................................................... 294
7.7
PROCESSO CIENTÍFICO ........................................................................ 301
8
O PROCESSO DE EXECUÇÃO INSTRUMENTAL.......................... 311
8.1
A TEORIA DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO.................. 314
8.2
A CRISE DOS PARADIGMAS E SEUS REFLEXOS NO DIREITO .... 318
8.3
QUESTÕES INSTRUMENTAIS E PARADIGMÁTICAS DA
ALTERAÇÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO................................... 325
8.4
PRINCIPAIS MUDANÇAS PROMOVIDAS PELA LEI 11.232 DE
22/12/2005 ................................................................................................. 330
9
CONCLUSÃO........................................................................................... 340
REFERÊNCIAS ...................................................................................... 358
1 INTRODUÇÃO
O despertar da atenção, do raciocínio ou da curiosidade é
normalmente estimulado quando algo ocorre em desacordo com uma
expectativa, quando não é possível explicar um fenômeno, ou quando as
explicações tradicionais não funcionam. Essas experiências produzem
estímulos no observador que têm o efeito de criar a problematização do
objeto observado.
Em relação a esse trabalho, a observadora pousa seu “olhar”
sob as questões que estão envolvidas com a insatisfação dos
jurisdicionados quanto à realização prática dos comandos legais através
do Estado. Nesse sentido, qual(is) poderia(m) ser a(s) causa(s) da
ineficiência do Poder Judiciário? Esse questionamento tem implicações
muito amplas e complexas, porque envolve todos os aspectos ligados ao
conhecimento jurídico, assim como: questões filosófica, sociológica,
econômica, administrativa, histórica. Enfim, percebeu-se que seria
necessário delimitar o enfoque do problema.
Opta-se por estudar aquele aspecto que se considera
fundamental quanto à realização do direito privado na modernidade,
trata-se do cumprimento forçado das obrigações legal, contratual ou
decorrente de atos ilícitos. A execução de títulos executivos judiciais ou
12
extrajudiciais apresenta-se problemática. A doutrina brasileira admite
que o cumprimento forçado da obrigação privada é o ponto onde são
evidenciados os problemas das dificuldades para obter a realização
prática do direito, revelando a ineficiência do Poder Judiciário.
Poderia ser estudada a execução trabalhista ou civilista, sendo
que a escolha quanto à última se justifica porque é em seu âmbito que se
observam as maiores dificuldades, as quais estão demandando a
alteração estrutural do direito processual brasileiro.
Curiosamente, as mudanças na execução civil estão ocorrendo
no sentido de absorver algumas características do modelo trabalhista de
execução. Dentre esses, destaca-se o fato de que a execução de título
executivo judicial na justiça comum perderá sua autonomia ontológica,
tal como ocorre no processo trabalhista. No entanto, isso não significa
afirmar que haverá identidade dos procedimentos, pois a execução
trabalhista ocorre por sub-rogação legal, podendo o magistrado
determinar ex officio a realização dos atos necessários ao acertamento e à
constrição patrimonial do devedor.
Ao que tudo indica, os avanços no sentido de obter a
simplificação dos procedimentos judiciais do cumprimento forçado da
sentença proferida relativamente a obrigações civilistas não autoriza que
os procedimentos executivos sejam realizados por atos praticados de
13
ofício pelo magistrado. Isso demonstra a existência de diferenças que
podem ser consideradas relevantes entre as duas formas de obtenção
forçada do cumprimento das obrigações privadas. Do mesmo modo,
permite a afirmação anterior quanto à situação problemática da
satisfação das obrigações civis através da ação do Estado.
Está se desenvolvendo entre os doutrinadores brasileiros a
idéia segundo a qual existem antagonismos entre a segurança e a
efetividade jurídica, logo, na medida em que se aumenta a segurança,
reduz-se a possibilidade da efetividade, estabelecendo-se uma relação
inversamente proporcional entre estes dois institutos jurídicos. Este
também é um importante aspecto a ser observado para se entender as
causas que justificam a ineficiência do Judiciário.
Na delimitação do problema, opta-se pelo estudo dos
procedimentos executivos adotados pela justiça comum, tendo em vista
as questões da ineficiência do Poder Judiciário, sendo abordadas a
segurança e a efetividade jurídica, bem como o atual referencial teórico
do processo. Será objeto de estudo, igualmente, os problemas extrínsecos
ao direito processual que podem agravar a morosidade para a prestação
jurisdicional.
Quanto à apresentação do tema de estudos e sua delimitação,
esta tese versa sobre os problemas da segurança, efetividade, celeridade
14
e “justiça” da prestação jurisdicional, tomando como referencial os
procedimentos adotados para a obtenção da realização forçada das
obrigações civis.
Será adotado o método de abordagem hipotético-dedutivo,
pois, a partir de determinadas hipóteses proceder-se-á ao estudo dos
aspectos gerais que envolvem o conhecimento do direito para,
posteriormente,
identificarem-se
aqueles
problemas
que
são
considerados relevantes para o processo e algumas questões legais
pertinentes ao tema.
Quanto ao método de procedimento, o estudo é desenvolvido
com referência a corrente jurídica sociologista e histórica. A base teórica
a qual instrumentaliza o estudo é fornecida pela teoria dos sistemas
sociais sintetizada por Niklas Luhmann.
Admite-se a priori como hipótese básica que o processo de
execução é ineficiente na realização do direito, porque as teorias a
respeito do poder de coerção estatal foram elaboradas tendo em vista
Estados autoritários, e anteriormente à consolidação dos preceitos
Constitucionais asseguradores do devido processo legal, do contraditório
e da ampla defesa. Nos Estados Democráticos de Direito, a segurança
dos jurisdicionados assume preponderância e, somente através da via
institucional do processo Constitucional, pode ser realizada a promessa
15
da paz social garantida pela jurisdição. Essa situação parece exigir a
revisão e a elaboração de uma Teoria Geral pautada nos princípios
Constitucionais e adequada ao processo contemporâneo.
Secundariamente, admite-se que a Teoria do Processualismo
Científico cria uma artificialidade que compromete a validação social do
processo, porque pretende uma ordem desvinculada do contexto
sociológico intrínseco a todas as formulações humanas. Desse modo,
acredita-se que o direito processual desconheça as relações sistêmicas
que estabelece, comprometendo-se com o individualismo e com o
patrimonialismo, erigidos na modernidade e exacerbados principalmente
a partir do século XVIII.
Entende-se que a justificativa para este trabalho está vinculada
ao fato de que os referenciais teóricos e ideológicos do processo, tendo
sido formulados sob a influência do movimento burguês na França,
assimilaram a necessidade daquela classe social em permanecer no
poder. Assim, a idéia da segurança jurídico-processual estaria referida
especificamente aos ocupantes dos poderes político e econômico, os
quais, a partir do discurso da universalização dos bens emergentes
através do liberalismo econômico, efetivamente consolidaram-se no
poder, criando para as massas populacionais proletárias um saldo
16
residual negativo, no sentido de que as promessas da “liberdade,
igualdade e fraternidade” restaram frustradas.
Considera-se necessário o estudo com vista à compreensão das
alterações ocorridas no campo social e jurídico, desde o século XVIII, as
quais afetaram o direito até o ponto em que, no caso brasileiro, percebese um crescente descrédito na capacidade do Poder Judiciário realizar a
“justiça”. Após a consolidação da burguesia no poder, a igualdade foi
conceitualmente reduzida à idéia da igualdade formal, ou seja, igual
perante o sistema legal e político, as disparidades real, concreta foram
relegadas. E a liberdade pode ser encarada da seguinte forma: “Livres e
iguais para não serem livres e iguais”1. Desse modo, a metodologia
qualitativa aliada a teorias críticas que tratam dos sistemas autopoiéticos
justifica o estudo do processo de execução das obrigações privadas no
Brasil diante das propostas em andamento e já aprovadas quanto às
alterações no modelo processual.
O objetivo central é apresentar a descrição e possíveis
explicações para as causas da morosidade quanto à prestação
jurisdicional, para tanto, observar-se-á os procedimentos executivos.
Acredita-se que este trabalho possa contribuir para que o
processo seja estudado como uma técnica, um instrumento a serviço do
1
FACHIN, Luiz. Teoria crítica do Direito Civil, p. 35.
17
direito material, mas, sobretudo, tendo em vista as transformações
sociais contemporâneas a fim de que se realize a garantia da paz social.
18
2 UMA PERSPECTIVA PARA A PESQUISA
A condição humana, diante do “todo” que forma sua complexa
estrutura existencial, independentemente de como se pretenda entender
isto, pode ser aceita como de “debilidade”, aqui referida a uma situação
em face do processo de formulação do conhecimento no plano da
compreensão dos fatos que envolvem a vida e também a sua ausência.
A história do Homem na Terra, até à contemporaneidade,
produziu diversas formas de conhecimentos, mas sempre referidos a
alguma coisa, logo, circunstancial, parcial e insuficiente para lhe revelar
um conhecimento que pudesse traduzir a verdade2 sobre a natureza ou a
respeito de sua existência.
O pesquisador do Século XXI deve considerar que o
conhecimento é relativo e as verdades que produz são parciais, podendo
afirmar-se que as teorias não são válidas para sempre, sendo esta uma
das lições apresentadas pela história das realizações científicas. Ainda
que o conhecimento pareça sólido, serão possíveis novas observações e
novas idéias que modificam aquele enfoque, renovando os conceitos.
2
SANTOS, Pedro Sérgio dos. Direito Processual Penal & a insuficiência metodologia: a alternativa
da mecânica quântica, p. 48 ... dos gregos ao homem contemporâneo do Ocidente, o problema da
verdade vem tomando nuances diferenciadas sem deixar de ocupar um lugar de destaque no campo da
filosofia e da produção científica. Todavia, é forçoso dizer que esse problema, tendo inicialmente um
caráter científico, e a posteriori, de natureza filosófica, encontrou na física, particularmente na
mecânica quântica e na teoria da relatividade, conceitos e (in) definições que certamente estarão a
nortear qualquer modelo de pesquisa em qualquer área do saber, que se venha a desenvolver no século
XXI, ...
19
Isso é parte da ciência, que trabalha lentamente para decifrar o enigma
do mundo natural.
Alfred Noyes elegantemente chamou a atitude do Homem em
busca do conhecimento de “longa batalha pela luz”3. Esta perspectiva foi
destinada às ciências naturais, contudo, entende-se que possa ser
igualmente usada para as ciências sociais. É interessante lembrar que a
aplicação no campo das pesquisas voltadas para o conhecimento social
da metodologia criada no plano das ciências naturais tem sido objeto de
dissenso entre os estudiosos de metodologia. Esta problemática deve ser
superada, pois a interdisciplinaridade tem melhores possibilidades de
levar a produção de um conhecimento mais amplo e satisfatório ao
Homem. Observe-se que a compartimentação tem importância didática,
mas pode ser entendida como reducionista do conhecimento científico4.
O que se pretende é jogar novas “luzes” ao processo
jurisdicional
brasileiro,
sobretudo,
quanto
a
sua
função
instrumentalizadora da realização efetiva da jurisdição voltada para os
direitos privados, entendidos como tal, aqueles de natureza individual e
patrimonial.
3
RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência, p. 125.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um curso sobre as ciências, p. 46-47. ... É hoje reconhecido que a
excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante
especializado e que isso acarreta efeitos negativos. ... Os males desta parcelização do conhecimento e
do reducionismo arbitrário que transporta consigo são hoje reconhecidos, mas as medidas propostas
para os corrigir acabam em geral por os reproduzir sob outra forma.
4
20
Acredita-se que o momento é oportuno, porque a realização da
entrega da prestação jurisdicional tem sido objeto de estudos doutrinários
e reformas legais tanto no direito processual como institucionalmente
através da reforma do Poder Judiciário brasileiro.
Destaca-se a questão de que os movimentos de reestruturação
do modelo brasileiro para a prestação jurisdicional a par da problemática
referente à segurança e efetividade que devem ser inerentes ao direito,
seja este compreendido como técnica, ciência ou arte; procuram
respostas ou soluções em “velhas” fórmulas, ou melhor, no sistema
estruturalista formalista desenhado pelo positivismo e teorizado no
direito por Kelsen em sua Teoria Pura.
É vislumbrada a possibilidade através desta pesquisa de
acrescentar-se
alguns
elementos
teóricos
ligados
ao
criticismo
metodológico. Desse modo, a instrumentalização do processo deve ser
superadora do estruturalismo formalista, concebido no final do século
XIX na Alemanha, que deu origem ao processualismo científico.
As referências básicas “ideológicas” que orientam este
trabalho foram proclamadas por Montoro5, quando declarou a
necessidade do direito assumir seu papel social, sobretudo, nos países em
vias de desenvolvimento, como o Brasil.
5
MONTORO ,André Franco. Introdução à Ciência do Direito, p.25-26.
21
Quanto ao processo, Cândido Rangel Dinamarco6 defende seu
papel sociológico, como mecanismo para garantir a realização do direito
material, assim, o direito processual é o “caminho” que assegura a
democratização da justiça. A técnica processual deve cumprir sua função
de orientar a prestação jurisdicional segura e efetiva, assim, servindo ao
Homem e a sociedade7.
2.1 CONSTRUINDO A CIÊNCIA
Construir ciência é formular conhecimento para explicar ao
Homem a natureza e sua própria condição diante de si mesmo e de
outros indivíduos, podendo, ainda, ser mencionada a questão metafísica.
A filosofia é considerada a mãe das ciências, mas, a partir do
empirismo positivista do Círculo de Viena8, não mais se reconheceu a
6
DINAMARCO, Cândido Rangel . A Instrumentalidade do processo, p. 186.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit., p. 186. ... hoje, todo estudo teleológico da jurisdição e do sistema processual há de
extrapolar os lindes do direito e da sua vida, projetando-se para fora. É preciso, além do objetivo puramente jurídico da jurisdição,
encarar também as tarefas que lhe cabem perante a sociedade e perante o Estado como tal. O processualista contemporâneo
tem a responsabilidae de conscientizar esses três planos, recusando-se a permanecer num só, sob pena de esterilidade nas suas
construções, timidez ou endereçamento destoante das diretrizes do próprio Estado social. (grifo nosso)
8
ALVES-MAZZOTTI , Alda Judith ; GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa
quantitativa e qualitativa, p. 10-11. O termo positivismo vem de Comte, que considerava a ciência como o paradigma de todo
conhecimento. No entanto, mais importante do que Comte para a linha anglo-americana foi a combinação de idéias empiristas (Mill,
Hume, Mach & Russell) com o uso da lógica moderna (a partir dos trabalhos em matemática e lógica de Hilbert, Peano, Frege, Russell
e das idéias do Tractatus Lógico-Philosophicus, de Wittgenstein). Daí o movimento ser chamado também de positivismo lógico ou
empirismo lógico. O movimento foi influenciado ainda pelas novas descobertas em física, principalmente a teoria quântica e a
teoria da relatividade. ... Embora tenha surgido nos anos 20, na Áustria (a partir do movimento conhecido como “Círculo de
Viena”, fundado pelo filósofo Moritz Schlick), Alemanha e Polônia, muitos de seus principais filósofos, como Rudolf Carnap, Hans
Reichenbach, Herbert Feigl e Otto Neurath, emigraram para os Estados Unidos ou Inglaterra com o surgimento
do nazismo, ... Para o positivismo, a Lógica e a Matemática seriam válidas porque estabelecem as
regras da linguagem, constituindo-se em um conhecimento a priori, ou seja, independente da
experiência. ... A indução, portanto, é o processo pelo qual podemos obter e confirmar hipóteses e
enunciados gerais a partir da observação. (grifos nossos).
7
22
filosofia como uma ciência, porque os conhecimentos por ela elaborados
não têm rigor metodológico, não dispondo de um objeto próprio e
específico de conhecimento e de uma linguagem adequada e autoreferenciada para descrever e explicar o objeto de estudo.
Não se pretende adentrar na questão da natureza do
conhecimento filosófico, mas registrar que se optou em determinado
momento histórico por negar ao conhecimento integral do ser a
característica da cientificidade.
Atualmente,
o
conhecimento
científico
vincula-se
a
epistemologia que se refere a uma filosofia da ciência que considera a
maneira como os saberes são organizados, partindo da lógica em seu
sentido amplo.
Desse modo, a lógica é entendida como o estudo da maneira
pela qual os saberes humanos se estruturam, o que implica averiguar
quais as suas condições de validade.
Para a epistemologia, o ato de conhecer pressupõe um objeto a
ser observado, sendo que, desse ato de observar9, surgem sínteses
descritivas que se denominam leis. Estas são submetidas a verificações
9
FOUREZ, Gerard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências, p. 40. ... a
observação não é puramente passiva: trata-se antes de uma certa organização da visão. ... para
observar, é preciso relacionar aquilo que se vê com noções que já se possuía anteriormente. Uma
observação é uma interpretação: é integrar uma certa visão na representação teórica que fazemos da
realidade.
23
experimentais que, se confirmarem as leis, são inseridas em teorias que
visam a uma descrição e explicação da realidade.
A observação construtora do conhecimento pressupõe uma
linguagem para sua expressão. Toda forma de expressão de linguagem é
cultural, o que permite afirmar que a ciência não é indiferente à cultura.
Assim, os cientistas são vinculados a um ponto de partida prévio, são
integrantes de um universo cultural e lingüístico. A observação neutra do
objeto é uma ficção.
As proposições empíricas indiscutíveis apenas o são no sentido
de uma convenção prática ligada ao trabalho científico, quando assim
são declaradas com referências a fatos que, momentaneamente, não serão
discutidos.
Toda observação é realizada por alguém, que é o indivíduo, o
sujeito10 que observa. A esse respeito, para a construção do
conhecimento, é interessante pensar sobre o referencial, ou seja, os
objetos existem em si mesmos, ou é o observador que os configura e,
portanto, atribui-lhes existência. Assim, observar é meramente descrever
o objeto ou o observador efetivamente cria o objeto através de um
processo de interpretação dos dados sensitivos. Essas questões não
10
Ibidem, p.50. O termo “sujeito” designa então o conjunto das atividades estruturantes necessárias a
observação.
24
desafiam uma resposta específica tendo sido discutidas ao longo da
história da ciência.
A partir da revolução copernicana, a observação é entendida
como uma construção que tem, no sujeito, seu ponto de partida. Isto
legitimou a visão da ciência como uma construção humana, tendo o
conhecimento assumido uma subjetividade relacionada com a linguagem
e com pressupostos culturais. Dessa forma, a objetividade da ciência é
ligada à instituição social do mundo.
O conhecimento científico é verificado em um contexto
coletivo, em que, a partir de proposições teóricas (leis não testadas), é
realizada a verificação empírica que poderá produzir as proposições
empíricas, que são um conjunto lingüístico convencionado pela
comunidade científica como portador da verdade em relação a
determinado objeto em face de determinado método e circunstâncias. A
ciência não produz um conhecimento atemporal e absoluto, mas
convencional.
2.2 A CIÊNCIA EM THOMAS KUHN
Este estudioso de física na Universidade de Harvard acabou se
interessando pela história da ciência e pela filosofia, escrevendo um dos
25
importantes trabalhos a respeito das transformações científicas11. Para
tanto ele formula os conceitos de “ciência normal”, “paradigma”,
identifica as características das revoluções científicas e as questões
referentes ao progresso científico.
O objetivo desse estudo não é o aprofundamento na obra de
Thomas Kuhn, mas identificar alguns pontos fundamentais em seu
trabalho, graças a sua indiscutível relevância no campo do conhecimento
científico, por ter acrescentado elementos que reordenaram a história da
ciência.
Tendo como ponto de partida sua posição no quadro da
história da ciência, Kuhn aponta duas tarefas que são consideras
fundamentais para o historiador da ciência; a identificação de quando e
de por quem cada fato, teoria ou lei científica contemporânea foi
descoberta ou inventada, e a descrição e explicação do amontoado de
erros, mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos
elementos constituintes do moderno texto científico. A construção da
idéia de que o progresso da ciência vincula-se mais a invenções e
descobertas individuais em detrimento da idéia de que ocorra por
movimentos de acumulação de conhecimentos foi possível em
decorrência da mudança de postura dos historiadores que passaram a
abordar novas espécies de questões e a traçar linhas diferentes de
11
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas, p. 22.
26
pesquisa, freqüentemente não-cumulativos, de desenvolvimento para as
ciências.
Essa nova postura dos historiadores da ciência está voltada
para uma abordagem da ciência e do cientista em seu tempo, assim a
história da ciência passou a ter o máximo de coerência interna e a maior
adequação possível à natureza. Esta nova imagem da ciência foi
constituída, sobretudo, após o trabalho de Alexandre Kayré12.
A partir das colocações básicas a respeito da história e dos
historiadores da ciência, Kuhn apresenta seu conceito de paradigma13
como sendo “as realizações científicas universalmente reconhecidas que,
durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para
uma comunidade de praticantes de uma ciência”14. Podem ser
identificadas duas características fundamentais nos paradigmas; a
realização apresentada no paradigma deve ser sem precedentes, a fim de
atrair um grupo duradouro de partidários, e deve ser suficientemente
aberta para deixar toda a espécie de problemas para serem resolvidos
pelo grupo redefinido de praticantes da ciência.
As revoluções e o progresso científico são relacionados a
alteração do paradigma, logo, os problemas e as soluções modelares são
12
Op cit., p. 22.
Ibidem, p.43-44. ... um paradigma é um modelo ou padrão aceitos. ... Os paradigmas adquirem seu
status porque são mais bem sucedidos que seus competidores na resolução de alguns problemas que o
grupo de cientistas reconhece como grave.
14
Ibidem, p. 13.
13
27
substituídos por novos problemas e respostas, o que provoca a
transformação do mundo.
A ciência em Kuhn pode ser identificada como uma reunião de
fatos, teorias e métodos organizados em textos atuais. Esse autor referese a “ciência normal”15, como a pesquisa baseada em uma ou mais
realizações científicas passadas, ou seja, realizada dentro de paradigmas.
Para contrapô-la, a ciência produzida nos momentos de ruptura
do paradigma. Dessa forma, as pesquisas produzidas com base em
paradigmas compartilhados estão comprometidas com as mesmas regras
e padrões para a prática científica. Esse comprometimento e o consenso
aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para
a gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa determinada.
Sob uma perspectiva de desenvolvimento da ciência, um
campo de estudos pode cruzar a divisa entre o que o historiador poderia
chamar de sua pré-história como ciência, e sua história propriamente
dita. Os movimentos de transição não são repentinos ou inequívocos;
assim como não são historicamente graduais, isto é, coextensivos com o
desenvolvimento total dos campos de estudos em que ocorreram.
15
Ibidem, p. 45. A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos;
na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são visto. ... a
pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos
pelo paradigma.
28
Dessa forma, sem a possibilidade de considerar os eventos do
passado, torna-se difícil encontrar outro critério que revele claramente
que um campo de estudos tornou-se uma ciência.
No enfoque sobre a natureza da ciência normal, destaca-se sua
função de atualização obtida através da ampliação do conhecimento
daqueles fatos que o paradigma apresenta como particularmente
relevantes, aumentando a correlação entre esses fatos e as predições do
paradigma e articulando ainda mais o paradigma. Esse trabalho é
denominado operação de limpeza.
A operação de limpeza, conquanto seja redutora do espaço da
pesquisa, porque fica limitada ao paradigma, é essencial para o
desenvolvimento da ciência, uma vez que tem um caráter de
verticalização da investigação16.
A pesquisa baseada em paradigmas, desenvolvida, portanto,
no contexto da ciência normal17, inicia-se com a coleta de fatos que visa
às experiências e observações descritivas. Três focos normais são
identificados para a investigação científica dos fatos, os quais não são
sempre ou permanentemente distintos. Quanto à classe dos fatos que o
16
Ibidem, p. 45. A ciência normal possui um mecanismo interno que assegura o relaxamento das
restrições que limitam a pesquisa toda vez que o paradigma do qual derivam deixa de funcionar
efetivamente. Nessa altura os cientistas começam a comportar-se de maneira diferente e a natureza
dos problemas de pesquisa muda. 16 Ibidem, p. 51. Uma parte (embora pequena) do trabalho teórico
normal consiste simplesmente em usar a teoria existente para prever informações fatuais dotadas de
valor intrínseco.
17
Ibidem, p. 51. Uma parte (embora pequena) do trabalho teórico normal consiste simplesmente em
usar a teoria existente para prever informações fatuais dotadas de valor intrínseco.
29
paradigma mostrou ser particularmente reveladora da natureza das
coisas, ao empregá-lo na resolução de problemas, o paradigma tornou-os
merecedores de uma determinação mais precisa, numa variedade maior
de situações. Quanto aos fenômenos determinados pelos fatos, a partir de
uma observação intrínseca, há a verificação se podem ser diretamente
comparados com as predições da teoria do paradigma. Finalmente, o
trabalho empírico empreendido para articular a teoria do paradigma,
resolvendo algumas de suas ambigüidades residuais e permitindo a
solução de problemas para os quais ela anteriormente só tinha chamado a
atenção, esgota as atividades de coleta de fatos na ciência normal18.
A articulação de um paradigma não se restringe a
determinação
de
constantes
universais,
podendo
visar
a
leis
quantitativas. Assim, a relação entre paradigma qualitativo e lei
quantitativa é tão geral e tão estreita que, desde Galileo, essas leis, com
freqüência, têm sido corretamente adivinhadas com o auxílio de um
paradigma, anos antes que um aparelho possa ser projetado para sua
determinação experimental19.
18
Ibidem, p. 48. ... a obra de Newton indicava que a força entre duas unidades de massa a uma
unidade de distância seria a mesma para todos os tipos de matéria, em todas as posições do universo.
Mas os problemas que Newton examinava podiam ser resolvidos sem nem mesmo estimar o tamanho
dessa atração, a constante da gravitação universal. E durante o século que se seguiu ao aparecimento
dos Principia, ninguém imaginou um aparelho capaz de determinar essa constante. A famosa
determinação de Cavendish, na última década do século XVIII, tampouco foi a última. Desde então,
em vista de sua posição central na teoria física, a busca de valores mais precisos para a constante
gravitacional tem sido objeto de repetidos esforços de numerosos experimentadores de primeira
qualidade. ... Poucos desses complexos esforços teriam sido concebidos e nenhum teria sido realizado
sem uma teoria do paradigma para definir o problema e garantir a existência de uma solução.
19
Ibidem, p. 49.
30
Pode concluir-se afirmando que para Thomas Kuhn a ciência
normal é pautada em três classes de problemas: determinação do fato
significativo, harmonização dos fatos com a teoria e articulação da
teoria. Fora desse esquema, podem ser encontrados problemas
extraordinários, emergidos em ocasiões especiais geradas pelo avanço da
ciência normal. Esses problemas levam ao abandono do paradigma e são
os pontos de apoio em torno dos quais giram as revoluções científicas20.
Os modos de aplicação do paradigma podem levar a pequenas
ou grandes revoluções científicas. Isto deriva do fato de que o mesmo
paradigma pode ser empregado em diversas linhas da pesquisa, sem que
todos apliquem as mesmas leis que o integram. Ressalta-se que, por
intermédio da ciência normal, podem ocorrer alterações internas no
paradigma, situação em que alguma de suas leis poderia ser modificada,
o que não significa o seu desaparecimento. Esse fato afeta somente os
estudos pautados naquela lei, permanecendo inalteradas as demais linhas
de pesquisas fundamentadas em outras leis do paradigma que não
tenham sido modificadas. Nesses casos, caracterizam-se as pequenas
revoluções científicas.
Antes de falar especificamente do que pode ser considerado
20
Ibidem, p. 77. ... fenômenos novos e insuspeitados são periodicamente descobertos pela pesquisa
científica; cientistas têm constantemente inventado teorias radicalmente novas. O exame histórico nos
sugere que o empreendimento científico desenvolveu uma técnica particularmente eficiente na
produção de surpresas dessa natureza.
31
como uma grande revolução científica, é pertinente tratar do que se
entende como uma descoberta e uma invenção.A descoberta é um
processo que exige tempo para a observação e formulação conceitual de
um novo tipo de fenômeno, sendo um acontecimento complexo que
envolve o reconhecimento tanto da existência de algo, como de sua
natureza.
Sobressai igualmente a questão da teoria em relação ao
paradigma, sendo certo que para Thomas Kuhn nem todas as teorias são
teorias paradigmáticas21.
Nos momentos de “crise do paradigma”22, os cientistas
desenvolvem teorias especulativas e desarticuladas, que, entretanto,
podem indicar o caminho para uma nova descoberta, que nem sempre
está vinculada à hipótese especulativa e experimental proposta pelas
teorias de referência. Conclui, então, que somente após a articulação
da experiência e da teoria experimental, pode surgir a descoberta e a
teoria converte-se em paradigma23.
21
Idem, p. 87.
Idem, p. 95 a 99. A emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de
insegurança profissional pronunciada, pois exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes
alterações nos problemas e técnicas da ciência normal. Como seria de esperar, essa insegurança é
gerada pelo fracasso constante dos quebra-cabeças da ciência normal em produzir os resultados
esperados. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas regras. ... Essa
proliferação de versões de uma teoria é um sintoma muito usual de crise.
23
Idem, p. 88.
22
32
As descobertas das quais surgem novos fenômenos apresentam
as seguintes características: a consciência prévia da anomalia24
25
, a
emergência gradual e simultânea de um reconhecimento, tanto no plano
conceitual como no plano da observação, e a conseqüente mudança das
categorias e procedimentos paradigmáticos. O procedimento da
descoberta se completa quando o que era considerado anômalo se
converte no previsto. A constatação desse processo justifica as razões
pelas quais a ciência normal é eficaz para provocar as descobertas.
Observa-se que uma nova teoria surge somente após um
fracasso caracterizado na atividade normal de resolução de problemas.
Esse fracasso é prenunciado, pois a ciência normal26 considerava o
problema relacionado com a crise total ou parcialmente solucionado.
Desse modo, o fracasso com um novo tipo de problema pode ser
decepcionante, no entanto, não pode ser surpreendente.
A importância da crise para a constituição de novas teorias e
paradigmas caracteriza-se pelo fato de que a solução para cada um dos
problemas foi antecipada, pelo menos parcialmente, em um período no
24
Idem, p. 92. A anomalia aparece somente contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma.
Idem, p. 113. ... para uma anomalia originar uma crise, deve ser algo mais do que uma simples
anomalia. Sempre existem dificuldades em qualquer parte da adequação entre o paradigma e a
natureza; a maioria, cedo ou tarde, acaba sendo resolvida, freqüentemente através de processos que
não poderiam ter sido previstos. maioria, cedo ou tarde, acaba sendo resolvida, freqüentemente através
de processos que não poderiam ter sido previstos.
26
Idem, p. 111. A ciência normal esforça-se (e deve fazê-lo constantemente) para aproximar sempre
mais a teoria e os fatos.
25
33
qual a ciência correspondente não estava em crise. Tendo sido essas
antecipações ignoradas exatamente porque não havia uma crise27.
Podem ser identificados dois efeitos gerais para as crises; todas
elas iniciam com o obscurecimento de um paradigma e o conseqüente
relaxamento das regras que orientam a pesquisa normal. Assim, ocorre
uma proliferação de articulações divergentes, pois as regras da ciência
normal tornam-se indistintas.
Os cientistas perdem o referencial claro a respeito do
paradigma, não mais sendo possível identificá-lo com exatidão e mesmo
soluções-padrão de problemas anteriormente aceitas passam a ser
questionadas.
Os cientistas28, contudo, mesmo em face de anomalias
prolongadas e graves, têm uma postura de resistência, na medida em que
defendem o paradigma vigente, e somente no caso de suspeitas quanto às
soluções apresentadas aos problemas é que são criadas as alternativas.
As novas teorias surgem quando um fenômeno portador de anomalia se
recusa, obstinadamente, a ser assimilado aos paradigmas existentes, isso
se verifica quando ele não fornece um lugar no campo visual do cientista
27
Idem, p. 105. O significado das crises consiste exatamente no fato de que indicam que é chegada a
ocasião para renovar os instrumentos.
28
Idem, p. 109. ... indubitavelmente alguns homens foram levados a abandonar a ciência devido a sua
inabilidade para tolerar crises. Tal como os artistas, os cientistas criadores precisam, em
determinadas ocasiões, ser capazes de viver em um mundo desordenado - ... “a tensão essencial”
implícita na pesquisa científica. (grifo nosso)
34
capaz de abranger a anomalia.
A rejeição de um paradigma implica invariavelmente na
aceitação de outro que o substitua29, sendo que o juízo que conduz a essa
decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza,
bem como sua comparação mútua30.
Diante da crise, emergem as novas teorias científicas as quais
somente alcançarão o status do paradigma se puderem substituí-lo, ou
seja, quando puderem oferecer respostas aos problemas de modo mais
satisfatório do que aquelas até então apresentadas.
Podem ser apontadas três maneiras em que se resolvem as
crises. O paradigma vigente reordena o quebra-cabeça da anomalia e
resolve o problema. Em outros casos, o problema revela-se insolúvel e é
abandonado, a fim de quê, em outro momento, seja retomado, quando se
dispor de novos instrumentos para sua abordagem. E, finalmente, os
casos em que ocorrem as revoluções científicas, entendidas como
aquelas em que a crise termina com a emergência de um novo candidato
a paradigma e com uma subseqüente batalha por sua aceitação.
Esta transição de um paradigma a outro promove a
reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, alterando-se
29
Idem, p. 110. Rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituí-lo por outro é rejeitar a própria
ciência.
30
Idem, p. 108.
35
algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma,
bem como muitos de seus métodos e aplicações31. Sobreleva o modo
como são modificadas as formas de solução dos problemas. Completada
a transição, os cientistas terão modificado a sua concepção sobre suas
pesquisas, seus métodos e seus objetivos.
Ao final, os cientistas terão, diante de si, o mesmo conjunto de
dados que, anteriormente, mas estabelecendo entre eles um novo sistema
de relações, organizado a partir de um quadro de referência diferente.
Nos momentos de crise, ocorre o retorno do cientista a análise
filosófica que tem sido fundamental para a ciência contemporânea,
ocorrendo uma mudança na natureza de suas pesquisas, proliferando as
articulações concorrentes, a disposição de tentar qualquer coisa, a
expressão de descontentamento explícito, o recurso à filosofia e ao
debate sobre os fundamentos, são reveladores da pesquisa extraordinária.
A ciência extraordinária ou não-normal é produzida nos
momentos de crise dos paradigmas, até que se estabeleçam as condições
para a reestruturação de uma nova ciência normal. Nessas circunstâncias,
verifica-se a grande revolução científica.
Do ponto de vista histórico, não é plausível que a inclusão
31
Idem, p. 119. ... nenhuma experiência pode ser concebida sem o apoio de alguma espécie de teoria,
o cientista em crise tentará constantemente gerar teorias especulativas que, se bem sucedidas, possam
abrir o caminho para um novo paradigma e, se mal sucedidas, possam ser abandonadas com relativa
facilidade.
36
lógica seja uma concepção admissível na relação existente entre teorias
científicas sucessivas32.
Portanto, as diferenças entre paradigmas
sucessivos são, ao mesmo tempo, necessárias e irreconciliáveis33;
conseqüentemente, sua mudança requer uma redefinição da ciência
correspondente.
Sob o ponto de vista dos paradigmas como parte constitutiva
da ciência, os cientistas têm neste uma teoria34, um método e padrões
científicos, que compõem uma mistura inextrincável.35
As mudanças de paradigmas levam os cientistas a ver36 o
32
Idem, p. 137. Precisamente por não envolver a introdução de objetos ou conceitos adicionais, a
transição da mecânica newtoniana para a einsteiniana ilustra com particular clareza a revolução
científica como sendo um deslocamento da rede conceitual através da qual os cientistas vêem o
mundo.
33
Idem, p. 138. A tradição científica normal que emerge de uma revolução científica é não somente
incompatível, mas muitas vezes verdadeiramente incomensurável com aquela que a precedeu.
34
Idem, p. 143. Por meio das teorias que encarnam, os paradigmas demonstram ser constitutivos da
atividade científica.
35
Idem, p. 142-143. Não é de surpreender que alguns historiadores tenham argumentado que a história
da ciência registra um crescimento constante da maturidade e do refinamento da concepção que o
homem possui a respeito da natureza da ciência. Todavia é ainda mais difícil defender o
desenvolvimento cumulativo dos problemas e padrões científicos do que a acumulação de teorias. A
tentativa de explicar a gravidade, embora proveitosamente abandonada pela maioria dos cientistas do
século XVIII, não estava orientada para um problema intrinsecamente ilegítimo; as objeções às forças
inatas não eram nem inerentemente acientíficas, nem metafísicas em algum sentido pejorativo. Não
existem padrões exteriores que permitam um julgamento científico dessa espécie. O que ocorreu não
foi nem uma queda, nem uma elevação de padrões, mas simplesmente uma mudança exigida pela
adoção de um novo paradigma.
36
Idem, p. 165. Após revoluções científicas, muitas manipulações e medições antigas tornam-se
irrelevantes e são substituídas por outras. ... Mas mudanças dessa espécie nunca são totais. Não
importa o que o cientista possa então ver, após a revolução o cientista ainda está olhando pra o mesmo
mundo. Além disso, grande parte de sua linguagem e a maior parte de seus instrumentos de
laboratório continuam sendo os mesmos de antes , embora anteriormente ele os possa ter empregado
de maneira diferente. Em conseqüência disso, a ciência pós-revolucionária invariavelmente inclui
muitas das mesmas manipulações, realizadas com os mesmo instrumentos e descritas nos mesmos
termos empregados por sua predecessora pré-revolucionária.
37
mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira
diferente. Na medida em que seu único acesso a esse mundo ocorre
através do que vêem e fazem, podendo ser afirmado que, após uma
revolução, os cientistas reagem a um mundo diferente37. O que ocorre
durante uma grande revolução científica não é totalmente redutível a
uma reinterpretação38 de dados estáveis e individuais. Isto não quer dizer
que os cientistas não interpretem observações e dados, o que, contudo,
vincula-se a um paradigma e, portanto, ocorre no quadro da ciência
normal, a qual tem por objetivo refinar, ampliar e articular um paradigma
que já existe, apenas possibilitando o reconhecimento de anomalias e
crises.
A interpretação limita-se a articular um paradigma, não
podendo corrigi-lo, pois isso não é papel desempenhado pela ciência
normal.
Questão fundamental quanto ao conhecimento científico se
refere ao fato de atribuir à experiência um caráter neutro e às teorias a
condição de simples interpretações humanas. Quanto a isto, Thomas
37
Idem, p. 171. O autor se refere a um mundo diferente no sentido de que o novo paradigma
fornecerá ao cientista uma nova percepção do objeto. Assim, “mesmo após a aceitação da teoria, eles
ainda tinham que forçar a natureza e conformar-se a ela, ...”.
38
Idem, p. 157. Em vez de ser um intérprete, o cientista que abraça um novo paradigma é como o
homem que usa lentes inversoras. Defrontado com a mesma constelação de objetos que antes e tendo
consciência disso, ele os encontra, não obstante, totalmente transformados em muitos de seus detalhes.
38
Kuhn, trata do assunto afirmando que “a perspectiva epistemológica que
mais freqüentemente guiou a filosofia ocidental durante três séculos
impõe um ‘sim!’ imediato e inequívoco. Na ausência de uma alternativa
já desdobrada, considero impossível abandonar inteiramente essa
perspectiva”39. Dando continuidade a sua posição quanto ao assunto, o
autor afirma que: “Todavia ela já não funciona efetivamente e as
tentativas para fazê-la funcionar por meio da introdução de uma
linguagem de observação neutra parecem-me agora sem esperança”40.
Quanto à linguagem, a tentativa de criar um modelo que
permitisse aproximá-la dos objetos de percepção e expressá-los de forma
pura e geral, como referido anteriormente, tem se revelado insatisfatório.
Isto se deve a que o cientista não realiza operações e medições de um
dado objeto da experiência, mas coleta, com dificuldade, índices
concretos para os conteúdos das percepções mais elementares41 42.
A propósito de evidenciar como a ciência progride através de
revoluções, atribui-se aos historiadores o equívoco de escrever a história
passada a partir do presente. Os manuais são os meios de divulgação da
39
Idem, p. 161.
Idem, p. 161.
41
Idem, p. 162. As operações e medições, de maneira muito mais clara do que a experiência imediata
da qual em parte derivam, são determinadas por um paradigma. A ciência não se ocupa com todas as
manifestações possíveis no laboratório. Ao invés disso, seleciona aquelas que são relevantes para a
justaposição de um paradigma com a experiência imediata, a qual, por sua vez, foi parcialmente
determinada por esse mesmo paradigma.
42
Idem, p. 165. Os paradigmas determinam ao mesmo tempo grandes áreas da experiência. ... Após
uma revolução científica, muitas manipulações e medições antigas tornam-se irrelevantes e são
substituídas por outras.
40
39
ciência normal, tendo um caráter pedagógico. Diante das alterações na
ciência normal, esses manuais são reescritos, e este procedimento tem
sido realizado de modo a ocultar as revoluções (grandes ou pequenas)
científicas. Isto se deve ao fato de que os relatos históricos apresentados
nesses manuais são fragmetários e parciais, relatando feitos com
referência a fatos presentes, o que leva a uma impressão equivocada de
que os cientistas e estudantes do presente são partícipes de um processo
cumulativo de conhecimentos. Isso é agravado pelo fato de que,
normalmente, são apresentadas apenas as partes do trabalho de antigos
cientistas que possam contribuir com o enunciado e a solução do
problema apresentado pelo paradigma do manual. Contribui também,
para o equívoco referente ao processo cumulativo, o fato dos cientistas
de épocas anteriores serem representados como se tivessem trabalhado
sobre o mesmo conjunto de problemas fixos, e utilizado o mesmo
conjunto de cânones estáveis que a revolução mais recente, em teoria e
metodologia científica, fez parecerem científicos43.
A ciência contemporânea está assentada num complexo de
teorias, métodos e se realiza com base em instrumentos que não existiam
antes da revolução científica que lhes reconheceu a validade. Os
problemas pesquisados e as soluções propostas no passado eram
43
Idem, p. 177-178. ... a tendência dos manuais a tornarem linear o desenvolvimento da ciência acaba escondendo o processo
que está na raiz dos episódios mais significativos do desenvolvimento científico.
40
completamente diferentes dos que atualmente movimentam o quebracabeça da ciência contemporânea. A passagem de uma coisa a outra não
se deve a evolução gradual das teorias, mas resulta de uma reformulação
revolucionária da tradição científica anterior, na qual a relação entre o
cientista e a natureza mediada pelo conhecimento era particular ao seu
tempo.
Após a descrição histórica e analítica dos fatos que envolvem a
estrutura constitutiva do conhecimento científico, é possível identificar
alguns pontos que levam a substituição de um paradigma que embasa
uma ciência normal, através de teorias especulativas até a constituição de
um novo paradigma, que orientará a percepção do cientista em relação
ao seu campo visual do mundo.
Todo procedimento científico está fundamentado na relação
entre o objeto captado pela percepção sensorial do cientista e o modo
como este interpreta essa percepção, seja para descrevê-la ou explicá-la.
Assim, a ciência se realiza sempre com o objetivo de compreender o
mundo. Nesse ambiente, pode ocorrer que um ou vários cientistas façam
uma nova interpretação da natureza (objeto), verificando, então, uma
descoberta ou formulando uma teoria. Esse fato decorre da ação criadora
do cientista, nessa situação, normalmente vinculada a uma atenção
concentrada sobre problemas que provocam crises. Observa-se, ainda,
41
que os cientistas mais jovens ou menos comprometidos com o paradigma
vigente têm melhores resultados nesse processo.
A partir do quadro acima descrito, são formuladas as teorias de
verificação probabilística, que indicam as novas direções pelas quais
deverão avançar as futuras discussões sobre o problema da verificação,
fazendo-o através da adoção de uma das linguagens de observação. Aqui
se retorna ao fato de que os sistemas de linguagem ou os conceitos não
são portadores de neutralidade científica ou empírica, o que torna
necessária a realização de testes e teorias alternativas à vinculação a
algum paradigma tradicional. Durante esse período, haverá intensa
discussão e as formulações teóricas especulativas lutarão entre si a fim
de demonstrar sua melhor condição para apresentar respostas factíveis
aos problemas.
Ao final desse processo, surge um candidato a paradigma que
assumirá esse papel de referência para a ciência na medida em que a
comunidade científica se convencer a respeito de sua capacidade para
solucionar os problemas que estão ligados à melhor adequação possível
entre a formulação teórica e a descrição ou explicação do objeto.
Uma questão elementar e fundamental é aquela de
perceber
o
alterações.
progresso
da
ciência
no
contexto
de
suas
42
Admitindo que a revolução científica leva a novas formas de
resolução de problemas a partir de teorias, métodos e instrumentos
inovadores em relação àqueles utilizados pela ciência normal,
é possível afirmar que isto assegura o progresso da ciência 44.
O ponto de referência adotado por Thomas Kuhn não parte da questão
vinculada à ciência enquanto instrumento capaz de levar à verdade. O
progresso da ciência, então, é um “progresso de evolução a partir de um
início primitivo – processo cujos estágios sucessivos caracterizam-se,
por uma compreensão sempre mais refinada e detalhada da natureza” 45.
Para efeito desta tese, será admitido a priori que as ciências
sociais podem ser operacionalizadas através das referências constituídas
para
as
ciências
naturais
quanto
aos
aspectos
relativos
ao
desenvolvimento histórico, à conceituação de paradigma, à constituição
de seus momentos de crises e ao seu progresso.
2.3 CIÊNCIAS NATURAIS E CIÊNCIAS SOCIAIS
Esta introdução não objetiva resolver os problemas inerentes
ao conhecimento científico, mas posicionar o leitor a respeito de alguns
44
Idem, p. 209. As revoluções terminam com a vitória total de uma dos dois campos rivais. Alguma
vez o grupo vencedor afirmará que o resultado de sua vitória não corresponde a um progresso
autêntico? Isso equivaleria a admitir que o grupo vencedor estava errado e seus oponentes certos. Pelo
menos para a afacção vitoriosa, o resultado de uma revolução deve ser o progresso.
45
Idem, p. 213.
43
pontos que foram considerados relevantes para a pesquisa. Embora tenha
sido mencionado que a questão metodológica que envolve as ciências
naturais e as ciências sociais não seja importante para este trabalho, esta
posição não tem a pretensão de levar a conclusão de que não há
diferenças entre esse dois ramos de estudos. Aquela consideração limitase à questão referente ao fato de que nem sempre as ciências sociais têm
sido consideradas como produtoras de um conhecimento que se
caracterize pela objetividade científica, que fundamenta as ciências
naturais. Sendo sabido que houve e em certa medida ainda há reservas a
aceitação do caráter científico inerente e próprio ao conhecimento
vinculado aos fatos sociais ou decorrentes das relações humanas46.
Atualmente, fala-se na pesquisa quantitativa referindo-se às
características dos trabalhos realizados nas ciências naturais e em
pesquisa qualitativa como sendo aquela forma de abordagem mais
indicada para as ciências sociais.
Os critérios que envolvem a
diferenciação entre essas duas formas de desenvolvimento da pesquisa
são interessantes, pois desloca a questão do método47 para um enfoque
relativo aos objetivos que se pretende alcançar com a realização do
46
ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à análise sociológica dos sistemas
jurídicos, p. 113. Se tivesse que destacar um elemento constante no desenvolvimento da “ciência
social”, desde o momento e que, em meados do século XIX, Comte fundou a Sociologia, esse
elemento seria o debate epistemológico ou metodológico permanente e, concomitantemente,
polêmico, acerca do status científico das Ciências Sociais.
47
VIEGAS, Waldyr. Fundamentos de metodologia científica, p. 123. A palavra método – do grego
antigo µετά, no meio de + όδόζ, caminho – significa, etimologicamente, “atalho”, mas na linguagem
corrente passou a significar “andar em busca de”.
44
trabalho científico, afastando-se do critério que considera como
fundamental no processo de conhecimento a posição do observador em
relação ao objeto pesquisado48. Isto vincula o estudo à construção de um
conhecimento que tem uma forte referência prática ligada ao modo de
desenvolvimento e objetivos da pesquisa.
A pesquisa quantitativa ou positivista adota uma metodologia
que produz um conhecimento de caráter descritivo, formalista, nãoanalisador e acrítico. O trabalho de caráter quantitativo procura a
explicação dos fenômenos ou objetos estudados através de uma
descrição da realidade social sem julgamento de valores e preocupações
críticas, tomando como ponto de partida a verificação de hipóteses
escolhidas a priori.
O valor científico de uma sociologia explicativa-quantitativa
está vinculado a uma pretensa objetividade do conhecimento, o que
poderia possibilitar a formulação de leis gerais aplicáveis aos fatos
sociais e capazes tanto de explicá-los como de prevê-los.
Os procedimentos próprios a uma metodologia do tipo
quantitativa se fundamentam em dados estatísticos, objetiváveis,
quantificáveis
48
e
descontextualizados.
Criam
uma
perspectiva
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia científica, p. 47-80.
Tratando a respeito dos Métodos Científicos são apresentados de forma didática os métodos de
abordagem indutivo, dedutivo, hipotético-dedutivo e dialético. Podendo afirmar-se que estes métodos
ilustram de que maneira têm sido considerados os referenciais metodológicos básicos para a
construção de um conhecimento com caráter científico.
45
macrossociológica, na medida em que os sistemas sociais são
considerados em sua totalidade. Nessa situação, o objeto das ciências
sociais é equiparado ao objeto das ciências naturais.
As pesquisas voltadas para o estudo dos fenômenos sociais que
adotam uma metodologia do tipo quantitativa consideram o referencial
próprio das ciências naturais para determinar um tipo de conhecimento
que se baseie nos critérios de cientificidade modelados pelo positivismo.
A atitude científica, então, é pautada em procedimentos objetivos,
quantitativos, homogêneos, generalizadores, diferenciadores; as relações
causais são ligadas à investigação da natureza ou a estrutura do fato
estudado, o extraordinário é um caso particular do que é regular, normal
e freqüente49.
A metodologia qualitativa visa a uma pesquisa que propõe a
descrição compreensiva do sentido das ações humanas. A realidade
social é considerada como algo em diálogo, em interação, em
comunicação contínua com o pesquisador.
A ação social é tomada quanto à sua intencionalidade e o
momento subjetivo passa para o primeiro plano na realização dos
estudos. O objeto de estudo não é transcendente ao sujeito cognoscente,
sendo que este, necessariamente, fica implicado no objetivo do
49
CHAUI, Marilena Convite à filosofia, p. 249-250.
46
conhecimento50. As pesquisas qualitativas operam com o pluralismo
metodológico.
Sob
uma
perspectiva
qualitativa
há
uma
abordagem
microssociológica, o que consiste em estudar os processos concretos de
comunicação e de interação da ação social. Acredita-se que essas
pesquisas permitam dar um sentido interpretativo aos dados da análise
empírico-quantitativa. A pesquisa desenvolvida com base em uma metodologia
qualitativa se caracteriza por ser construtivista e compreensiva. Sua base filosófica está
principalmente ligada à dialética51 e à fenomenologia52.
Pode-se entender a dialética como um método de enfoque da
realidade
sob
o
prisma
de
sua
dinâmica,
portanto,
sendo
constitutivamente mutável e contraditória. Através da análise dialética
50
A interdependência e a indissociabilidade são as marcas entre o sujeito e o objeto, ou seja, o sujeito
observador é parte integrante do processo cognoscente, dando aos fenômenos significado. O objeto
não é inerte, é portador de significados oriundos das relações com os sujeitos.
51
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia, p. 185-187. Com efeito, dialética significa em Hegel,
em primeiro lugar, o momento negativo de toda realidade. Dir-se-á que, por ser a realidade total de
caráter dialético – em virtude da identidade prévia entre a realidade e a razão, identidade que faz do
método dialético a própria forma em que a realidade se desenvolve – em virtude da identidade prévia
entre a realidade e a razão, identidade que faz do método dialético a própria forma em que a realidade
se desenvolve – esse caráter afeta o que ela tem de mais positivo. ... A noção de dialética, o método
dialético e, por vezes, a chamada “lógica dialética” são centrais no marxismo ... . Um caráter comum a
quase todos os pensadores marxistas é fazer da dialética um método para descrever e entender não,
como em Hegel, o autodesenvolvimento de “a Idéia”, mas a realidade enquanto realidade “empírica”.
... Em sua Crítica da Razão Dialética, Sartre apresenta a atividade dialética como “totalizante”. A
razão dialética constitui um todo que deve fundar-se a si mesmo.
52
A fenomenologia foi criada pelo filósofo Edmund Husserl, que propõe um método baseado na
“redução fenomenológica” que em síntese consiste no seguinte; por meio da análise de como o
entendimento intervém no conhecimento das realidades da experiência, permitindo definir o campo da
consciência interior e chegar assim aos próprios fenômenos na forma como se apresentam a essa
consciência, isto é, atingir a essência real das coisas. Na prática, esse método consiste numa descrição
da gênese dos conceitos, o que possibilitaria delimitar os elementos objetivos e subjetivos que
intervêm no ato de conhecer.
47
seria possível descobrir o significado das ações e das relações que se
ocultam nas estruturas sociais.
A fenomenologia consiste em uma abordagem do objeto em
que deve ser ultrapassada sua aparência para alcançar a essência de sua
realidade fenomênica, para tanto usa-se o interacionismo e a
etnometodologia. O interacionismo, pautado na teoria do ator, funda-se
na idéia básica segundo a qual os indivíduos forjam comportamentos
antecipados de outrem e agem em razão de comportamentos esperados
dos outros. Assim, o indivíduo é entendido como um intérprete do
mundo que o rodeia. A etnometodologia investiga o cotidiano dos
pesquisados e o significado que eles atribuem aos acontecimentos diários
e triviais. A análise fenomenológica tem como referência, ou ponto de
partida, o indivíduo.
A respeito do conhecimento formulado no campo das ciências
sociais ou das ciências naturais, no que tange à sua natureza científica,
reporta-se a Boaventura de Souza Santos que, ao inspirar-se em Jacques
Rousseau (1750) a propósito de alguns questionamentos elementares a
respeito da ciência e do senso comum, indaga “pelo papel de todo o
conhecimento
científico
acumulado
no
enriquecimento
ou
no
empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo
48
positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade”53. Até que ponto
a ciência melhorou ou poderá melhorar a vida humana?
A complexidade desta pergunta parece irredutível, porque na
cultura ocidental foi incorporada à idéia da ciência a crença quanto ao
avanço tecnológico e progresso, sendo decorrência disso os benefícios
materiais aos quais as pessoas passaram a ter acesso54 a partir da
elaboração de um conhecimento marcado por especificidades que lhe
confere o caráter de científico. Contudo, não se pode negar que referido
“progresso científico” trouxe conseqüências dramáticas para a vida
humana individual e coletiva. A devastação dos ecossistemas (fauna e
flora), o que ameaça a qualidade de vida em período de tempo muito
próximo; a violência globalizada através das organizações de caráter
ideológico-religioso (terrorismo islâmico e de Estado)55 e criminosa
(tráfico internacional de drogas e armas)56; a solidão e o sedentarismo
das pessoas, levando as mesmas ao uso cada vez mais
disseminado
53
de
antidepressivos
e
drogas
lícitas
do
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências, p. 8-9.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, p. 258. Por que, então, temos a ilusão do progresso e de
evolução? Por dois motivos principais: ... 1 ... Do lado do cientista, o progresso é uma vivência
subjetiva; ... 2. do lado dos não cientistas, porque vivemos sob a ideologia do progresso e da evolução
do “novo” e do “fantástico”. Além disso, vemos os resultados tecnológicos das ciências: naves
espaciais, computadores, satélites, fornos de microondas, telefones celulares, cura de doenças julgadas
incuráveis, objetos plásticos descartáveis, e esses resultados tecnológicos são apresentados pelos
governos, pelas empresas e pela propaganda como “signos do progresso” e não da diferença
temporal. Do lado dos não cientistas, o progresso é uma crença ideológica. (grifo nosso)
55
BARELA, José Eduardo. O massacre dos inocentes. Revista Veja, p. 106-109.
56
TOWNSEND, Mark; HARRIS, Paul. O apocalipse está aí. Revista Carta Capital, p. 46-53
54
49
comportamento 57, bem como as doenças (como a obesidade)
exigindo tratamentos cada vez mais agressivos à fisiologia humana;
exemplificam os múltiplos aspectos que envolvem a questão de afirmarse acriticamente as maravilhas produzidas pelo conhecimento científico
na contemporaneidade.
Duas observações são pertinentes, a posição apresentada a
respeito da ilusão quanto à melhoria da qualidade de vida a partir do
conhecimento científico e, sobretudo, de seu progresso não tem o
objetivo de desconsiderar as conquistas das ciências natural e social, mas
de contextualizar o Homem, pois não se usufrui esses benefícios sem
contrapartida. Vários problemas inerentes à vida humana foram
resolvidos, no entanto, vive-se em um mundo repleto de outros tantos
problemas à espera de solução. O que se pretende é afirmar as diferenças
nos modos de vida em cada tempo, sempre repletos de expectativas.
Ressalta-se, ainda, que é irrenunciável o papel da ciência na condução do
conhecimento em busca de uma melhoria geral na condição de existência
do Homem.
A partir das considerações anteriores, é reafirmada a posição
segundo a qual é possível especular que, no paradigma emergente, “a
distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências sociais deixou de
57
LOZNEANU, Bronie. Prisioneiros das pílulas. Revista Época, p.
50
ter sentido e utilidade”58. Isto se deve a quê, segundo Boaventura de
Sousa Santos;
a concepção mecanicista da matéria e da natureza a que
contrapõe, com pressuposta evidência, os conceitos de ser
humano, cultura e sociedade. Os avanços recentes da física
e da biologia põem em causa a distinção entre orgânico e
inorgânico, entre seres vivos e matéria inerte e mesmo
entre o humano e o não-humano59.
Há uma convergência entre as diferentes formas de
conhecimento, haja vista uma ontologia renascida na contemporaneidade
em decorrência das frustrações que as restrições cientificistas60 criaram
através das especialidades e compartimentação do conhecimento. A
prometida redução da complexidade proposta através da subordinação do
conhecimento ao método de análise do objeto revelou-se inconsistente,
pois o Homem continua sem resposta para problemas fundamentais
relativos à sua existência.
58
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências, p. 37.
Idem, p. 37.
59
CHAUÍ, Marilena. Op. cit., p. 280. O cientificismo é a crença infundada de que a ciência pode e
deve conhecer tudo, que, de fato, conhece tudo e é a explicação causal das leis da realidade tal como
esta é em si mesma.
59
.
51
2.4 QUESTÕES A RESPEITO DO ESTUDO DO DIREITO.
Abordados alguns temas a respeito da produção do
conhecimento e suas implicações para a condição da vida humana,
considera-se oportuno tratar dessas questões no âmbito do direito. Neste
sentido, há problemas que devem ser demarcados e, na medida do
possível, estudados com vistas à contextualização do direito no quadro
geral dos saberes.
O direito, como objeto de estudo, atende aos pressupostos
necessários para identificação como um conhecimento que tenha a
natureza de científico?
Qual é o objeto de estudo do direito?
Se os estudos a respeito do Direito têm o caráter científico, a
qual ramo da ciência o direito estaria afeito?
Esses problemas são pertinentes ao método, como instrumento
que encaminha o processo de análise do objeto, a partir de sua
fragmentação, classificação e conceituação, basicamente. Portanto, não
se trata de resolver o problema, mas de contextualizá-lo, considerando
um vetor que orienta o desenvolvimento deste trabalho, o qual assenta
52
suas pilastras na finalidade do direito, a qual se identificada como sendo
a “de ordenar a convivência e o desenvolvimento dos povos”61.
2.5 COMO CONHECER O DIREITO?
O conhecimento do direito no Brasil até o final da década de
80 do século XX, teve, como referência fundamental, o estudo da norma
jurídica enquanto fenômeno ordenador da sociedade brasileira. Como tal,
as escolas de direito formavam os estudantes a partir de uma visão
positivista estruturalista, logo, os profissionais trabalhavam com o direito
em uma perspectiva da sua validade, vigência e eficácia. Verificadas
estas condições no sistema jurídico, outras discussões a respeito do
direito deveriam ser reservadas à sociologia jurídica, à filosofia jurídica,
enfim, esteve-se por um longo período estudando o direito a partir de um
referencial kelseniano de sistema fechado62.
É perceptível como está se transformando rapidamente o modo
de vida da faixa economicamente ativa da população no Brasil, o que
pode ser atribuído a absorção de novas tecnologias e práticas sociais
61
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do Direito, p. 25.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução à Filosofia e à Epistemologia Jurídica. Do
formalismo advém a disposição em deduzir o direito a partir de um sistema de conceitos e princípios,
com a crença de que a correção material decorre do acerto formal dessa operação. Como
conseqüência, tem-se que: (1º) A ordem jurídica passa a ser vista como um sistema fechado e
pleno, com autonomia e independência frente à realidade social. (grifo nosso)
62
53
decorrentes, entre outros fatores, aos novos padrões de comunicação
estabelecidos globalmente.
No campo do direito, a elaboração da Constituição de 1988
teve um papel importante porque toda a ordem jurídica foi revisitada.
Esta movimentação provocada pela Assembléia Nacional Constituinte
levou a discussões políticas e ideológicas que resultaram na absorção de
determinados valores relevantes, os quais foram incorporados ao sistema
jurídico brasileiro.
Foram selecionados alguns pontos que são identificados como
referenciais para as alterações provocadas no ordenamento jurídico com
a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988.
Assim, destaca-se a adoção do primado do devido processo
legal no artigo 5º, LIV da CF/88, no qual se entende que se asseguram
todas as garantias processuais, desde o acesso irrestrito à jurisdição
estatal até o duplo grau de jurisdição.
O princípio do contraditório e da ampla defesa, previsto no
artigo 5º, LV, são tidos como fundamentais para o Estado Democrático
de Direito; o artigo 1º, inciso III63; o artigo 3º, inciso I64; o artigo 170
63
Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 1º. A República
Federativa do Brasil ... tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana;
64
Idem, artigo 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir
uma sociedade livre, justa e solidária;
54
caput e inciso VII65; o artigo 173, § 1º, inciso I66; todos da Constituição
Federal de 1988, entre outros dispositivos que preceituam a respeito da
construção da sociedade brasileira pautada em valores que são
suprajurídicos, no sentido de que se expressam lingüisticamente por
termos que têm uma significação ampla, vinculada à sociologia e à
filosofia.
Acredita-se que a introdução no ordenamento legal desses
termos que apresentam conceitos abertos possibilitou novas formas de
estudo do direito e, portanto, novas formas de conhecê-lo. Igualmente se
têm pensado que as estruturas que o Estado organiza para cumprir seu
papel67 obrigatoriamente devem voltar suas ações para a realização
daqueles ideais Constitucionais.
Procura-se o apoio no texto da Constituição Federal de 1988, a
fim de evidenciar o caráter jurídico das preocupações desta proposta de
estudos. A abordagem específica visa à compreensão sistêmica das
questões inerentes à segurança e à efetividade da prestação jurisdicional.
65
Idem, artigo 170, caput. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios: VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
66
Idem, artigo 173, caput. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta da
atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança
nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º. A lei estabelecerá o
estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que
explorem atividades econômicas de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços,
dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;
67
O Estado deve ser o responsável pela criação, organização e implementação das políticas de
desenvolvimento dos bens eleitos pela nação como fundamentais para o crescimento nacional.
55
Quer se propor uma forma de conhecer o direito a partir de
uma referência teórica crítica68 da hermenêutica Constitucional. O que se
pretende dizer com isso? O enfoque dos estudos deve ser realizado,
tendo como ponto de partida a Constituição Federal, como preceito
jurídico fundamental, sendo portadora dos dispositivos legais que
asseguram a coerência e a existência do sistema jurídico brasileiro, como
sistema autopoiético. Estes dispositivos legais dependem para sua
aplicação de passarem pelo processo de interpretação, a qual deve ser
realizada criticamente, ou seja, o direito deve ser estudado a partir de
suas interações com outros sistemas, interessando, sobretudo, suas
relações lingüísticas e finalísticas com o ambiente social.
Ressalta-se que a oportunidade dessa proposta de estudos
caminha no sentido indicado pelas recentes constatações realizadas no
campo teórico e doutrinário, tanto nas ciências naturais como nas
ciências sociais, a indicação é a da crise do paradigma dominante69 70.
68
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente, p. 23. Por teoria crítica entendo toda
a teoria que não reduz a ‘realidade’ ao que existe. A realidade qualquer que seja o modo como é
concebida é considerada pela teoria crítica como um campo de possibilidades e a tarefa da teoria
consiste precisamente em definir e avaliar a natureza e o âmbito das alternativas ao que está
empiricamente dado.
69
Ibidem, p. 60-63.O modelo de racionalidade que preside à ciência moderna constituiu-se a partir da
revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio
das ciências naturais. ... é só no século XIX que este modelo de racionalidade se estende às ciências
sociais emergentes. ... Esta nova visão do mundo e da vida conduz a duas distinções fundamentais,
entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza e
pessoa humana, por outro.
70
Ibidem, p. 71. Depois da euforia cientista do século XIX e da conseqüente aversão à reflexão
filosófica,bem sinalizada pelo positivismo, chegamos a finais do século XX possuídos pelo desejo
quase desesperado de complementarmos o conhecimento das coisas com o conhecimento do
nosso conhecimento das coisas, isto é, com o conhecimento de nós próprios. (grifos nossos)
56
Localiza-se a crise dos paradigmas no direito na observação do
processo de desestruturação dos princípios erigidos pela Revolução
Francesa, quanto ao monismo jurídico, a efetividade e segurança da
jurisdição, a liberdade, a igualdade e a fraternidade; os quais têm
determinado as discussões em torno da criação, organização e aplicação
do direito através dos instrumentos postos à disposição dos indivíduos
pelo Estado.
Retomando a idéia a respeito da qual as ciências naturais e as
ciências sociais se integram para formar uma modalidade de
conhecimento que tem a finalidade de proporcionar melhores condições
para a vida humana. Deve-se mencionar que durante 14 séculos, desde o
Século II até o Século XVI, a teoria de Cláudio Ptolomeu 71, a respeito
do geocentrismo, tratou a Terra como o centro do Universo, o quê, de
certa forma, localizava o Homem como o ser central, criado à imagem e
semelhança de Deus. Os escritos de Nicolau Copérnico foram
desenvolvidos no sentido de negar o geocentrismo e propor um estudo
baseado no heliocentrismo, o que acabou se confirmando com o trabalho
de Galileo Galilei.
71
NOVA Enciclopédia Barsa, v.12, p. 105-106. O compêndio de astronomia elaborado por Ptolomeu
no século II foi adotado pela igreja durante toda a Idade Média. ... Personalidade das mais célebres da
época do Imperador Marco Aurélio, Ptolomeu foi o último dos grandes sábios gregos e procurou
sintetizar o trabalho de seus predecessores. Por meio de suas obras de astronomia, matemática,
geometria, física e geografia, a civilização medieval teve seu primeiro contato com a ciência grega. ...
Baseado nas idéias de Hiparco, Ptolomeu adotou o sistema geocêntrico, que situa a Terra no centro do
universo e, ...
57
Essa alteração completa no paradigma reconhecida como
“Revolução Copernicana” ou “Revolução de Copérnico”72 produziu
efeitos durante vários séculos, sabendo-se que o heliocentrismo passou a
ser o referencial para os estudos realizados no campo da astronomia,
permanecendo assim até o presente. Efetivamente, a Revolução
Copernicana representa uma grande revolução científica, onde se
observa uma completa ruptura e mudança no paradigma até então
adotado. Posteriormente, ocorreram pequenas revoluções científicas, as
quais alteraram parcialmente alguns referenciais teóricos e leis a respeito
dos trabalhos desenvolvidos por Copérnico e Galileo, contudo, nenhum
estudo chegou a demonstrar que o heliocentrismo não tenha relação com
a representação do movimento da terra em relação ao sol.
Contemporaneamente à Revolução Copernicana, inicia-se o
ciclo das grandes navegações com a descoberta de regiões desconhecidas
da terra pelos europeus. Podem ser acrescentados inúmeros fatos que
ocorreram a partir do Século XVI aos anteriormente mencionados, mas
não sendo o objetivo deste trabalho tratar exaustivamente da descrição
histórica a respeito do que ocorreu por ocasião da elaboração e
divulgação da teoria heliocêntrica, pretende-se apenas observar que, a
72
SIMMONS, John,.Os 100 maiores cientistas da história, 2002. A “Revolução de Copérnico” é um
termo extremamente válido, apesar de seu conteúdo real ter sido muito discutido e disputado por dois
séculos, desde que foi empregado pela primeira vez por Immanuel Kant. O termo deve ser entendido
como se referindo ao abandono, por Copérnico, da astronomia ptolomaica e sua prioridade em
desenvolver um modelo heliocêntrico.
58
partir de Galileo, tem início uma completa mudança na maneira de viver
do Homem.
Acredita-se que no campo das ciências humanas73
74
e das
ciências sociais, esse processo levou a posturas que, em última análise,
deslocam os dogmas de uma perspectiva transcendental75 e permite uma
visão imanente do Homem em relação ao mundo e a si mesmo.
Estava preparado o terreno para que René Descartes
escrevesse, em 1637, o Discurso do Método e propusesse uma forma de
conhecimento embasado na decomposição do objeto em partes, o que
asseguraria seu melhor conhecimento. Esta forma de abordagem do
objeto constituiria um tipo de conhecimento rigoroso e que seria
caracterizado como sendo científico.
Desde então e até o final da 2ª Guerra Mundial, quando o
holocausto, Hiroxima e Nagasaki chocaram o mundo, parecia não haver
um modo melhor ou mais eficiente de constituir o conhecimento. Todos
os movimentos científicos parecem ter sido orientados no sentido da
formação de uma ciência caracterizada pela sua especialidade, na medida
73
CHAUI, Marilena, Op. Cit., p. 271. ... a expressão ciências humanas refere-se àquelas ciências que
têm o próprio ser humano como objeto. ... para ganhar respeitabilidade científica, as disciplinas
conhecidas como ciências humanas procuraram estudar seu objeto empregando conceitos, métodos e
técnicas propostos pelas ciências da Natureza.
74
Ibidem, p. 273. A constituição das ciências humanas como ciências específicas consolidou-se a
partir das contribuições de três correntes de pensamento, que, entre os anos 20 e 50 de nosso século
(XX), provocaram uma ruptura epistemológica e uma revolução científica no campo das
humanidades. A contribuição da fenomenologia, a contribuição do estruturalismo e a contribuição do
marxismo.
75
AULETE, F. Caldas.Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, v. 5, p. 3.625.
Transcendental, o mesmo que transcendente. Transcendente, adj., sublime, superior. Metafísico.
59
em que se exigia a fragmentação do objeto para o seu efetivo
conhecimento.
Grandes juristas envolveram-se com o nazismo76 e o fascismo,
por reduzirem o direito e a idéia de justiça a alguma coisa menor,
desvinculada do Homem, algo institucional, contextualizado no tempo e
pautado na idéia de que “os fins justificam os meios”77. Acredita-se que
tais fatos criaram as condições para que se questionassem os paradigmas
segundo os quais o conhecimento científico poderia ser formulado de
modo desvinculado de valores éticos.
O conhecimento do direito deve se pautar por meios que
assegurem uma análise mais ampla do fenômeno jurídico como
expressão do poder estatal a que todos vincula. Sua realização no campo
do direito processual tem caráter instrumental, ressalta-se que isto não
pode ser entendido como uma forma de subordinação e perda da
autonomia do processo em relação ao direito material. Este caráter
instrumentalizador do processo precisa ser entendido como um
mecanismo que possibilite não apenas a aplicação das regras de direito
material, mas, sobretudo, a garantia da realização dos fins primordiais
que orientam e dão sustentação ao direito no corpo social. O processo
76
BERCOVICI, Gilberto. Carl Schimtt e a constituição de Weimar: breves considerações. Revista
Latino-Americana de Estudos Constitucionais., p. 366.
77
MACHIAVELLI, Niccolò. O príncipe.
60
deve ocupar seu espaço no mundo jurídico como um filtro, onde se
produzirá a norma a ser aplicada a cada caso concreto levado a
apreciação do Poder Judiciário.
Reduzir o direito processual à ferramenta cega do direito
material é negar uma trajetória histórica que se iniciou em Roma, com a
acción real e desenvolveu-se até à formulação da Teoria Geral do
Processo na Alemanha em 1868. Qualquer proposta nesse sentido deve
ser tratada com cautela. O processo, ainda que seja uma técnica não deve
estar em descompasso com os interesses e necessidades da sociedade
onde incide suas regras.
Portanto, não se pretende negar que o
direito pode ser conhecido como ciência e igualmente que o processo
tem elementos que permitem afirmar sua cientificidade. A atividade
científica em torno do direito tem por objetivo dar uma representação do
fenômeno jurídico de acordo com o paradigma científico adotado78.
78
ARNAUD, André-Jean et al. Dicionário enciclopédico de teoria e de Sociologia do Direito, p. 9196. A ciência do Direito como corpus teórico e como prática social. ... A ciência do direito é
suscetível, na base da definição muito geral que acabamos de apresentar, de se realizar a níveis
bastante diversos com respeito aos diversos paradigmas admitidos e aos critérios de cientificidade que
a eles estão associados. Esse ponto é entretanto obscurecido pelo fato de que, no pensamento jurídico,
o monismo epistemológico dominante conduz a exclusões e a condenações recíprocas. Se adotarmos,
ao contrário, uma forma de pluralismo epistemológico, deverá ser reconhecido que a cientificidade
pode ter graus e que as diversas versões da ciência do direito podem assumir seu lugar em um espectro
com múltiplas gradações, correspondentes aos diversos empregos da expressão “ciência do direito”,
empregos esses a que uma definição léxica precisa referir-se. ... Acrescentamos, à guisa de conclusão,
que nesse modelo complexo de ciência interdisciplinar do direito a teoria do direito é chamada a
desempenhar um papel determinante que consiste em operar a aproximação ou a tradução dos
dois jogos de linguaagem em presença: o da dogmática, de um lado, e o das ciências sociais, do
outro. Sem que isto conduza a subestimar as especificidades e as funções distintas que esses dois
tipos de saber apresentam, esse papel de intermediário deveria incitar a teoria do direito a
adotar uma forma de pluralismo epistemológico (supra), que poderia predispô-la a liberar as
virtualidades científicas inscritas na dogmática, da mesma forma que as virtualidades práticas
alternativas que as ciências sociais veiculam. (grifo nosso)
61
Contudo, torna-se imprescindível compreender as limitações
das teorias originalmente criadas de modo hermético, buscando a um
conhecimento baseado em métodos que antes isolavam o fenômeno de
estudos em relação ao Homem, ao qual está ligada toda construção
realizada, seja de caráter científico ou não. Com isso, quer-se afirmar
que não deve ser convalidada a figura do conhecimento desvinculado do
sujeito que o produz.
É adequado que se estude o direito como parte de um todo
maior, que é o sistema social. Não se trata de submeter o direito à
sociologia, mas de compreendê-lo como um elo entre o Estado,
considerado sob o ponto de vista dos fins que deve promover para a
organização e transformação sociais e o próprio corpo social, nas
múltiplas relações que estabelece intrínseca e extrinsecamente.
É através do direito processual que se realiza o procedimento
de aplicação dos dispositivos de direito material. Tendo em vista a
proposta da realização de uma pesquisa pautada em uma teoria crítica da
hermenêutica Constitucional, focada, sobretudo, no sistema de
interpretação e aplicação dos princípios cunhados na Constituição
Federal de 1988 a respeito do direito processual, considera-se que o
processo de execução das obrigações de natureza privada se localiza
entre os eixos principais de sustentação das políticas brasileiras em busca
62
do ingresso entre os países desenvolvidos, de um lado a estruturação de
uma sociedade politicamente democrática e pautada pelos valores do
Estado Democrático e Social de Direito, e de outro, o imperium referente
às políticas econômicas liberais, que exigem garantias de retorno dos
capitais investidos nos países cujas economias estão mais susceptíveis
aos movimentos dos capitais voláteis, descompromissados com os
setores produtivos e com os interesses locais.
Nessa encruzilhada entre garantias individuais Constitucionais
e garantias de sustentação das políticas econômicas, são criados os
“seguros” que socorrem os bancos que misteriosamente quebram, os
“fundos de emergência” para as corporações que “sofrem prejuízos” por
participarem dos processos de privatização e não arcarem com os riscos
do empreendimento. Tudo sob o manto do Estado.
O indivíduo que ainda consegue participar do sistema de
crédito, contudo, submete-se à remuneração exorbitante cobrada pelas
instituições financeiras pelo capital; o regime da correção de
investimentos para o poupador é ínfimo se comparado com as taxas de
juros praticas. Esse desequilíbrio tem como um de seus efeitos o seguinte
resultado: a pessoa é levada ao sistema de consumo a crédito, arcando
com o ônus de uma macropolítica econômica que ela sequer suspeita que
existe, mas que, em última análise, alimenta.
63
Nesse quadro, qual deve ser o papel do direito?
O indivíduo não pode ser objeto da espoliação imposta por
macropolíticas econômicas que não são do interesse local, mas não deve
também tutelar a inadimplência irresponsável. Acredita-se que o
processo represente uma possibilidade concreta para conduzir esses
problemas a um tipo de solução que atenda às necessidades das partes
envolvidas na execução.
Propostas que visem ao comprometimento das estruturas que o
direito processual edificou a partir de uma longa experiência histórica
devem ser tratadas com cautela. A referência é ao comprometimento da
autonomia do processo de execução em relação ao processo de
conhecimento. Esta posição decorre da convicção de que não é
justificável comprometer a ordem do processo, que ainda representa uma
das garantias das liberdades democráticas para a sociedade, e da suspeita
de que, sob o pálio da apregoada busca pela efetividade da jurisdição,
pretenda-se colocar o direito processual a serviço dos interesses nem
sempre claros do sistema financeiro que opera com a rotatividade de
crédito e que alimenta a custos incalculáveis políticas econômicas de
alcance internacional.
O processo de execução deve ser modelado de acordo com os
princípios da Constituição Federal de 1988, sem com isto desconsiderar-
64
se sua autonomia em relação ao processo de conhecimento. Esta nova
execução ao atender aos preceitos instrutores da justiça em seu sentido
amplo deve antes viabilizar a solvência da obrigação que inviabilizar as
atividades econômicas do devedor, sobretudo, quando o débito tiver sido
contraído com o objetivo de financiar meios de produção formais ou
informais.
É possível afirmar que as propostas de reforma do processo de
execução no Brasil não serão capazes de oferecer respostas satisfatórias
ao problema da baixa efetividade jurisdicional quanto à entrega do bem
da vida pela via da coação jurisdicional, pois o quebra-cabeça desse
problema está situado em um descompasso ligado a fatores extrínsecos
ao direito processual, como a questão dos juros elevadíssimos cobrados
pelo crédito, bem como pelas altas taxas referentes aos juros moratórios
quando o indivíduo eventualmente torna-se inadimplente, sendo-lhe
quase sempre impossível arcar com as despesas adicionais decorrentes
da demora. O direito processual como sistema fechado desconsidera
estas questões, que, contudo, são relevantes para a compreensão e
superação do problema da efetividade e segurança jurisdicional.
Estudar o direito processual de forma crítica exige uma postura
mais aberta e flexível quanto ao seu papel no contexto da realização dos
objetivos do Direito enquanto ciência e mecanismo de organização e
65
desenvolvimento da sociedade. É nesse sentido que este trabalho será
encaminhado.
66
3 O DIREITO NO CONTEXTO DA TEORIA DOS SISTEMAS
3.1 TEORIA GERAL DOS SISTEMAS
A elaboração de uma rede de conceitos a respeito da idéia da
existência e funcionamento dos sistemas ocorreu primeiramente no
campo das ciências biológicas em 1951, tendo sido o seu organizador
Von Bertalanffy, que escreveu a Teoria Geral dos Sistemas.
Contemporaneamente
Wiener,
desenvolve
um
conjunto
de
conhecimentos análogos no campo da cibernética.
A questão relativa à Teoria dos Sistemas está centrada nos
mecanismos operacionais ou funcionais dos seus elementos integrantes,
sendo admissível a idéia que concebe sob o ponto de vista de sua
natureza, o sistema como aberto ou como fechado. Quanto à sua
constituição, os sistemas podem ser: físico/concreto/hardware ou
abstrato/software. Há teorias intermediárias, as quais concebem o
sistema como fechado relativamente a certos aspectos de seu
funcionamento e aberto em relação a necessidade de interação com o
meio79.
79
A teoria dos sistemas autopoiéticos foi desenvolvida inicialmente no Chile no campo da biologia
por Francisco Javier Varela e Humberto Maturana, que eram biólogos moleculares.
67
A Teoria Geral dos Sistemas como foi proposta está
fundamentada na formação de modelos abertos com funções que
dependem da estrutura do sistema. Os sistemas são abertos porque são
caracterizados por um processo de intercâmbio infinito com seu
ambiente, que são outros sistemas. Cessando o intercâmbio, o sistema se
desintegra por perder sua fonte de energia. Como esta teoria foi
elaborada no campo da biologia, ela apresenta um aspecto organicista.
Bertalanffy não visou a solução de problemas de ordem
prática, mas a partir da crítica da visão do conhecimento produzido de
forma compartimentada através da divisão em diversas áreas do saber, a
qual considerava arbitrária, afirmou que as propriedades dos sistemas
não podem ser descritas significativamente em termos de seus elementos
separados. Assim, a compreensão dos sistemas ocorre quando estudados
globalmente, envolvendo todas as interdependências de suas partes.
O funcionamento dos sistemas na Teoria Geral de Bertalanffy
ocorre
dentro
dos
parâmetros
em
que
se
verifica
a
entrada/insumo/impulso (input)80 e a saída/produto/resultado (output)81.
Considerando a necessidade de estabelecer-se um referencial conceitual
quanto ao que é entendido como sistema, o mesmo deve ser
compreendido como um conjunto de elementos interdependentes e
80
Input é a força de arranque ou de partida do sistema que fornece o material ou energia para a
operação do sistema.
68
interagentes que se formam por um grupo de unidades combinadas que
compõem um todo organizado que gera um resultado maior do que seria
criado pelas unidades, funcionando separadas e independentemente.
No modelo cibernético de Wiener, são estudadas as relações
entre os fatores de controle e comunicação dos seres vivos, das máquinas
e das relações sociais.
Pode ser mencionada igualmente a idéia expressa por sistema
na filosofia, onde autores como Kant, Leibniz, Wolff, Fichte, utilizaramna para referir-se a diversas coisas, contudo, sempre tendo em vista uma
totalidade dedutiva de discurso, sendo usada para indicar, sobretudo, um
discurso organizado dedutivamente constituindo um todo cujas partes
derivam umas das outras.
Outro aspecto correlato a sistema na filosofia refere-se a
qualquer teoria científica ou filosófica quando se pretenda ressaltar suas
características teóricas e, portanto, afastar-se dos problemas empíricos82.
Quanto ao conhecimento expresso pela teoria geral
dos sistemas, em ciências sociais é pertinente observar que ela representa
uma retomada de estudos, através de novas vias, em busca de um fio
condutor para a unidade da ciência. Nesse sentido, esta teoria se
81
82
Output é a finalidade para a qual se reuniram elementos e relações do sistema.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, p. 908-909.
69
caracteriza pela interdisciplinaridade com um sentido unificador e
globalizante, em busca de uma totalidade do conhecimento científico.
3.2 CIÊNCIA DOS SISTEMAS
Nos anos setenta, formulou-se a sistêmica ou ciência dos
sistemas em geral como disciplina científica autônoma, visando
desenvolver os métodos de modelização para fins de intervenção dos
fenômenos compreendidos como complexos, entendidos, assim, aqueles
que são portadores de um certo grau de imprevisibilidade essencial.
A ciência dos sistemas visa a uma conceituação do sistema
geral como um “conceito abstrato, construído de modo a servir de matriz
para modelos de fenômenos complexos, dotados de um certo número de
traços ou propriedades cuja coerência mútua é estabelecida no seio da
teoria do sistema geral” 83.
Dois aspectos são fundamentais, lastreando a ciência dos
sistemas, quais sejam: o que se refere à sua conjunção cibernética
(aspecto funcional), ou seja, todo fenômeno pode ser entendido pelas
suas finalidades em um determinado meio; e a conjunção estruturante
(aspecto estrutural) dos sistemas em geral, segundo a qual, os fenômenos
83
ARNAUD, André-Jean. Dicionário enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, p. 736.
70
podem ser entendidos através de seu funcionamento e de suas
transformações.
O método sistêmico é proposto pela teoria dos sistemas como
uma alternativa que rompe com o racionalismo clássico analítico.
Em ciências sociais, o método sistêmico foi questionado
porque utiliza os modelos construídos em outras áreas da ciência, como a
biologia. Esta aplicação se justifica em virtude do poder explicativo
apresentado pelos métodos sistêmicos. A sociologia e, principalmente, a
sociologia jurídica desenvolveram, através de métodos sistêmicos,
formas excepcionais de análise do fenômeno social, seja sob seu enfoque
geral, ou específico, no campo do direito.
3.3 SISTEMAS SOCIAIS
O enfoque do direito sob uma perspectiva crítica forçosamente
leva à questão do sistema social, pois, em uma concepção sistêmica de análise do
fenômeno jurídico, este é estudado a partir das interações que estabelece com o meio
social84 quê, por sua vez, existe em um contexto o qual forma o sistema social.
84
MIRANDA, Pontes de Francisco Cavalcanti. Introdução à Sociologia Geral, p.17. A adaptação não
se opera entre parte do ser e o meio, mas entre todo o ser e todo o meio. Por isso, a sociedade humana
difere da animal: os processos adaptativos não se efetuam somente entre atos, e sim também entre
pensamentos, porque os homens são serem pensantes. Por outro lado, o meio não é só a família, o
grupo profissional, é também a escola filosófica ou científica, a nação, a humanidade; e não é só
o grupo social, - é também o Universo, o mundo físico. (grifo nosso)
71
Pode ser afirmado que o sistema social consiste na intersecção
entre indivíduos num determinado espaço de tempo e lugar, sendo
estabelecidas relações de interdependência. Isto pressupõe um conjunto
de relações estabelecidas entre indivíduos a partir de inúmeras situações
que podem ser naturais, como a filiação e convencionais, como a relação
de emprego. Sobressalta, entretanto, que as relações no sistema social
são normatizadas. As regras que regulam o sistema social podem ter
diversas origens, sendo normas de conduta social, religiosa, de etiqueta e
de direito.
O sistema social permeia tudo quanto diga respeito ao
Homem, uma vez que o paradigma da existência em sociedade não foi
rompido. O Homem é um ser eminentemente social e aquilo que lhe diz
respeito se concretiza na conjuntura do sistema social.
A sociologia é um ramo do conhecimento que objetiva
compreender o sistema social em sua totalidade, o que significa que seu
objeto de trabalho é a análise do conjunto das relações interdependentes
que são estabelecidas no meio social.
A ciência dos sistemas, erigida a partir da teoria geral dos
sistemas, desenvolveu-se com base na idéia fundamental a
respeito da existência de estruturas constituídas por partes
72
interligadas por vínculos de dependência que interagem formando o
todo que possibilita a identificação de um sistema.
As partes integrantes do sistema são denominadas subsistemas.
Em ciências sociais, a pesquisa qualitativa é predominante e o
método sistêmico tem sido utilizado com bons resultados na análise
sociológica.
Uma análise sistêmica é considerada crítica porque aborda os
aspectos inerentes ao subsistema em relação ao sistema social no que
tange às conseqüências decorrentes dessas relações para os indivíduos.
O subsistema jurídico pode ser conhecido através de diferentes
maneiras. A sociologia jurídica é a área da sociologia que pretende
compreender esse subsistema sob sua ótica social.
O Direito é a área do subsistema jurídico que visa ao
estudo dos dispositivos legais, considerando-se sua inserção
social quanto à ordenação e transformação do sistema social.
No que se refere à função regulamentadora das condutas, o
direito desempenha um importante papel na solução dos
conflitos de interesses, uma vez que o Estado tem poderes
para intervir junto às partes para garantir a ordem, impondo
73
uma determinada conduta a qual elas ficam obrigadas a obedecer85.
3.4 SISTEMA JURÍDICO
Ao referir-se a sistema86, tem-se a noção de um conjunto de
partes unidas por relação de dependência com vista a determinados fins.
Historicamente, houve uma variação considerável quanto ao que se pode
identificar como sendo o sistema jurídico87.
85
ARNALD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas Introdução à análise sociológica dos sistemas
jurídicos., p. 11. O sistema jurídico possui diferentes significados, de acordo com que, como objeto de
conhecimento, se o considera numa perspectiva jurídico-dogmática ou numa perspectiva sociojurídica.
Do ponto de vista da dogmática, o sistema jurídico surge como um conjunto lógico-formal de regras
jurídicas, cujas características fundamentais são a sistematização, a generalidade, a completude, a
unidade e a coerência. Do ponto de vista propriamente sociojurídico, no entanto, o sistema
jurídico é polissêmico. Por um lado, é concebido como lugar de interação, isto é, como um
sistema de comunicação, formado por símbolos normativos com função persuasiva; por outro
lado, esse sistema de símbolos normativos age como elemento causal dos comportamentos
sociais. A sociologia do direito, conseqüentemente, também toma o sistema jurídico como objeto de
conhecimento, sem limitar-se aos comportamentos sociais que têm uma relação com o direito - , e isto
com base nas duas perspectivas acima assinaladas, ao mesmo tempo em que se consideram
interpretações jurídico-dogmáticas que dão aos juristas das normas jurídicas, porquanto estas também
são elementos determinantes da conduta social dos indivíduos. (grifo nosso)
86
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução à Filosofia e à Epistemologia Jurídica, p. 110. Uma
noção muito cara para a moderna metodologia das ciências é a de ‘sistema’. Em Direito, o termo
aparece já no século XVIII, com o Movimento do Direito Racional Jusnaturalista, surgido sob o
influxo das meditações cartesianas, fundantes da concepção de ciência vigente nos temos modernos.
‘Sistema’, conforme se entendia à época, coincidia com a idéia geral que se tem de um todo funcional
composto por partes relacionadas entre si e articuladas de acordo com um princípio comum.
87
ARNAUD, André-Jean. Dicionário enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, p. 728. Até
o século dezoito, designava-se o conjunto de normas jurídicas de uma sociedade pelo nome de ‘leis’.
... O termo mais preciso ‘sistema jurídico’ aparece na filosofia política e na teoria jurídica no século
XVIII. Encontramos a expressão ‘systems of law’ com Bentham em 1782 ... e a expressão ‘os
diversos sistemas de legislação’ no Contrato social de Rousseau de 1762... . Vinte anos antes, Hume já
utilizava a expressão ‘system of morality’ para designar uma moral particular ... . O termo ‘sistema
jurídico’ se difundiu no século XIX através de escritos históricos, assim como o termo de origem
alemã ‘ordem jurídica’. ... Mesmo que as expressões ‘sistema jurídico’ e ‘ordem jurídica’ sejam
muitas vezes utilizadas uma pela outra, elas têm conotações diferentes. O termo ‘sistema jurídico’ dá,
de um direito positivo, essencialmente a imagem de um conjunto de normas, e insiste no aspecto de
sistematização de coerência lógica: ele agrada àqueles que atribuem à doutrina um papel importante
na elaboração de um direito positivo. Por outro lado, o termo ‘ordem jurídica’ tem um sabor
sociologizante e evoca algo mais forte que um conjunto de normas seja a sociedade, a cultura ou o
Volksgeist que criam as normas, ou as relações sociais e o conjunto da ordem social que resultam das
normas jurídicas.
74
A respeito desse assunto, é importante considerar o sistema
informal de direito, de modo que o sistema jurídico formal convive com
um conjunto de regras complementares de caráter flexível, e destituídas
de poderes de coerção segundo o modelo estatal. Os sistemas informais
criam uma regulamentação constituída de regras identificáveis que,
embora sejam flexíveis, operam através de meios que produzem as
condutas esperadas.
Não há uma linha divisória que separe de modo absoluto os
sistemas informais dos formais, pois em inúmeras situações regras de
conduta informais se transformam em regras obrigatórias absorvidas
pelo sistema formal, havendo casos em que regras informais podem
existir dentro do sistema formal, interferindo em seu funcionamento.
Desta forma, os sistemas informais constituem uma realidade que
engloba o sistema formal e, muitas vezes, penetra-o. Suas formas de agir,
suas áreas de influência e suas relações com o sistema formal são
indispensáveis para o seu conhecimento.
O sistema jurídico desdobra-se em algumas questões que lhe
são inerentes e, portanto, fundamentais, as quais se referem a sua
existência, sua identidade, sua estrutura e seu conteúdo. O critério para
determinar-se a existência, a identidade, a estrutura e o conteúdo do
sistema jurídico é que representa o principal problema que deve ser
75
enfrentado, sendo que, até o presente momento, não foi possível
estabelecer, de modo definitivo, uma forma que permita precisar com
segurança os limites ou contornos dos sistemas jurídicos.
A questão da existência vincula-se a efetividade do sistema. A
identidade se refere aos limites do sistema, para tanto tem sido adotado o
critério da origem, assim as normas originadas do mesmo modo integram
o mesmo sistema. Quanto à identidade, também é admitido o critério do
reconhecimento pelos órgãos que aplicam o direito, como é o caso dos
tribunais. Quanto à estrutura, várias são as posições doutrinárias sobre o
modo de organização dos dispositivos que constituem o sistema jurídico,
podendo ser mencionadas as normas de conduta, normas imperativas,
normas de competência, entre outras, de modo a formar o modelo do
sistema. Há ainda as normas sancionadoras88, que têm sido entendidas
como as diferenciadoras do sistema jurídico, pois somente este disporia
de mecanismos que impõem sanções aos indivíduos que se recusem a
cumprir os preceitos que compõem o sistema.
Ainda no que tange à estrutura do sistema jurídico, observa-se
a grave problemática da existência de lacunas e de conflitos dentro do
sistema. Atualmente, as teses que admitem as lacunas e os conflitos têm
88
Ibidem, p.. 731. É quase universalmente aceito que todo sistema jurídico contém normas que
impõem sanções ... . A maior parte dos autores afirma que todo o sistema jurídico contém, além das
normas de conduta, normas outras que impõem sanções àqueles que desobedecem às primeiras: essas
duas categorias de normas são muitas vezes chamadas `primárias` e `secundárias`.
76
melhor aceitação na comunidade jurídica, em detrimento do pensamento
kelseniano que, até a década de 60, defendia a idéia da ausência de
lacunas e de conflitos. Após 1960, Kelsen aceitou a possibilidade da
existência de conflitos internos no sistema jurídico.
Quanto ao conteúdo dos dispositivos que compõem o sistema
jurídico, duas questões são suscitadas, uma que se refere à identificação
de conteúdos comuns em todos os sistemas jurídicos e outra, em saber se
é necessária a presença de determinados conteúdos para que um conjunto
de dispositivos sejam considerados como parte do sistema jurídico.
A par de alguns dos problemas que envolvem a questão
referente à identificação e à conceituação do sistema jurídico, considerase interessante, tendo em vista que esta pesquisa é desenvolvida sob um
viés sistêmico, tratar de alguns aspectos a respeito da formação da teoria
dos sistemas jurídicos a fim de que seja determinado um conceito de
sistema jurídico, bem como referido o atual estágio de desenvolvimento
dessa teoria.
3.4.1 Posição do Direito em relação à teoria dos sistemas jurídicos
Tratar do direito sob uma perspectiva sistêmica dentro de uma
proposta hermenêutica reporta a uma concepção de acordo com a qual o
Direito se configura como realidade cultural o que não deve
77
comprometer seu caráter científico. Assim, como um modo de solução
de conflitos concretamente entabulados o direito adere à realidade, toda a
sua história está vinculada a isto. A cientificidade do direito é
reconhecida na medida em que ele se constitui como um conjunto de
regras capazes de garantir soluções pré-determinadas ou prédetermináveis aos problemas que surgem em decorrência das relações
existentes no meio social. Estas soluções devem ser formuladas através
de um modelo lingüístico que lhe assegure a “eqüidade” das respostas
apresentadas aos problemas.
A concepção sistemática do Direito não é inovadora,
representando, contudo, uma retomada quanto à intenção de reformularse um modo de estudo que dê um sentido unificador ao conhecimento
jurídico, podendo ser afirmada uma tendência à totalidade quanto ao
Direito89. A unidade e a totalidade devem ser assimiladas através da
identificação de um conjunto de princípios que norteie toda a
compreensão do fenômeno objeto do estudo.
Há duas acepções tradicionais relativas ao sistema jurídico,
uma externa ou extrínseca e outra interna ou intrínseca. Sob o ponto de
89
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 107. A idéia-força de nosso tempo – e
aqui nos valemos daquela imagem verbal produzida por Fouilée há tanto tempo – parece ser, no
campo das Ciências Sociais e de sua metodologia, a concepção sistêmica, qual se acha de último
concebida na teoria dos sistemas. Importa a orientação sistêmica, no significado mais profundo que
talvez se lhe possa atribuir, a retomada de um sonho frustrado desde o século XIX, de que foi exemplo
e modelo a filosofia positivista de Augusto Comte: o da unidade da Ciência, agora investigada e
perquirida por novas vias.
78
vista extrínseco, o sistema se refere ao trabalho intelectual que produz
uma totalidade de conhecimentos logicamente classificados, com base
em um princípio unificador. Seus requisitos são: a coerência, a perfeição
e a independência. No campo do Direito, o conhecimento de seu objeto
está vinculado a coaticidade do dispositivo legal. Esse mesmo objeto,
quando abordado em si mesmo como um conjunto de elementos
materiais (coisas ou processos) ou imateriais (conceitos), ligados entre si
por relações de mútua dependência, constituindo um todo organizado
caracterizado pela simetria acerca da matéria, está ligado à concepção
intrínseca do sistema.
3.4.2 A tradicional sistêmica do Direito
Sem preocupações conceituais, desde Roma, podem ser
identificadas menções a sistemas de Direito. Entretanto, isto não
apresentava um nível de abstração teórica comparável ao que mais tarde
veio a ser concebido, assim será tomada como ponto de partida a
pandectística alemã
A Escola Histórica, que foi encabeçada por Savigny90, representa
90
MARTINS FILHO, Ives Gandra. Manual Esquemático de história da filosofia, p. 353. FRIEDRICH
VON SAVIGNY (1799-1861). Professor em Berlim e ministro da Prússia, é o fundador da escola
histórica do Direito, que combateu a teoria do Direito Natural, substituindo-a pelo estudo da
evolução histórica do Direito Positivo. (grifo nosso)
79
um momento crucial após um período em que o direito romano havia
sido estudado pela Escola dos glosadores que foi sucedida pela Escola
dos Pós-glosadores, que teve como um de seus ilustres representantes
Bártolo de Sassoferrato91.
Tradicionalmente,
a
Escola
histórica
possibilitou
uma
perspectiva de conhecimento do direito que culmina com a pandectística
sintetizada na dogmática jurídica também denominada de jurisprudência
dos conceitos, pautada no formalismo jurídico através de uma via
sistemática fundamentadora de dois modelos para a ciência do direito92.
Em um caso, a idéia do sistema é formada de maneira
externa, ou seja, as normas jurídicas não apresentam pontos de ligação
91
PRATA, Edson. História do processo civil e sua projeção no direito moderno, p. 100-107. Irnérius,
fundador da Universidade de Bolonha, em 1088, ... assumiu a cátedra de direito romano, criando
escola, fazendo recrudescer o seu prestígio que mais salientava pela interpretação dada aos textos
romanos acomodada à prática das instituições vigentes. Era a escola dos glosadores, assim chamados
porque os que a constituem (Búlgaro, Placentino, Giovani Bassiano e outros) se notabilizaram pelas
glosas, ou notas, feitas à margem ou nas entrelinhas dos textos, em comentários às instituições a que
se referiam. ... Houve um intervalo entre a projeção da Escola dos Glosadores e a dos PósGlosadores, ocupada pela chamada Escola dos Ultramontanos, cujos alicerces foram lançados por
Jacques Révigny (1.200-1.296) e João Faber. ... Surgiu no século XIV a chamada Escola dos PósGlosadores, também denominada Escola dos Comentadores, porque seus integrantes se valeram dos
comentários aos textos romanos estudados, assim como os glosadores da glosa se utilizaram. ... Dois
grandes juristas se projetaram nesta Escola: Bártolo de Sassoferrato (1.314 – 1.357) e Pedro Baldo de
Ubaldis (1.327 – 1.406). ... Bártolo, professor da Escola de Bolonha, era considerado pelos seus
coevos como a maior figura jurídica de todos os tempos, trazendo consigo, os cognomes “a luza do
Direito”, “o príncipe dos legisladores”, “o milagre da natureza”. Sua fama chegou a tal ponto que fez
surgir o aforismo: “nemo bonus jurista nisi bonos bartholista”. Daí porque a Escola dos Pósglosadores ficou conhecida também como Escola Bartolista. (grifo nosso)
92
CANARIS, Claus–Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito.
Introdução à edição portuguesa. António Menezes Cordeiro. P. XXV e seguintes. Designadamente
com SAVIGNY e a escola histórica, procedeu-se à confecção de um método puramente jurídico. Esse
método, que era suposto corresponder a um discurso sobre o processo de realização do direito vai, ele
próprio, tornar-se objecto de novos discursos. Ou seja, num fenômeno que a moderna Filosofia da
Linguagem bem permite isolar, pode considerar-se que a autonomização metodológica do Direito
comportou um preço: o aparecimento dum metadiscurso que, por objecto, tem não já o Direito. Surge,
então uma metalinguagem, com metaconceitos e toda uma seqüência abstracta que acaba por não ter
já qualquer contacto com a resolução dos casos concretos.
80
específicos entre si, sendo que os juristas realizavam seus trabalhos
tendo por finalidade elaborar uma estrutura para o direito. Assim, os
teóricos constroem, dogmatizam e impõem a lógica ao Direito. Dessa
forma, o sistema é identificado em uma síntese interpretativa entre a
histórica, o doutrinador e o dispositivo legal. Portanto, a idéia do sistema
seria exterior ao objeto específico de estudo, sendo constituída pelos
doutrinadores com base na história.
A Escola histórica, com as suas mesmas bases formalistas e
estruturalistas, permitiu a formulação de um modelo de sistema
intrínseco93. Nessa concepção, a estrutura lógica está no próprio direito,
assim o ordenamento jurídico seria dotado de uma racionalidade interior
à espera de revelação pelo jurista. A sistematicidade lógica e racional é
pré-existente em relação à intervenção do sujeito cognoscente, estando
intrinsecamente ligada ao objeto.
A partir das colocações anteriores, pode afirmar-se que a teoria
dos sistemas jurídicos tem suas bases tradicionais vinculadas à Escola
histórica que formulou a jurisprudência dos conceitos que é formalista e
estruturalista. Por sua vez, a jurisprudência dos conceitos produziu duas
correntes teóricas distintas para o direito, uma que considera o sistema
93
BONAVIDES, Paulo Op. cit., p. 112. A determinação do sistema interno do Direito, pelo
formalismo, inspira-se na filosofia kantista, graças à qual floresceram posteriormente várias posições
doutrinárias, cujo objetivo era estabelecer com exação e rigor científico a especificidade do nexo que
vincula as várias partes da construção jurídica positiva.
81
jurídico como uma formulação extrínseca ao ordenamento jurídico,
sendo constituído pelo sujeito cognoscente, ou seja, o sistema é
identificado no objeto (ordenamento jurídico) através da elaboração
doutrinária. O conteúdo sistêmico do direito se encontraria na
formulação
teórico-doutrinária
produzida
pelo
sujeito
e
não
propriamente no objeto estudado, sendo sua finalidade criar uma
estrutura para o direito.
A mesma jurisprudência dos conceitos, através da teoria dos
sistemas intrínsecos, inverte a posição da formulação do conhecimento
sistêmico do direito e desloca essa característica para o objeto estudado,
sendo que ao sujeito cognoscente cabe unicamente descrever as
características que são intrínsecas ao ordenamento jurídico. Os sistemas
intrínsecos representam um alto grau de sofisticação teórica, sendo o
formalismo jurídico kelseniano da Teoria Pura do Direito, o modelo de
elaboração mais primorosa dentre aqueles identificados como integrantes
da tradição sistêmica do direito94.
94
Paulo BONAVIDES. Op. cit. p., , 112. Fora, contudo, da órbita formalista, numa esfera puramente
material, vingaram também sistemas jurídicos internos com base nos valores e sua relatividade
(Radbruch) ou em critérios de manifesto cunho teleológico, com os sistemas formados à sombra da
chamada jurisprudência dos interesses, da Escola do Direito Livre e da Teoria marxista.
82
3.4.3 Sistemas jurídicos teleológicos ou finalísticos
Não é possível, com absoluto grau de precisão, determinar
uma linha no tempo ou mesmo no desenvolvimento epistemológico,
onde teria arrefecido a jurisprudência dos conceitos para ascender a
jurisprudência dos interesses. Acredita-se que as mudanças no ocidente
durante a Idade Moderna os quais decorreram da desagregação dos
meios de produção organizados durante a Idade Antiga enquanto vigorou
o feudalismo foram fatores determinantes que permitiram a rediscussão
sobre a questão dos valores e dos fins a ser buscados através dos
sistemas ordenadores das condutas humanas que mais tarde foi
delimitado por algumas características específicas e denominado de
sistema jurídico95 96 97.
A jurisprudência dos interesses representa uma reação ao
95
ENCICLOPÉDIA Mirador Internacional, v. 11, p. 5.937. Idade Média. 1. Conceituação e limites. A
apresentação organizada dos fatos no fluxo do processo histórico impõe a sua distribuição por amplas
fases, e a isso se chama periodização. ... No século XVII é que se nota a tendênica a aplicar essa
divisão no processo histórico em geral. ... Foi somente em 1685-1696 que Christoph Keller (Cellarius)
consagrou a tripartição da história universal em seus compêndios, ... . ... A partir daí, apesar das
objeções levantadas no séc. XVIII, o termo idade Média acabou por ser aceito na França, na
Inglaterra, e em toda a Europa. Nunca houve, entretanto,, unanimidade quanto aos seus limites no
tempo.
96
VICENTINO, Cláudio. História Geral., p. 111. ... utilizaremos a expressão Idade Média desprovida
de qualquer conteúdo pejorativo, indicando unicamente o período histórico compreendido entre os
séculos V e XV, que tem início com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e que se
estendeu até a tomada de Constantinopla, em 1453.
97
Ibidem, p.176. Entre os séculos V e XVIII, estruturou-se uma nova ordem socieconômica,
denominada capitalismo comercial. ...Apenas no final da Idade Moderna, a classe burguesa reuniu
meios para edificar um ordem social, política e econômica à sua própria imagem, embora somente os
acontecimentos da segunda metade do século XVIII, como a Revolução Industrial, a independência
dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, consolidassem definitivamente a posição da burguesia,
inaugurando a idade Contemporânea.
83
que se pode denominar por irrealismo metodológico da jurisprudência
dos conceitos, é operacionalizada por metadiscursos inacessíveis e sem
preocupações juspositivas.
O direito desvinculado da realidade torna-se inflexível e
incapaz de resolver os problemas que lhe são apresentados. O meio
social produz uma infinidade de situações que obrigam o direito a
admitir uma maleabilidade que dificilmente poderia ser totalmente
expressa através de um sistema modelado com base em conceitos
previamente estabelecidos de forma rígida98.
É interessante mencionar que o idealismo filosófico de Kant
faz referência a questões inerentes à jurisprudência dos interesses, como
é o caso do enfoque quanto ao objeto a partir de uma sua função.
Von Ihering ao propor uma teoria sistêmica em que o direito
estaria vinculado a questões exteriores ao ordenamento jurídico, tendo
em vista a finalidade que os dispositivos ordenadores das condutas
devem cumprir ou satisfazer, teria se inspirado em uma visão organicista
em que o sistema funciona como um organismo vivo que existe a partir
98
CANARIS, Claus–Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito.
Introdução à edição portuguesa. António Menezes Cordeiro. P. XXVIII. Tal o dilema da Ciência do
Direito no final do século vinte: perante problemas novos, ou se intensifica um metadiscurso
metodológico irreal, inaplicável a questões concretas e logo indiferente ao Direito, ou se pratica um
formalismo ou um positivismo de recurso. Em qualquer dos casos, as soluções são ora inadequadas
ora assentes em fundamentações aparentes, escapando ao controlo da Ciência do Direito.
84
de uma orientação básica que se refere ao cumprimento de suas
finalidades99 100.
A concepção orgânica da Ciência do Direito desenvolvida por
Von Ihering introduz no sistema jurídico as idéias de interesse e de fim,
desviando a pesquisa do direito embasada em questões formais e
estruturais e atribuindo-lhe uma dimensão material eminentemente
valorativa. Ressalta-se que a jurisprudência dos conceitos não negou ao
direito uma dimensão axiológica, mas restringiu este aspecto ao próprio
ordenamento jurídico, como algo que se lhe apresentasse interiormente.
A jurisprudência dos interesses vai buscar o reconhecimento dos fins em
um contexto mais amplo, ou seja, no meio social onde o direito realizase como reordenador das condutas em descompasso diante dos
problemas inerentes às relações sociais. Surgiram críticas no sentido de
que a jurisprudência dos interesses se pautava em um simplismo
reducionista, na medida em que abandonava as macroteorias que
asseguravam uma visão mais ampla dos fenômenos jurídicos para focar a
realidade cotidiana da vida.
99
MARTINS FILHO, Ives Gandra. Op.cit., p. 209. Sob a ótica do juízo reflexivo, vê-se que o
objetivo da natureza é a realização do fim moral do homem (todos os seres organizados estão
ordenados para o homem): “Duas coisas enchem-me o espírito de admiração e reverência: o céu
estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim” (natureza, liberdade e Deus) – sublime que
provoca o êxtase.
100
BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 113. A imagem organicista de Kant continha já uma poderosa e
implícita sugestão finalística, potencialmente precursora do modelo teleológico que von Ihering e os
juristas posteriores da jurisprudência dos interesses e das correntes sociológicas do Direito acabaram
depois por consagrar.
85
A jurisprudência dos valores surge após a 2ª Guerra Mundial
como uma teoria que enfoca os interesses, os quais se vinculam à figura
do legislador e dos valores sob um ponto de vista em que ocorre a
ponderação entre a realidade observada no meio social, seus valores e os
interesses do Estado quanto à forma de regulamentação desta mesma
realidade. Considerando-se que há uma natural intersecção entre as
teorias, a jurisprudência dos valores, em virtude de não ter tido seus
estudos aprofundados e melhor desenvolvidos, acabou por ser assimilada
pelo formalismo estruturalista.
Na mesma esteira epistemológica, surgiu a jurisprudência ética
construída a partir das novas possibilidades em relação a problemas
como o da verdade e da moral. A atribuição a moral de um caráter
cultural e o entendimento de que as regras jurídicas se distinguem de
outros regramentos pelo fato de que somente aquelas integram o
processo de decisão, estando adstritas à Ciência do Direito, possibilitou a
afirmação de que o sistema de aplicação do direito deve ser conduzido
pela ética.
Como se percebe, há uma dificuldade considerável em operar
no campo axiológico, porque há o risco de se comprometer elementos
como a segurança jurídica, e ainda, a possibilidade de se criar situações
86
em que os problemas quanto à sua solução não obedeçam a um padrão
de regularidade prevista previamente.
Podem ser mencionadas outras teorias sistêmicas do direito,
como a teoria analítica do direito ou jurisprudência analítica, a
jurisprudência problemática, reelaborada por Theodor Viehweg em
1953, as sínteses hermenêuticas, que se originaram do pensamento de
Hegel e se desenvolveram através de Heidegger até Gadamer101. Não
será abordada pontualmente cada uma dessas formulações teóricas,
porque sua repercussão é mais importante e direta para o continente
europeu, sobretudo para a Alemanha, em que pese seus reflexos se
fazerem sentir na América, por outro lado, a apresentação das teorias
sistêmicas neste trabalho não tem uma finalidade em si mesma, mas
objetiva a melhor compreensão possível a respeito de como se formaram
e se encontram essas teorias atualmente no direito.
101
CANARIS, Claus–Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito.
Introdução à edição portuguesa. António Menezes Cordeiro, p. XL- LXI.
87
3.4.4 O sistema jurídico marxista
Karl Marx102 é reconhecido como o ideólogo do modelo
econômico e político denominado marxismo ou comunismo, não se
atribuindo inicialmente maior importância às suas idéias no campo do
sistema jurídico. Atualmente, contudo, os autores críticos do direito103
reconhecem, nos primeiros trabalhos de Marx, o embrião das teorias
críticas do direito, considerando-se este como um sistema teleológico ou
finalístico.
A teoria marxista representa o contraponto ao modelo
econômico capitalista e globalizante como método para a análise dos
sistemas social, econômico e político. No século XX, e, sobretudo, após
a década de 80, pode ser observado um acirramento no processo de
acumulação financeira baseada na especulação em detrimento da
economia de produção de bens e serviços. Esse fato é decorrência de
102
NOVA Enciclopédia Barsa, v..9, p. 341. Marx, Karl. Karl Heinrich Marx nasceu em Trier, na
Renânia, então província da Prússia, em 5 de maio de 1818. ... Em 1841 apresentou sua tese de
doutorado na Universidade de Berlim, em que analisava, na perspectiva hegelina, as diferenças entre
os sistemas filosóficos de Demócrito e de Epicuro. Nesse mesmo ano concebeu a idéia de um sistema
que combinasse o materialismo de Ludwig Feuerbach com o idealismo de Hegel. ... Depois de
participar do movimento revolucionário de 1848 na Alemanha, Marx regressou definitivamente a
Londres, onde durante o resto da vida contou com a generosa ajuda econômica de Engels para manter
a família. ... em 1867 publicou o primeiro volume de O Capital, monumental análise do sistema
socioeconômico capitalista, sua mais importante obra. ... morreu em 14 de março de 1883 em
Londres.
103
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução à filosofia e à epistemologia jurídica, p. 121.Talvez
a maior contribuição da atualidade no campo da ciência jurídica ou, mais especificamente, na teoria
(da ciência) do direito, seja aquela portada pela teoria crítica do direito. Esta última tem suas raízes
históricas assentadas no século XIX, precisamente na concepção jurídica do jovem Marx, forjada em
contraposição crítica ao pensamento da Escola Histórica e à filosofia do Direito e do Estado hegeliana,
ambas igualmente idealistas e ingenuamente românticas.
88
inúmeros acontecimentos históricos que contribuíram para que a
sociedade ocidental vinculasse o abastamento econômico das pessoas
(naturais ou jurídicas) a competência, eficiência, enfim, o êxito no
sentido mais amplo que se possa entender isto, passa a ser mensurado
como conseqüência da capacidade de acumulação financeira e de
participação do mercado consumidor. Em última análise, isto justifica
tudo, inclusive o que não se enquadra neste sistema econômico, pois, no
mundo democrático da livre iniciativa e das oportunidades, se a
prosperidade econômica não se realizou o problema é das pessoas que
não tiveram competência, capacidade, e sob uma perspectiva metafísica,
não foram “abençoadas por Deus”.
Essa forma de compreensão da realidade compromete dois
valores fundamentais, de um lado, a percepção da vida sob o prisma da
responsabilidade social é reduzida ao assistencialismo estatal e a um
solidarismo da sociedade mal interpretado. Neste contexto a grande
maioria das pessoas não é considerada como sujeito ativo no processo de
formação histórica e cultural, mas sujeito passivo de um modelo em que
são submetidas à condição de legitimadores do poder político e
consumidores de bens e serviços. Soma-se a isto o conceito de alienação
econômica, filosófica e religiosa, porque as identidades locais e regionais
são desagregadas em favor de ideologias e interesses que não são
89
revelados, tendo como conseqüência um elevado grau de inconsistência
e instabilidade social. Por sua vez, isto é informado às comunidades
como ausência de capacidade para sua estruturação sócio-políticaeconômica, o que justifica as intervenções, e mais sutilmente ainda, a
reelaboração do conceito de soberania e subordinação legal, no plano
interno; e de coordenação, no cenário internacional.
Esse quadro mostra um quebra-cabeça para o qual o marximo
pode apresentar subsídios para uma análise sob uma perspectiva mais
crítica no sentido de encontrar-se desvinculada dos “fios invisíveis” que
orientam aquele sistema.
Ressalta-se que a teoria marxista, desde sua formulação até à
atualidade. passou por estudos de diferentes áreas do conhecimento
humano, sendo que economistas, historiadores, antropólogos, sociólogos
e outros estudiosos incorporaram a metodologia marxista sem aderir à
sua filosofia política e à práxis revolucionária.
Para a teoria dos sistemas jurídicos, a crítica marxista importa
na medida em que como o conjunto das idéias filosófica, econômica,
política e social que interpretam a vida conforme a dinâmica das relações
entre a infra-estrutura e as superestruturas que são alicerçadas pelo modo
de produção, o direito enquanto sistema formalista e estruturalista é um
mecanismo de controle das forças que, se encetado em uma direção
90
ordenadora, termina por garantir a manutenção de um modelo que
subjuga e explora as forças produtivas a fim de assegurar o máximo de
resultado econômico com o mínimo de risco financeiro.
De outro modo, em uma abordagem metodológica segundo a
teoria marxista ou crítica do sistema jurídico, ao direito pode atribuir-se
um papel mais amplo, na medida em que não seja um simples ordenador
de forças, mas verdadeiro instrumento de transformação social, como
resultado de uma construção histórica em que a idéia de mudança seja a
constante e o papel do direito seja o de equacionamento desse
movimento no sentido da recomposição e reorientação da composição
das forças produtivas.
Tem sido afirmado que, quando o direito nega a realidade, a
realidade nega o direito, o quê, apesar da simplicidade, evidencia a
necessidade de um sistema jurídico que seja consentâneo com as
transformações sociais.
Não deve ser esquecido o fato de que Marx tratou o direito
como uma superestrutura legitimante da infra-estrutura. O pensamento
original marxista é revolucionário, o que tornaria o direito incapaz de
promover transformações no campo institucional, pois somente durante
as “eras revolucionárias”, quando as forças produtivas da sociedade
entrassem em contradição com as relações de produção existentes,
91
convertendo-se estas em obstáculos à continuidade do processo
produtivo, a estrutura ideológica vigente seria rompida, permitindo ao
Homem a tomada da consciência do conflito entre o capital e o trabalho,
o que conduziria à revolução proletária, com a implantação da ditadura
do proletariado, a qual evoluiria para um modelo de sociedade sem
classes ou comunista.
A referência feita ao sistema jurídico marxista toma como
ponto de partida não-exatamente o aspecto revolucionário da mudança,
mas a análise baseada na dialética materialista. Dessa forma, o “devir”
do plano ideal hegeliano foi substituído pela noção da percepção da
realidade no progresso material e econômico. Na percepção da realidade
imanente, teriam sido admitidas as relações estabelecidas entre a infraestrutura e as superestruturas. A existência dessas relações seria uma
constante de interação e interdependência, onde pode ser localizado o
papel crítico transformador do Direito em uma perspectiva sistêmica e
dialética.
Acredita-se que somente após a 2ª Guerra Mundial, com o
desenvolvimento de estudos não-dogmáticos do marxismo, sobretudo,
elaborados por Edmund Husserl e Martin Heidegger, desenvolveram-se
92
as teorias sistêmicas críticas do direito, pautadas na dialética materialista
de Marx104.
A crítica sistêmica no marxismo necessariamente não rompe
com um certo grau do dogmatismo, mas estabelece uma diferença
fundamental entre as teorias que enfocam o direito sob um ponto de vista
dogmático-formalista-estruturalista fundamentado nos dispositivos legais
e aquelas que o estudam enquanto fenômeno social. No primeiro caso, o
modelo proposto é “integrante ou de equilíbrio” e no segundo caso, o
“modelo é de conflito”. Isto significa que o positivismo jurídico, do qual
Kelsen é seu representante máximo, propõe um direito que prédetermina uma solução “artificial” porque não considera a realidade
conflituosa sobre a qual incidirá a solução do problema. Por outro lado,
no modelo de conflito, a solução dos problemas será sempre referida à
realidade histórica materialista que gerou seu surgimento, ainda que,
igualmente relacionada com um conjunto de dispositivos legais que préestabeleçam formas para a sua composição. A grande distinção está em
que num caso a solução é idealizada previamente e, no outro, ela é
construída com referência ao conflito.
104
BONAVIDES, Paulo. Op. cit. ,p. 114. A noção teleológica de sistema interno, expendida por Von
Jhering, caracteriza tam’bem a jurisprudência dos interesses, bem como a Escola Livre do Direito.
Mas foi a Teoria Marxista que fez o pensamento teleológico e sistêmico alcançar pontos
extremos de oposição ao dedutivismo formalista, com os preceitos jurídicos conduzidos então às
últimas conseqüências em termos de teorização material; algo comparável, em profundidade e
extensão, ao que fizera Kelsen, do lado oposto, com o formalismo. (grifo nosso)
93
Aprofundando a questão da crítica marxista para a análise dos
sistemas jurídicos, convém, ainda, destacar que esta difere das teorias
decorrentes da jurisprudência dos interesses, porque a conexão com a
realidade sob a qual incidirá o direito não é restrita ao fato em si mesmo,
mas se refere às relações que levaram à necessária intervenção do Estado
para o reequacionamento da situação. Nesse contexto, a aplicação do
dispositivo legal se afasta dos particularismos nas decisões jurídicas, que
tantas observações renderam às escolas que se desenvolveram com base
na jurisprudência dos interesses, como foi o caso da Escola Brasileira do
Direito Alternativo. Os fatos que demandam a aplicação do direito, de
acordo com a dialética materialista marxista, devem ser observados sob o
prisma dos movimentos, das mudanças, das transformações social,
econômica e política que determinaram a sua ocorrência.
É possível afirmar que a proposta teórica de se estudar o
direito a fim de assegurar sua aplicação com base em parâmetro de
“justiça”, levando em consideração todos aqueles aspectos, ou seja, as
determinantes histórica, social, econômica e política que resultaram no
fato a ser objeto da decisão jurídica, tornaria inviável a jurisdição, tendo
em vista a complexidade e dificuldades que resultariam para a formação
do aplicador do direito. Considera-se esta afirmação procedente, mas, ou
se aceita o desafio, ou se convive com a insegurança e a não-efetividade
94
da jurisdição, objeto de infinitas reformas e insatisfações na práxis do
direito, sem que se chegue a uma solução do problema da “justiça”.
3.4.5 Atualidades a respeito da sistêmica jurídica
Desde a proposição da teoria geral dos sistemas no campo da
biologia, passando pela concepção sistêmica em ciências sociais até a
atualidade, há uma infinidade de teorias que foram elaboradas. No
campo do direito, as formulações a esse respeito se encontram em fase
de desenvolvimento, pois durante um considerável período de tempo,
que pode ser delimitado aproximadamente até o término da 2ª Guerra
mundial, foi conservada uma visão do direito formalista-estruturalista
baseada em um idealismo altamente abstrato, o quê, posteriormente,
identificou-se como sendo um sistema fechado, ou seja, onde as trocas
de energia ou relações com outros sistemas eram desconsideradas quanto
à sua operacionalidade, entendida como aplicabilidade prática dos
dispositivos legais.
Houve uma tentativa de aplicação da teoria geral dos sistemas
de Bertalanffy ao direito, o que lhe atribuiu um caráter interdisciplinar
porque a compreensão dessa teoria é a de que os sistemas são abertos,
logo, o conhecimento do direito e sua aplicação ocorreria de uma forma
95
mais ampla, não se restringindo à norma jurídica, podendo, inclusive,
mencionar-se a possibilidade da pluralidade quanto às fontes do direito.
Esta forma de compreensão dos sistemas foi considerada inadequada por
entender-se que a visão da teoria geral apresentava um caráter descritivo
das relações de troca de energia, sendo os sistemas analisados através de
sua forma e organização, ou seja, pelo aspecto formal e estrutural em
detrimento da investigação quanto ao conteúdo dos sistemas e das
relações que estabelecem.
Podem ser mencionadas a teoria cibernética105 de Norbert
Wiener106 e a teoria de David Easton107
108
como importantes propostas
para a sistêmica jurídica, contudo, estas teorias têm sofrido um certo
grau de restrição por considerar-se que permanecem vinculadas à idéia
da forma e da organização.
105
BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 117. A Cibernética em sua acepção mais larga vem definida no
Fischer-Lexikon como “a Ciência da descrição matemática e da valorização construtiva de estruturas,
relações, funções e sistemas gerais que são comuns a distintos campos da realidade”.
106
BONAVIDES. Op. cit., p. 117. Importantes e fundamentais estudos trouxeram de imediato a
aplicação daquela ciência ou arte (arte, segundo o entendimento de Louis Couffignal) ao domínio das
Ciências Sociais. As contribuições mais relevantes ocorreram no campo da Ciência Política, com as
obras de Karl W. Dutsch e Eberthard Lang, instituladas respectivamente The Nerves of Government
(Os Nervos do Governo) e Staat um Kybernetik (O Estado e a Cibernética).
107
BONAVIDES. Op. cit., p.118. Parte Easton da compreensão da vida política como um conjunto de
atividades relacionadas entre si (“a system of interrelated actividies”), isto é, como um sistema, em
que a idéia mesma de sistema já induz a possibilidade de separar, pelo menos para efeitos analíticos, o
campo da atividade política do campo da atividade social.
108
BONAVIDES. Op.cit., p.120. Afirma Easton que, num universo sujeito a flutuações tão violentas
quanto o nosso, é exatamente o fluxo desses efeitos e informações entre o sistema e o meio que, em
última análise, permite ao sistema político sobreviver. Sem o feedback, poderá ele, “nenhum sistema,
afinal, sobreviveria, salvo por acidente.”
96
A Teoria da Ação Social de Talcott Parsons109
110
é
particularmente interessante, estando localizada no campo da sociologia
jurídica. O trabalho de Parsons tem seus contornos demarcados pelo
sistema da personalidade e sistema cultural, através da interação entre os
atores individuais, o que coloca o conceito de interação como sendo
fundamental para a sua análise sistêmica ao lado dos conceitos de
“‘papel’,
‘posição’,
consenso,
integração,
funcionalidade
e
estabilidade”111.
Contemporaneamente, é de destacada a importância do trabalho de Niklas
Luhmann112 que foi aluno de Parsons, na Universidade de Harvard, na década de 60.
109
ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Op. cit., p. 158. A versão mais importante da
teoria funcionalista foi a dada por Talcott Parsons, com o que, mais tarde, see chamou de paradigma
do estruturalismo funcionalista. ... Para se definir o coneito de sistema social, parte-se da “ metáfora
organicista”, segundo a quual a sociedade se constitui em sistema (de ação social), cujo
funcionamento se assemelha ao de um organismo vivo, a exemplo do corpo humano. ... , segundo
Parsons, o sistema social é comporto de quatro subsistemas (político, jurídico, econômico e cultural),
cada um deles constituído por várias instituições (as instituições penitenciárias, a família, o
casamento, a religião etc.). Todos esses elementos trabalham para a manutenção da coesão, da ordem
e do equilíbrio social do sistema.
110
ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Op. cit., p. 159-160. ... todo sistema social requer quatro funções: 1. função
de adaptação, executada pelo sistema adaptativo ou pelo subsistema econômico, que consiste na obtenção, na produção e na
distribuição de recursos e de meios instrumentais, para, se adaptar ao meio externo e para realizar os objetivos do sistema; 2. a função
“instrumental”ou de ataque dos objetivos, executada pelo subsistema político, e que consiste na realização dos objetivos do sistema; 3. a
função de “integração social ou de controle social”, própria do subsistema jurídico, na medida em que este é um dos elementos mais
importantes do sistema de integração social. É a função a que Parsons e outros autores funcionalistas deram maior importância, pois ela
consiste, basicamente, em arrefecer os conflitos sociais e em manter o equilíbrio das relações sociais; 4. a função de “socialização”,
própria do subsistema cultural, q eu consiste na manutenção do modelo, isto é, na transmissão e na salvaguarda da cultura e dos valores
institucionalizados.
111
BONAVIDES. Op. cit., p. 121.
112
ESTEVES, João Pissarra. Niklas Luhmann: uma apresentação. Disponível em:< ... http://Ubista.ubi.pt/~comum/esteves-pissarraluhmann.htm> foi, sobretudo, em termos intelectuais que a passagem por Harvard marcou o percurso de Luhmann. NO início da
década de 60, a Universidade local era um dos mais importantes centros das Ciências Sociais norte americanas, em particular da
Sociologia, muito por influência de um autor então consagrado, Talcott Parsons. Os seus seminários eram seguidos com enorme
interesse por estudantes de todo o mundo, e Luhmann não fugiu à regra. Aí nasceu uma afinidade intelectual que podemos hoje
considerar a mais consistente do seu pensamento. Se quisermos arriscar uma caracterização geral da proposta teórica de
Luhmann, podemos considerá-la na directa continuidade da Sociologia estrutural e funcional de Parsons; isto significa que
ele toma essa proposta com potnto de partida, e apenas isso, para desenvolver um modelo intelectual próprio que, em
múltiplos aspectos, se afasta da referência original. (grifo nosso)
97
Nesta mesma época, Luhmann conheceu Jürgen Habermas,
tornando-se amigos apesar de suas divergências no campo teóricoacadêmico113.
As concepções teóricas de Luhmann tiveram a influência do
funcionalismo parsoniano, contudo, a metodologia personalista européia
e o modelo interdisciplinar da Universidade de Munster em Bielefeld,
onde Luhmann deu aulas a partir de 1968, levaram suas pesquisas a um
determinado grau de abstração que durante os últimos anos tem
orientado formulações teóricas tanto no campo do direito como da
sociologia.
O aspecto mais particular do pensamento luhmaniano se refere
ao modo segundo o qual este autor entende a forma através da qual são
estabelecidas as relações entre o sistema e o meio. A sociedade
operacionaliza suas relações nestes termos (sistema-meio) a partir do
modelo weberiano que reconhece a existência de uma racionalidade
113
ESTEVES. Op. cit. O pensamento de Habermas representou, nos anos que se seguiram e até hoje, a
referência negativa, por assim dizer, da teoria de Luhmann: a versão contemporânea da tradição
progressista do pensamento europeu, que Luhmann desde sempre refutou, com uma crítica radical à
tradição emancipatória herdeira do humanismo da Luzes, que ele considera totalmente desajustada à
realidade complexa das sociedades desenvolvidas. No ambiente muito particular do pensamento
alemão, os dois jovens acadêmicos decidiram dar expressão a tão interessante conflito intelectual com
a publicação de um livro conjunto e, assim, em 1971 saiu à estampa Theorie der Gesellschaft oder
Sozialtechnologie. O trabalho mereceu diversas reedições nos anos seguintes e a editora (Suhrkamp)
ampliou as suas repercussões dando início à publicação de uma ‘seie de volumes complementares,
numa série intitulada Theorie-Diskussion, onde foram chamados a participar no debate muitos outros
destacados cientistas sociais. A polémica estava lançada e ficará, por certo, para a história como uma
das mais importantes deste século. Ao longo dos últimos vinte anos, o confronto intelectual entre os
dois autores radicalizou-se ainda mais, mas nem por isso as suas relações pessoais deixaram de ser as
melhores ...
98
ideal, típica, normativa e optimal, onde seriam instauradas relações
harmoniosas entre o sistema e o meio. Também quanto ao
reconhecimento do dualismo sistêmico de Weber, onde pode ser
identificada uma racionalidade formal e uma racionalidade material
ocorre a assimilação pela teoria de Luhmann. Assim, o meio ambiente é
entendido como o equivalente da racionalidade material, tendo a função
de abastecer e definir os limites do sistema.
Ao atribuir ao meio a capacidade para delimitar o sistema,
ocorre uma redefinição da racionalidade sistêmica que perde o caráter
hegemônico que Weber reconhecia à racionalidade formal. Com isto, em
Luhmann, a racionalidade é defensiva do sistema, visando neutralizar as
ameaças provenientes do meio. Surge a idéia da contingência, uma vez
que a racionalidade passa a funcionar como uma espécie de rede
pluridimensional e polimórfica.
Percebe-se que a constituição da teoria sistêmica de Niklas
Luhmann é inspirada no trabalho de Parsons e também na obra de Max
Weber; não menos importantes foram as contribuições da teoria
autopoiética elaborada no campo da biologia por Maturana e Varela114.
114
BERNARDES, Márcio de Souza. A compreensão do direito nas matrizes neopositivista e
pragmático-sistêmica. Disponível em:<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5624>. A
compreensão do direito nas matrizes neopositivista e pragmático-sistêmica. ... sistema social, esboço
de uma teoria geral, publicada em 1984. Nesta obra Luhmann introduziu uma nova concepção de
sistema social, tendo por referência a mudança de paradigma na teoria geral dos sistemas, produzida
por dois biólogos chilenos: Humberto R. Maturana e Francisco Varela (1994a, 1994b e 1995). Essa
mundaça significou a substituição dos sistemas abertos, caracterizada pela diferença entre sistema e
ambiente, pela teoria dos sistemas autopoiéticos.
99
Contudo, estes teóricos foram referências ou pontos de partida para a
abordagem problematizante da comunicação sob o ponto de vista
sistêmico na teoria luhmaniana.
A propósito do estudo sobre os enfoques atuais dos sistemas
jurídicos, a teoria dialógica do direito115 elaborada Rolf Peter Calliess foi
concebida com base no pensamento de Luhmann116, sendo que o direito
é abordado sob o prisma da estrutura do sistema social como construção
social da realidade. Nesse contexto, o Homem aparece no direito, a
sociedade passa a ser encarada como elemento constitutivo do jurídico e
o direito como constitutivo do social. O jurista é parte ou ator da
realidade jurídica. Em Callies, o direito é reduzido a um processo verbal
conciliatório de interação, informação e comunicação (estrutura
dialógica dos sistemas sociais). Assim, o direito é um instrumento
destinado a garantir e proteger a participação do indivíduo nos papéis de
comunicação social e tem por finalidade proporcionar e planejar a
participação e as oportunidades tanto de informação como de
comunicação em uma sociedade em permanente processo de
estruturação.
115
BONAVIDES. Op.cit., p. 127. A teoria da estrutura dialógica do Direito é teoria que politiza
sobremodo a formação do Direito, compreendendo unitariamente o processo de sua produção e
finalmente fornecendo “a moldura categorial para um entendimento necessariamente mais largo da
Ciência do Direito como ciência também da planificação do Direito”.
116
BONAVIDES. . Op.cit., p. 125. Inspirado, pois, na sociologia de Luhmann (a sociologia enquanto
teoria dos sistemas sociais), intenta aquele jurista (Callies) explicar o Direito como estrutura dialógica
dos sistemas sociais, isto é, como “algo” situado entre as categorias sujeito e objeto, ou seja, uma
espécie de esfera autônoma e conciliatória em relação a ambos.
100
Observa-se quê, com referência ao momento presente, podem
ser encontrados ao longo da história do direito diferentes enfoques
quanto à idéia de sistema. Partindo da compreensão de Tomas Khun
quanto aos modos de criação e desenvolvimento do conhecimento
científico e da descrição desses fatos pelos historiadores, é prudente
advertir que a análise sistêmica conforme é realizada atualmente somente
se tornou possível após sua elaboração por Bertalanffy (1951), e,
havendo a pretensão de contextualização com maior rigor cronológico e
epistemológico quanto à sua inserção no direito seria adequado lembrar
que a “ciência dos sistemas” foi sintetizada na década de 70.
Com isso, pretende-se afirmar quê, embora existam estudos
tratando de uma análise sistêmica do direito antes da apresentação da
Teoria Geral dos Sistemas por Bertalanffy, isto decorre do equívoco,
denunciado por Kuhn, praticado pelos pesquisadores de pretender
descrever a ciência no passado com base nos dados e instrumentos do
presente, o que altera a descrição dos fatos por criar a imagem distorcida,
segundo a qual a ciência no passado teria tido contato com elementos
existentes apenas no presente.
Advirta-se, portanto, que as abordagens quanto ao pensamento
sistêmico que foram realizados neste trabalho, de acordo com os estudos
desenvolvidos por Claus-Wilhelm Canaris, tem sua relevância ligada à
101
opção da autora quanto ao estudo de um determinado objeto (direito) a
partir de uma metodologia, no caso, o método sistêmico, que foi criado
posteriormente em relação ao fenômeno/fato pesquisado.
Sob uma perspectiva histórica, considerando um seu enfoque
descritivo é necessária a prudência sob pena de ser criada a crença
equivocada de que a análise atual corresponde a fatos pretéritos, quê, na
verdade, jamais ocorreram.
É reiterada a afirmação de que o direito está iniciando seus
estudos no campo sistêmico, podendo ser apresentado o seguinte
conceito de sistema jurídico: “o conjunto das normas jurídicas válidas
para um certo território ou um certo grupo de pessoas, e que não obtém
sua validade de nenhuma norma jurídica externa a ele”117.
Estes estudos que a princípio estão sendo desenvolvidos no
campo da teoria geral do direito passaram por um processo de
verticalização, pois, como se verá adiante, já é possível identificar a
existência de trabalhos no âmbito do direito Constitucional a partir de
uma metodologia sistêmica.
Acredita-se na necessidade de estender essas pesquisas para os
diversos ramos do direito, sendo que esta tese é uma proposta de trabalho
no campo do direito processual, considerando este como instrumento
117
Arnaud, André-Jean. Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, p. 729.
102
para a realização do direito material e, especificamente, das obrigações
privadas de caráter individual.
3.5 SISTEMA CONSTITUCIONAL
A abordagem a respeito da configuração de um sistema
Constitucional pode ser considerada uma novidade, porque embora a
idéia de sistema tenha sido bem refletida em uma perspectiva jurídica,
entendende-se, neste caso, o fenômeno como um todo; a verticalização
para uma compreensão dessa mesma idéia no campo do Direito
Constitucional tem sido raramente proposta.
Este tema é enfocado neste trabalho a partir da compreensão
de que o estudo dos princípios Constitucionais deve pautar-se por uma
orientação teórica a priori que permita a contextualização do Direito
Constitucional relativamente aos demais ramos do direito, pois pretendese produzir uma pesquisa que permita visualizar o direito processual sob
o prisma do sistema jurídico, mas, sobretudo, tendo como liame
orientador uma estrutura sistêmica, fundamentada nos princípios
processuais insertos na Constituição Federal de 1988. Ressalta que esta
elaboração é desenvolvida no sentido de identificar um modelo de
interpretação que produza argumentos que assegurem a segurança e a
103
efetividade do processo de execução sem o comprometimento das
garantias Constitucionais de processo. É curioso pensar na possibilidade
de falar-se em segurança e efetividade crítico-materiais do processo de
execução.
O sistema Constitucional pode ser conhecido sob um ângulo
interno estruturalista, como o faz José Joaquim Gomes Canotilho118, de
forma rigorosa.
Levando-se em consideração a opção teórica crítica da
hermenêutica Constitucional, aquela forma de estudos do sistema
Constitucional assume uma relevância parcial, cedendo espaço para a
referência sistêmica adotada por Paulo Bonavides. O critério desta opção
não guarda uma relação de preferência quanto a excelência dos trabalhos
produzidos por esses juristas, mas com os caminhos que se desejou
trilhar para a realização desse estudo. Identifica-se nesse sistema uma
Constituição formal e uma real, bastante distanciadas uma da outra por
haver diferenças consideráveis entre os preceitos contidos em seu texto
formalmente constituído119 e os modos como sua aplicação se verifica
cotidianamente.
118
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Op. cit., p. 112. Do formalismo advém a disposição em deduzir
o direito a partir de um sistema de conceitos e princípios com a crença de que a correção material
decorre do acerto formal dessa operação. Como conseqüência, tem-se que: (1º) A ordem jurídica
passa a ser vista como um sistema fechado e pleno, com autonomia e independência frente à
realidade social, uma realidade a se,
119
104
3.5.1 Constituição formal e Constituição real
Ao fazer alusão a uma Constituição formal, quer-se identificar
o texto escrito revestido por um idealismo ligado ao grau de abstração do
legislador constituinte no momento de cristalizar os bens escolhidos para
serem tutelados pelo mais elevado corpo de dispositivos legais do país.
A Constituição formal encontra-se fundamentada na jurisprudência dos
conceitos que levaram à construção lógica e normativa do sistema
jurídico de Hans Kelsen. É correto afirmar quê, formalmente, a
Constituição não se reveste de valores materiais da sociedade, mas
apenas ideais. Isto justifica o surgimento das Teorias materiais da
Constituição120.
Pelo seu caráter ideal, a Constituição formal não consegue
resolver questões de ordem pragmática corriqueiras, contudo, tal fato não
lhe retira a obrigatoriedade e nem tampouco a vinculação quanto à
hierarquia do sistema jurídico. Os processos de adequação entre o
idealismo da Constituição formal e a necessidade de sua aplicação
intensificam a criação de métodos de interpretação que garantam a
120
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 96. A conferência proferida por
Ferdinando Lassalle, a 16 de abril de 1862, não representou uma novidade de crítica constitucional
antiliberal, porquanto essa crítica já fora feita, com todo o rigor, pelos filósofos da Reação em
princípios do século XIX, mas em verdade veio sistematizar todo um estado de idéias, que se insurgia
contra o formalismo abstrato das Constituições, buscando assim explicar cientificamente, de modo
deveras precursor, o fracasso da Constituição inspirada em dogmas meramente jurídicos e
normativistas. A crítica lassaliana fixou em definitivo a importância da Constituição real, reconhecida
por decisiva.
105
aproximação entre o ideal Constitucional e as exigências materiais da
sociedade.
As Teorias materiais da Constituição foram desenvolvidas com
o objetivo de criar métodos de interpretação da Constituição formal que
possibilitem o reconhecimento de uma Constituição Real, ou seja, aquela
que é aplicada tendo efetividade concreta. Assim, quando o artigo 5º,
LIV da CF/88, prevê o devido processo legal como um pressuposto
imprescindível para a aplicação do direito, qual a extensão disso no
direito processual?
O
Sistema
Constitucional121
existe
em
virtude
desse
descompasso entre a Constituição formal idealista e abstrata e a
necessidade da incorporação de valores relativos aos fatos concretos
ocorridos no seio da sociedade. Trata-se de um sistema que se
caracteriza por ser material e orgânico, o que o afasta da posição
kelseniana e dos sociologismos embasados em realidades inarredáveis.
121
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 97. ... o sistema constitucional, quer
dizer, aquele que abrange todas as forças excluídas pelo constitucionalismo clássico ou por este
ignoradas, em virtude de visualizar nas Constituições apenas o seu aspecto formal, o seu lado
meramente normativo, a juridicidade pura. (grifo nosso)
106
3.5.2 Teorias materiais da Constituição
As teorias materiais da Constituição têm uma conotação
crítica do direito, o que significa a adoção de uma postura nascida no
século XIX, a partir das concepções jurídicas de Carl Marx que criou um
contraponto ao pensamento da Escola Histórica e à filosofia do Direito,
idealistas e românticas, segundo sua concepção122.
O estudo que procura atribuir ao direito uma vinculação com a
realização de bens sociais, ao que já se referiu como sendo sua finalidade
de ordenação e também de transformações sociais mais voltados para
aspectos concretos ou materiais somente teve maior repercussão entre os
teóricos do direito após a década de 40, principalmente depois do
término da 2ª Guerra Mundial, pois as experiências do nazismo e do
fascismo foram reveladoras dos riscos que o discurso formalista e
positivista do direito criou para a humanidade, uma vez que atendidos os
pressupostos rigorosos da linguagem, hierarquia, vigência e validade da
lei, o sistema fechado concebido por Kelsen, colocava o Direito a salvo
122
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Op. cit., p. 121. Valendo-se do método dialético, Marx faz
inicialmente a negação antitética da tese historicista, ao propugnar que esta sofre de uma petição de
princípios e é radicalmente falsa, quando pretende conhecer o direito como história dos conceitos,
princípios, normas e instituições jurídicas, pois essa história simplesmente não existe. Em seguida,
conclui, com a negação da negação, síntese superadora da oposição, afirmando que o direito não tem
uma história própria, autônoma, distinta do conjunto dos fenômenos sociais em que se inclui, todos
voltados, em última instância, para a organização, a um só tempo política e econômica, dos meios
materiais de garantir a existência em sociedade.
107
da discussão a respeito de outras questões como a social, política e
econômica.
O purismo metodológico kelseniano construído com base em
um sistema fechado negou a importância da questão valorativa e
ideológica, tornando o direito susceptível da apropriação por modelos
políticos totalitários e desvinculados dos interesses do Homem. Esta
situação conduziu a uma reavaliação dos teóricos do direito quanto à sua
concepção formalista e positivista, estabelecendo o ambiente necessário
para o referencial crítico materialista referido por Marx.
O fundamento da crítica materialista está em que o direito
como sistema é aberto, constituindo uma superestrutura lingüística
legitimadora das estruturas de poder político e econômico, onde
repousariam suas bases ideológicas e valorativas. Logo, somente através
da elaboração de uma metodologia de interpretação dos dispositivos
legais que permitisse levar em consideração os aspectos sociológicos nos
quais assenta o direito sua base, poderia ter assegurada uma ordem na
qual pudesse haver a transformação includente, socialmente falando, no
sentido de garantir a todos os indivíduos iguais oportunidades de acesso
à justiça.
Ao se referir às teorias materiais da Constituição, pretende-se
mencionar
os
possíveis
métodos
de
interpretação
que
108
possibilitem
a
aplicação
do
direito
levando-se
em
consideração suas repercussões sociológicas, considerando-se seus
aspectos político e econômico.
É importante ressaltar que a opção sociologizante,
quanto ao estudo do direito123 e da Constituição, exige cuidado, sob
pena de incidir-se no equívoco de afastando questões técnico-jurídicas
inerentes ao direito, criar-se um outro modelo ideológico e injusto124.
Ainda quanto às teorias materiais da Constituição, deve ser
destacada a questão relativa aos seus antecedentes que, estando voltados
para a sociedade, nasceram no campo do direito privado, porquanto as
elaborações inerentes ao direito público são mais recentes, e ocorrem de
123
TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na Ciência do Direito, p. 364-365.”Fascinante – dissemos –
o sonho de colocar, por cima do justo por convenção, por cima do justo segundo a lei, o soberano
justo por natureza. Num primeiro impulso, na pura esfera de um sonho, não há quem não se sinta
irmanado com os juízes do chamado Direito Alternativo. Mas, no momento em que despertamos, e
saímos do sonho, e pomos os pés na terra, e o pensamento na simples realidade, que é que vemos?
Vemos que precisamos nos abraçar às leis, para ser livres. Para assegurar o respeito a nossos Direitos.
Para usufruir e defender o que é nosso. Para que existem as lei? ... Elas existem para evitar o arbítrio
do Executivo, par evitar o arbítrio do Jucidiário, para evitar o arbítrio dos mais fortes. ... O que
pedimos ao juiz é, somente, que ele interprete a lei aplicável ao caso concreto, e julgue de acordo
com o que essa lei manda. O que queremos é nos submeter à lei, não ao arbítrio do juiz, não às teorias
ou crenças subjetivas do juiz, à revelia da lei.” Nesse texto, ao tratar do aspecto filosófico inerente à
questão da Justiça é abordada a vertente brasileira que proclamou a adoção da Teoria Crítica
miscigenada com a jurisprudência dos interesses sob a ótica da escola norte-americana da livre
aplicação do direito para a criação da escola orgânica do Direito Alternativo. Sua manifestação é uma
advertência inequívoca quanto aos riscos do descuido quanto a questões jurídicas na aplicação do
direito. (grifo nosso)
124
BONAVIDES, Paulo. Op. cit.,p.100. A concepção material da Constituição representa no século
XX uma corrente de pensamento crítico e revisor, a cujo leito confluem todas aquelas direções
inconformadas com o exclusivismo normativo e formalista do positivismo lógico. Desde Laband e
Kelsen, esse positivismo levara a teoria do Estado a um ‘nihilismo científico-espiritual’, conforme
advertira Smend, numa admoestação severa dirigida sem dúvida aos juristas esvaziadores do Estado e
do Direito. Aquelas direções estavam volvidas para o conteúdo e a matéria dos preceitos normativos,
de preferência à forma e às categorias. ... Disso também poderia advir o dano oposto, ou seja, uma
visão puramente ideológica e política da Constituição, dissolvendo ou debilitando-lhe as bases
jurídicas. Se o excesso de formalismo pusera em perigo as Constituições, reduzindo-as a
desprezíveis folhas de papel, a alternativa material, exagerada ao extremo, conduzida às suas
últimas conseqüências, não se forrava a menores riscos.
109
forma mais lenta e gradual. Advirta-se, contudo, que o desenvolvimento
dessas teorias se encaminha na direção de uma organicidade
sociologicamente construída no processo dialético-historicista e pautado
nos princípios e conceitos constituídos na esfera do direito público.
No século XX, nos Estados Unidos da América, o juiz
Marshall e outros membros da Suprema Corte propuseram a aplicação
dos dispositivos legais de forma embasada em um direito vivo, de modo
que a Constituição Americana seria revelada no processo de
interpretação através do método hermenêutico, tratava-se da Escola da
Jurisprudência sociológica125.
Carl Schimitt desenvolveu uma teoria de aplicação da
Constituição em que os conceitos de Constituição e Lei constitucional
são diferentes. O conceito de Constituição está imbuído de um sentido
político que lhe confere uma unidade, atribuindo-lhe um profundo valor
existencial. Em Schimitt, o político prepondera sobre o jurídico. O
existencial compõe a essência da Constituição, o reino da decisão
fundamental, a esfera política que se sobrepõe ao normativo, às leis
Constitucionais e ao domínio jurídico propriamente dito. As leis
125
ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos
sistemas jurídicos, p. 72-73. ... Ainda que não se trate de uma corrente doutrinária unitária, pode-se
assinalar os nomes de alguns autores que estiveram envolvidos nessa corrente ‘crítica’. O austríaco
Eugen Ehrlich (1862-1922), considerado o fundador – ou, pelo menos, aquele que lhe deu o nome.
Durante uma conferência que ele fez em Viena, em 1903, cujo título era Freie rechtsfindung und freie
Rechtswissenschaft, Ehrlich afirmava que o direito era um ‘realidade sociológica que o jurista deve
pesquisar’. Ele definiu, por conseguinte, a existência de um ‘direito social’, ‘vivo ou real’, ‘fora
do estado’, que vive completamente à margem do direito do estado. (grifo nosso)
110
Constitucionais qualificam-se pelo formalismo ou rigidez, que dificulta
sua mudança, logo, seu valor é assegurado em função da existência da
Constituição, o que, em última análise, leva a uma conseqüente
relativização daquelas.
Há uma unidade essencial de existência, integridade e
segurança relacionada com os valores existenciais da Constituição, que
exprime fundamentalmente uma decisão política126.
Na Suíça, a partir de 1930, alguns autores desenvolveram
teorias a respeito da Constituição, tomando em consideração sua
interpretação crítico-material, destacaram-se Schindler com sua tese
dialética, valorizando o ambiente, o meio e o extrajurídico; Werner
Kaegi destacou a crise dos valores, apregoando o crepúsculo do Estado
Constitucional devido ao desprestígio da ordem jurídica e a queda geral
das crenças. Hans Haug enfocou os valores dentro de uma idéia de
justiça, tendo em vista um teor idealista inspirado na filosofia dos
valores de Hartmann e Sheller. Assim, a Constituição e o direito
referem-se a valores materiais explicáveis pelos valores que incorporam.
Esses autores se destacaram na formação do ideário teórico que ficou
126
BONAVIDES, Paulo. Op. cit.,p. 105. Kelsen sustentando, conforme observa Wimmer, que ‘algo
vale, quando vale e porque vale’ e Schmitt, com seu sentido de existencialidade, professando que
‘algo vale, quando existe e porque existe’.
111
conhecido como Escola de Zurique, a qual representa uma das
importantes construções dentre as teorias materiais da Constituição127.
O Direito, como ciência embasada em um objeto ideal que
teria suas regras fundamentais expressas através da Constituição Federal,
exige do seu pesquisador um exercício acadêmico grandioso, pois, como
já referido, este plano ideal do dever-ser não se sustenta em si mesmo.
Modernamente, estão em processo de superação as concepções
doutrinárias que buscam a justificação do direito em seu próprio
contexto.
As teorias materiais da Constituição voltam-se, cada uma de
acordo com a compreensão de seu sintetizador, ao desenvolvimento de
mecanismos que possibilitem a realização efetiva dos valores expressos
em seus dispositivos.
Com referência a isso, é relevante lembrar que o sistema
Constitucional sob um prisma material se aproxima consideravelmente
do sistema político128, o que, contudo, pode ser resolvido a partir da
127
Ibidem, p. 107. É cedo talvez para medir os efeitos doutrinários da produção constitucional da Escola de Zurique. Fica porém fora
de toda a controvérsia que ela representa um importantíssimo passo adiante no sentido de estabelecer as bases sólidas de uma teoria
material da Constituição. Teve já o inquestionável merecimento de levar a cabo uma tarefa que ainda prossegue de sistematização de
certos aspectos relevantes para a técnica de interpretação constitucional e já teoricamente aflorados
por predecessores do tomo de Heller, Schmitt e sobretudo Smend.
128
BONAVIDES. Op. cit., p. 128. ... Nisso porém reside o mais grave defeito de todas as concepções
sistêmicas do Direito ou da Constituição, caso venham efetivamente a esboçar-se: é que elas podem
conduzir a uma desintegração do “jurídico”pelo “político”, afrouxando os laços da juridicidade e da
constitucionalidade ou ampliando estes conceitos a um grau de politização tão intolerável, de efeitos
tão irreparavelmente negativos e funestos, que importariam o sacrifício do homem ao sistema, da
liberdade ao ordenamento, inaugurando assim em última análise, uma versão mais aperfeiçoada de
totalitarismo jurídico e político, dissimulado na legitimidade tecnocrática, perante a qual sucumbiriam,
enfim, os valores da pessoa humana, aqueles que a tradição Ocidental em vão intentaria amparar.
112
adoção de novos métodos para interpretação dos dispositivos contidos no
texto da Constituição, daí a adequação da proposta de uma nova
hermenêutica.
3.6 HERMENÊUTICA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A ruptura entre a religião e a ciência teve como um de seus
efeitos a viabilização de uma compreensão do Homem como sujeito
ativo do processo constitutivo de sua história. A realização dos meios
para a garantia da qualidade de vida humana torna-se responsabilidade
do Homem. Observa-se, contudo, que não há entre todos os povos e em
todas as camadas das populações uma plena sensibilização quanto a essa
responsabilidade social.
O direito nesse contexto inicialmente assumiu uma função de
organização e controle a fim de assegurar ao Estado a operacionalização
da ordem no sentido de que, dentro de uma concepção positivista, o
Estado garantiria um nível satisfatório de segurança que levaria ao
desenvolvimento e progresso dos povos.
A frustração dessa promessa forçou a repensar o direito. O
momento é de crise do paradigma positivista, assim o que tem sido
113
produzido apresenta um caráter marcadamente especulativo, de acordo
com o entendimento da história da ciência em Tomas Khun.
A partir dos estudos de Von Ihering há uma crescente
expectativa em relação às possibilidades concretas ou reais do direito em
produzir “justiça”, no sentido de assegurar a cada um o que seja seu
dentro de uma equação em que os bens individuais se enquadrem
harmoniosamente com os interesses coletivos129. Esta colocação deve ser
entendida dentro de um conjunto de fatos que compõem a história do
direito, sobretudo, tomando-se como referência cronológica os ideais
iluministas da Revolução Francesa (1789).
Gradativamente está sendo reconhecida a função ordenadora
do direito tendo em vista uma finalidade transformadora, no sentido de
regulamentar os fatos em favor do desenvolvimento individual e da
nação. O papel sancionador e coercitivo do direito tem se revelado
ineficiente, o que justifica as discussões a respeito dos problemas da
baixa efetividade na prestação jurisdicional. Um sistema que não produz
a realização de suas funções e finalidades pode ter comprometida sua
129
MONTORO. Op.. cit., p. 138-139. Grande número de opiniões pode ser encontrado a respeito das
espécies de justiça. Deixando de lado discussões intermináveis, que, freqüentemente, se fundam em
aspectos secundários do problema, podemos dizer que há: a) uma justiça particular, cujo objeto é o
bem do particular; b) uma justiça geral, também chamada legal ou social, cujo objeto é o bem comum.
A justiça particular, por sua vez, pode se realizar de duas formas: a) um particular dá a outro particular
o bem que lê h é devido; b) a sociedade dá a cada particular o bem que lhe devido; chama-se, nesse
caso, justiça distributiva. Na justiça geral, social ou legal são as partes da sociedade – isto é,
governantes e governados, indivíduos e grupos – que dão à comunidade o bem que lhe é devido.
114
segurança. Com isto, a estrutura institucional que forma o Estado fica
abalada.
Diante de uma crise que pode assumir essas proporções,
acredita-se que a proposta de se interpretar a Constituição com o objetivo
de produzir sua concretização material, ou melhor, a consecução dos
bens jurídicos previstos em seu texto em sentido real é significativa, uma
vez que quanto maior a dissonância entre o ideal, ou o dever-ser e o real,
menor a efetividade do direito e crescente a insegurança institucional.
A hermenêutica desenvolvida segundo a interpretação
sistemática com bases racionais e lógicas, em um modelo em que a
norma deve ser aplicada tendo em vista suas conexões com o
ordenamento jurídico, ou seja, com todas as demais normas integrantes
do sistema jurídico, é uma concepção clássica e que teve importância
como método de interpretação e aplicação do direito de acordo com sua
concepção dogmático-positivista. Sob esse ponto de vista, é discutível a
juridicidade da norma Constitucional, considerando-se sua índole
política130.
130
BONAVIDES. Op. cit., p. 129-130. Rigorosamente, não deve existir distinção de natureza entre a
interpretação das normas constitucionais e a interpretação das demais normas do ordenamento
jurídico, posto que haja distinções decorrentes da peculiaridade das regras básicas, de seu conteúdo ou
aspecto material, mas que não devem afetar a essência jurídica da norma. Dizemos “não devem
afetar” porquanto o conteúdo da norma constitucional há sido desde muito objeto de incisivas
controvérsias na esfera teórica. Posições há claramente antagônicas ao reconhecimento da plena
juridicidade daquela norma, uma vez que a matéria sobre a qual versa é também de índole política,
determinando assim o tratamento excepcional atribuído pela doutrina ao seu exame e a sua precisa
caracterização no quadro da normatividade.
115
Esse modelo de interpretação aplica o método axiomáticodedutivo sendo caracterizado pela objetividade e pela certeza da norma
através de regras puras e abstratas previstas nas constituições rígidas. As
verdades para o formalismo constitucional se apresentam como lógicas e
reivindicam a cientificidade pautada na ausência de subjetivismos de
natureza axiológica.
A aplicação do direito pelo método objetivo ou axiomáticodedutivo vincula o processo decisório integralmente à lei, que é
considerada o elemento central do “sistema”. Assim, os problemas que
não encontram uma solução ou resposta no ordenamento jurídico são
entendidos como pseudo-problemas. Qualquer questão extralegal deve
ser rejeitada no procedimento de aplicação do direito. A fundamentação
da
decisão
será
sempre
de
caráter
legal,
nisso
consistindo
fundamentalmente sua racionalidade131 132.
A questão mais pungente para a hermenêutica clássica ou
tradicional se encontra na ausência de lei em face do fato ensejador da
131
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 93, IX.
Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as
decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em
determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes. (grifo nosso)
132
WAMBIER, Luiz Rodrigues, ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso
Avançado de processo civil, v. 1. Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. P. 552. Na
fundamentação, exporá o magistrado as razões de seu convencimento, de forma clara e de molde a que
tantos quantos a lerem tendam a chegar à mesma conclusão a que chegou. Trata-se de dispositivo
legal em que se manifesta e se concretiza de forma inequívoca o princípio do livre
convencimento motivado, da mesma forma que ocorre no art. 131. Ato de inteligência e de
vontade, não se pode confundir a sentença com u mato de imposição pura e imotivada de vontade. Daí
a necessidade de que venha expressa sua fundamentação (art. 93, IX, da CF). (grifo nosso)
116
situação jurídica sob a apreciação do Poder Judiciário, ou seja, como
resolver o problema da lacuna da lei no ordenamento jurídico. O próprio
Kelsen que a princípio negou a existência de lacunas, posteriormente
admitiu sua existência, sem, contudo, apresentar uma resposta
satisfatória à questão. De fato as teorias positivistas de Carlos Cossio,
Goffredo Teles Júnior e Lourival Vilanova propuseram-se a enfrentar
este problema, admitindo a abertura do “sistema legal”. Ressalta-se que
seus trabalhos são posteriores à elaboração da Teoria Geral dos Sistemas.
A conseqüência mais drástica do positivismo pautado na
hermenêutica clássica é o desligamento entre o ideal Constitucional e as
necessidades
reais
da
comunidade.
Este
distanciamento
criou
contradições entre o dedutivismo idealista e abstrato da Constituição
formal e as exigências fundamentais da Constituição real.
Diante
dos
problemas
que
não
foram
resolvidos
satisfatoriamente pelo positivismo formalista, surgiu uma hermenêutica a
qual denominamos crítica. Sua gênese pode ser identificada na
jurisprudência dos interesses, pauta-se em um sistema Constitucional
axiológico-teleológico tendo um caráter funcional. Seu ponto culminante
ocorre com a Escola Livre do Direito.
Adota uma metodologia pluridimensional o que significa
afirmar que interpreta e aplica o direito tendo em vista valores, fins,
117
razões históricas, considerando os interesses, o conteúdo e o pressuposto
da lei. Seu aspecto mais fundamental é reconhecer que o sistema jurídico
e, sobretudo, o sistema Constitucional são integrados por um complexo
de forças, relações e valores em uma dinâmica dialética permanente e
insuperável.
Poder-se-ia afirmar que ao trazer para o direito e,
principalmente para o campo Constitucional, a dinâmica própria do
sistema social levaria ao risco de desequilibrar o sistema Constitucional
no caso de preponderar o conteúdo material de seus dispositivos sobre a
forma. Nesse caso, o sistema Constitucional se desagregaria, pois a
certeza e a segurança da jurisdição ficariam abaladas.
O problema aqui residiria em que o intérprete da Constituição
correria o risco de realizar seu trabalho com referência às suas
ideologias, o que levaria a uma excessiva politização do direito.
Neste ponto é importante lembrar que as teorias a respeito do
direito Constitucional relegam a um plano secundário os aspectos do
direito público o que resulta na fragilização em maior ou menor grau de
seu conteúdo.
O trabalho desenvolvido no sentido de formular uma
hermenêutica historicista baseada no direito público, considerando o
texto Constitucional a partir de um critério evolutivo das transformações
118
do sistema com base nas variações de sentido quanto à aplicação de seus
dispositivos e de sua realidade Constitucional parece razoavelmente
satisfatório quanto às possibilidades de resolver o problema da
ideologização e politização do jurídico.
Assim, ao intérprete não caberia o mal-entendido papel de
criador da norma, mas de contextualizador do direito em sua dimensão
histórica tendo em vista a evolução ocorrida no sistema Constitucional,
considerando-se os dispositivos codificados no texto da Constituição e a
realidade que lhe imprime eficácia, vida e conteúdo.
Poderia argumentar-se quanto às
dificuldades práticas
decorrentes de uma proposta de interpretação e aplicação do direito
embasada em uma teia complexa de informações como seria o caso da
hermenêutica crítica historicista da Constituição. Não parece, contudo,
que sejam intransponíveis tais dificuldades, uma vez que os intérpretes
da lei poderiam ser selecionados e receber uma formação que lhes
permitisse ter uma compreensão do direito com referência ao método
axiológico-teleológico, diferentemente do que ocorre atualmente em que
a sociedade e a ciência do Direito clamam pela superação do positivismo
formalista e pela democratização do Poder Judiciário, tendo, no entanto,
que conviver com um sistema jurídico que ainda atua através da
119
aplicação da lei sob uma perspectiva metodológica axiomáticadedutivista.133
133
Considerando o objetivo de estudar o processo de execução no Brasil tendo como referência a
Constituição Federal de 1988 e as obrigações de natureza privatísticas, opta-se pela abordagem a
respeito dos princípios133 que podem ser identificados no texto Constitucional, buscando compreender
sua inserção na execução levando em consideração uma metodologia axiológica-teleológica.
120
4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O PROCESSO DE
EXECUÇÃO
O processo de execução no Brasil tem sido objeto de muito
estudo, sobretudo tendo em vista uma perspectiva pragmática, no sentido
de elucidar a forma mais satisfatória de se garantir a realização do direito
objeto da obrigação inadimplida. No entanto, os trabalhos realizados não
estão conseguindo tornar mais eficientes os mecanismos estatais de
coerção através da execução processual134, o que é revelado pelas
inquietações que permeiam seus estudos e o conjunto de dispositivos
legais a seu respeito.
Acredita-se na necessidade de compreender o processo de
execução de forma mais ampla, principalmente em relação à
Constituição de 1988 e ao modelo econômico liberal adotado pelo Brasil,
em que o custo de fomento da economia de produção de bens e serviços
é elevadíssimo.
Nesse aspecto é situado o problema do estudo do processo de
execução como integrante da teoria da ciência do direito, cujo objeto é
cultural. Assim considerado, o processo de execução, será abordado
134
O Código de Processo Civil está sendo reformado, e o Projeto de Lei 3.253 de 2004, aprovado em
junho, ao remeter a liquidação de sentença e o processo de execução para o Livro 1 rompe com o
paradigma da estruturação compartimentada do Código de Processo Civil brasileiro e com a
autonomia do processo de execução segundo suas funções. Assim pode-se falar em rompimento do
direito processual civil brasileiro com o processualismo científico.
121
criticamente em face do contexto e das relações sócio-econômicoculturais em que se coloca. Sob a ótica da dogmática, o texto da
Constituição Federal de 1988, ao determinar os princípios norteadores do
direito processual afetou drasticamente o Código de Processo Civil de
1973, sendo especialmente relevantes os efeitos produzidos no Livro II,
artigos 566 a 795; igualmente a Consolidação das Leis do Trabalho, nos
artigos 876 a 892 que tratam do processo de execução trabalhista está
comprometida, pois, há um descompasso entre o texto da Lei ordinária e
os preceitos da Constituição Federal.
O direito quando é assimilado como um sistema de controle e
implementação das políticas do Estado, na esfera do processo de
execução apresenta-se como o meio de constrangimento da vontade
individual contra o interesse geral na conservação do sistema de crédito
econômico-financeiro, pois, o inadimplemento é um fator de restrição e
de elevação dos custos do crédito, na medida em que o risco é
compensado com a elevação das taxas de juros no sistema financeiro.
Com isso, o custo humano, a dignidade do devedor, que em uma
sociedade de consumo, está inevitavelmente ligada à sua capacidade de
participar do mercado consumidor, é transplantada do direito para a
economia, onde sob um referencial liberal ou neoliberal como preferido,
122
a dignidade está em solver ao credor, ainda que ao custo do
aniquilamento econômico e pessoal do devedor.
Mas “aquele que deve tem que pagar”. Não se pretende negar
esta afirmação, mas compreendê-la para além do direito, ou melhor, o
direito sob a imagem da deusa greco-romana Themis135 que significa o
equilíbrio imparcial de forças e não a subordinação do direito à
economia.
A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, introduziu
alguns preceitos de natureza processual a propósito de garantir a todos os
indivíduos o respeito a alguns bens inerentes ao Estado Democrático de
Direito proclamado no artigo 1º daquela Carta136. Tem sido discutido o
alcance e forma de aplicação desses dispositivos Constitucionais ao
processo de execução, pois, originariamente, esta é iniciada a partir da
certeza
da
obrigação
e
do
inadimplemento,
prescindindo
do
contraditório.
Esta pesquisa é desenvolvida no sentido de que os preceitos
inerentes ao processo proclamado nos incisos LIV, LV, do artigo 5º, da
CF/88, são aplicáveis à execução, o que representa uma mudança
135
A deusa Themis classicamente vendada não se contrapõe aos ideais de justiça real, porque a justiça
deve ser entendida como medida de forças pautada por parâmetros históricos, culturais e sociais, uma
vez que a palavra justiça só tem significado quando referida ao humano, seja sob uma perspectiva
materialista ou metafísica.
136
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 1º. A
República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (grifo
nosso)
123
significativa, pois os artigos 652, do Código de Processo Civil, e o artigo
880, da CLT, restringem drasticamente as noções próprias ao devido
processo legal, ao contraditório e a ampla defesa.
O artigo 586, do CPC, ao determinar os requisitos para a
realização da execução para cobrança de créditos estabelece que o título
executivo deverá ser líquido, certo e exigível, fazendo pressupor que o
processo de execução deve partir de uma situação concretamente
determinada, o que poderia justificar a não-incidência das normas
orientadoras do processo estabelecidas na Constituição Federal.
A Constituição demarca o regime político e o sistema jurídico
garantindo
a
unidade
do
ordenamento
jurídico,
expressando
mandamentos que não podem ser contrariados por serem subordinantes
de todo o ordenamento jurídico. Desse modo, o professor Goffredo
Telles Júnior refere-se à existência de um pluralismo de ordenações,
harmonizados hierarquicamente, formando um conjunto estruturado
submetido a uma só ordem nacional137.
Retomadas as idéias a respeito da teoria dos sistemas, da teoria
da ciência do direito e admitindo-se o axioma da hierarquia das normas
jurídicas ao texto da Constituição Federal, entende-se pela
necessidade e oportunidade de estudar o direito processual e, mais
137
TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do Direito, p. 123.
124
especificamente, o processo de execução das obrigações de pagamento
de quantia certa de natureza privada sob a ótica da teoria constitucional
dos princípios jurídicos.
4.1 A TEORIA DOS PRINCÍPIOS
Após 21 anos sob um regime político em que as liberdades e
garantias
individuais
estiveram
sob
exceção,
redescobriu-se
a
importância de compreender os fatos além da superficialidade138. A
sociedade brasileira tem adotado novas posturas em relação a
acontecimentos pautados em velhos comportamentos. O mundo do
direito assimilou esse momento, sendo prova disso o surgimento de uma
escola crítica do direito no Estado do Rio Grande do Sul, sob a
denominação de escola do direito alternativo.
Nesse contexto, todos os ramos do direito tenderam em maior
ou menor grau a revizitação de seus institutos, orientando-se por critérios
oferecidos pela “Constituição cidadã” e pelas teorias de cunho
sociológico.
138
O primeiro presidente da República eleito diretamente após o período militar (Fernando Collor de
Melo) sofreu um processo de impeachment e renunciou. Esse momento histórico foi corroborado pela
participação popular, através de manifestações públicas pacíficas. Aparentemente esse presidente
representava uma irrenunciável conquista democrática e a garantia de modernização do país, o que
não evitou ou impediu que a população compreendesse a necessidade de superar a superficialidade das
aparências e exigisse seu afastamento por gravíssimas suspeitas de corrupção estruturalmente
organizada.
125
A teoria dos princípios é uma formulação que pretende
oferecer ao direito um referencial para o reconhecimento de um princípio
jurídico, pois a sua consideração como fonte do direito em detrimento de
seu reconhecimento, no campo da interpretação legal, precisa ser
compreendida. Para tanto se considera que o direito pressupõe uma
reconstrução de significados139 a partir da interpretação dos dispositivos
legais que possibilita a identificação das normas140 jurídicas que serão
aplicadas. Isto permite afirmar que os dispositivos não contêm os
princípios e as regras que dependem da interpretação e, portanto,
encontram-se no âmbito das normas141.
Assim, surgem as questões quanto ao modo de investigação
dos princípios e sua aplicação, bem como a distinção entre estes e as
regras. A relevância destas questões levou ao surgimento de vários
critérios, podendo ser mencionados os seguintes: o critério do caráter
hipotético-condicional das regras, o critério do modo final de aplicação,
o critério do relacionamento normativo e o critério do fundamento
axiológico. Cada um desses critérios apresenta-se comprometido pela
139
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios
jurídicos, p. 25. ..., pode-se afirmar, que o intérprete não só constrói, mas reconstrói sentido, tendo em
vista a existência de significados incorporados ao uso lingüístico e construídos na comunidade do
discurso.
140
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios
jurídicos, p. 22.Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da
interpretação sistemática de textos normativos.
141
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios
jurídicos, passim.
126
complexidade inerente a aplicação do direito, o que não reduz a
importância de cada um.
Para efeito deste trabalho, considerou-se que tanto regras como
princípios possuem igual conteúdo de dever-ser, uma vez que deverão
ser realizados totalmente. A diferença deve ser localizada na
determinação
da
prescrição
da
conduta
que
resulta
da
sua
interpretação142.
Há duas maneiras de se estudar os princípios, uma sob o
enfoque acrítico de sua importância, destacando os valores por eles
tutelados, qualificando-os como alicerces ou pilares do ordenamento
jurídico. Podem também ser examinados a partir de sua estrutura,
objetivando a um procedimento racional de fundamentação que
possibilite especificar as condutas necessárias para a realização dos
valores por eles prestigiados e controlar sua aplicação através da
reconstrução racional dos enunciados doutrinários e das decisões
judiciais143.
Sob uma perspectiva sistêmica e dialética que norteia esta
proposta de estudos, opta-se pela abordagem estrutural dos princípios.
142
ÁVILA. Op. cit., p.55. ... os princípios não determinam diretamente (por isso prima-facie) a
conduta a ser seguida, apenas estabelecem fins normativamente relevantes, cuja concretização
depende mais intensamente de um ato institucional de aplicação que deverá encontrar o
comportamento necessário à promoção do fim; regras dependem de modo menos intenso de um ato
institucional de aplicação nos casos normais, pois o comportamento já está previsto frontalmente pela
norma.
143
ÁVILA. Op. cit. p., , 56.
127
4.2 ESTRUTURA DOS PRINCÍPIOS
A estrutura dos princípios passa por sua contextualização
geral, no que é realizada a opção por algumas referências de caráter
doutrinário quanto a interpretação e aplicação do direito.
O direito como uma forma de expressão de linguagem permite
afirmar que como tal ele se concretiza com o uso, e que demanda para
sua aplicação da atividade do intérprete. Nestes termos, o intérprete
assume um papel preponderante para uma adequada aplicação do direito,
na medida em que sua atividade constitui os significados dos
dispositivos.
É importante observar que existe um conteúdo de significados
pré-estabelecidos, incorporado pelo uso corriqueiro da linguagem, seja
em seu sentido ordinário ou técnico. Isto estabelece para o intérprete um
referencial mínimo de significação prévia e de vinculação com o sistema
social.
Basicamente o intérprete realiza duas operações, inicialmente
identifica o texto legal (dispositivo) sob o qual foca sua observação
(objeto da investigação) a partir disso utiliza-se da linguagem,
atribuindo-lhe sentidos com o objetivo de encontrar o modo mais
consentâneo de aplicação do preceito legal expresso através da lei,
128
devendo ter como pontos de referência de um lado o conjunto de
dispositivos que integram o ordenamento jurídico, considerado sob o
prisma de seus valores demarcados Constitucionalmente, e de outro lado
deve-se observar a constituição do fato jurídico objeto da apreciação
pelo órgão julgador, tomando em consideração o contexto que
determinou aquela realidade. Desse quadro, deve surgir a norma como
comando concreto externado pelo aplicador do direito.
Ressalta-se que ora a norma jurídica se apresenta como regra,
ora como princípio e, ainda em alguns casos, como postulados
normativos.
Pode ser afirmado que o dispositivo legal é o ponto de partida
da interpretação, sendo que a norma é o resultado do trabalho do
intérprete, de onde resulta a inadequação de atribuir aos dispositivos um
conteúdo de regra ou princípio, pois a qualificação das normas depende
da colaboração do intérprete.
O processo para a obtenção do conhecimento é sempre
complexo, pressupondo pelo menos um objeto a ser conhecido tendo em
vista alguma coisa que é seu referencial e a forma como o sujeito
cognoscente interage com este objeto para revelar ou descrever sua
129
existência ao mundo. A esse respeito têm sido desenvolvidas ao longo da
história da humanidade inúmeras escolas144.
O reconhecimento de um princípio é, sobretudo, um meio para
estabelecer um referencial para o direito, norteado por fins a serem
alcançados e objetivos que devem ser realizados através da interpretação
do dispositivo e aplicação da norma. A questão está centrada na
legitimação de critérios que permitam aplicar racionalmente os valores
expressos através dos fins identificados nos princípios. Nisto, encontrase o objeto da teoria dos princípios.
144
VIEGAS, Wadyr, Fundamentos de metodologia científica, p.17-52. Nesse trabalho há uma
abordagem a respeito do processo de conhecer a qual parece satisfatória para demonstrar o quanto isto
é fundamental e complexo. Desse modo o processo de conhecer é entendido como uma abstração que
cria imagens a respeito de objetos. Para a filosofia o conhecer ocorre através das ciências físicas e
naturais, as quais observam o objeto pelas suas qualidades individuais; através das ciências
matemáticas, que analisam seu objeto pela ótica da quantidade; e por meio das abstrações metafísicas.
Na elaboração de referenciais para a construção do conhecimento podem ser identificados os
escolásticos (adequação especulativa entre a mente e a coisa); Descartes (a idéia cria o conhecimento);
Kant (síntese a priori); Fichte (O indivíduo cria a realidade); Hegel (dialética); Marx (aplicação da
dialética) e Schiller, Dewey e William James (pragmatismo americano – verdade é o que funciona). A
abstração que leva ao conhecimento é realizada através do intelecto humano que opera com pelo
menos dois sistemas a razão e o sentimento, tendo por finalidade descrever e se possível explicar o
mundo. Esse processo tem como referencial a verdade, entendida como a aproximação máxima entre
o que o objeto do conhecimento efetivamente é o modo como é assimilado pelo humano.
Compreender esse processo de interação entre a razão e os sentimento para a formulação do
conhecimento dentro de um sistema aberto, permite o seguinte modelo; entradas → inputs →
sensações, processamento → thruput → idéias, saída → output → conhecimento. O insight não tem
sido negado, contudo não pode ser explicado. Nesse modelo a formação do conhecimento (imagens
abstratas de um objeto) é produzido pelo intelecto através da interação entre razão e sentimento. O
processamento se verifica através dos graus de relação produzidos entre sentimentos e razão que
levam a diversos tipos de conhecimento, assim o ideológico, o religioso, o filosófico e o científico,
cada qual com características próprias. O interesse nesse momento volta-se à elaboração de um tipo de
conhecimento científico, pois o que se pretende é descrever e possivelmente explicar uma realidade de
forma contingencial e factual ou realística tendo em vista a utilização de métodos que sejam
adequados e possibilitem a diferenciação, como meio progressivo de substituição de padrões globais e
difusos por funções especializadas das formas de conhecer adequados e possibilitem a diferenciação,
como meio progressivo de substituição de padrões globais e difusos por funções especializadas das
formas de conhecer.como meio progressivo de substituição de padrões globais e difusos por funções
especializadas das formas de conhecer.
130
Sob uma perspectiva frontalmente pragmática e positivista,
pode parecer sem importância esta investigação, no entanto, acredita-se
que os paradigmas críticos-sociologistas do direito nos conduzem,
necessariamente, à compreensão dos fenômenos em um contexto mais
abrangente, ou seja, o direito deve ser estudado como um sistema que
interage com outros sistemas, podendo ser destacadas as relações que se
formam como o sistema social.
4.3 PRINCÍPIOS, REGRAS E POSTULADOS NORMATIVOS
Os princípios devem ser investigados como fins a serem
alcançados através de comportamentos necessários para a realização de
um estado de coisas que se referem a situação qualificada por
determinadas qualidades as quais se aspira conseguir, gozar ou possuir; e
como o modo pelo qual esse estado de coisas será realizado, tendo em
vista a aplicação do direito.
Considerando uma teoria geral dos princípios, pode afirmar-se
que estes apresentam uma dimensão imediatamente finalística,
primariamente prospectiva, com pretensão de complementariedade e de
parcialidade, para cuja aplicação demanda uma avaliação da correlação
entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da
131
conduta havida como necessária à sua promoção. Os princípios se
voltam para a realização de um fim relevante juridicamente.
As regras são imediatamente descritivas, primariamente
retrospectivas com pretensão de decidibilidade e abrangência para cuja
aplicação é exigida a avaliação da correspondência centrada na
finalidade que lhe dá suporte. Sob uma perspectiva pragmática
prescrevem comportamentos. A interpretação e a aplicação das regras
exigem uma avaliação da correspondência entre a construção conceitual
dos fatos e a construção conceitual da norma e de sua finalidade.
As regras têm uma dimensão imediatamente comportamental.
Os postulados normativos aplicativos são imediatamente
metódicos, estruturando a interpretação e aplicação de princípios e de
regras mediante a exigência, mais ou menos específica de relações entre
elementos com base em critérios que são a ponderação de bens, a
concordância prática, a proibição de excessos que será assegurada
através da igualdade, da razoabilidade e a proporcionalidade a qual
representa a utilização dos meios que devem ser adequados, necessários
e proporcionais em sentido estrito. Os postulados têm uma dimensão
imediatamente metódica.
O direito como estrutura de linguagem deve ser aplicado
através da interpretação realizada de acordo com critérios devidamente
132
explicitados. Tomando essa afirmação como um referencial, é possível
estabelecer um conjunto de intrincadas relações entre os postulados
normativos aplicativos, os princípios e as regras, as quais, como
proposto, são identificados a partir da estrutura lingüística do dispositivo
legal, tendo em consideração questões metodológica, finalística e
prescritiva de comportamentos.145
Através deste trabalho propõe-se à realização de uma pesquisa
que possa levar a identificação de elementos que possibilitem à
formulação de uma síntese teórica que oriente o processo de execução no
Brasil.
A
hermenêutica
crítica
historicista
verticalizada
na
principiologia pode constituir um instrumento teórico que assegure
melhores índices de efetivação na prestação jurisdicional executiva.
Atribuída uma relevância significativa ao papel da
interpretação é razoável que o processo de execução seja
estudado a partir de seus aspectos próprios, procurando
adequar métodos que viabilizem a solvência do devedor, porque,
assim, a conseqüência natural será a quitação do crédito, o que traduz a
efetividade e segurança da jurisdição.
145
O processo de execução tem sido estudado a partir das suas características pragmáticas, por visar,
em última análise à realização concreta do comando previsto no título executivo.
133
Talvez se possa questionar que o problema da solvência do
devedor não diz respeito ao processo de execução. Mas, então, há que se
perguntar: Qual é o problema do processo de execução? Qual é a função
jurisdicional a ser realizada através da execução?
Durante um considerável período de tempo, pretendeu-se
resolver o problema da efetividade processual, desconsiderando a
realidade.
As experiências permitem afirmar que é pouco provável que se
obtenha a entrega do bem jurídico através do processo quando as
circunstâncias que determinaram os fatos são enfocadas pela ótica
legalista.
A compreensão de que o Direito, formulado enquanto
conhecimento científico é uno, remete este estudo a averiguações na
esfera da teoria do direito, fim de contextualizar -se o processo em um
quadro geral, o e será realizado com referência a uma reflexão
hermenêutica crítica146 e a uma teoria da praxis da aplicação do direito.
146
GRAU, Eros Roberto. ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 100-101. A reflexão hermenêutica instala a
verificação de que a interpretação se desenvolve a partir de pressuposições. ... A compreensão é, então, experiência. ... É necessário
dizer, ainda, que a hermenêutica está ancorada na facticidade e na historicidade, de modo que entre a linguagem, instrumento necessário
de que nos utilizamos para apreender o objeto a ser compreendido – os textos normativos, no caso da interpretação jurídica - ,e esse
objeto interpõem-se os mundos da cultura e da história. Por isso o saber jurídico há de ser concebido como um processo de diálogo, de
troca entre o ser e o mundo.
134
5 ALGUMAS QUESTÕES DA TEORIA DO DIREITO
Pensar o direito criticamente remete a aspectos empíricos e
pragmáticos do cotidiano da vida contemporânea. Boaventura de Sousa
Santos, considerando as dificuldades para uma crítica, lembra que esta
postura exige a disponibilidade e o compromisso com a transformação,
tendo em vista aspectos de desajustamento social que justificam esta
postura. Então, é necessária a percepção do que existe, e a avaliação da
natureza e do âmbito das alternativas ao que está empiricamente dado147.
Voltando à Teoria Geral do Direito, o professor André Franco
Montoro, ao apresentar seu plano de trabalho, menciona cinco
significados lingüísticos expressos pela palavra direito; o direito como
ciência (epistemologia jurídica), o direito como justo (axiologia
jurídica), o direito como norma (teoria da norma jurídica), o direito como
faculdade (teoria dos direitos subjetivos) e o direito como fato social
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente.:contra o desperdício da experiência,.
p..23 e segs. Não parece que faltem no mundo de hoje situações ou condições que suscitem
desconforto ou indignação e nos produzam inconformismo. Basta rever até que ponto as grandes
promessas da modernidade permanecem incumpridas ou o seu cumprimento redundou em
efeitos perversos. No que respeita à promessa da igualdade os países capitalistas avançados com 21%
da população mundial controlam 78% da produção mundial de bens e serviços e consomem 75% de
toda a energia produzida. ... No respeita a promessa da liberdade, as violações dos direitos humanos
em países vivendo formalmente em paz e democracia assumem proporções avassaladoras. Quinze
milhões de crianças vivem em regime de cativeiro na Índia ... No que respeita à promessa da paz
perpétua ... Depois da queda do Muro de Berlim e do fim da guerra fria, a paz que muitos finalmente
julgaram possível tornou-se uma miragem em face do aumento nos últimos 6 anos dos conflitos entre
Estados e sobretudo dos conflitos no interior dos Estados. ... Horkheimer definiu melhor que ninguém.
Segundo ele, a teoria crítica moderna é, antes de mais, uma teoria fundada epistemologicamente na
necessidade de superar o dualismo burguês entre o cientista individual produtor autônomo de
conhecimento e totalidade da actividade social que o rodeia: “A razão não pode ser transparente para
consigo mesma enquanto os homens agirem como membros de um organismo irracional.”
147
135
(sociologia do direito). São mencionadas, ainda, as perspectivas de
abordagem do direito, neste aspecto filia-se ao entendimento segundo o
qual o valor fundamental que assegura ao direito seu sentido e dignidade
é
a
justiça,
vinculada
a
ordenação
da
convivência
para
o
desenvolvimento dos povos e, portanto, para um processo de superação
das desigualdades de oportunidades e promoção das transformações da
sociedade148.
Assim, o direito processual e, mais especificamente, o
processo de execução, serão estudados com vista a uma análise dentro de
um contexto em que seus fins estejam norteados por um conjunto de
princípios identificados a partir da interpretação do texto Constitucional
e como instrumento para a realização do justo, tendo em vista a paz
social, em uma sociedade onde o indivíduo cidadão está paulatinamente
sendo substituído pelo indivíduo consumidor.
5.1 EPISTEMOLOGIA JURÍDICA
A epistemologia vincula-se ao problema da atitude que leva ao
conhecimento. A característica da cientificidade foi atribuída ao
conhecimento produzido a partir da epistemologia, que, como a ciência
do conhecer, tem estabelecido critérios que possibilitam a formulação de
148
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito, p. 25-26.
136
métodos
de
averiguação
pesquisadores.
Admitindo-se
das
que
proposições
o
apresentadas
conhecimento
pelos
científico
é
convencional e temporal, seu comprometimento e razoabilidade
dependem fundamentalmente da possibilidade da sua verificação por
outros cientistas.
Em outra oportunidade, manifestou-se, neste trabalho, a
respeito da necessidade humana em conhecer o mundo que o circunda.
Esta busca representa a possibilidade de conhecer a verdade, entendendo
o que é a realidade. Ao longo da história da humanidade, formularam-se
diversas formas de conhecimento, partindo de diferentes referenciais.
Coube à epistemologia estabelecer a necessidade da escolha quanto à
metodologia para que se produza uma espécie de conhecimento que
possa ter uma validade admitida como científica. Dessa forma, afasta-se
o conhecimento científico do senso comum.
Ao longo da história, admitiu-se que o conhecimento estivesse
internalizado no objeto, emanando deste, sendo que ao sujeito
cognoscente restaria a sua descrição, afirmando-se, neste caso, a “crença
no significado autônomo da realidade”149. A superação desta idéia é
possibilitada pela epistemologia, que vincula o conhecimento através do
método à interferência do sujeito cognoscente.
149
COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito, p. 56.
137
Curiosamente, o positivismo que é a primeira elaboração
teórica fundada na epistemologia, representa o ápice da concepção do
conhecimento autônomo da realidade, ou seja, um conhecer objetivo,
conceitual e avalorativo150. Isto é compreensível, pois a teoria do
conhecimento foi aplicada inicialmente em relação ao que se entendia
como sendo a realidade. Dessa forma, o método deveria assegurar o
isolamento do objeto através do quê este seria descrito ou conhecido da
melhor maneira possível151. A objetividade do conhecimento que deveria
ser garantida pelo princípio da verificação subordinava a verdade à
verificabilidade da proposição, a critérios idênticos àqueles aplicados
para os enunciados lógicos.
Para as ciências naturais, a epistemologia representa uma real
possibilidade de avanços, pois o processo de desenvolvimento do
conhecimento é assegurado pelo método, que deve ser enunciado
juntamente com os resultados do trabalho de investigação científica.
150
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à ciência do direito, p. 116. Cognoscível é
apenas o valor legal, ou validade, que consiste na conformidade, objetivamente verificável pela razão,
de uma norma com outra que lhe é superior. Por tal razão a ciência jurídica deve tão-somente procurar
a base de uma ordem legal, ou seja, o fundamento objetivo e racional da sua validade legal, não num
princípio metajurídico de moral ou direito natural, mas numa hipótese de trabalho lógico-técnicojurídico, supondo aquela ordem legal validamente estabelecida. ... Kelsen chegou a um positivismo
jurídico radical, que concebe o direito positivo como sistema normativo; tornou a ciência jurídica
completamente alheia a aferições valorativas, a influências políticas e às forças biopsicossociais.
151
COELHO. Op. cit.., p. 57. A partir de algumas teses de Carnap e Wittgenstein, sobretudo, o
paradigma epistêmico do positivismo lógico propôs-se a desenvolver um discurso que assegurasse o
autocontrole do discurso teórico e, por outro lado, estivesse apto a identificar-se como representação
fiel do mundo, legitimada pela verificação, seja a compreensão empírica, seja a demonstração
analítica. ... o resultado a que chegaram não encerra uma proposta teórica sistemática, mas
somente um pensamento fragmentário, centrado basicamente em um postulado: o “princípio da
verificação”. (grifo nosso)
138
Desse modo, o corpo integrante da comunidade tem a
oportunidade de certificar-se a respeito dos resultados apresentados e
contribuir com suas próprias observações.
No campo das ciências sociais, sendo que com referência à
epistemologia, acredita-se na relevância da sua contextualização geral
em relação às ciências naturais, e, sobretudo, quando é abordada a
questão do positivismo é possível afirmar que seus efeitos são negativos.
Esta posição decorre da compreensão de que o positivismo, ao isolar o
objeto de estudos, levou a uma equívoca idéia de que os fenômenos
sociais, notadamente, aqueles de cunho cultural, como atualmente é
assimilado o direito, são operacionalizados em sistemas fechados. A
teoria do direito como sistema fechado está em processo de superação
como já mencionado.
Cabe à teoria do conhecimento a organização de novos
mecanismos que possibilitem um saber válido sob uma perspectiva
científica, mas, igualmente voltado para a vida humana, no sentido da
construção de um mundo material e humanamente mais justo. Neste
ambiente, surgem as condições necessárias e propícias ao pensamento crítico152.
152
COELHO. Op. cit. p., , 59. ... E a consciência científica passou a exigir novas posturas a partir do
momento em que se verificou ser muito mais importante construir uma sociedade justa e compatível
com a dignidade humana, do que descrever neutralmente como se processam as relações sociais,
assim, o saber social passou a exigir a solução dos problemas que são objeto de seus estudos, em vez
de simplesmente as descrever ou mesmo compreendê-las em sua dialeticidade. ... Seria preciso então,
a partir deste ponto, repensar os paradigmas, abandonar a mentalidade positivista e seus métodos, cuja
repercussão na sociologia, na ciência política, na história, na antropologia e nas ciências jurídicas,
havia se revelado de pouca ou nenhuma utilidade.
139
A epistemologia assimila a crítica, o que significa trabalhar a
produção
do
conhecimento
numa
visão
mais
ampla.
A
interdisciplinaridade pode ser admitida como o seu primeiro esboço,
contudo, o novo paradigma do conhecimento, devendo ressaltar as
ciências sociais, e, nesse contexto, o direito será estudado com base em
uma visão dinâmica e holística. A partir daí, surge uma verdadeira
epistemologia crítica que opera como o conceito de “construção
objetiva”. Isto que dizer que o conhecimento se refere à ordenação da
realidade com vistas à sua transformação. O conhecimento científico
assume seu aspecto fragmentário, assim, a realidade é construída pelo
cientista, logo, o conhecimento e a verdade não têm caráter absoluto. A
racionalidade científica é construtivista e causal, de acordo com o
paradigma da epistemologia crítica. O conhecimento científico resulta de
um “programa de ação consubstanciado na crítica permanente da
verificação empírica, a qual é sempre parcial, insuficiente e ilusória.”153
O fundamento básico do pensamento epistemológico crítico
consiste em que o conhecimento não pode estar subordinado a axiomas
ou dogmas ou ainda esteriótipos. O criticismo está ligado à criatividade
construtivista, assim, a ciência não existe para o cientista, mas para a
comunidade, logo, seu papel deixa de ser descritivo para tornar-se
analítico pautado na dialética histórico-social.
153
COELHO. Op. cit. , p. 61.
140
Isso tem criado problemas, pois, conquanto a perspectiva da
formulação do conhecimento tenha se ampliado, não parece possível
identificar a ruptura do paradigma, de acordo com Kuhn. Retoma-se a
idéia da crise do paradigma, onde postulados menores são contestados,
mas a estrutura permanece inalterada. A referência é ao positivismo
dogmático, ainda prevalecente no estudo do direito e, sobretudo, ao
estudo das fontes criadoras da norma, tendo em vista o unitarismo
jurídico decorrente do Estado, como único criador das regras de
conduta154. Esclareça-se que os estudos jurídicos pautam-se em regras
(leis) originárias da atividade legislativa estatal, seja de caráter típico ou
residual. Quer-se com isso referir às atividades normais do Poder
legislativo em qualquer de suas esferas, ou àquelas regiões
intermediárias em que, subsidiariamente, os poderes executivo e
judiciário regulamentam suas atividades internas e excepcionalmente,
seu relacionamento com o administrado ou jurisdicionado.
As teorias sobre as normas jurídicas são vastas e o assunto é
complexo, não havendo a pretensão em tratar desse tema. O fato é que o
ordenamento jurídico não é pluralista, o que significa afirmar, o direito
brasileiro está atrelado à lei e ao Estado o que lhe atribui uma
configuração positivista. Este é o paradigma vigente em crise.
154
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 5º, inciso
II.Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
141
O problema referido é que não há uma teoria epistemológica
crítica, mas um conjunto de propostas para a crítica do direito enquanto
sistema fechado, o que no plano da norma jurídica estaria vinculado ao
unitarismo estatal e à dogmática positivista155. Portanto, é admissível o
reconhecimento de inúmeras vertentes do pensamento crítico, todos
susceptíveis de questionamentos156, uma vez que estão em fase de
concepção. Acredita-se que a criatividade, no desenvolvimento das
pesquisas relativas às ciências humanas, poderá levar ao surgimento de
um novo paradigma que, substituindo o positivismo formalista estatal
produza a ruptura que caracteriza as revoluções científicas.
Pode ser afirmado que o direito “é saber ao mesmo tempo e
que é prática social, e, a partir de sua positivação, prática social e
discursiva institucionalizada”157.
A ruptura do paradigma em crise no direito somente será
possível a partir da quebra do monopólio do Estado legislador e do
155
CLÈVE, Clèmerson Merlin O direito e os direitos: elementos para uma crítica do Direito
Contemporâneo, p. 65. A dogmática jurídica é uma manifestação discursiva que, almejando a
condição de cientificidade, e falando em nome dela, o faz, não por meio de enunciados informativos e
imbuídos da necessidade de encontrar a verdade (sujeitando-se à refutação e falsificação conforme
Popper), mas mediante um discurso persuasivo, dirigido à decidibilidade de conflitos,
assegurando certeza e segurança jurídicas, exigências do direito positivado do moderno estado
capitalista. Ora, isso denuncia a dogmática como atividade classificatória e sistematizadora das
normas jurídicas estatais. Sua realidade está limitada pela institucinalização do câmbio do
direito operacionalizada pela sua positivação, o que reduz o saber jurídico às dimensões da
atividade jurisdicional. (grifo nosso)
156
CLÈVE. Op. cit., p. 79. Nem todos os novos jusfilósofos pensam do mesmo modo. Várias linhas
teóricas vão se abrindo. Afinal, a crítica do direito não constituiu movimento homogêneo e integrado.
Antes é ‘um conjunto de vozes dissonantes que, sem constituir-se, ainda, em sistema de categorias,
propõem um conglomerado de enunciações apto a produzir um conhecimento do direito capaz de
fornecer as bases para um questionamento social radical’.
157
CLÈVE. Op. cit., p. 87.
142
reconhecimento pela comunidade jurídica de que o direito não tem um
objeto específico de estudos, podendo operar ora com conceitos da
sociologia ora com conceitos da psicologia ou da economia, ou ainda, de
outros ramos do conhecimento, o quê, sob o prisma da ciência do
conhecimento classicamente considerada é comprometedor de sua
cientificidade, no entanto, não reduz a importância de seu papel como
saber teórico e pragmático158.
Sob um enfoque da teoria geral do direito, o tema da
epistemologia está delineado, ressalta-se que há o desdobramento dessas
teorias, sendo que no campo da epistemologia jurídica159, foram
elaboradas diversas formas de estudo do direito, sendo que o
culturalismo egológico quântico de Goffredo Telles Júnior e a teoria
culturalista tridimensional do direito de Miguel Reale colocam o direito
brasileiro em destaque.
Igualmente importante no contexto da epistemologia
jurídica são os estudos do professor Lourival Vilanova que, a partir das
158
CLÈVE. Op. cit., p. 88. Tais reflexões sugerem ser irrelevante provar a cientificidade do discurso
jurídico. Se terreno epistemológico o situa como disciplina não científica, embora dotada de
positividade. Não é mera ideologia, ou opinião. É um saber, formalizado segundo configuração
própria.
159
DINIZ, Maria Helena.. Compêndio de Introdução à ciência do direito, p. 13-164. A autora discorre
a respeito das concepções epistemológico-jurídicas relativas à cientificidade do conhecimento
jurídico, identificando as seguintes teorias; jusnaturalismo, empirismo exegético, historicismo
casuístico, positivismo sociológico e positivismo jurídico, racionalismo dogmático ou normativismo
jurídico de Hans Kelsen e culturalimo jurídico.
143
estruturas lingüísticas do direito e da análise fundada na lógica formal,
aborda os sistemas jurídicos sob uma perspectiva autopoiética160.
A propósito da importância do culturalismo jurídico,
é considerado adequado localizá-lo no contexto histórico da formação
epistemológica do direito. Esta abordagem não visa ao aprofundamento
do assunto, mas, a uma visão panorâmica a fim de que se compreenda
sua posição e relevância para o direito brasileiro.
5.2 CULTURALISMO JURÍDICO
A partir do final do Século XIX, as transformações
decorrentes da modernidade levaram a elaboração de novas formas de
abordagem para a formulação do conhecimento161, entre elas ressalta-se
a teoria husserliana162 dos objetos segundo sua região ôntica163.
160
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia, p. 528. ... a ontologia parece ter como missão a
determinação daquilo em que os entes consistem e mesmo daquilo em que consiste o ser em si. Então,
é uma ciência das essências e não das existências; é, como se precisou ultimamente, uma teoria dos
objetos.
162
Edmund Husserl é considerado o fundador da fenomenologia, tendo proposto um método de
análise de como o entendimento intervém no conhecimento das realidades da experiência. Esse
método consiste numa descrição da gênese dos conceitos, o que possibilita delimitar os elementos
objetivos e subjetivos que intevêm no ato de conhecer. A fenomenologia em Husserl consiste num
processo em que a existência dos conteúdos da consciência ou das vivências e do Eu é colocada entre
parêntese enquanto sujeito psicofísico ou suporte existencial da consciência, assim reduzida ao eu
puro, ou transcendental. A redução eidética reduz as vivências a suas essências, como objetos ideais
que expressão significações, alheias ao tempo e ao espaço, o que os confere uma validade permanente.
163
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, p. 727. Ôntico. Existente: distinto de ontológico,
que se refere ao ser categorial, isto é, à essência ou à natureza do existente. P. ex. a propriedade
empírica de um objeto é uma propriedade ôntica; a possibilidade ou a necessidade é uma propriedade
ontológica.
161
144
De acordo com a localização dos objetos164 de estudo tendo em
vista sua essência, ou seja, o ser próprio ou peculiar da coisa, o direito é
algo que tem existência real ou concreta e, portanto, identificada na
experiência ou no mundo empírico, dotado de valor, sendo a cultura o
seu objeto específico de estudo165.
Tem se entendido como cultura os processos de criação
desenvolvidos pelo Homem com referência a um sistema de valores166
constituídos historicamente, com a finalidade de atender aos seus
interesses, o que permite atribuir à cultura uma natureza aperfeiçoadora
das relações humanas167.
O direito, sob a perspectiva culturalista, revela-se como um
164
Ibidem, p. 725. ... a palavra objeto é o termo mais geral de que dispõe a linguagem filosófica. ... É
óbvio que o conceito de objeto não coincide inteiramente com nenhuma de suas especificações
possíveis. As coisas, os corpos físicos, as entidades lógicas e matemáticas, os valores, os estados
psíquicos, etc., são todos objetos, especificados ou especificáveis por meio de modos de ser
particulares ou procedimentos de verificação particular; mas nenhuma dessas classes de objeto possui
uma objetividade privilegiada e nenhuma se presta a exprimir, em seu âmbito, a característica de
objeto em geral.
165
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova introdução ao Direito, p. 8. Sem entrarmos na pugna
dos universais ou da essência universal do homem, podemos concluir que os valores, em seu momento
de abstração constituem objetos ideais que caracterizam a humanidade em todos os tempos, fora da
história, ao passo que, em seu momento de concreticidade, constituem objetos culturais que
caracterizam a humanidade em cada mometo, dentro da história.
166
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova Introdução ao Direito, p. 4. A língua germânica é
muito precisa ao distinguir o valor (Wert) e o o valer (Gelten). O valor é ponto ideal a que a
humanidade tende. O valer é aquilo que tem eficácia no momento histórico.
167
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova Introdução ao Direito. P. 4. A Cultura é História. Os
objetos culturais, por isso mesmo que constituem referências a valores, são objetos históricos, vivem
na História e só historicamente assumem sentido.
145
sistema que se inter-relaciona com outros ambientes que não o jurídico,
nesse caso, referido ao conjunto de leis que forma o ordenamento
jurídico. É próprio afirmar que as teorias culturalistas assimilaram
noções da teoria geral dos sistemas, representando um movimento de
abertura do sistema jurídico que associado a questões históricas como o
acirramento das desigualdades sociais no plano interno quanto à
distribuição de riquezas e internacional através das políticas de proteção
de mercados dos países mais ricos e exportadores de bens
industrializados em detrimento dos países produtores de bens primários;
produziu a crise dos paradigmas vigentes no positivismo jurídico
formalista168.
A propósito da formação das teorias culturalistas, é
interessante lembrar a importância da Escola de Baden, à qual se filiaram
filósofos como Emil Lask e Radbruch para, a partir do kantismo, tendo
em vista a compreensão histórica do mundo, identificar o conceito de
valor. Partindo dessa referência, foi constituída a Filosofia da cultura,
que representa uma evolução da Filosofia dos valores neokantista.
168
REALE, Miguel. Teoria Tridimencional do Direito, p. XIII-XIV. A Ciência do Direito, sobretudo
a partir da Segunda Grande Guerra, vem se caracterizando por uma crescente luta contra o
formalismo, o que implica repúdio às soluções meramente abstratas. ... Essa tendência, no campo
do Direito, não é senão expressão das diretrizes e do movimento que caracterizam, de modo geral., a
cultura contemporânea . Vários fatores poderiam ser invocados nesse sentido, como, por exemplo: a) a
preocupação pelos problemas da vida humana, o que se reflete em todas as formas da Filosofia
existencial; b) a compreensão do indivíduo e, por conseguinte, de seus direitos e deveres, não em
abstrato, mas na concreção de suas peculiaridades circunstâncias, como o demonstra a chamada Ética
da Situação; c) a afirmação paralela, tanto nos domínios da Teoria do Conhecimento como os das
ciências humanas, de que ‘é mister volver às coisas mesmas’, consoante fórmula amplamente
divulgada pela Filosofia fenomenoógica. (grifo nosso)
146
A Filosofia da cultura parte da idéia segundo a qual entre a
realidade e o valor há um elemento de conexão que é exatamente a
cultura. Sob esta perspectiva, o direito existe em função de um suporte
que pode ser considerado natural ou real que somente se justifica em
virtude do valor, sendo a norma jurídica o elemento cultura encontrado
entre esses dois suportes.
Considerada esta estrutura do direito baseada na Filosofia da
Cultura
foram
criadas
diferentes
teorias
culturalistas169,
assim
denominadas porque apresentam a mesma base teórico-filosófica.
As
principais
direções
do
culturalismo
jurídico
formaram a concepção raciovitalista de Recaséns Siches 170,
169
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, p. 70. Apesar de sua deficiência, representou
um grande passo a idéia dos neokantistas de interpor, entre realidade e valor, um elemento de
conexão: a cultura, significando o complexo das realidades valiosas, ou, como esclarece Radbruch,
‘referidas a valores’. Isto equivale a dizer que todo bem de cultura (e o direito é um deles) é
tridimensional em razão de seu simples enunciado, uma vez que pressupõe sempre um suporte natural
ou real, e, no meu modo de ver, também ideal, suporte esse que adquire significado e forma próprios
em virtude do valor a que se refere. Foi em torno dessa problemática que se desenvolveram as
diversas espécies de culturalismo jurídico, para saber-se, por exemplo, como é que tais elementos se
correlacionam (através de mônadas de valor, dirá Sauer; mediante ‘categorias constitutivas’, sugerirá
Lask etc) ou, então, pra negar a possibilidade de qualquer correlação entre eles (Radbruch, na primeira
fase de seu pensamento, considerava-os gnoseologicamente antinômicos e irreconsiliáveis, só
admitindo uma composição relativa no momento da práxis) ou, ainda, para determinar-se a ‘função”
desempenhada por cada um dos referidos elementos no contexto ontognoseológico de cada momento
da experiência jurídica.
170
DINIZ. Op. cit., p. 92-93. O raciovitalismo jurídico é a corrente que se liga à filosofia da razão
vital de Ortega y Gasset, aplicada ao direito. A concepção orteguiana repercutiu enormemente na
teoria jurídica do jusfilósofo Luis Recaséns Siches. ... O comportamento humano é consciente e tem
um sentido que não existe nos fenômenos físico-naturais, que só podem ser explicados, uma vez que
só os fatos humanos podem ser compreendidos, segundo Dilthey. ... Só o que é do homem pode ser
justificado pelo homem, em razão dos fins que ele elege. ... Siches, influenciado por Ortega y Gasset,
pondera que a vida humana nada tem de feito, de concluído ou acabado, pois deve fazer-se a si
mesma. ... A partir dessa concepção orteguiana de vida humana, Recaséns Siches enquadra o direito
entre os objetos culturais, porque criado pelo homem com o objetivo de realizar valores,
considerando-se como pedaço de vida humana objetivada.
147
a teoria de Emil Lask171, a teoria tridimensional de Miguel Reale172 e a
teoria egológica de Carlos Cóssio173.
De acordo com o aspecto da cultura que se enfoque, serão
constituídas as teorias objetivas ou subjetivas do culturalismo jurídico.
Considerando a vida humana em seus aspectos mais concretos, ou seja,
sob a ótica das relações externas travadas no mundo do direito, são
criadas
as
teorias
objetivas
dentre
as
quais
se
destaca
o
tridimensionalismo de Miguel Reale174.
Carlos Cossio aborda a cultura a partir das condutas humanas
subjetivas ou intrínsecas, tomando como ponto de partida aspectos
ligados a questões da ordem existencialista, podendo ser sua teoria
171
DINIZ. Op. cit., p. 133. A obra de Emil Lask, neokantiano da Escola de Baden (Windelband e
Rickert), situa-se entre o jusnaturalismo e o positivismo, entre o historicismo e a fenomenologia, entre
o empirismo jurídico e o culturalismo nascente. ... O direito é uma realidade cultural complexa,
consistindo numa pluralidade de dimensões que apontam para uma estrutura aberta, e numa
historicidade imanente; é, portanto, uma realidade inserida entre a realidade empírica e as próprias
finalidades visadas pela ciência. A ordem jurídica é um fato cultural, uma realidade correspondente a
um valor. Em suma, seria o direito ‘a realidade jurídica empírica, que se desenvolve historicamente’.
(grifo nosso)
172
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, p. 65. Nas últimas quatro décadas o problema da
tridimensionalidade do Direito tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à
qual penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela demonstração de que: a) onde quer que haja um
fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico,
demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada signicação a esse fato,
inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou
objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um
daqueles elementos ao outro, o fato ao valor;
173
BATALHA. Op. cit., p. 144. O jusfilósofo argentino, Carlos Cóssio, fundador da Teoria Egológica
do Direito, combate o normativismo de Kelsen, sustentando que o Direito não consiste em mera
estrutura normativa, mas que o objeto do Direito é a conduta humana em interferência intersubjetiva ,
ao passo que a norma constitui esquema interpretativo dessa conduta.
174
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito., p. 132. Se o substrato do
direito for um objeto físico, temos objeto cultural mundanal ou objetivo, que corresponde ao ‘espírito
objetivo’de Hegel e à ‘vida humana objetivada’ de Recaséns Siches, e a corrente culturalista que o
estuda será a teoria cultural objetiva, de que são representantes, dentre outros, Ortega y Gasset,
Recaséns Siches e Miguel Reale. Se seu substrato for a conduta humana, será um objeto cultural
egológico (de ego) ou subjetivo, estudado pela teoria egológica do direito, representada por Carlos
Cossio, Aftalión e outros.
148
identificada como de caráter subjetivo. A ciência jurídica deve ocupar-se
do estudo das condutas humanas em sua dimensão social, utilizando o
método empírico-dialético175.
No Brasil, foi elaborada pelo professor Goffredo Telles Júnior
a teoria quântica do direito a qual representa um desdobramento da teoria
egológica. De acordo com a professora Maria Helena Diniz, a teoria
quântica do direito atribui ao direito natural, ao direito legítimo, a
designação de direito quântico.176 É interessante observar que tal
afirmação não tem o caráter de vincular a teoria quântica ao
jusnaturalismo, o que seria ilógico, pois como desdobramento do
egologismo isso não seria razoável.
Direito natural para Telles Júnior “é o conjunto das normas em
que a inteligência governante da coletividade consigna os movimentos
humanos que podem ser oficialmente exigidos, e os que são oficialmente
proibidos, de acordo com o sistema ético vigente”.177
A teoria culturalista egológica quântica do direito apresenta
sutilezas e um determinado grau de abstração refinado, podendo
175
BATALHA. Op. cit., p. 278-279. Aftalión, García Olano e Vilanova (ob. cit, I, pp. 43 e segs.),
eminentes expositores da teoria egológica do Direito, fundada com originalidade por Carlos Cossio,
observam que há métodos distintos para o estudo dos objetos ideais, dos objetos da natureza e dos
objetos culturais. ... O conhecimento dos terceiros constitui-se sobre a base de um ato de
compreensão. O terceiro método é denominado empírico-dialético: empírico, porque os objetos de
cultura são objetos reais, que está na experiência; dialéticos, porque o ser dos objetos de cultura não se
esgota no substractum material que possam ter, mas depende do sentido espiritual que nesse
substractum tem seu apoio, sentido que tem de ser vivenciado por alguém para adquirir existência.
176
DINIZ, Maria Helena . Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 48.
177
TELLES JÚNIOR, Goffredo. Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p.
326.
149
perceber-se isto a partir da apresentação de um conceito específico do
direito natural por seu formulador. As idéias a respeito da noção de juízo
de valor que exige como seu pressuposto um sistema de referências
elaborado pela inteligência humana que os constrói historicamente é
fundamental para a concepção do direito quântico como expressão da
experiência jurídica que é sempre a atualização objetiva de um estado de
consciência de uma comunidade em determinado momento histórico e
em determinado lugar.178
A partir dos elementos básicos apontados anteriormente, pode
ser afirmado que a teoria quântica do direito se desenvolve através da
constatação de que nem sempre o direito objetivo criado pelo Estado
subordinante da sociedade é o direito objetivo desejado por essa mesma
comunidade. Este direito desejado é o direito natural, porque tem uma
existência constituída historicamente que produz sistemas éticos de
referências.
A compreensão a respeito desses sistemas éticos de referência
parte da admissibilidade quanto à transmissão histórica de experiências
desde o ácido nucléico até à constituição de uma inteligência, que
relativamente ao ser humano, caracteriza-se pela solidariedade, sendo
determinada pelo que o ser humano realmente é.
178
TELLES JÚNIOR. Ética. Do mundo da célula ao mundo dos valores, p. 237.
150
Logo, o ser humano real é histórico, formando um eu mesmo
histórico179 como produto das próprias consciências individuais,
tomando em consideração o que elas têm de comum dentro de uma
determinada circunstância histórica. Disso resulta que o permanente no
humano é a mudança, a transformação pautada na histórica comum dos
indivíduos em sociedade180.
É possível admitir, portanto, que para o humano o mundo é
portador de um sentido que é por ele atribuído dentro das perspectivas e
compreensões do eu histórico permanente, no sentido anteriormente
referido. Através desse sentido, é formatado o sistema ético de referência
a valores. Assim, “a pessoa humana passa a ser a medida de todos os
valores”181. (grifo nosso).
O bem primordial nesse contexto é a pessoa, porque é a partir
dela que serão determinados os valores de todos os outros bens.
179
TELLES JÚNIOR, Goffredo. Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p.
320. O eu histórico é um eu permanente, mas um eu permanente em contínuo perfazimento. É um ser
considerado na sua realidade concreta, no que ele é por natureza. E o ser humano por natureza é um
ser sempre tendido para bens que o perfazem, um ser ‘intencional’, um ser imantado pelo que ele julga
ser seu bem. Porque é da condição da espécie humana, perfazer-se.
180
Ibidem, p. 321. ... pode-se dizer que a história do ser humano é causa e efeito dele próprio. É efeito
de determinações da inteligência. E é causa das formas culturais (da ‘paisagem materna’ de Spengler),
que, em cada circunstância, determina cada homem.
181
TELLES JÚNIOR. O direito quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p. 321.
151
Ressalta-se que essas idéias são desenvolvidas para identificar
os fundamentos da experiência ética de onde é desdobrada a experiência
jurídica a qual exige uma compreensão integral. Isto significa a
superação do direito como simples ordenador de fatos objetivamente
considerados, para considerá-lo também a partir de suas categorias
subjetivas. Por sua vez, essas categorias subjetivas se referem aos
sistemas de referência a valores, podendo ser também identificadas como
categorias axiológicas.
Se a pessoa é a medida elementar de valor de todas as coisas, o
sistema de referência é o eu histórico, assumindo, este, portanto, um
caráter apriorístico como condição subjetiva de compreensão das
experiências objetivas.
Como a priori o eu histórico representa a comunhão
progressiva das consciências individuais em relação às experiências
comunitárias, no processo da organização do humano para a constituição
social. Este processo forma a cultura, que se confunde com o mundo dos
valores.
O direito objetivo desejado pela comunidade é a manifestação
natural, no sentido de sua formação histórica, dos valores culturalmente
152
constituídos através dos processos identificados anteriormente. Desse
modo, “o direito natural é o direito legítimo.”182
Em uma concepção empírico-positivista, o direito é exigível
em virtude da validade da norma, entendida sob o prisma da obediência
ao processo legislativo instituído pela Constituição Federal e à hierarquia
do sistema legal. Para o culturalismo egológico quântico, a validade por
si só não é suficiente, uma vez que nesse caso o preceito legal seria
portador de uma artificialidade que, em última análise, compromete todo
o sistema legal na medida em que leva à criação de modelos de
organização social paralelos. Nesse sentido, o direito artificial assume
um papel opressor que o torna ilegítimo porque não traduz as convicções
éticas do meio onde assenta.
Nessa situação, é importante afirmar que o direito natural
(direito objetivo desejado) há de ser válido e legítimo, conquanto
atendendo aos preceitos de ordem formal para a criação das normas
jurídicas que sejam estas também a expressão espontânea das regras de
convivência social. Dessa forma, o trabalho do legislador tem a
finalidade de modelar as forças mesológicas imperantes na comunidade,
logo, a fonte primária do direito é o povo, entendido aqui sob a ótica do
eu histórico. Os legisladores enquanto representantes da coletividade são
182
TELLES JÚNIOR, Goffredo. O direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p.
326.
153
entendidos como autorizados a exercer secundariamente o poder de
normatizar a respeito da organização social.
Disso é possível concluir que pode haver referência a um
direito válido e legítimo como há um direito válido e ilegítimo. O direito
quântico é a nomenclatura utilizada para expressar a realidade normativa
válida e legítima no sentido biológico, histórico, cultural e estrutural, o
que teria a potencialidade de assegurar ao direito seu papel de natural
ordenação jurídica da convivência.
Através do direito quântico, percebe-se que a aceitação quanto
à artificialidade da norma jurídica é um equívoco terrível cometido pelos
juristas e legisladores, porque por mais brilhantes que possam ser as
construções legal, doutrinária e científica há que concluir-se pelo
descompasso crescente entre a realidade estruturada formal e as práticas
sociologicamente institucionalizadas, tornando-se o direito um elemento
de constrangimento social e, simultaneamente, afastando-se de seu papel
de ordenador da convivência coletiva.
154
5.3 O DIREITO PROCESSUAL NO CONTEXTO DA TEORIA DA
CIÊNCIA DO DIREITO
O direito é antigo, estando sua história provavelmente ligada à
própria história do Homem em seu processo de formação de uma
experiência coletiva, na conquista da sociabilização, enquanto modo de
autopreservação. Nesse tocante, a teoria do direito quântico ao afirmar a
existência de mensagens genéticas emitidas pelo DNA como (ácido
desoxiribonucléico) determinantes da vocação social do gênero humano,
ou seja, o “impulso natural para a convivência”183, permite a localização
remota do direito. Há que se compreender, no entanto, que aquela
realidade histórica apresenta uma conformação distinta daquela que
atualmente é vislumbrada. Aqui é válido lembrar o trabalho de Thomas
Khun quanto a abordagem histórica dos fenômenos, principalmente,
levando em consideração que cada fato precisa ser estudado em seu
tempo e lugar. O deslocamento dos objetos da pesquisa no tempo e no
espaço tem levado a equívocos de interpretação que pouco a pouco os
historiadores da ciência estão desvelando.
O direito não foge a tais considerações, porque tem sido
estudado em qualquer tempo e lugar como se os dados disponíveis
contemporaneamente fossem presentes no passado, o que não pode ser
183
TELLES JÚNIOR, Goffredo. O direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica., p.
329.
155
considerado real. Na Roma antiga ou entre os saxões e germânicos, a
significação da linguagem do direito e seu papel na estrutura comunitária
era distinta daquela verificada no final do século XIX e após a II guerra
mundial e durante o século XXI.
Essas considerações decorrem da importância para este
trabalho de refletir as condições presentes sem esquecer que conquanto
fossem inexistentes em um passado próximo, ali encontram os
fundamentos que possibilitam conhecer, de forma mais abrangente, o
direito. Esta maior abrangência se refere ao direito enquanto sistema
autopoiético.
A epistemologia jurídica é formatada a partir da jurisprudência
dos interesses, sendo que a alteração do modo de produção feudal para o
modo de produção industrial e a criação da indústria gráfica são fatores
preponderantes para o surgimento e desenvolvimento de métodos que
vinculassem a validade do conhecimento. Observa-se que esses fatos
históricos tiveram o efeito de propiciar a disseminação das idéias e, em
conseqüência disso, favoreceram a ampliação dos modos de conhecer, ou
seja, surgem novos modelos de interação entre o Homem e o meio.
A Teoria Geral do Direito e o processualismo científico são
significativos da cristalização dos movimentos originados pela
jurisprudência dos interesses. Pode ser afirmado, então, que a criação de
156
teorias adequadas ao direito entendido como ciência vincula-se ao
surgimento de uma epistemologia positivista que, durante praticamente
todo o século XX, identifica-se com a idéia da existência e validade do
conhecimento produzido no campo do direito184. Nesse sentido, a base
do direito, como ciência é única, podendo ser localizada na filosofia
jurídica, a qual teria sido convertida na teoria geral do direito, com
conseqüências reducionistas para aquela185.
A dinâmica inerente ao conhecimento gerou novas abordagens
tendo ressurgido uma filosofia do direito então identificada como teoria
do direito186, com uma perspectiva interdisciplinar, como novo modo de
estudar o direito. Em decorrência desses processos, ocorre uma
184
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Nomos, Fortaleza,v. 9/10 p. 49-82, jan/dez. 1990/91. Material
para Estudos de Teoria do Direito, p. 49-50. A origem da Teoria Geral do Direito (allgemeine
Rechtslehre) estaria em fins do século passado, na fase tardia da Escola Histórica, fundada por Hugo e
V. Savigny, movimento conhecido como ´pandectismo´ Seu mais famoso epígono é sem dúvida
Bernanrd Windscheid, se levarmos em conta que Ihering só integrou as suas fileiras até 1877, quando
publica ´Der Zweck im Recht´ (A Finalidade no Direito, trad. Em 1950 com o tít. A Evolução no
Direito, Liv. Progresso, Salvador, Ba.), aderindo ao utilitarismo de Bentham, e inaugurando um novo
paradigma ou método de estudo do direito: a ´jurisprudência dos interesses´. Representativa daquele
movimento pandectista com significado seminal para a TGD são obras como as de Karlowa, no direito
civil e v. Bülow, no direito processual.
185
Ibidem, p. 50. A ´filosofia positivista´ teve em Karl Bergbohm, com sua obra fundamental
´Jurisprudenz und Rechtsphilosophie´ ( Ciência do direito e filosofia jurídica), de 1882, um de seus
primeiros expositores. Já, antes, porém, Adolf Merkel em um pequeno ensaio intitulado ´Sobre a
relação da filosofia do direito com a ciência jurídica ´positiva´ e a parte geral da mesma´, havia
lançado as bases daquela ´filosofia´, reduzindo a filosofia do direito á TGD, da qual ele oferecerá
um elaboração acabada em sua ´Enciclopédia jurídica´, de 1885. (grifo nosso)
186
Ibidem, p. 52-53. Em 1970, por exemplo Kelsen, funda, juntamente com Karl Engisch, Hart,
Ulrich, Klug e Karl Popper, uma revista intitulada ´Rechtstheorie´ (Teoria do direito), editada em
Berlim, que aparentemente se dedicaria a desenvolver a proposta analítica lançada pela teoria pura. ...
Isso reflete a orientação já predominate, de estabelecer um campo teórico interdisciplinar para
´pesquisa fundamental´ (Grundlagenforschung) em direito. ... Nesse processo, a TGD é ´superada´
(aufgehobene) hegelianamente, quer dizer, incorporada e dissolvida, assim como antes ela fizera com
a abordagem filosófica, que agora volta a ter sua dignidade restituída, sem, é claro, a posição
´majestática´ de antes. (grifo nosso)
157
multifacetação na produção do conhecimento do direito que passa desde
a filosofia até à arte. Nesse ponto, vale a pena mencionar o seguinte:
É o ´anarquismo metodológico´, propugnado por Paul Feyerabend,
no qual ´everything goes´, desde que resulte em melhora de nosso
conhecimento. É o signo da pós-modernidade, quando não mais
se aceita o predomínio de um discurso com a pretensão de
único verdadeiro, já que a complexidade do mundo atingiu
tamanha proporção, que só a convergência dos diversos esforços
para entendê-lo poderá ser de alguma valia. (grifo nosso)187
Com estas observações, acredita-se que tenha sido possível
notar que uma abordagem do direito enquanto ciência deve ser realizada
tendo em vista a sua posição quanto a sua história, seus aspectos
epistemológicos e metodológicos. Não há nesse campo um espaço
reservado ao direito material e ao direito processual, assim como não há
um lugar específico para o direito privado e o outro para o direito
público. Ao fracionar o direito, o que se pretende é conhecer um de seus
aspectos, o que se torna impossível fora do contexto da teoria que orienta
o estudo proposto.
187
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Material para Estudos de Teoria do Direito, p. 54.
158
5.3.1 O direito processual como objeto cultural
O direito processual, para efeito desta pesquisa, será
considerado a partir do processualismo científico, pois as bases sobre as
quais se está trabalhando parte de uma teoria científica do direito, o que,
na esfera do processo, ocorreu a partir da publicação na Alemanha da
obra de Oscar Von Bülow em 1868. Destaca-se o trabalho de AlcaláZamora que, antes da publicação do livro de Von Bülow, já havia tratado
do direito processual com fundamento teórico-científico. É adequado
mencionar que com o surgimento de uma teoria do direito, desenvolvida
a partir de uma epistemologia positivista, o processo, como parte da
ciência do direito sofre seus influxos, havendo a sintetização da teoria do
processo.
Esta análise demanda reflexões profundas porque o direito
caminha historicamente ao lado da economia e da política através de
vínculos sutis que, em determinados momentos, são exacerbados
levando à revelação desses laços, e à percepção de que há um estado de
subordinação do direito à economia e à política, na medida em que
convalida as práticas ali adotadas.
Nesse sentido, os fatos que ocorreram entre a derrocada do
feudalismo e a estruturação de uma sociedade industrial, no campo da
159
política, da economia e da filosofia, são determinantes para a elaboração
da teoria do direito e por via de conseqüência da teoria do processo. É
importante destacar a estruturação do Estado como ente público,
representante dos interesses da nação e portador do direito enquanto
norma de regulação das condutas humanas. Cronologicamente, isto
ocorre no século XVIII, tendo sido importantíssimos os trabalhos de
Rousseau188, Descartes e Montesquieu189. Ao pontuar filósofos e
pensadores não há a intenção em desmerecer todos os estudiosos que
contribuíram para a sistematização de uma corrente teórica, mas apenas
delimitar as idéias.
A par da gravidade quanto a afirmação do estado de
subordinação do direito deve ser esclarecido ainda que esta constatação
não lhe reduz a importância como mecanismo de estruturação das
organizações societais, mas permite sua localização como objeto cultural
de pesquisa. Ganham, nesse sentido, em profundidade, os estudos a
respeito da crítica quanto às finalidades que o direito tem cumprido ao
longo de sua história.
Em conseqüência do cartesianismo que, posteriormente,
alicerçou a metodologia de Descartes e que assegurou a estruturação do
188
Jean Jacques Rousseau. (Suíça, 1712/1778). 1762 – “O Contrato Social”. Teoria política do pacto
social segundo o qual todos os homens são iguais perante às leis que são criadas de acordo com a
vontade do povo expressa através do soberano escolhido pelo voto direito.
189
Charles Louis de Secondat – Barão de Montesquieu. (França, 1689/1755). 1748 - “O Espírito das
Leis”, onde expôs a “Teoria da separação dos poderes”.
160
positivismo, foi incorporada entre os estudiosos do direito a idéia da
existência de uma autonomia do direito processual desvinculada da
teoria da ciência do direito. Este equívoco tem prejudicado o
desenvolvimento do direito processual porque uma vez isolado está
sendo desconsiderada sua referência como objeto cultural. Quer se
referir ao fato de que, no campo do direito processual, têm crescido as
correntes tecnicistas e, às vezes, até cientificistas em prejuízo da sua
compreensão como integrante de uma ciência social aplicada, como
atualmente tem se referido ao direito, cujo objeto central de estudos é o
Homem em suas múltiplas maneiras de interatividade com o meio social
e natural. O direito, assim, representa o elo regulador e garantidor dessas
relações.
Identificada a perspectiva teórica de abordagem do direito
como ciência através de uma pesquisa baseada em uma hermenêutica
crítica tendo em vista a crise do paradigma dominante proposto pela
Revolução Francesa com os axiomas positivistas da “liberdade,
igualdade e fraternidade”, o estudo ora realizado procura verificar no
direito público, através dos preceitos fundamentais (princípios, regras e
postulados normativos) erigidos na Constituição brasileira de 1988, as
referências teóricas para a análise do direito processual e, mais
161
precisamente, do processo de execução em um contexto adequado à
ciência do direito.
É possível afirmar que os problemas relacionados à
insatisfação que o processo está enfrentando quanto à morosidade na
entrega da prestação jurisdicional e quanto ao questionamento a respeito
da segurança jurídica estão ligados ao fato do equívoco anteriormente
mencionado. Isto quer dizer que a linguagem do direito processual ainda
está presa ao paradigma da epistemologia positivista, enquanto a ciência
do direito está assimilando a linguagem de uma epistemologia crítica.
Sob uma ótica sistêmica em que a teoria da ciência do direito
orienta as partes integrantes do sistema jurídico e, simultaneamente,
comunica-se com o meio exterior através do conteúdo cultural da
linguagem, os sistemas de interação do direito processual não
conseguem
produzir
um
nível
satisfatório
de
comunicação
intrinsecamente em qualquer dos seus sentidos, criando para a estrutura
do sistema jurídico um déficit comunicacional.
A causa mais provável deste déficit deve ser pertinente à
fragmentação nos estudos do direito processual como ramo autônomo da
ciência do direito e, sobretudo, pelo fato de que ainda se estuda o direito
processual como sistema fechado.
162
Não deve ser confundida a autonomia do direito processual em
relação ao direito material e em relação à teoria da ciência do direito.
Não se vislumbra a possibilidade da compreensão do direito processual
fora da teoria do direito, embora, no sistema jurídico, possa ser
reconhecida a autonomia do direito processual em relação ao direito
material, entendidos como partes daquela organização.
Essas colocações podem ser evidenciadas através da
observação de que as transformações nos meios de produção levaram às
mudanças nas estruturas de poder político, o que, por sua vez, produziu
condições sócio-culturais para o florescimento das filosofias iluministas
as quais refletiram o quadro do positivismo filosófico e científico e do
empirismo lógico. O direito assimila este quadro através da teoria pura
kelseniana. Há naquele momento histórico uma consonância, pois, a
teoria geral do direito produz no campo do processo a teoria “geral” do
processo. É perceptível a univocidade lingüística do sistema jurídico,
concebido como fechado. Nesse sentir as estruturas lingüísticas estavam
adequadamente organizadas e, portanto, eram capazes de realizar os fins
aos quais se destinavam. Pode ser afirmado que havia a satisfatória
entrega da prestação jurisdicional, que é onde se localiza o fim último do
direito positivo.
163
Com isso quer se referir ao fato de que a “justiça” era
considerada elemento intrínseco ao sistema, como ingrediente integrante
da norma jurídica.
As expectativas em relação ao cumprimento das promessas
iluministas foram e, em certa medida, ainda estão sendo desencantadas.
A substituição do conhecimento produzido pelo senso comum, pelo
conhecimento científico não melhorou a vida humana sob uma
perspectiva geral.
Não parece razoável acreditar que o progresso materialista
com a invenção de métodos de tratamentos revolucionários para a saúde,
a criação de máquinas e equipamentos impensáveis em um passado
próximo, a superestruturação das instituições do Estado e tantas outras
novidades da vida contemporânea tenham sido capazes de resolver os
problemas da humanidade. Isto é justificado pelo fato de que a ciência
iluminista e moderna não previu ou sequer evitou as conseqüências
irremediáveis da postura positivista.
Na seara do direito, o holocausto para o mundo ocidental é
revelador das possíveis conseqüências de uma ciência realizada com
base em uma epistemologia positivista.
No século XX, novos eventos históricos levaram aos
questionamentos sobre o papel da ciência e do direito. Destaca-se a
164
segunda guerra mundial, a revolução comunista soviética, a alteração
gradual do modo de produção industrial para o modelo constituído a
partir da tecnologia e da informação, onde o trabalho manual é
substituído por máquinas e não há espaço para a absorção das pessoas no
trabalho técnico e científico.
Sob todos os ângulos que se possa observar a vida
contemporânea, é possível identificar um grau considerável de
insatisfação humana quanto aos efeitos produzidos pela ação científica
moderna. Isto não se deve pela ausência de resultados significativos
quanto às conquistas que tenham melhorado setorialmente a qualidade da
vida humana, mas em decorrência de que há um excesso de resíduos
negativos produzidos por esta ciência que supervalorizou o objeto em
relação aos sujeitos do conhecimento.
No direito, isto se reproduz na medida em que este não tem
conseguido realizar a prestação jurisdicional de forma compatível com
os valores da eficiência e rapidez que orientam a modernidade. Esta
insatisfação pode ser assimilada como consectário de uma epistemologia
que desprestigiou os aspectos culturais da linguagem em favor de sua
forma estruturalmente lógica, quando seria razoável que antes se
considerasse o direito sob o enfoque de suas relações para então tratar
dos aspectos formalistas que lhes são pertinentes. A questão em relação a
165
isto pode ser situada no fato de que mesmo após a teoria da ciência do
direito ter assimilado este problema e operar com uma epistemologia
positiva culturalista e, mais recentemente, com uma epistemologia
crítica, o direito processual permanece preso à linguagem de uma
epistemologia positivista em fase de superação.
No campo do direito processual, foi criado um apego à idéia
da autonomia, contudo, sem que se tivesse percebido que isto não
poderia estabelecer uma desvinculação da teoria da ciência do direito,
sob pena de se verificar um saldo residual deficitário nos procedimentos
comunicacionais do direito processual em relação à realização efetiva e
segura da jurisdição.
O direito processual deve ser compreendido como parte
integrante do sistema jurídico que é norteado pela teoria da ciência do
direito, portanto, devendo ser estudado como objeto cultural.
Compreendê-lo depende de reconhecer os vínculos que mantém com o
meio social, econômico e político, através da linguagem que utiliza.
A atual perspectiva do direito processual deve, ainda, observar
os princípios Constitucionais da ampla defesa, do contraditório, do
devido processo legal e do juiz natural, estabelecidos no artigo 5º; tendo
como postulado fundamental a dignidade da pessoa humana, que está
expresso no artigo 1º, III.
166
6 O DIREITO PROCESSUAL CONTEMPORANEAMENTE
A proposta de estudos do direito processual sob o enfoque de
uma hermenêutica constitucional crítico-historicista, pautada na teoria
dos princípios, apresenta-se complexa, principalmente porque a
morosidade para a entrega da prestação jurisdicional está exigindo uma
resposta rápida da comunidade jurídica e dos Poderes Públicos, sendo
crescente o descrédito dos jurisdicionados quanto à possibilidade de
alcançar-se
a
“justiça”
através
dos
meios
institucionalizados
presentemente.
O reconhecimento dessa situação foi objeto do Pacto de
Estado em favor de um Judiciário mais rápido e Republicano,
publicado em 16 de dezembro de 2004, no Diário Oficial da União, no
241, na seção 1, p. 8, onde os Excelentíssimos Senhores Presidente da
República, Luiz Inácio Lula da Silva; Presidente do Supremo Tribunal
Federal, Nelson Jobim; Presidente do Senado Federal, José Sarney e
Presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha proclamaram os
seguintes compromissos fundamentais: implementação da reforma
constitucional do judiciário, a reforma do sistema recursal e dos
procedimentos, a estruturação das defensorias públicas e acesso à justiça,
o contínuo desenvolvimento dos juizados especiais e da justiça
167
itinerante, a alteração da lei que regulamenta a execução fiscal, a
proposta para a solução da problemática dos precatórios, a estruturação
de mecanismos que visem ao enfrentamento do problema da violação
dos direitos humanos, o avanço no processo de informatização do poder
judiciário, a criação de meios para a produção de dados e indicadores
estatísticos a respeito da distribuição da justiça, a instituição de
orientações jurisprudenciais que visem à coerência na atuação
administrativa e o incentivo a aplicação das penas alternativas.
Ainda no sentido de obter-se melhores resultados no plano da
otimização da prestação jurisdicional, a Emenda Constitucional no 45, de
8 de dezembro de 2004, acrescentou o inciso LXXVIII, ao
artigo 5º, da CF/88, assim redigido;
Art. 5º. LXXVIII. a todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação.
Há, pelo menos, 18 Projetos de Leis190, em diferentes
190
PL 4.724/2004 – Altera a forma de interposição dos recursos, o saneamento de nulidades processuais, o recebimento de recursos de
apelação e outras questões. PL 4.726/2004 – trata das questões relativas a incompetência relativa, os meios eletrônicos, prescrição,
distribuição por dependência, exceção de incompetência, revelia, carta precatória e rogatória, ação rescisória e vista dos autos. PL
4.727/2004 – trata dos agravos de instrumento e retido. PL 4.728/2004 – dispõe sobre a racionalização do julgamento de processos
repetitivos. PL 4.729/2004 – regula o julgamento dos agravos. PL 4.723/2004 – trata da uniformização da jurisprudência nos Juizados
Cíveis e Criminais. PL 4.725/2004 – possibilita a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual pela via
administrativa. Na esfera trabalhista há os projetos: PL 4.730/2004 – altera os artigos 830 e 895 da CLT, que tratam da forma para a
apresentação de documentos em juízo e do cabimento do recurso para instância superior. PL 4.735/2004 – altera o artigo 836 da CLT
que dispõe sobre as decisões e sua eficácia. PL 4.731/2004 – que altera os artigos 880 e 884 da CLT. PL
4.733/2004 – altera o artigo 894 da CLT. PL 4.732/2004 – altera o artigo 896 da CLT. PL 4.734/2004
– revoga o artigo 899 e acrescenta o artigo 899A a CLT. PL 4.827/98 – trata sobre a mediação prévia
e incidental.
168
estágios de andamento, tramitando no sentido de implementar a
realização do novo inciso do artigo 5º, da CF/88, e dos 11 compromissos
contidos no Pacto do Judiciário.
Os Projetos de Leis 3.253/2004191 e 4.497/2004 que alteram a
sistemática das execuções de títulos judiciais e extrajudiciais
respectivamente, são particularmente interessantes para este trabalho.
Sua abordagem específica, entretanto, será realizada oportunamente.
Ressalta-se apenas a compreensão de que as alterações são mais de
cunho estrutural sem, aparentemente, conseguir resolver o problema da
complexidade do processo.
É de fácil percepção que o movimento reformista do direito
processual brasileiro e do Poder Judiciário é oportuno, mas sofre pelo
fato de que está equivocado ao partir do pressuposto de que o processo
muda a realidade dos jurisdicionados. Isto provoca uma inversão danosa,
pois de instrumento para a realização de um fim o processo passa a ser o
próprio fim a ser realizado na medida em que não consegue estabelecer
uma razoável comunicação com o meio. Volta-se a advertir que o
problema está situado em que o processo não deve ser encarado como
um sistema fechado, mas, como um sistema que opera através da
linguagem, portanto, através da comunicação com o meio social e
político.
169
6.1 O DIREITO PROCESSUAL AUTOPOIÉTICO
Sendo o direito um sistema lingüístico caracterizado por sua
cientificidade, pois é admissível que seu objeto específico de estudos
seja o conjunto de regramentos comunicados através da linguagem, que
asseguram a organização, o desenvolvimento e as transformações
sociais, e, vinculando-se o direito processual à teoria da ciência do
direito, é-lhe atribuída a mesma característica.
Não há novidade quanto a afirmação anterior, contudo, as
pesquisas que melhor se desenvolveram naquele sentido abordaram o
sistema de linguagem do direito através da lógica jurídica e, portanto, o
enfoque dos estudos considerou a metalinguagem do direito como um
sistema fechado, o que significa afirmar que, como ciência positivada,
seu objeto existe e se realiza em si mesmo.
O que se pretende é observar o direito processual sob uma
perspectiva lingüística autopoiética.
A teoria dos sistemas autopoiéticos desenvolveu-se na década
de 1970, no campo da biologia molecular, sendo seus formuladores os
chilenos Humberto R. Maturana e Francisco Varela. No campo das
ciências sociais, a idéia da autopoiese foi introduzida por Niklas
191
Promulgada a Lei 11.232 de 22 de dezembro de 2005.
170
Luhmann, quando em 1984, publicou a obra Sistema social, esboço de
uma teoria geral.
Os sistemas autopoiéticos são simultaneamente abertos e
fechados. Seu fechamento é operacional o que significa que os processos
de reprodução das informações do sistema são internos. O ambiente não
contribui para a reprodução do sistema e vice-versa. As operações de
reprodução das informações são verificadas nos limites do interior do
sistema.
A abertura do sistema ocorre através do acoplamento
estrutural, tendo em vista que estes são ambientados havendo a
irradiação e a reciprocidade da comunicação entre os sistemas. Este
processo gera influências que aparecem sob a forma de informações que
são captadas pelo sistema a partir do meio. A ligação entre o meio e o
sistema operacionalmente fechado ocorre através do acoplamento
estrutural, que designa uma forma para as interdependências regulares
entre os sistemas e as relações ambientais que não estão disponíveis
operacionalmente, devendo ser pressupostas.
As idéias de fechamento operacional e acoplamento estrutural
são elementares para a concepção autopoiética dos sistemas. O que
significa que há, no interior do sistema, a auto-organização e a autoprodução das estruturas, sendo, portanto, auto-referenciado. Nesse
171
contexto, o sistema se comunica e sofre a interferência do meio e de
outros sistemas através das irradiações, mas opera com tais informações
no interior do sistema de modo auto-referenciado.
O direito processual pode ser pesquisado e conhecido através
desse
modelo,
pois,
suas
estruturas
lingüísticas,
internas
e
operacionalmente fechadas, são acopladas estruturalmente ao meio ou
ambiente social e ao sistema da ciência do direito, de onde irradiam as
informações que ao serem captadas devem produzir internamente as
operações que assegurem a realização dos fins prometidos pelo Estado
através da jurisdição.
6.1.1 A autopoiése em Niklas Luhmann
Sob o prisma sistêmico, é possível afirmar que o direito admite
duas formas básicas referenciais para seu estudo, a partir de suas
estruturas internas e tendo em vista suas conexões externas. As pesquisas
que tomam o direito em seus aspectos internos são desenvolvidas com
base em sua estrutura normativa legal. Nesse caso, são desconsideradas
as possíveis relações estabelecidas entre o direito e outros sistemas.
Através da autopoiese são pesquisadas as relações que o
direito estabelece com o ambiente social e outros sistemas, desse modo,
172
constituindo-se como uma forma de análise das relações externas do
direito, sendo levadas em consideração questões que não se restringem
ao complexo normativo do direito.
Luhmann cursou direito em Friburgo na Alemanha, mas até o
início da década de 1960, quando foi estudar administração na
Universidade de Harvard nos Estados Unidos da América, não são
encontradas publicações de sua autoria192. Durante este curso, teve
contato direto com o trabalho de Talcott Parsons, que era professor em
Harvard,
tendo
se
orientado
inicialmente
pelo
paradigma
do
estruturalismo funcionalista desenvolvido por aquele professor.
As teorias funcionalistas se baseiam no conceito de sistema
social193 como o meio em que diferentes elementos operam e no qual os
indivíduos interagem; e na idéia de ponto de equilíbrio do sistema,
podendo localizar-se aí as funções194 ou as contribuições de cada um dos
elementos do sistema para a manutenção do equilíbrio e da ordem social.
192
ROCHA, Leonel; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema
autopoiético do direito. p. 151. Os primeiros trabalhos de Luhmann (1958-1968) datam de uma parte
da sua carreira administrativa e são consagrados pela ciência da administração e da organização (Erros
administrativos e proteção da confiança, 1963; Indenização pública, 1965; Teoria da ciência
administrativa, 1966).
193
ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à análise sociológica dos
Sistemas Jurídicos, p. 158. Para se definir o conceito de sistema social, parte-se da ‘metáfora
organicista’, segundo a qual a sociedade se constitui em sistema (de ação social), cujo funcionamento
se assemelha ao de um organismo vivo, a exemplo do corpo humano.
194
ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Op. cit., p. 159. ... todo sistema social requer
quatro funções: 1. a função de ‘adaptação’; 2. a função ‘instrumental’; 3. a função de ‘integração
social ou de controle social; 4. a função de ‘socialização’
173
Os elementos do sistema social se apresentam como
subsistemas, sendo identificados quatro por Parsons, subsistemas
político, jurídico, econômico e cultural.
O ponto de equilíbrio do sistema social que mantém sua ordem
e coesão, portanto, impedindo sua desintegração, é um consenso social
em torno de determinados valores culturais, interiorizados pelos
indivíduos no processo de sociabilização vinculado ao seu status e aos
papéis sociais.
A matriz do pensamento de Parsons quanto ao sistema social
foi admitida por Luhmann, que, no entanto, introduziu alterações nas
teorias funcionalistas, como a inversão do binômio estrutura/função195 e
a rejeição consecutiva das definições organicistas do conceito de função;
e, ainda, a substituição gradual do conceito de ação social em favor do
conceito de sistema de acordo com a sua teoria geral.
O conceito de função em Luhmann se refere a “um esquema
regulador de sentido que organiza um quadro comparativo de prestações
equivalentes”196, o qual é mais próximo da matemática que da biologia.
195
ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ. Germano; CLAM. Jean. Introdução à Teoria do Sistema
Autopoiético do Direito, p. 62. Tendo em vista as diferenças em relação à teoria de Parsons,
Luhmann inverte a lógica do paradigma estrutural funcionalista. Semanticamente, transmuda o
binômimo, denominando-o de funcional estruturalista. Com esta simples mudança, traz novas idéias e
outros elementos que tornam sua teoria única. Dessa forma, o sistema está orientado a partir de sua
função, seu elementos essencial e fundamental, ...
196
ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas . Op. cit., p. 164-165.
174
Nesta perspectiva, o funcionalismo supera as idéias referentes às
dependências causais, que foram criticadas por seu caráter determinista.
Partindo da teoria geral dos sistemas, desenvolveu-se uma
concepção de dependência funcional no sentido de que uma mesma
função pode ser desenvolvida de maneira equivalente por estruturas
diferentes. Neste ponto, Luhmann propõe seu método através do qual a
determinação das equivalências funcionais é explicada a partir da teoria
dos sistemas autopoiéticos.
A questão da determinação das equivalências funcionais é
importantíssima, porque dela depende a ordem e a conservação do
sistema, o qual tem sua existência ameaçada pelo mundo exterior (meio).
Em Luhmann, esta ameaça é decorrente dos conceitos de contingência e
de complexidade.
Importante destacar que o sistema social é compreendido
como um sistema que é, simultaneamente, de interações e de
comunicação. Assim, os procedimentos desenvolvidos através do
acoplamento estrutural colocam em risco a existência do sistema porque
a troca de informações fica altamente comprometida pela contingência e
pela complexidade da comunicação estabelecida.
Dessa forma, a ordem social e a conservação do sistema
dependem da redução da complexidade e da contingência, o que,
175
segundo Luhmann, é possível conseguir estabelecendo-se relações de
sentido entre as ações sociais quê, por sua vez, são delimitadas pelo
próprio sentido, que constitui as fronteiras do sistema.
Nesse contexto, é possível visualizar a estrutura interna
circularmente fechada do sistema a qual se reproduz mecanicamente. As
operações básicas desta estrutura são a auto-referência, a autoobservação e a autodescrição. Este sistema, embora fechado, não se
apresenta isolado, pelo contrário, sendo aberto cognitivamente para o
meio de onde recebe as informações e os estímulos que alimentam seu
funcionamento.
Essa mesma estrutura se verifica no sistema jurídico, ou seja, o
seu funcionamento ocorre de modo operacionalmente fechado e
cognitivamente aberto.
Pode se afirmar que, internamente o sistema jurídico opera
através das relações entre as normas jurídicas de modo fechado, ou seja,
auto-regulado, auto-observado e autodescritivo. A comunicação que o
sistema jurídico mantém com o meio extrajurídico, contudo, não é uma
relação normativa, mas sim, uma relação cognitiva. Observa-se que, no
processo de acoplamento estrutural, as informações e os estímulos
externos são transformados pelo sistema através do processo autoreferencial.
176
Essa transformação das informações e dos estímulos externos
através da operacionalização do sistema jurídico, em seu interior, põe em
questão dois problemas da maior relevância: qual é o grau de influência
que as informações e os estímulos externos exercem sobre o
funcionamento interno do sistema? E como conhecer as conseqüências
dessa relação?
A questão pragmática que se coloca em relação ao sistema
jurídico se refere a que através de sua operacionalização interna ocorre
sempre a auto-reprodução de normas que sofrem as influências do meio
extrajurídico, embora não se possa precisar qual o grau e as
conseqüências dessa influência. No entanto, apesar do sistema jurídico se
caracterizar pela comunicação e interação, ele não consegue irradiar
informações do meio interno para o meio externo, porque a relação
interna é normativa e a relação com o meio social é cognitiva. Assim se
justifica, porque a abertura cognitiva do sistema jurídico não resulta,
necessariamente, na existência de comunicação com o meio social.
O trabalho de Luhmann no desenvolvimento de uma teoria de
grande reflexividade apresenta o estilo de uma superteoria, pois os
conceitos fundamentais que formula são refletidos na própria teoria, ou
177
seja, sob a perspectiva das suas pesquisas chegou-se a constituição de
um “design teórico”197 completo.
6.1.2 Complexidade, contingência e expectativa de expectativas
O estudo do direito com referência aos seus aspectos
extrínsecos ou, mais particularmente, com relação a teorias sociológicas,
tendo em vista a análise do fato do dever ser sob o prisma da sua função,
leva a questionamentos198 que podem ser considerados de caráter
psicológico
ou
sociológico,
porque
as
discussões
que
visam
contextualizar o direito como sistema autopoiético parte da análise da
experimentação e seu simbolismo. Esse problema é resolvido na teoria
luhmaniana a partir da consideração de que é inexistente a separação
total entre o meio e o sistema. É afirmado que
deve-se partir de um campo da ação e da experiência sensorial, a
partir de onde se constituem as personalidades e os sistemas
sociais, como diferentes estruturações de complexões de sentido
das mesmas experiência e ação. Tão-só diferenciação entre
diversos sistemas de referência (o que, naturalmente, é facilitado
197
ROCHA; SCHWARTZ; CLAM. Op. cit. p., , 152.
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I, p. 43. Se quisermos ir mais ao fundo teremos
primeiro que analisar o fato do dever ser. Não é suficiente apenas aceitar o dever ser de todas as
normas como um dado básico do direito, ou supô-lo como uma qualidade, não mais definida, da
experiência fática. Pode-se, ainda, indagar quanto ao sentido do dever ser, ou mais precisamente: quanto à sua função. O que afirma
esse símbolo do dever ser? Qual o significado de que experiências e principalmente expectativas sejam experimentadas com essa
qualidade do dever ser? Sob quais circunstâncias que essa qualificação é escolhida, e para quê? Quais temas
são assim reforçados? E quais os comportamentos daí decorrentes?
198
178
pela existência de organismos humanos) estabelece a separação de
personalidades e sistemas sociais enquanto estruturas distintas de
assimilação da experiência, permitindo também o destaque da
psicologia e da sociologia – mas o ‘material’ que constitui esses
sistemas é o mesmo. Tão-só a indagação quanto à função de
determinadas experiências ou ações com respeito à personalidade
(ou uma determinada personalidade individual) caracteriza uma
pesquisa como psicológica, ou seja, a partir da sua indagação e de
determinadas premissas estruturais. No caso contrário, classifica-se
a experiência e a ação no campo da sociologia quando tematizadas
no contexto funcional e estrutural de sistemas sociais199. (grifo
nosso)
A formação do direito pode ser relacionada com a necessidade
de ordenamento como base de suas estruturas e processos elementares.
As questões pertinentes a esses mecanismos e sua superação estão
vinculadas ao fato de que “a relação do homem com o mundo é
constituída de forma sensitiva”200.
As construções sistêmicas são decorrências de um elevado
grau da complexidade dos problemas dos processos da experiência
sensorial e da ação. Neste contexto, Luhmann fraciona a pesquisa quanto
à formação do direito sob um prisma sociológico, fazendo a seguinte
abordagem:
199
200
LUHMANN. Op. cit., p. 43-44.
LUHMANN. Op. cit., p. 44.
179
Inicialmente (1) tentaremos captar a problemática do convívio
humano sensorialmente orientado, através dos conceitos da
contingência e da complexidade, tentando também mostrar como
a sobrecarga aí localizada é atenuada pela formação de estruturas
de expectativas. Isso também ocorre (2) através da diferenciação
entre
estruturas
cognitivas
e
normativas
de
expectativas,
dependendo se no caso de desapontamento está prevista sua
assimilação ou não. Expectativas normativas são mantidas
apesar da não satisfação. Daí seus problemas e suas condições de
estabilização
estarem
vinculados
(3)
ao
ajustamento
de
desapontamentos, que assegura a estabilidade no tempo, no sentido
de estabelecer as condições de continuidade de expectativas. Ao
lado dessas condições temporais é necessário considerar as
condições sociais e materiais da generalização de expectativas. As
primeiras
(4)
são
discutidas
no
contexto
do
tema
da
institucionalização, e as segundas (5) no da identificação de
complexões de expectativas. Tão-só a partir dessas pesquisas
prévias será possível (6) definir e descrever a função do direito
como congruente, ou seja, com generalização de estruturas de
expectativas coerentes em todas as dimensões. Com relação a essa
função (7) pode ser esclarecido em que medida o direito depende
do poder físico sob diferentes condições sócio-estruturais...”.201
(grifo nosso)
Esta pesquisa é orientada no sentido de colocar em questão a
efetividade e segurança jurisdicional no campo do processo de execução,
considerando o processualismo científico e a crise dos paradigmas da
pós-modernidade.
201
LUHMANN. Op. cit., p. 44-45.
180
É admitida a possibilidade do estudo daquele problema a partir
das idéias de Luhmann, partindo dos conceitos de complexidade,
contingência e expectativa de expectativas.
Assim, complexidade quer referir ao fato de que “sempre
existem mais possibilidades do que se pode realizar”202, uma vez que a
capacidade de percepção, assimilação de informação, e ação atual e
consciente do Homem é limitada. Embora o mundo para o Homem seja
dado por suas experiências sensoriais, este mesmo mundo não está
limitado pelo Homem através de suas experiências. Há, então, um espaço
entre o mundo das experiências humanas e o “todo” do mundo.
A contingência é entendida como “o fato de que as
possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser
diferentes das esperadas;”203 desse modo existem possibilidades de ação
diversas daquelas escolhidas em determinado momento diante de certas
circunstâncias.
A complexidade vincula-se à necessidade de escolhas
através de seleções e a contingência significa o perigo de
desapontamentos e a necessidade de assumir riscos.
Esta situação dá origem a estruturas que absorvem e controlam
o duplo problema que é a complexidade e a contingência visando a
202
203
LUHMANN. . Op. cit., p. 45.
Ibidem, p. 45.
181
assimilação
da
experiência.
Neste
quadro,
há
premissas
da
experimentação e do comportamento que são selecionadas para a
constituição de sistemas haja vista que possibilitam bons resultados no
processo seletivo, estabilizando as possibilidades de desapontamentos
por garantir certo grau de independência da experimentação diante das
instabilidades surgidas em virtude de impressões momentâneas,
impulsos instintivos, excitações e satisfações.
As premissas da experimentação facilitam o permanente
processo de seleção conseqüente da complexidade que, por sua vez, está
relacionada a um horizonte de possibilidades ampliado e mais rico em
alternativas.
O processo seletivo é desenvolvido a determinados níveis em
que ocorre a substituição das comprovações e das satisfações imediatas
por técnicas de abstração de regras úteis para a seleção de formas
adequadas de experimentação e de auto-certificação. O efeito da seleção
neste estágio é percebido por criar e estabilizar as expectativas com
relação ao mundo circundante.
Na assimilação de experiências, a complexidade e a
contingência se revelam como estruturas imobilizadas do mesmo modo
que o mundo. As formas de seleção indicam o sentido o qual pode ter
sua identidade apreendida “com coisas, homens, eventos, símbolos,
182
palavras, conceitos, normas”204. As expectativas são fundadas nas
possibilidades decorrentes da seleção e, portanto, do sentido que seja
apreendido.
Os sentidos que podem ser atribuídos por um Homem não
esgotam todas as possibilidades, sendo que outros Homens podem ter
assimilações de experiências e ações originais205. Essas realidades se
comunicam e se integram, logo, as possibilidades de cada indivíduo
podem ser também as de todos os indivíduos. Este intercâmbio de
perspectivas, representadas pelas possibilidades de cada indivíduo se
inter-relacionando, ampliam os horizontes do Homem (eu) com uma
redução considerável de tempo. Dessa forma, é assegurado o aumento da
seletividade imediata da percepção.
O aumento da seletividade imediata da percepção, contudo,
tem, como conseqüência, a potenciação do risco através da elevação da
contingência simples206 do campo da percepção ao nível da dupla
contingência
do
mundo
social.
Isto
implica
diretamente
no
reconhecimento do alter-ego sob o prisma da igualdade quanto a
liberdade de ação e ao mundo complexo e contingente em que se vive.
204
Ibidem, p. 46.
Ibidem, p. 46. Nesse mundo complexo, contingente, mas mesmo assim estruturalmente
conjecturável existem, além dos demais sentidos possíveis, outros homens que se inserem no campo
de minha visão como um ‘alter ego’, como fontes eu-idênticas da experimentação e da ação originais.
206
Ibidem. p. 47. Frente à contingência simples erigem-se estruturas estabilizadas de expectativas,
mais ou menos imunes a desapontamentos – colocando as perspectivas de que à noite segue-se o dia,
que amanhã a casa ainda estará de pé, que a colheita está garantida, que as crianças crescerão ...
205
183
Nesse contexto, verifica-se o perigo dos desapontamentos. A
inconfiabilidade é o resultado extremado da absorção de perspectivas
estranhas.
A dupla contingência opera com estruturas de expectativas
complicadas e condicionadas, pois é verificada na dupla relevância da
experimentação e da ação. Dessa forma, considera-se o nível das
expectativas imediatas de comportamento na satisfação ou no
desapontamento daquilo que se espera do outro, e os termos de avaliação
do significado do comportamento próprio em relação à expectativa do
outro.
O comportamento do outro é indeterminado, somente podendo
ser expectado diante das possibilidades da seleção, logo, as expectativas
devem considerar igualmente o comportamento e as próprias
expectativas do outro, uma vez que sejam desejadas soluções integráveis
e confiáveis no controle da complexão de interações sociais.
Da integração entre os níveis das expectativas imediatas de
comportamentos (satisfação/insatisfação) e os termos de avaliação do
significado do comportamento próprio em relação à expectativa do
outro é localizada a função normativa – o direito.
184
A questão das expectativas das expectativas ocorre em
diversos planos porque em um sistema social sempre poderá ser
identificada a expectativa de alguém em relação a outrem207.
Há duas alternativas para resolver o problema das expectativas
das expectativas decorrentes da dupla contingência, podendo ocorrer
através da adaptação social da reflexidade das expectativas208 e através
da criação de “reduções, simplificações e abrandamentos” da
complexidade.
As reduções de complexidade são adequadas e necessárias
diante da crescente complexidade e do acúmulo de situações problema
nos sistemas sociais.
É importante ressaltar que a complexidade e a referência
mútua das expectativas têm como efeitos a elevação da complexidade e
dos riscos de erros. Por isso as simplificações, através da redução da
complexidade, são imprescindíveis na busca de orientação e na
imunização contra os riscos de erros. Assim, as simplificações devem
cumprir uma função estruturalizante.
207
Ibidem. p. 50. O fato de que as expectativas se sobrepõem, formando conjuntos imperscrutáveis de
rejeições, pode ter sua raiz na causalidade dos contatos humanos. A função da complexidade dessas
estruturas é a de aumentar a complexidade dos sistemas físicos e sociais, aumentar o âmbito das
experiências e da ação expectáveis de forma a adequar-se a um mundo complexo, com múltiplas
situações e exigências instáveis. (grifos nossos)
208
Ibidem, p. 50. A adaptação social da reflexidade das expectativas ainda pode ser possível em
sistemas sociais pequenos e constantes, em famílias e grupos de amigos, nas faculdades tradicionais o
u em pequenas unidades militares.
185
A redução da complexidade nos sistemas psíquicos é tratada
como uma questão interna ao sujeito, ou seja, com referência às suas
próprias condições de interação, o que significa a capacidade de interagir
com os comportamentos do outro, assim como, com as expectativas
pessoais quanto a isso, e também quanto às expectativas que o outro
sujeito
pode
desenvolver.
Dessa
forma,
as
esquematizações
interpretativas flexíveis são eficientes no controle dos riscos de erros em
relação a expectativa fática e ao comportamento do outro209, portanto,
criando as imunizações.
A equivalência funcional entre a autocaracterização e as
caracterizações do outro é o produto da imunização. A equivalência
funcional visa à satisfação de necessidades psíquicas. Nos sistemas
psíquicos, espera-se que as expectativas entre os sujeitos fortaleçam a
identidade do próprio sistema210.
Embora seja pertinente mencionar, ainda que de forma
suscinta, como é operacionalizado o sistema psíquico sob o prisma
autopoiético luhmaniano, a finalidade desta abordagem é restrita ao fato
209
Ibidem, p. 51. ... Tais expectativas sobre expectativas podem, com o auxílio de esquematizações
altamente flexíveis, ser praticamente imunizadas contra a refutação através da expectativa fática e do
comportamento do outro. ... (grifos nossos)
210
Ibidem, p. 51. ... Na medida em que essa imunização dê resultado, produz-se, para a satisfação de
necessidades psíquicas, a equivalência funcional entre a auto-caracterização e as caracterizações do
outro: tanto faz perceber a si mesmo ou ao outro como agressivo, por ambos os caminhos chega-se à
descarga (ab-reação) das tensões psíquicas através do comportamento inamistoso. ... Evidentemente o
grau de proximidade à realidade das assimilações projetivas da experimentação está fortemente
relacionado à amplitude, à riqueza em alternativas, à capacidade de abstração, ou seja à complexidade
do sistema psíquico correspondente. (grifos nossos)
186
de que o mundo circundante sistemicamente observado está, segundo
esta concepção, vinculado ao sistema psíquico e ao sistema sociológico,
através dos processos de comunicação.
Os sistemas sociais estabilizam expectativas objetivas que
orientam as pessoas através de generalizações que criam sínteses
regulativas do sentido, as quais constituem a sua função. Assim,
evidencia-se a afirmação de que “Toda convivência humana é direta ou
indiretamente cunhada pelo direito”211
A função normativa do sistema social não é bem
compreendida quando é enfocada apenas na visão da expectativa
comportamental, o que leva a colocar a questão da segurança
exclusivamente na garantia do comportamento de acordo com as
expectativas.
Para Luhmann, a compreensão do direito depende da
assimilação de que sua função está centrada “no plano reflexivo da
expectativa sobre expectativas, criando aqui segurança em termos de
expectativas, à qual se segue, apenas secundariamente, a segurança sobre
o comportamento próprio e a previsibilidade do comportamento
alheio”212.
211
212
Ibidem, p. 7.
Ibidem, p.52.
187
Nesse contexto, a diferença entre a expectativa da garantia do
comportamento e a expectativa da expectativa revela-se fundamental,
sobretudo, porque comumente realiza-se a inversão desses pólos,
enfocando-se a questão da função normativa do sistema social na
garantia de se obter os comportamentos esperados. Dessa forma, a
questão da segurança jurídica é desfocada e sua referência elementar
deixa de ser as expectativas das expectativas.
Observa-se que as regras ou sínteses comportamentais
anonimizadas funcionam como espécies de fórmulas curtas simbólicas
para a integração de expectativas concretas. Assim, são reduzidos ou
controlados os riscos de erros da expectativa, porque as divergências
entre os comportamentos e as regras ocorrem no plano da ação alheia
errônea213.
Sobressalta a situação inversa, partindo-se da experimentação
e do comportamento fático e sabendo-se que as regras nem sempre são
cumpridas. Isto está associado a fato relativo às condições para esperar
expectativas ou expectativas de expectativas, em termos fáticos.
A partir da não-realização das expectativas se torna admissível
a rediscussão da regra, retornando ao nível em que se procura a
213
Ibidem, p. 53. A orientação a partir da regra dispensa a orientação a partir das expectativas. Ela
absorve, além disso, o risco de erros da expectativa, ou pelo menos o reduz, isso porque, graças à
regra, pode ser suposto que aquele que diverge age erradamente, que a discrepância se origina,
portanto, não da expectativa própria, mas da ação (alheia) errada. Nessa medida a regra alivia a
consciência no contexto da complexidade da contingência.
188
adequação concreta em termos de expectativas. Desse processo resulta
um entendimento mútuo que fornece as bases para um comportamento
que altere, modifique ou transcrida a norma, ocorrendo a flexibilidade da
estrutura normativa. A questão da mudança das estruturas normativas
está relacionada com a vigência da norma214, uma vez que sua realização
se torna impossível em todos os momentos e para todas as expectativas
de todas as pessoas.
6.2 O DIREITO COMO ESTRUTURA DE SIMPLIFICAÇÃO DA
COMPLEXIDADE
É possível afirmar, com base em Luhmann, que o mundo é
constituído sensorialmente, resultando da percepção como antes
mencionado, um nível da realidade psicológica e outro sociológica. O
ato de selecionar a percepção para atribuir uma referência à realidade é
alguma coisa muito interessante, porque é revelador da função das
estruturas.
Diferentemente daquilo que se possa pressupor, as estruturas
são modeladas para cumprir uma função que está ligada à necessidade de
compreensão e explicação dos fenômenos ou objetos, como preferido.
Assim, em última análise, pode ser afirmado que as estruturas como
214
Ibidem, p. 53. ... a vigência de normas reside em última análise na complexidade e na contingência
do campo da experimentação, onde as reduções exercem sua função.
189
mecanismos de seleção cumprem uma função redutora da complexidade,
na medida em que são criadas para assegurar a descrição de uma
realidade215.
Como mecanismo que cumpre uma função de seleção quanto à
descrição da realidade, visando a uma simplificação do mundo, as
estruturas podem ser entendidas como reducionistas em relação a todas
as hipóteses e situações que desconsideram através do processo seletivo.
Ou seja, para cumprir sua função as estruturas abandonam inúmeras
possibilidades existentes em relação ao “todo”. Com isto, sedimentam
determinadas possibilidades como expectáveis, as quais são susceptíveis
de não realizár-se.
Ao cumprir sua função de seleção, as estruturas criam
expectativas comportamentais e assumem, por conseguinte, o risco do
desapontamento. Por isso, a adequação estrutural está ligada ao problema
do desapontamento. Assim, as estruturas realizam sua função quando
conseguem equilibrar a relação entre uma complexidade sustentável e a
carga suportável de desapontamentos. Pode ser afirmado que as
estruturas para se manter sólidas não podem ignorar os desapontamentos,
logo, sua manutenção fica condicionada a admissibilidade dos riscos.
215
Ibidem, p. 54. Mesmo quando as estruturas são incontestavelmente aceitas na vida cotidiana, e não
são apreendidas como decisões seletivas, a análise sociológica tem que captar, em seu conceito de
estrutura, a seletividade e com isso também o questionamento da auto-evidência de todas as estruturas,
fornecendo assim uma descrição da realidade com um grau de complicação e de riqueza em alternatias
maior que o percebido por aqueles que nela vivem.
190
Há uma relação direta entre a complexidade e os riscos, de
modo que o aumento em um provoca o mesmo efeito no outro, podendo
levar a “um nível insustentável de tensões e problemas de orientação”216.
Essa situação é enfrentada pelo sistema social da sociedade
entendido com referência ao “todo” através da admissibilidade de
possibilidades contrárias de reação a desapontamentos. Isto significa que
a expectativa frustrada diante de uma realidade passa por transformações
para se adaptar. Nesse processo de adequação da expectativa à realidade,
pode ocorrer que ela seja sustentada ou abandonada, sendo substituída
por outra expectativa. No entanto, em qualquer desses casos, a estrutura
será conservada, porque operacionaliza com os riscos e admite aquelas
duas alternativas.
O sistema social sob essa perspectiva admite dois estilos de
expectativas, que serão cognitivas ou normativas217, conforme assimilem
o desapontamento e se adaptem à realidade frustrada, ou não realizem o
processo de absorção do desapontamento, conservando a expectativa e
criando mecanismos para exigir a sua realização218.
216
Ibidem, p. 55.
Ibidem, p. 56. Ao nível cognitivo são experimentadas e tratadas as expectativas que, no caso
de desapontamentos, são adaptadas à realidade. Nas expectativas normativas ocorre o
contrário: elas não são abandonadas se alguém as transgride. ... as expectativas cognitivas são
caracterizadas por uma nem sempre consciente disposição de assimilação em termos de
aprendizado, e as expectativas normativas, ao contrário, caracterizam-se pela determinação em
não assimilar os desapontamentos. (grifos nossos)
218
Ibidem, p. 56. ... a diferenciação entre o cognitivo e o normativo não é definida em termos
semânticos ou pragmáticos, nem referenciada aos sistemas afirmativos que as fundamentam ou à
contradição entre afirmações informativas e diretivas – mas sim em termos funcionais, tendo em vista
a solução de um determinado problema. Ela aponta para o tipo de antecipação da absorção de
217
191
A não-ocorrência da expectativa estruturalmente selecionada
gera o desapontamento219. Esta questão se revela absolutamente
fundamental, pois o problema enfocado gravita em torno do
desapontamento do jurisdicionado em relação à segurança e efetividade
da prestação jurisdicional220.
Sob o prisma da constituição das expectativas, a sua satisfação
ou não é irrelevante, porque, como já referido, ela operacionaliza
admitindo os riscos do desapontamento, baseando-se, portanto, em
“processos de neutralização simbólica”221.
desapontamentos, sendo assim capaz de fornecer uma contribuição essencial para o
esclarecimento dos mecanismos elementares de formação do direito. (grifos nossos)
219
Ibidem, p. 55. ... todas as estruturas contêm imanentemente o problema do desapontamento – e isso
não só no sentido de uma insuficiência (temporária) do conhecimento, ou de uma maldade do homem
(que infelizmente sempre volta a se manifestar), mas sim no sentido de uma especificação de
problemas, realizada justamente pela estrutura.
220
Estas são “promessas” não cumpridas pelo processualismo científico, sendo interessante observar
que no Brasil a compreensão do processo sob a ótica do praxismo e do procedimentalismo não chegou
a ser abandonada. Com isto quer-se afirmar que, embora, o Código de Processo Civil de 1973 tenha
adotado uma sistemática de compartimentação dos processos e um rigor característico no tratamento
de cada um dos institutos do procedimento, por questões as mais diversas possíveis, podendo,
mencionar-se uma em especial, qual seja, o fato de que em 1973 o Brasil passava por um momento
histórico marcado pela supressão das liberdades e garantias fundamentais, não houve, por assim dizer,
uma efetivação das novas práticas trazidas pelo Código então promulgado. No momento atual da
história brasileira parece haver consenso quanto ao fato de que o Poder Judiciário, como outras
instituições integrantes do Estado, não usufruíam de plena autonomia e liberdade durante o período da
“ditadura militar iniciada em 1964”.
Dessa forma, a interpretação e a aplicação do Código de Processo Civil de 1973 ficaram
parcialmente prejudicadas, pois, os pressupostos fundamentais da técnica calcada na ciência são a
liberdade e a autonomia, os quais, como antes mencionado, estavam em regime de contenção. Desde
então, tem existido um conjunto de regras baseadas no processualismo científico e, paralelamente, têm
sido adotadas práticas procedimentais incompatíveis com aquelas regras, na medida em que o
“Estado” não demonstrou ao longo deste período o interesse em ver o Poder Judiciário
operacionalizando com os paradigmas da ciência. Um fato mais danoso ainda pode ser verificado ao
observar que no Brasil se tem lançado mão dos aspectos particulares do processualismo científico para
conturbar o procedimento e tornar a prestação jurisdicional mais complexa220. Em conclusão às
observações dos parágrafos anteriores, deve ser afirmado que no Brasil a situação do direito
processual está comprometida por um elevado grau de desapontamento devido à existência de um
evidente descompasso entre as regras procedimentais, os princípios processuais contidos na
Constituição Federal e no Código de Processo Civil e as condutas adotadas pelos profissionais da área
jurídica, sejam advogados, integrantes da magistratura ou membros do ministério público.
221
Ibidem, p. 57.
192
A partir da questão do desapontamento, observa-se que “as
normas são expectativas de comportamento estabilizadas em termos
contrafáticos”222. Isto quer dizer que não há uma relação direta entre
fatos e normas.
O sentido da norma tem como implicação ou conseqüência que
sua vigência não é condicionada à sua satisfação fática. A vigência da
norma é institucionalizada. O símbolo do dever-ser expressa
principalmente a expectativa dessa vigência independente da realização
fática da norma. Não se discute a satisfação fática ou não da norma.
O sentido e a função do dever-ser, por conseguinte estão
vinculados à vigência da norma que, por sua vez, não está condicionada
à satisfação fática ou não das expectativas que o dever-ser expressa. O
sentido do dever-ser orientado de modo independente quanto à sua
realização fática ou não, não é menos fático que o sentido do ser223. Pode
concluir-se que o fático abrange o normativo. Por isso a contraposição
entre o fático e o normativo deve ser abandonada, porque o normativo e
o fático integram igualmente o campo das expectativas.
Não é adequado excluir o dever-ser/normativo do campo das
expectativas. O oposto adequado ao normativo é o cognitivo. A opção
coerente entre o cognitivo e o normativo se relaciona com a maneira que
222
LUHMANN, p. 57.
193
é tratada a questão do desapontamento. Assim, a compreensão a respeito
da função da diferenciação entre o cognitivo e o normativo está no fato
de que criam duas estratégias diferentes, mas com funções equivalentes
para resolver o problema do desapontamento.
Estas estratégias são a assimilação ou não-assimilação do
desapontamento. Embora estas sejam orientações contrárias, preenchem
a mesma função, qual seja, resolver o problema do desapontamento.
A diferenciação entre o normativo e o cognitivo não deve
traduzir uma oposição à priori entre ser e dever-ser. A função dessa
diferenciação está ligada à necessidade de adaptação e continuidade após
o desapontamento.
As expectativas cognitivas e normativas interagem para
assegurar duas estratégias diferentes, mas funcionalmente equivalentes
diante do desapontamento. Dessa forma, a partir de orientações
contrárias pode ser realizada a mesma função, encontrando-se aí a
possibilidade do sucesso na superação do desapontamento.
A partir da diferenciação entre as expectativas cognitivas e
normativas, a sociedade pode resolver o problema do desapontamento
através da adaptação à realidade ou da manutenção das expectativas.
Poderão ser institucionalizadas expectativas comportamentais através da
223
Toda expectativa é um fato, seja esta satisfeita ou não. Realizado ou não o comportamento
expectado, a expectativa não deixa de ser um fato.
194
adaptação da expectativa à realidade da ação, assim como poderão ser
articuladas as expectativas ao nível normativo tendo em vista fatores
ligados à segurança e à integração social das expectativas.
Essa dupla estratégia reduz o risco dos desapontamentos em
todas as estruturas. O risco, neste caso, é localizado na forma de
encaminhamento
dos
problemas.
Assim, a
complexidade
e
a
contingência se tornam sustentáveis.
Com a crescente complexidade da sociedade, crescem os
riscos estruturais, que devem ser prevenidos através de uma maior
diferenciação entre as expectativas cognitivas e as normativas. A esse
respeito, observa-se que a diferenciação entre o cognitivo e o normativo
é uma decorrência do desapontamento. Por sua vez, o nível dos riscos
dos desapontamentos fica controlado através do encaminhamento do
problema para o nível cognitivo ou normativo. Estes procedimentos
ocorrem simultaneamente, através do desencadeamento que atende a
uma ordem a qual pode ser descrita da seguinte forma:
Expectativa constituída no sistema social → desapontamento
→ encaminhamento do problema → expectativa cognitiva ou
expectativa normativa → redução dos riscos estruturais em face da
assimilação ou não da frustração quanto à expectativa.
195
O quadro ilustra as situações corriqueiras, nas quais as
estruturas são mantidas a partir de decisões a posteriori em relação às
expectativas e ao risco e problema dos desapontamentos. Luhmann
constata quê, mesmo após este procedimento, as expectativas podem
permanecer no campo do desapontamento, pois não há garantias de que
o encaminhamento do problema resulte como esperado.
Nessa situação e diante dos casos em que seja inviável
abdicar-se da expectativa pelo impacto que isto possa representar sobre
as realidades constituídas, surge o Direito como um mecanismo
simplificador da complexidade e redutor da contingência, porque, como
estrutura normativa a priori, ele estabiliza um nível de expectativas que
deverão ser realizadas, ficando os sujeitos de direitos vinculados ao seu
cumprimento, através da autorização legal224 concedida ao interessado
para exigir do Estado a intervenção naquela situação a fim de assegurar,
ainda que através da coerção, a realização daquela expectativa
assimilada pelo Direito.
Há casos em que a diferenciação entre o nível cognitivo e
normativo é inviável diante da especificidade das expectativas
comportamentais, formando-se uma unidade coesa a qual não é captada
224
TELLES JÚNIOR, Goffredo. Direito Quântico, p. 268. A norma jurídica se define: imperativo
autorizante. Ela é um imperativo por que é um mandamento. E é autorizante porque autoriza a reação
contra a ação que a viola.
196
pelo Direito225. Surgem construções alternativas para resolver o
problema dos desapontamentos em relação àquelas situações nãoevidentes. Assim é utilizado o critério da determinação a priori como
forma de diferenciar o nível cognitivo do nível normativo, decidindo de
antemão sobre a manutenção ou o abandono das expectativas
desapontadas226. Há riscos elevados nesses casos, o que exige estratégias
para sua minimização, o que é obtido através de um momento estranho
ao
estilo
da
expectativa
se
introduzindo
a
possibilidade
do
comportamento oposto. “A solução do problema reside na admissão de
uma contradição, que deve persistir como tal, de forma latente.”227
No caso das expectativas cognitivas esta contradição consiste
em que não há uma imediata e necessária adaptação ao desapontamento,
mas, pelo contrário, através da referência a hipóteses adicionais e de
explicações oficiais é mantida a expectativa e o desapontamento é
interpretado como228 uma exceção.
225
Ibidem, p. 60. Nos casos crassos de repetidas transgressões graves, opta-se tipicamente pela saída
da declaração do ator desapontador como doente mental, excluindo-o assim da comunidade dos
sujeitos humanos, suas experimentações, suas expectativas e suas visões mundo. Isso demonstra que
transgressões às expectativas nessa esfera freqüentemente são tratadas como transgressões à verdade,
como incapacidade para reconhecer o mundo – um sistema nítido de que não se diferencia os estilos
cognitivo e normativo das expectativas.
226
Ibidem, p.62. É tão-somente nessa esfera das expectativas não auto-evidentes que surge uma
diferenciação entre expectativas cognitivas e normativas, essa diferenciação como que substitui a
auto-evidência.
227
Ibidem, p.63.
228
Ibidem, p. 63. O esquema regra/exceção, a concepção de desdobramentos normais e irregulares, e
ainda a construção de uma complicada visão de mundo, sustentada por hipóteses básicas abstratas e
quase irrefutável, garantem um alto grau de imunização perante desapontamentos também no caso de
expectativas cognitivas.
197
Esta situação é verificada nos casos em que a expectativa
cognitiva é estruturalmente central.
As expectativas normativas por sua vez podem assimilar
aspectos da realidade quando o desapontamento for reiterado e referir-se
a aspectos periféricos da estrutura normativa.229
Admitidas essas contradições através das quais ora as
expectativas cognitivas interagem com a realidade, preservando o padrão
de comportamento expectado, através da admissibilidade de exceções;
ora as expectativas normativas flexibilizam admitindo a assimilação de
comportamentos diversos daqueles esperados, tem-se os casos atípicos
ou irregulares, que são eficazes no controle das situações de risco de
desapontamentos, assegurando, através de estratégias funcionalmente
equivalentes, o controle da complexidade.
Desta forma o padrão normal ou de regularidade dos
comportamentos em relação às expectativas cognitivas ou normativas
realizam o controle dos riscos por meio da admissibilidade da
contradição através da utilização de comportamentos contrários àqueles
expectados como normais, ou seja, a não assimilação do desapontamento
229
Ibidem, p. 63. ... a elasticidade da formulação de algumas normas permite procedimentos
adaptativos – por exemplo no caso do tão discutido aperfeiçoamento da legislação através da
jurisprudência. Existe, portanto, mesmo no direito, uma assimilação apócrifa, e nas sociedades
muito complexas com direito positivo temos até mesmo mudanças legais do direito, assimilação
legitimada. (grifos nossos)
198
pela expectativa cognitiva e a aceitação de um comportamento diverso
daquele a priori exigido através da expectativa normativa.
Identificados os estilos cognitivo e normativo quanto aos
comportamentos expectados são aceitas contradições como um recurso
no controle dos riscos estruturais diante da alta complexidade e da
necessidade da superação dos desapontamentos para garantir e preservar
o sistema.
Pode ser afirmado que são constituídos três modos de
combinação entre as expectativas visando à minimização dos riscos
estruturais e a superação dos desapontamentos. Até aqui foi tratada da
questão do entremeamento indiferenciado e da subordinação de
possibilidades contrárias. Um terceiro modo de combinação entre as
expectativas se refere às expectativas sobre expectativas as quais foram
abordadas de forma geral no item 6.1.1, deste capítulo.
6.3 REFLEXIVIDADE ENTRE EXPECTATIVAS COGNITIVAS E
NORMATIVAS
A compreensão sobre a formação e a função do direito sob a
perspectiva luhmaniana é centrada na reflexividade entre expectativas, as
quais no, campo sociológico, poderão ser cognitivas ou normativas.
Para Luhmann, é na questão da expectativa sobre expectativas que é
199
criada a idéia de segurança, entendida como controle dos riscos
quanto aos desapontamentos.
Assim, a questão que envolve os comportamentos em relação
às expectativas normativas e cognitivas, no que se refere ao
desapontamento será abordada quanto à possibilidade de se ter
expectativas sobre expectativas. Nesse sentido, são estabelecidos elos
entre estilos opostos, “formando cadeias de expectativas, que acomodam
ao mesmo tempo possibilidades de assimilação e possibilidades de nãoassimilação”230.
O quadro ilustra como determinada expectativa pode
corresponder ou não àquela expectativa que o sujeito tem em relação ao
que se espera dele.
Cognitivo ↔ cognitivo
Cognitivo ↔ normativo
Normativo ↔ cognitivo
Normativo ↔ normativo
Neste caso, observa-se a existência de quatro possibilidades
em virtude da dupla reflexividade (cognitivo/normativo), sendo que o
número de possibilidades cresce conforme a freqüência da reflexividade.
230
Ibidem, p. 64.
200
A reflexividade se relaciona com a reciprocidade das
expectativas dos comportamentos dos sujeitos. Assim, as expectativas,
sejam elas normativas ou cognitivas, de X em relação a Z criam
determinadas expectativas (cognitivas/normativas) de Z em relação às
próprias expectativas que X tem em relação ao seu comportamento. Dizse, então, que as expectativas (cognitivas/normativas) de Z em relação às
expectativas (cognitivas/normativas) que X tem em relação ao seu
comportamento são expectativas sobre expectativas.
A diferenciação entre as expectativas cognitivas e normativas
decorre de uma opção que foi objeto de uma expectativa constituída
através do convívio humano231. Esperar e diferenciar comportamentos
em nível cognitivo ou normativo está relacionado com determinadas
escolhas humanas232 a partir das quais são criadas as expectativas233. “É
só a partir dessa base que podem formar-se expectativas
especializadas no estilo normativo e na sua manutenção, mesmo no
caso de desapontamentos.”234
231
Ibidem, p. 58. A separação entre ser e dever ser, ou entre verdade e direito não é estrutura do
mundo dada a priori, mas uma aquisição da evolução.
232
Há aspectos comportamentais no convívio humano que são considerados evidentes, tendo em
consideração fatores de ordem história e cultural. Poderia mencionar-se o caso do cumprimento
amistoso entre as pessoas conhecidas, praticamente, todos os povos têm o hábito de estabelecer
saudações entre as pessoas ao se encontrarem e ao se despedirem, isto não exige um processo
complexo de diferenciação. Os comportamentos diferentes desse padrão serão considerados
esquisitices ou em casos graves até transtornos mentais. A estrutura de diferenciação entre os estilos
cognitivo e normativo surge para resolver o problema da não-evidenciação entre expectativas.
233
Ibidem, p. 65. Uma diferenciação entre os estilos cognitivo e normativo das expectativas só se
estabelece se a própria opção por um desses estilos é expectável só assim ela torna-se
socialmente regulada, só assim ela pode ser prevista. (grifos nossos)
234
Ibidem, p. 65.
201
As expectativas normativas submetem às regras normativas,
ou seja, se X tem uma expectativa normativa em relação a Z, este
(independentemente de qual seja sua expectativa sobre a expectativa de
X) será submetido à realização do comportamento expectado
normativamente. Nisto consiste a institucionalização da opção pelo estilo
normativo, não haverá a assimilação de um comportamento diferente,
ainda que o sujeito não pretenda submeter-se, serão criados meios para
exigir-lhe aquele comportamento.
A realidade social criada sociologicamente não é estática, pelo
contrário, ela está permanentemente susceptível a mudanças. Igualmente
mutável é a forma de encaminhar os problemas quanto aos estilos das
expectativas. Uma expectativa normativa pode ser encarada pela
comunidade como uma expectativa cognitiva, dependendo da situação de
tempo e lugar. Desse modo, as expectativas sobre as expectativas são
distorcidas para evitar conflitos, “é necessário, nesses casos, que se
espere cognitivamente que os outros esperem normativamente que se
tenha expectativas cognitivas”235.
A necessidade da institucionalização da opção quanto às
expectativas normativas se refere, portanto, aos efeitos em relação ao
convívio humano quanto às escolhas socialmente reguladas como
situações diferenciadas no que tange aos desapontamentos.
202
Relativamente às expectativas cognitivas de expectativas o
ponto central é a assimilação individual do comportamento expectado,
independentemente do aspecto da regulamentação social. Havendo uma
reformulação das expectativas pelos outros membros do grupo, o
indivíduo está em condições de adaptar-se. No caso das expectativas
cognitivas sobre expectativas o indivíduo não estabelece normas, mas
adapta-se às expectativas do grupo236.
Observa-se que através da reflexividade entre expectativas é
operacionalizada a diferenciação entre os estilos cognitivo e normativo.
Nesse processo, é localizada a formação do direito, na medida em que
através da seleção entre expectativas de expectativas vão se constituindo
os padrões possíveis de assimilação e aqueles insusceptíveis de admitirse a adaptação a um comportamento diferenciado daquele expectado de
onde se origina o direito.
O direito em Luhmann é o resultado de um processo de
comunicação237 que ocorre tendo como referências a necessidade da
redução da complexidade e da contingência, o que se verifica através de
235
Ibidem, p. 65.
Ibidem, p. 65. ... por exemplo quando é promulgada uma nova lei, uma decisão jurídica inesperada,
ou quando se alteram os hábitos normatizantes da vida cotidiana, quando a moda muda, a moral se
liberaliza.
237
Ibidem, p. 68. Muitas transgressões às normas são superadas, ou despidas de suas implicações
simbólicas, apenas por serem ignoradas. Isso ocorre tanto nos pequenos contextos, quanto nos mais
abrangentes. Esse ignorar tem em vista não os fatos, mas a norma ele a protege contra informações
discrepantes que a questionam, e protege aquele que se desaponta da obrigação de reagir. Essa
proteção está baseada na circunstância de que as normas se enraízam em comunicações, e não
em fatos.
236
203
estruturas
seletivas
de
expectativas,
as
quais,
por
sua
vez,
operacionalizam com as idéias da assimilação ou não do desapontamento
frente ao comportamento expectado. No primeiro caso, têm-se as
expectativas cognitivas, as quais se situam no plano do interesse
individual e não geram para o sujeito a possibilidade da reação do Estado
no sentido de coagi-lo a adotar o comportamento esperado. As
expectativas normativas, por sua vez, vinculam-se a regulamentação
social, não assimilando os comportamentos divergentes, os quais são
rejeitados, em determinados casos sendo ignorados e, em situações
graves, ensejando a interferência do Estado através da autorização para
que o sujeito desapontado possa exigir o comportamento normatizado.
6.4 O PARADIGMA DA AUTOPOIESE NO PROCESSO DE
EXECUÇÃO
Sem explorar em profundidade a teoria autopoiética em
Luhmann, mas com fundamento em seus conceitos estruturais básicos e
principalmente após ter-se demonstrado que o direito se origina no
processo comunicacional formulado através dos comportamentos
humanos em face dos desapontamentos. Considerando, ainda, que a
função estrutural do direito é a redução da complexidade, podem se
identificados os elementos que traçam o perfil de um novo paradigma
204
para o direito processual e, mais especificamente, para o processo de
execução.
Através do processo seletivo dado em decorrência da
experimentação, referida a análise e observação prática dos fenômenos, e
dos desapontamentos no campo do sistema social foram realizadas
opções quanto a não-assimilação de determinados comportamentos
originando-se daí a regulamentação social e o próprio direito.
Seletivamente, optou-se por um direito como mecanismo de
regulação, pois a ordem constituída impositivamente a partir da
experiência obtida com os desapontamentos gerados pela autodefesa
pode levar à constatação segundo a qual a força como instrumento básico
de organização grupal é insuficiente. Foi admitido um nível de regulação
segundo a expectativa de que alguns elementos do grupo poderiam
representar as mesmas expectativas que o grupo em sua totalidade.
Observa-se que ao longo do processo de consolidação das
relações humanas socialmente até a cristalização do Estado moderno sob
a égide da idéia da soberania nacional e ainda mais recentemente sob o
desenvolvimento da teoria dos Estados comunitários, com a formação
dos blocos de desenvolvimento como ocorre na União Européia, a
complexidade e a contingência foram crescentes e acompanhadas pelos
205
riscos estruturais, o que teve como conseqüência, a elevação dos casos
de desapontamentos quanto às expectativas cognitiva e normativa.
Foi desvelada a expectativa da representação da comunidade
organizada politicamente. É admitida a hipótese de que a representação é
restrita aos grupos que puderam articular-se economicamente na
conquista do poder político. Logo, o poder econômico e o poder político
se tornaram indissociados. Nesse contexto, o direito passou a representar
as expectativas daquela camada da coletividade ascendente ao Poder,
que conquanto economicamente seja mais significativa, numericamente
é menor.
A expectativa da segurança e da efetividade erigida no Século
XVIII representa a opção da burguesia que ascendeu ao poder e criou
estruturas para garantir a manutenção do seu prestígio econômico e
político. O direito assimilou tais idéias, desprestigiando o caráter da
“justiça” como meio para equilibrarem-se as forças que estão em jogo no
cenário social, promovendo o desenvolvimento eqüitativo dos indivíduos
e dos povos.
O direito processual que existe acoplado estruturalmente ao
direito como sistema constituído sociologicamente, durante todas as suas
fases de desenvolvimento, recebeu informações, comunicando-se com os
demais sistemas, como o político e o econômico, aos quais está
206
acoplado. O processo seletivo de expectativas sobre expectativas sob um
prisma cognitivo ou normativo está corrompido, porque foi desarticulado
historicamente o viés que unia os indivíduos integrantes das
coletividades as quais foram se estruturando politicamente até a
concepção dos Estados moderno e contemporâneo.
O direito representa as expectativas normativas daquela faixa da
comunidade que ascendeu ao poder político ou/e econômico. Disso
resulta uma univocidade normativa legal. Por outro lado, há uma
pluralidade de experimentações de normas as quais são consideradas
como desapontamentos causadores de insegurança entre os ascendentes
ao Poder, mas quê, no entanto, são os comportamentos expectados em
relação àquela outra camada politicamente representada de forma
deficiente, na medida em que suas experiências traduzem expectativas
diferentes daquelas constituídas entre os ocupantes dos Poderes
econômico e político.
Com isso não se pretende afirmar que não existam os riscos
estruturais e os desapontamentos. Eles existem em relação a um modelo
funcionalmente fechado, porque este não admite que o processo de
formação do direito é verificado no sistema de experimentação social,
entre expectativas cognitivas e normativas, conforme a assimilação ou
não dos desapontamentos.
207
Através da análise da autopoiese luhmanniana, pode ser
afirmado que os desapontamentos quanto à segurança jurídica na esfera
do processo de execução se restringem às camadas específicas dos
grupos sociais ocupantes dos poderes econômicos e políticos. Esta
afirmação se refere ao fato de que, como já mencionado, a segurança
jurídica se vincula ao controle dos riscos quanto aos desapontamentos,
portanto, estando ligada a segurança econômica e política no sentido que
lhe empregou a burguesia ascendente ao poder com a revolução
industrial e com o iluminismo, ou seja, a garantia da permanência do
status quo vigente238.
Dessa forma, a segurança jurídica está relacionada com a
garantia de retorno do investimento e do capital e com a certeza da
permanência no poder. Caberia ao Pode Judiciário, nestes termos,
assegurar que os bens deslocados para quaisquer fins pudessem retornar
à sua origem ainda com rendimentos. A camada da população que não
dispõe de bens para integrar aquele grupo de investidores (detentores dos
poderes econômico e/ou político) não pode sofrer de fato o
desapontamento da insegurança jurídica, porque não tem a expectativa
quanto à manutenção de uma situação que efetivamente não chegou a
238
No Direito Civil a força vinculativa dos contratos através do pacta sunt servanda é ilustrativa da
importância que foi atribuída a autonomia privada da vontade, como liberdade para contratar e
obrigatoriedade em se executar o contratado.
208
experimentar239. Ressalta-se que não há o objetivo de discutir a questão
referente ao direito quanto ao recebimento, mas, sim, os meios para a
consecução deste.
Questão completamente diversa é a da efetividade
da jurisdição. Neste caso, as expectativas estão sendo desapontadas
entre todas as camadas dos grupos sociais. Identifica-se este problema no
fato de que o direito processual não tem sido estudado como um sistema
autopoiético, levando-se em consideração a questão do acoplamento
estrutural. Tem-se um processo com um bom nível técnico, mas,
demasiadamente oneroso para um Estado endividado interna e
externamente como é o caso do Brasil. Nesse tocante, é desconsiderado o
ambiente econômico em que a técnica é aplicada.
O Estado está consolidando sua estrutura democrática, onde
deve haver a harmonia e independência entre os poderes240. Nem sempre,
contudo, essa estrutura funciona como deveria, podendo ser
identificado um determinado grau de entrelaçamento institucional
entre os Poderes 241, sobretudo, do Poder Executivo em relação aos
239
Quando o setor financeiro, o comércio ou mesmo a indústria atuam assumem riscos que procuram
cobrir com a aplicação de mecanismos de correção. O custo operacional em última análise acaba
sendo rateado entre o consumidor (juros altos) e a sociedade (elevada carga tributária).
240
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 2º. São
Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
241
Ibidem. Art.84 . Compete privativamente ao Presidente da República: XIV – nomear após
aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais
Superiores, ...; XVII – nomear os magistrados, nos casos previstos nesta Constituição, e o AdvogadoGeral da União.
209
poderes Legislativo e Judiciário 242.
Esta situação acaba se reproduzindo nas relações informais
que existem entre os Poderes da República.
Algumas ilações são possíveis a partir daquelas premissas
243
constituídas com referência ao acoplamento estrutural, o Poder Judiciário
não consegue realizar satisfatoriamente a prestação jurisdicional, porque
não há a disponibilidade de recursos econômicos suficientes para
estruturá-lo adequadamente, ampliando as vagas para os cargos de
servidores público, juiz e membro do Ministério Público, bem como
quanto ao aparelhamento físico das instalações e equipamentos
necessários para uma prestação de serviços satisfatórios. Como
mencionado, os procedimentos inerentes ao processo brasileiro são
sofisticados, com um elevado número de formalidades as quais requerem
uma organização mais complexa e, portanto, mais onerosa.
242
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal,. p. 24. No atual
sistema constitucional brasileiro, temos realmente uma Corte Constitucional federal, consubstanciada
no STF, ... Com efeito, em países que possuem tribunais constitucionais, como por exemplo a
Alemanha, esse tribunal é órgão constitucional de todos os Poderes, situando-se no organograma do
Estado ao lado do Executivo, Legislativo e Judiciário, não sendo, portanto, órgão do Poder Judiciário
e nem se situando acima do Poderes Executivo e Legislativo. É formado por pessoas indicadas pelos
Três Poderes, com mandato certo e transitório, vedada a contínua ou posterior recondução. O tribunal
constitucional é, pois, suprapartidário. Nesse país, o Tribunal Federal Constitucional
(Bundesverfassungsgericht - BVerfG), a mais alta corte do país, é composto por duas câmaras com
oito juízes cada uma (§ 2º , BVerfGG). Três juízes de cada câmara, no total, portanto, de seis, devem
ser eleitos dentre os magistrados que integram as mais altas cortes do país (um dos cinco tribunais
superiores) e que tenham estado ativos, no mínimo, por três anos (§ 2º , BVerfGG). O mandato dos
juízes da Corte Constitucional federal alemã é de doze anos.
243
A referência é a aceitação das seguintes afirmações: há uma relação direta entre a tecnicidade do
processo e a sua onerosidade; o Brasil é um país endividado; a democracia brasileira está em fase de
estruturação.
210
Quanto à situação dos custos da viabilização econômica
operacional do processo, duas possíveis alternativas podem contornar o
problema. Ou constitui-se um modelo procedimental simplificado, sob a
ótica da economia, e então, reforma-se o processo, eliminando-se as
formalidades; ou, se investe recursos econômicos em quantidade
suficiente para viabilizar a aplicação eficiente dos procedimentos que
hoje integram o processo.
Pensar um modelo simplificado para o processo, considerando
os custos econômicos de sua realização para os poderes públicos implica
em admitir a alteração de alguns valores que foram prestigiados pelo
positivismo clássico e incorporados pelo processualismo científico.
Dessa forma a natureza jurídica publicística do processo poderia ser
flexibilizada se atribuindo às partes a obrigação quanto à prática de
determinados atos procedimentais. Nesse sentido, pode ser mencionada a
remessa dos atos de comunicação processual, atualmente, estes são da
responsabilidade do Poder Judiciário, através dos servidores oficiais de
justiça, por correspondência com aviso de recebimento, ou através da
publicação nos diários oficiais. Poder-se-ia pensar um sistema
procedimental em que as varas e secretarias dos juízos expedissem os
mandados
de
citação,
intimação,
penhora,
etc.;
cabendo
a
responsabilidade quanto ao seu cumprimento às próprias partes
211
interessadas, estabelecendo-se regras quanto a isto. No mesmo sentido,
se reduzir-se-iam as hipóteses de cabimentos dos recursos. O processo
tem uma trajetória espiralada durante a cognição, indo e vindo concluso
ao juiz a cada requerimento que exija uma decisão interlocutória. Todos
estes atos poderiam ser realizados pelos auxiliares do juízo, escrivão,
escrevente, técnico judiciário, enfim, a remessa ao juiz seria restrita para
as audiências e para a sentença. Estas considerações têm o objetivo de
demonstrar que há alternativas ao modelo vigente.
Há inúmeros aspectos procedimentais que se alterados levaria
a agilização econômica do processo. Deve, contudo, ser avaliado o grau
de riscos estruturais que tais medidas introduziriam quanto às garantias
asseguradas através do processo de natureza publicística, portanto,
realizado no âmbito do Poder Judiciário. A questão da destinação de
verbas orçamentárias em maiores quantidades a fim de investir-se na
melhoria geral quanto aos serviços prestados pelo Poder Judiciário é
extremamente complexa e foge aos propósitos deste trabalho. Deve ser
mencionado, contudo, que o Estado deve priorizar a prestação
jurisdicional porque as democracias se consolidam através das
instituições. Neste sentido, o Poder Judiciário assume uma notável
significação, uma vez que lhe compete precipuamente dar aplicabilidade
212
às leis o que significa que no Estado Democrático de Direito244 a vontade
da lei se concretiza através do juiz245.
É possível argumentar-se que todos os setores das atividades
estatais estão penalizados pela insuficiência de recursos econômicos,
mas sobre tal alegação deve pesar o fato de que a efetividade da
prestação jurisdicional se caracteriza como um interesse público246 ou
geral247 primário na medida em que todos os atos jurídicos se submetem
a apreciação do Poder Judiciário.
O enfretamento quanto ao problema do desapontamento com a
prestação jurisdicional deve ser observada sob a ótica da adoção de
estruturas seletivas de expectativas, as quais reduzam a complexidade e a
contingência. O direito em si mesmo se constitui em uma estrutura de
244
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art.1º..
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 60-61. O
intérprete autêntico completa o trabalho do autor do texto normativo; a finalização desse trabalho pelo
intérprete autêntico, é necessária em razão do próprio caráter da interpretação, que se expressa na
produção de um novo texto sobre aquele primeiro texto. Aqui me permito lembrar que sempre foi
assim independentemente de cogitarmos de ‘criação’ de direito pelo juiz tem de ser assim. ... afirmo a
‘criação’ de direito pelos juízes como conseqüência do próprio processo de interpretação. ... a
interpretação é transformação de uma expressão (o texto) em outra (a norma), sustento que o juiz
‘produz’ o direito.
246
BORGES, Alice Gonzalez. Interesse Público: um conceito a determinar. p. 113. ... em uma ordem
democrática, se relacionam a parte com o todo, isto é, o interesse individual dos cidadãos e o interesse
público (do bem comum, ou interesse geral, ou que outro nome tenha).
247
Ibidem. p. 112. ANDRÉ DEMICHEL prefere, à denominação corrente de interesse público, a de
interesse geral, justificando: ‘O vocábulo público se mostra aqui ambíguo, na medida em que poderia
fazer pensar em um interesse ou uma utilidade próprias do Estado. O termo interesse geral expressa
melhor a idéia, que é do Estado burguês, segundo a qual existe um interesse comum a toda a
sociedade, pelo qual o Estado é o responsável. Para DEMICHEL, a noção de interesse geral – que,
irreverentemente, qualifica de illusion idéologique, a servir de cobertura exata para todas as
finalidades da atuação administrativa e para todas as técnicas jurídicas que ela pode utilizar para
consegui-lo – admite duas concepções possíveis: ou pode ser concebida como um interesse específico
da sociedade, distinto, por sua própria essência, dos interesses particulares; ou, mais modestamente,
como uma arbitragem entre os diversos interesses individuais (este é, entre outros, segundo assinala, o
pensamento de GEORGES VEDEL e o de JEAN RIVERO) (grifos nossos)
245
213
simplificação, a qual, no entanto, em face da elevação da complexidade
da vida contemporânea, exige a adoção de medidas específicas no
âmbito do sistema legal248 a fim de lhe garantir a preservação da
estrutura que se encontra demasiadamente comprometida.
No processo de execução, discute-se a efetividade em termos
pragmáticos e sem maiores preocupações técnicas ou científicas.
Diferentemente em relação ao processo de conhecimento, tem havido um
elevado grau de abstração teórica, sempre com vista às garantias
processuais relacionadas com o devido processo legal.
Em relação à execução, houve aqueles que lhe negaram o
caráter jurisdicional e a autonomia, reservando-lhe um papel
complementar ao processo de conhecimento, este sempre identificado
com o mais alto nível teórico do processualismo249 250.
248
A Lei 9.307/96 (Lei de Arbitragem) representa uma tentativa de introduzir-se no sistema legal uma
alternativa para a redução da sua complexidade crescente. No mesmo sentido foi promulgada a Lei
9.958/2000 a qual criou o Título VI-A da Consolidação das Leis do Trabalho estabelecendo as normas
básicas para a constituição e funcionamento das Comissões de Conciliação Prévia de âmbito
trabalhista.
249
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil, v. 1. p. 221-222. Uma exigência
de ordem me aconselha considerar como rigorosamente distintas a função jurisdicional e a função
processual. A segunda é o genus e a primeira, a species. Nem todo processo implica exercício de
jurisdição, e sim tão apenas aquele cuja finalidade será explicitada no primeiro dos capítulos em que
este título se divide. Especialmente, é processo, e não jurisdição, a execução forçada. ... O
processo executivo e, em geral, os outros tipos de processo permaneceram até ontem mesmo na
sombra, e desse modo a noção de jurisdição absorveu integralmente a noção do processo. Mas se a
história impõe à ciência seus fatos, não deve lhe impor nem as idéias nem as palavras. Apenas assim pode-se avançar na ciência. A
sinonímia entre função processual e função jurisdicional implica uma imperfeição da linguagem e do pensamento, que a ciência do
processo deve corrigir, se a primeira exigência de seu progresso é a pureza dos conceitos e a propriedade dos vocábulos. (grifos nossos)
250
Ibidem. p. 289. ... elementares considerações para mostrar, desde já, o conteúdo diverso e, quase diríamos, a diversa matéria do
processo jurisdicional e do processo executivo. Não seria temerário sublinhar esta diferença por meio da antítese
entre a razão e a força: na realidade, aquela é um instrumento do processo jurisdicional e esta, o do processo executivo. Destarte,
compreende-se também a subordinação normal do segundo ao primeiro até que não se tenha estabelecido a razão, não deve
ser usada a força. Mas se compreende, por sua vez, a necessidade do processo executivo junto ao processo jurisdicional,
para assegurar a ordem jurídica: se a razão não serve por si só, terá que usar a força. (grifos nossos)
214
Apesar das construções teóricas no sentido de evidenciar que o
processo de execução é autônomo e tem caráter jurisdicional, portanto,
estando integrado à teoria geral do processo no Brasil, verifica-se uma
tendência a localizar e restringir o desapontamento com a efetividade da
prestação jurisdicional nos procedimentos inerentes à execução. Desse
modo, não são considerados nos estudos que visam às reformas
processuais os aspectos da complexidade e contingência, bem como do
acoplamento estrutural do processo em relação ao processo de
conhecimento, ou mesmo, relativamente à teoria geral do processo.
Deve ser mencionado que a crítica ao reformismo processual
não se localiza nas iniciativas em si mesmas, mas na ausência de
referências claras quanto às expectativas normativas, aqui identificadas
aos valores que devem presidir o modelo da prestação jurisdicional no
Brasil, assim como os objetivos almejados com a configuração desse
novo modelo. Sabe-se que a resposta imediata está vinculada às idéias da
efetividade sob a orientação da simplicidade e celeridade na entrega do
bem da vida ao jurisdicionado251. Não se considera, contudo, adequado
que o sistema legal seja modificado estruturalmente, sem que sejam
identificadas as causas reais dos problemas que lhe são afetos.
251
CHIOVENDA, Giuseppe.. Instituições de Direito Processual Civil., v. 1. p. 67. A vontade da lei
tende a realizar-se no domínio dos fatos até as extremas conseqüências praticamente e juridicamente
possíveis. Por conseguinte, o processo deve dar, quanto for possível praticamente, a quem tenha
um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir. (grifos nossos)
215
Entende-se igualmente que seja fundamental a discussão
prévia sobre os meios utilizados para controlar os riscos estruturais
decorrentes dos desapontamentos. Somente dessa forma se acredita que
possa ser produzido um resultado efetivo quanto à redução da
complexidade e contingência, com a conseqüente produção dos efeitos
esperados quanto à efetividade da prestação jurisdicional.
O funcional estruturalismo de Niklas Luhmann, sintetizado na
teoria autopoiética dos sistemas sociais oferece uma alternativa
metodológica viável para o estudo e análise dos problemas referentes à
insatisfação dos jurisdicionados quanto aos resultados obtidos através da
prestação
jurisdicional.
Verifica-se
que,
através
dos
sistemas
autopoiéticos, podem ser abordados os aspectos intrínsecos e extrínsecos
do objeto de estudo, no caso, é possível, sem distorções, avaliar o
processo de execução em relação às questões que não estão vinculadas
diretamente ao direito processual, mas que afetam drasticamente a
entrega da prestação jurisdicional.
216
7 PANORÂMICA HISTÓRICA DO DIREITO PROCESSUAL
Os estudos a respeito da constituição histórica do direito
processual estão ligados a duas questões prévias que são a identificação
quanto ao momento do seu surgimento em relação ao direito material e o
reconhecimento da autodefesa como método de solução dos conflitos.
Ao afirmar-se que a história do direito se confunde com a
história do próprio Homem na terra, o que se pretende é mencionar a
existência pré-histórica das regras de conduta ou de alguma possível
técnica de pacificação de conflitos? A resposta a este questionamento
leva à tomada de posição quanto ao reconhecimento ou não da existência
de um direito primitivo entre os grupos humanos que não dominavam
nenhuma forma de escrita.
Ao associar-se a história do direito ao surgimento de uma
escrita melhor elaborada na mesopotâmia252 253,é possível admitir que as
formas de resolução dos conflitos lhe precedem, e, portanto, com
referência a este posicionamento se entende que seja adequado
252
WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. p. 35. ... o processo de
invenção e consolidação da escrita possui estreita ligação com o surgimento das cidades e das
modificações que a revolução urbana acabou por trazer). Isso porque, se forem desconsideradas
formas muito pouco evoluídas de inscrição – como, por exemplo, puras representações pictográficas
ou fichas de argila com indicações de mera quantidade -, é também na Mesopotâmia que se
manifesta a primeira escrita mais complexa, com um maior número de sinais com aspectos
ideográficos e fonéticos: a escrita cuneiforme. (grifos nossos)
253
Ibidem. p. 35-36. ... a escrita cuneiforme surge na região da Baixa Mesopotâmia, por volta de 3100
a. C.
217
reconhecer que o “direito processual” surgiu antes do direito material. Se
de outro modo, a compreensão quanto ao reconhecimento da existência
do direito se der no campo da antropologia, entendendo-se que a vontade
individual que não tenha sido objeto de nenhuma regulamentação ou
registro possa ser assimilada como direito, então se torna possível
admitir a existência do “direito material” antes da autodefesa, a qual
visaria à tutela daquele.
As controvérsias a respeito do momento histórico do
surgimento das técnicas de pacificação dos conflitos está também
relacionada com a admissibilidade da autodefesa como método de
solução de conflitos. Convencionou-se, entre os processualistas, que há
três fases ou etapas de desenvolvimento do direito processual: a
autodefesa, a autocomposição e a heterocomposição.
A partir de uma ótica contemporânea pode parecer estranho
que a força pudesse ser o elemento de equilíbrio e estabilidade entre
grupos humanos primitivos, de modo que as necessidades divergentes
entre seus integrantes se resolvessem pela capacidade da imposição da
vontade individual através da força. Tal fato, contudo, tem pertinência
com um contexto histórico onde a vida humana se desenvolvia de uma
forma rudimentar e praticamente selvagem. Naquele momento não havia
sequer o mais remoto vestígio de organização institucional.
218
Acredita-se que, durante todo o processo de constituição e
desenvolvimento da história da humanidade, houve formas de
pacificação entre os conflitos dos membros dos grupos societais. Ainda
que não houvesse sido criada uma simbologia que codificasse uma forma
de transmissão das experiências254 e, posteriormente, autênticos signos
lingüísticos255, as divergências sempre tiveram algum modo de ser
resolvidas. Somente assim tornou-se possível a agregação dos grupos e a
constituição de regras comportamentais exigíveis entre seus membros.
A utilização da palavra direito no contexto primitivo das
organizações dos grupos humanos parece inadequada, uma vez que sua
conceituação básica pressupõe a existência de um conjunto de regras de
conduta incidentes sob determinados indivíduos.
Pretende-se afirmar que não sendo possível ignorar os
antecedentes antropológicos e históricos da humanidade, a autodefesa
precede o reconhecimento de qualquer regra imposta a um grupamento
de indivíduos. Sob uma perspectiva conceitual do direito, a escrita lhe é
fundamental, e neste caso, as primeiras regras escritas tinham caráter
material, visando a ordenação das condutas dos indivíduos.
254
NOVA Enciclopédia Barsa, v. 5. p. 480. Na pré-história, o homem serviu-se de diversos meios de
expressão, mas nenhum deles se destinava a representar a linguagem verbal.
255
Ibidem. p. 480. A invenção da escrita realizou-se de várias maneiras, em momentos distintos e em
diversos pontos do mundo, e correspondeu sempre a necessidades da civilização urbana, em
sociedades dotadas de unidades fabris relativamente desenvolvidas, comércio ativo e estado
organizado.
219
O direito como é reconhecido atualmente não existiu em
sociedades primitivas sob a forma material ou processual256. É inegável,
no entanto, que em todos os momentos históricos houve a assimilação e
a transmissão de costumes através da fala e de desenhos, assim como a
pacificação dos conflitos257. Apenas pela ausência de uma denominação
apropriada e específica estas práticas podem ser chamadas de direito,
acredita-se que melhor é considerá-las como antecedentes históricos e
antropológicos do direito258.
Considerando que, somente a partir do final do Século XIX ou
início do Século XX, foram realizadas as escavações antropológicas259
que permitiram um dimensionamento mais concreto sobre os modos de
vida das sociedades primitiva e antiga é correto afirmar que os estudos a
256
WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Cap. 1. O direito nas
sociedades primitivas. Antonio Carlos Wolkmer. p. 23. Esse direito antigo, tanto no Oriente quanto no
Ocidente, na explicação de H. Summer Maine, não diferenciava, na essência, a mescla de prescrições
civis, religiosas e morais. Somente em tempos mais avançados da civilização é que se começa a
distinguir o direito da moral e a religião do direito. Certamente, de todos os povos antigos, foi com os
romanos que o direito avançou para uma autonomia diante da religião e da moral.
257
Ibidem, p. 20. ... ainda que prevaleça uma consensualidade sobre o fato de que os primeiros textos
jurídicos estejam associados ao aparecimento da escrita, não se pode considerar a presença de um
direito entre povos que possuíam formas organização social e política primitivas sem o conhecimento
da escrita. Autores como John Gilissen questionam a própria expressão “direito primitivo”, aludindo
que o “direito arcaico” tem um alcance mais abrangente para contemplar múltiplas sociedades que
passaram por uma evolução social, política e jurídica bem avançada, mas que não chegaram a dominar
a técnica da escrita. Assim sendo, as inúmeras investigações científicas têm apurado que as
práticas legais de sociedades sem escrita assumem características, por vezes, primitivas, por
outras, expressam um certo nível de desenvolvimento. (grifos nossos)
258
Ibidem. p. 24. Por último, Gilissen chama atenção par o fato de que os direitos primitivos são
“direitos em nascimento”, ou seja, ainda não ocorreu uma diferenciação efetiva entre o que é jurídico
do que não é jurídico.
259
Ibidem. p. 43. Há que se ponderar, de imediato, que o estudo do direito das sociedades préclássicas representa um campo relativamente novo na história do direito. Muitas das descobertas
fundamentais, no terreno da arqueologia, são posteriores ao início do século XX. As principais
expedições foram enviadas à Mesopotâmia e ao Egito nos anos 20: as célebres escavações em Ur
lideradas por Wooley (1922-1929) e a descoberta e catalogação dos tesouros da tumba de
Tutankhamon, efetuadas por Carter, no Vale dos Reis (1922-1924).
220
esse respeito se pautam em parte em constatações obtidas através da
arqueologia e, em parte, decorrem do processo de abstração da
historiografia260. Pode questionar-se a precisão e cientificidade desses
dados, mas não a ocorrência de fatos que culminaram com a formação da
sociedade261 e do direito.
Sob o ponto de vista da superação da fase da pré-história, a
criação e o desenvolvimento da escrita são fundamentais para o direito.
O avanço do direito grego e, sobretudo, o período do legislador Sólon
(594-593 a.C.) representam o marco do reconhecimento da existência de
regras com caráter instrumental.
Sólon262 é considerado um dos melhores legisladores de
Atenas, sendo, ainda, reconhecido como um dos fundadores da
democracia e um dos sete sábios da Grécia. É fundamental mencionar
que foi o autor de um código de leis que alterou profundamente aspectos
institucional, social e econômico em Atenas. Destaca-se a proibição da
escravidão por dívida e a libertação dos escravos por esta mesma causa.
260
DICIONÁRIO Brasileiro da Língua Portuguesa, p. 931. Historiografia. s. f. (historio + grafo + ia).
1. Arte de escrever a História. 2. Estudos críticos acerca da História. (grifos nossos)
261
WOLKMER. Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Cap. 1. O direito nas
sociedades primitivas. Antonio Carlos Wolkmer. p. 29. Não há comprovações científicas de que a
legalidade acompanhou e refletiu os diversos estágios das sociedades primitivas de acordo com a
premissa evolucionista.
262
NOVA Enciclopédia Barsa, v. 13. p. 346-347. Sólon nasceu em Atenas no ano 640 a.C. De família
nobre empobrecida, dedicou-se na mocidade ao comércio, mas ganhou notoriedade ao liderar os
atenienses, em 600 a. C., na tomada da ilha de Salamina, que se encontrava sob o domínio de Mégara.
Chegou ao poder num período em que Atenas era dominada por uma aristocracia hereditária, cujos
integrantes recebiam o nome de eupátridas. Estes possuíam as melhores terras e monopolizavam o
poder que suscitava rivalidade entre facções, com violentas lutas políticas. ... morreu em 560 a.C.
221
Foi eliminada a hipoteca sobre pessoas e bens. Criou quatro
classes sociais divididas de acordo com os impostos pagos, sendo que os
tetas, embora fossem isentos do pagamento dos impostos, tinham alguns
direitos, como a participação na assembléia e no tribunal populares.
O que mais chama a atenção na legislação de Sólon é o fato de
ter criado regras com conteúdo instrumental como o direito de apelo aos
tribunais e a possibilidade de reclamar em nome dos injustiçados.
Na Grécia, também pode ser identificada as origens de um
processo judicial263, com a criação da arbitragem privada264 e pública265,
e o surgimento de profissionais da área jurídica, como o advogado, o
que, no entanto, ocorreu em um período avançado de sua história. A
Grécia e, principalmente, Atenas tiveram um direito evoluído, tendo
influenciado o direito romano e alguns institutos atuais, como o júri
popular266.
O direito grego e o direito romano constituem as fontes
históricas antigas mais importantes para o direito ocidental. Os fatos
263
WOLKMER. Op. cit.,cap. 3. O direito grego antigo. Raquel de Souza. p. 78. Embora os gregos não
estabelecessem diferença explícita entre direito privado e público, civil e penal, é no direito processual
que se encontra uma diferenciação quanto à forma de mover uma ação: a ação pública (graphé) e a
ação privada (diké ).
264
Ibidem. p. 77-78. A arbitragem privada era um meio alternativo mais simples e mais rápido,
realizado fora do tribunal, de se resolver um litígio, sendo arranjada pelas partes envolvidas que
escolhiam o árbitro (ou árbitros) entre pessoas conhecidas e de confiança. Nesse caso o árbitro (ou
árbitros) não emitia um julgamento, mas procurava obter um acordo, ou conciliação, entre as partes.
265
Ibidem. p. 78. ... a arbitragem pública visava a reduzir a carga dos dikastas, sendo utilizada nos
estágios preliminares do processo de alguns tipos de ações legais. Nesse caso, o árbitro era designado
pelo magistrado e tinha como principal característica a emissão de um julgamento, correspondendo á
moderna arbitragem.
266
Ibidem. p. 91.
222
relacionados com a preferência dos gregos pela retórica da persuasão e
questões de ordens geográfica e militar, possibilitaram uma maior
influência do direito romano na formação dos institutos do direito
contemporâneo267.
7.1 AUTODEFESA, AUTOCOMPOSIÇÃO E HETEROCOMPOSIÇÃO
A existência humana é embasada na convivência da qual
decorrem relações que podem ser amistosas ou não. Quando as relações
entre os indivíduos são conflituosas, observa-se a necessidade de
resolver as questões que geraram a divergência. A primeira forma para
compor os interesses conflituosos entre os indivíduos ocorreu através da
autodefesa268, sendo que, neste caso, o sujeito ou o grupo mais forte
impunha sua vontade ou interesse àqueles que divergissem. Dessa forma,
era resolvido o problema e restabelecida a paz entre os elementos do
grupo.
267
WOLKMER. Op. cit. p., , 30. ... três fatores adicionais contribuíram para o direito grego não
ocupar a importância que merece. Primeiro, o desenvolvimento da escrita e a publicação de textos em
material durável aconteceu paralelamente à evolução da sociedade grega e do direito. Em segundo
lugar, a obstinação dos gregos em não aceitar a profissionalização do direito, sendo bem apropriadas
as palavras de Robert J. Bonner: “Tivessem os advogados sido livres para falar pelo litigante como o
logógrafo estava, Atenas teria rapidamente desenvolvido um corpo de peritos legais comprável ao
juris consulti romano ou aos modernos advogados”.
268
ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo, p. 12. Formada do prefixo auto (próprio)
e do substantivo defesa, equivale a “defesa própria” ou “defesa por si mesmo”. Se fosse entendida
literalmente, ficariam de fora da autodefesa na poucas manifestações que na mesma se incluem, como
a legítima defesa de terceiro e o estado de necessidade.
223
Considerando-se o objetivo fundamental do processo, qual seja
a garantia da paz no ambiente social, restabelecendo-se o equilíbrio entre
os membros do grupo, ou entre grupos distintos, o modelo da força bruta,
imposta pela autodefesa, é admitido como a primeira “técnica” de
composição de conflitos. A solução é encontrada entre os próprios
contendores, não existindo a figura do juiz, logo, o conflito se resolvia
através da imposição da vontade de uma das partes à outra269.
A formação histórica não é linear, desse modo, não é possível
estabelecer um momento cronologicamente preciso quando teria se
encerrado o predomínio da autodefesa e se constituído outras formas de
pacificação social. De fato, contemporaneamente, ainda subsistem casos
em que a autodefesa é admitida270. Este modelo é considerado imperfeito
porque a idéia de justiça está ligada a um tipo de solução imparcial, o
que faz pressupor uma solução extrapartes271.
269
CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Romano Moderno, p. 278. No início, os primitivos romanos,
como inúmeros outros povos, fazem justiça com as próprias mãos, defendendo o direito pela força.
Dessa fase de vingança privada, que se dirige contra o autor do dano, passam os romanos por várias,
até que, num alto estágio de progresso, o Estado toma a seu cargo a tarefa de resolver os litígios entre
particulares.
270
BRASIL. Código Civil (2002). Artigo 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em
caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de
ser molestado. § 1º. O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua
própria força, contanto que o faça logo os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do
indispensável à manutenção, ou restituição da posse. (grifo nosso)
Lei no 7.783/1989. Dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades essenciais, regula
o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências.
271
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil, v. p. 373. A conclusão da
investigação até agora levada a termo pode se resumir nesta fórmula: o processo se desenvolve para a
composição justa do litígio. “Paz com justiça” poderia ser, dessa fórmula, o lema do Direito processual.
Nem paz sem justiça, nem justiça sem paz. Nada de paz sem justiça porque o processo, como se viu, não tende a compor o litígio de
qualquer modo, e sim segundo o Direito. Nada de justiça sem paz porque o Direito não se aplica ou não se realiza por quem está em
conflito, e sim por quem está sob o conflito: supra partes, não inter partes a fim de compor um litígio e não
de tutelar um interesse.
224
A autocomposição se refere à situação em que os indivíduos
ou grupos de indivíduos interessados na celebração da paz ante um
conflito estabelecem condições em que a mesma se realiza sem o
emprego da força material. Essa situação pode decorrer de concessões
mútuas ou do reconhecimento de uma das partes quanto à inviabilidade
de sua pretensão em face da outra, seja pela ameaça da imposição da
força, ou pelo reconhecimento espontâneo do direito alheio. Dessa
forma, podem ser identificadas três formas de autocomposição, que são a
transação, a submissão ou a renúncia272.
Não há uma separação demarcada no tempo entre os períodos
em que era aplicada a autodefesa e a autocomposição, admite-se, no
entanto, que este modelo seja mais adequado à realização dos fins do
processo que aquele. Entre o “tudo” ou “nada” da autodefesa, a
autocomposição representa uma evolução considerável, pois as
expectativas se renovam e se refazem a cada momento diante dos fatos
da vida e, mais particularmente, no caso das relações entre os indivíduos.
A autodefesa pressupõe um quadro estático, enquanto a autocomposição
operacionaliza com a dinâmica da realidade.
Uma melhor assimilação, e conseqüente compreensão das
relações entre os indivíduos, levou a autocomposição e criou as
condições para a heterocomposição.
272
ALVIM. Op. cit., p.15.
225
A constituição de um modelo em que as partes se subordinam
a uma decisão imparcial tomada por um terceiro alheio aos seus
interesses representa um importante marco no evolver histórico, o qual
se encontra ainda em fase de desenvolvimento273.
Sob a ótica da heterocomposição, o direito material
encontrava-se em um estágio de relativo desenvolvimento. É pertinente
mencionar que a arbitragem é um antecedente do modelo do processo
jurisdicional. Pode ser afirmado que a arbitragem privada converteu-se
na moderna mediação274. A arbitragem pública teria propiciado as
origens da arbitragem atual e do processo jurisdicional275.
Coube aos gregos estabelecer, primeiramente, a diferenciação
entre as leis material e processual.
Como já mencionado, Sólon estabeleceu leis com nítido
caráter instrumental276.
273
CARNELUTTI. Op. cit. p., , , 47. Se, na fase atual de evolução de nossos estudos, a teoria geral
estivesse já solidariamente elaborada, e se com respeito a ela tivesse intervindo também o princípio da
divisão do trabalho, que funciona de modo eficiente entre a ciência e a história, a introdução poder-seia limitar, em boa parte, em extrair conseqüências de premissas já estabelecidas e o professor de
Direito processual, em lugar de fazer teoria geral, poderia apoiar-se nos resultados do trabalho alheio.
Mas não é assim. Este trabalho da rota de nossa ciência encontra-se ainda em construção; nele
trabalham pouco, e sem muita ordem, quase todos os cultores das ciências jurídicas específicas, que
têm forças para elevar-se até sua altura.
274
WOLKMER. Op. cit. p., 78.
275
ALVIM. Op. cit., p. 17. De facultativa, a arbitragem, pelas vantagens que oferece, torna-se
obrigatória, e, com o arbitramento obrigatório, surge o processo, como última etapa na evolução dos
métodos compositivos do litígio.
276
WOLKMER. Op. cit. p., , 76-77.
226
Considera-se que a lei das XII Tábuas foi elaborada por uma
comissão de magistrados277 278que para tanto estudaram as leis de Sólon.
Não é pacífica a doutrina quanto ao número de membros integrantes da
comissão.
A Tábua III expressamente se referia ao processo tratando da
execução em caso de confissão por dívida. Estabelecia a regra segundo a
qual, após a condenação, o devedor teria 30 dias para pagar, se não o
fizesse seria preso e levado à presença do magistrado, caso em que se
permanecesse inadimplente sofreria penalidades que iriam desde a prisão
a ferros de 15 libras aos pés até à escravização e a pena de morte279.
As primeiras manifestações no sentido de se obter a realização
da justiça se deram através de um regime privado, sendo que os
indivíduos deviam proceder de modo razoável segundo os costumes
estabelecidos entre os membros do grupo ao qual estavam integrados,
não se identificando, neste período, normas de conduta originadas de
uma organização central.
277
WOLKMER. Op. cit. p., 127. A Lei das XII Tábuas foi elaborada por uma comissão de três
magistrados ...;
278
LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias, p. 45. No período
republicano redige-se a Lei das XII Tábuas, por volta de 450 a.C. Fruto das lutas políticas internas,
resulta de uma conquista dos plebeus a lei pretende reduzir a escrito (lex, de lego, ler?) as disposições
e mandamentos que antes eram guardados pelos patrícios e pontífices. ... Conta a tradição que no meio
das lutas entre patrícios e plebeus foi escolhida uma comissão de dez homens (Decemviri) que foram a
Atenas estudar a legislação de Sólon para aprender sua técnica.
279
WOLKMER. Op. cit. p., 128. Isto se explica porque nesse período a Realeza vivia situação
precária, só depois o erário romano se enriqueceu com os saques (pilhagens de outros povos). Sérvio
Túlio, sexto rei, institui a estatística: tudo era cadastrado e os censores vasculhavam cada canto do
reino à procura de riqueza para pagar impostos e ampliar as receitas.
227
Com o aumento dos contingentes populacionais, criação e
organização das cidades, estruturação de organismos centralizadores do
poder, as relações entre os indivíduos gradualmente tornaram-se
complexas e exigiram como condição para o desenvolvimento da
humanidade a constituição de regras/normas de caráter público, ou seja,
foram criadas leis que ordenavam as condutas dos grupos, as quais eram
emanadas da autoridade detentora do poder280.
Dessa forma, surgiu um regime de justiça pública em princípio
aplicada por chefes tribais e, posteriormente, por magistrados e juízes
vinculados às estruturas do poder281.
É importante destacar que não se passou do regime da justiça
privada para o regime da justiça pública. Houve um período em que estes
regimes existiam simultaneamente como foi o caso em Roma.
Embora o direito na Grécia e, sobretudo, em Atenas tenha se
desenvolvido a ponto de ser fonte inspiradora para o direito romano, os
historiadores do direito são unânimes em reconhecer que, em virtude da
280
WOLKMER. Op. cit. p., 73. À medida que as cidades aumentavam em tamanho e complexidade,
reconheciam a necessidade de um conjunto oficial de leis escritas, publicamente divulgadas, para
confirmar sua autoridade e impor a ordem na vida de seus cidadãos.
281
PRATA, Edson. História do Processo Civil e sua projeção no direito moderno, p. 60. Dois sistemas
de direito processual vigoraram em Roma: a) – sistema da justiça privada (“ordo judiciarum
privatorum”), que se inicia com a fundação da cidade, em 754, e vai até 342 d.C.. b) – sistema da
justiça pública (“extraordinária cognitia” ou “cognitia extra ordinem”), que vigora entre 342 d. C. a
568 d. C. (morte de Justiniano).
228
escassa documentação do direito grego282 e em contrapartida a existência
de boa documentação do direito romano, tornou-se freqüente reconhecer
uma maior importância a este em detrimento daquele.
No que se refere aos estudos de processo, o direito em Roma
inicia sua história com a acción real, e desenvolve modelos
procedimentais através da legis actiones, das per formulas e da cognitio
extraordinaria. Há uma seqüência cronológica entre cada um destes
sistemas procedimentais na mesma ordem em que são apresentados.
7.2 PROCESSO ROMANO
Os romanos se notabilizaram na estruturação de regras
procedimentais para assegurar a aplicação do direito, nesse sentido,
chegaram a delinear a autonomia do direito processual em relação ao
direito material, bem como a natureza jurídica publicística do processo.
O direito em Roma inicia seu processo de formação por volta
de 753 a.C., quando após os etruscos subjugarem os povos do antigo
Lácio com a derrota da Liga Setimonial e da Liga Albana, “fundaram”
282
WOLKMER. Op. cit. p., 75. Os gregos não elaboraram tratados sobre o direito, limitando-se
apenas à tarefa de legislar (criação das leis) e administrar a justiça pela resolução de conflitos (direito
processual). ... Com o direito grego aconteceu um processo diferente do tratamento dispensado à
filosofia, literatura e história. Enquanto estes foram copiados, recopiados e constantemente citados,
nada se fez com relação às leis gregas, não havendo compilações, cópias, comentários, mas
pouquíssimas citações.
229
ou “dominaram” a cidade de Roma283. Embora não haja consenso quanto
ao papel dos etruscos em relação à cidade de Roma, a história do
Império Romano se inicia sob a dominação daquele povo284.
São identificadas quatro fases históricas de organização
política do Império Romano que são o período da Realeza
(aproximadamente 753 a.C. até 510 a.C.), o período da República (510
a.C. até 27 a.C), o período do Principado (27 a.C. até 285 d. C.) e o
período do Baixo Império (285 até 585 d. C.). A divisão dessas fases ou
períodos está vinculada à forma de organização social, jurídica e política
de Roma285.
Durante o período da Realeza, as regras de processo estiveram
vinculadas à vontade do Rei286 que exercia seus poderes em nome dos
Deuses.
283
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano, v. 1. p. 7-8. Vários autores defendem a tese de que
foram os etruscos que a fundaram. Os povos do antigo Lácio, para melhor resistir a seus inimigos,
agrupavam-se em ligas, das quais a mais importante foi a Albana. Entre as demais, figurava a
Setimonial, formada por sete núcleos de população instalados nos montes Palatino, Esquilino e Célio.
No meado do século VIII a. C., a liga Setimonial foi derrotada pelos etruscos, que, posteriormente,
fundaram a cidade de Roma, em duas etapas. ... A opinião dominante, porém, é a de que Roma não
foi fundada pelos etruscos, mas, sim, pelas próprias populações do Lácio. Isso se procura demonstrar
com o fato de que as mais antigas instituições romanas têm denominações de origem latina, como, por
exemplo, rex, tribus, magister, cúria. Roma, portanto, já existia quando os etruscos a subjugaram.
284
ALVES, José Carlos Moreira. Op. cit. p., 7. O certo, porém, é que os etruscos – nação altamente
civilizada para a época – exerceram grande influência sobre os primitivos romanos.
285
LOPES. José Reinaldo de Lima. O Direito na história. p. 43. Em grandes linhas, Roma conheceu
também três grandes “regimes constitucionais”, com longas e freqüentes crises. A realeza ou
monarquia vai desde a fundação (753 a..C.) até a expulsão dos Tarquínios (509 A.C.), quando a sua
autonomia com relação aos etruscos fica praticamente consolidada. ... A República vai de 509 a.C. até
27 a.C., início do Império, pelo principado de Augusto. O Império divide-se em duas grandes partes: o
Principado, de Augusto (27 a.C.) até Diocleciano (284 d. C.) e o Dominato, de Diocleciano até o
desaparecimento do império.
286
CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Romano Moderno, p. 278. Segundo a tradição romana, a
justiça civil nos primeiros tempos era distribuída pelos reis, que julgavam as divergências entre
particulares, as lides (lites), o que teria ocorrido até mais ou menos a implantação da República.
230
Nesse contexto, podem ser identificadas regras procedimentais
na acción real que foi denominada sacramentum, porque no período da
Realeza, o Estado romano era teocrático, de modo que o rei era um
magistrado único, vitalício e suas decisões tinham caráter sagrado e
decorriam de costumes locais287 adotados segundo a interpretação dos
pontífices.
A acción real consistia em uma ação através da qual era
reivindicado o direito sobre determinada coisa. Essa reclamação sobre a
posse de um determinado bem era realizado diante do sacerdote ou
pontífice que, nesse caso, assumia os papéis de autoridade religiosa e
“jurisdicional”. Não havia um conjunto organizado de regras
procedimentais de caráter público que orientassem o sacerdote na
aplicação da “justiça”. O procedimento se baseava na condução do réu
pelo próprio autor à presença do pontífice que ouvia o juramento e
determinava o depósito da coisa ou da aposta288 até que se decidisse
sobre o direito alegado. Caso não houve por parte do réu a prova da
287
WOLKMER. Op. cit. p., 124.
PRATA, Edson. História do processo civil e sua projeção no direito moderno, p. 63. Consiste numa
aposta, “no simulacro de um combate, após o recitativo de palavras rigorosamente ritualísticas, que o
magistrado interromperá para a tomada de um juramento, ou aposta, a qual se considerará perdida em
favor do culto (“ad sacra publica”) primitivamente, depois do Tesouro público, pela parte que cair em
perjúrio, tal como o aure o árbitro, na fase “aud judicem” (J.M. OTHON SIDOU, em “A vocação
publiscística do Procedimento Romano”. Editora Câmbio, Recife, 1955, página 70); A aposta gira em
torno das quantias entre 50 e 500 asses; As quantias apostadas eram entregues ao pontífice mais tarde,
apenas se prometia pagar a aposta perante ao pretor (após a Lei das XII Tábuas). Alguns romanistas
afirmam eu as partes simplesmente garantiam o pagamento da aposta, mediante caução ou
apresentação de fiadores, chamados então “praedes sacramenti”.
288
231
inexistência do direito do autor ou a restituição do bem ou de coisa
equivalente, aquele sofreria pessoalmente a execução.
Até 450 a.C., quando foi criada a Lei das XII Tábuas,
tornando-se possível o estudo do processo com base em dados concretos.
Há dificuldades na pesquisa a respeito dos detalhamentos sobre os
procedimentos que eram aplicados para a realização da justiça.
Na primeira fase da Realeza, o Rei era a suprema autoridade e
praticava o direito dos deuses de acordo com a interpretação dos
costumes segundo os Pontífices. A partir de 450 a. C., surgem regras
mais claras, iniciando-se o sistema da ordo judiciarum privatorum289,
durante o qual foram desenvolvidos dois modelos procedimentais
distintos, quais sejam, o da legis actiones290 e o per formulam291.
Entre 342 e 585 d.C., vigorou, em Roma, o sistema da justiça
pública através dos procedimentos da cognitio extraordinária.
As datas apresentadas têm um caráter aproximado e uma
finalidade didática a fim de se organizar cronologicamente os fatos no
contexto histórico.
Ressalta-se o fato de que houve um entrelaçamento entre os
períodos que foram se sucedendo, de modo que os diferentes sistemas
289
Sistema da justiça privada.
Período das ações da lei. Aproximadamente 450 a.C. até 149 a.C. Fase da República.
291
Período formulário ou das Fórmulas da Lei. 123 ou 149 a.C até 342 d. C. Somente se tornou
obrigatório a partir de 17 a.C. Fases da República, do Principado e na primeira fase do Baixo Império.
290
232
coexistiam, havendo, contudo, o predomínio de um modelo sobre os
demais, o que imprimiu as características de cada procedimento do
processo romano.
7.2.1 Sistema da justiça privada ou da ordo judiciarum privatorum
De acordo com o modelo da justiça privada, o Estado não tinha
a obrigação de realizar a “justiça”, cabendo aos particulares interessados
em resolver suas divergências e providenciar os meios a fim de assegurar
o resultado pretendido. Nessa situação, havia apenas a idéia da
manifestação do direito por parte do magistrado, sendo que a produção
dos efeitos práticos decorrentes de sua decisão ficava a cargo do autor.
No sistema da justiça privada o procedimento se divide em
duas fases, que são, in iure e in iudicio. A fase in iure se desenvolve
diante de um magistrado que representa o Estado romano e ao qual
competia receber a ação, a qual sendo aceita levava à segunda fase; ius,
nesse caso significa tribunal. A fase in iudicio ou apud iudicem se
processa diante de um iudex que é o juiz ou árbitro o qual não mantinha
vínculos com o Estado, ou seja, tratava-se de um particular que recebia
as provas e proferia a decisão.
233
Foram constituídos dois sistemas jurídicos distintos, mas que
se processavam de acordo com o modelo privado, assim houve o período
das legis actiones (ações da lei) e o período das per formulas
(formulário).
Durante o sistema privado do direito romano o direito não tem
uma função social, sendo eminentemente individualista e a concepção a
respeito da “justiça” está associada à satisfação do sentimento de
vingança.
7.2.1.1 Ações da Lei ou Legis actiones
Como mencionado anteriormente não é possível estabelecer
com precisão o momento do surgimento do processo das ações da lei,
contudo, após a Lei das XII Tábuas pode ser identificado um conjunto de
procedimentos que modelam o primeiro sistema de processo em Roma.
Com exceção da actio per pignoris capionem292, as ações da
lei eram processadas em duas fases, como ocorria no sistema privado.
Todo o procedimento era oral e extremamente rígido, sendo obrigatória a
292
ALVES, Moreira José Carlos. Op. cit. p., 204. A pignoris capio se distingue das demais legis
actiones, porque ela não se desenrola diante do magistrado (in iure). Por isso, e ainda porque não era
necessária a presença do adversário, e poderia a pignoris capio realizar-se em dias nefastos, alguns
jurisconsultos romanos não viam nela uma legis actio, com o que, porém, outra corrente – seguida por
Gaio – não concorda, porquanto, e isso bastava para caracterizar a pignoris capio como a ação da lei,
eram pronunciadas palavras solenes.
234
observância das palavras e dos gestos solenemente previstos para cada
tipo de ação.
O processo se iniciava com a condução do réu à presença do
magistrado pelo próprio autor que, para tanto, ao lhe encontrar, proferia
os termos solenes de chamamento do réu a juízo293. Havendo a recusa do
réu em acompanhar o autor poderia ser usada a força desde que uma
testemunha acompanhasse a tudo. O réu tinha a faculdade de não
comparecer à presença do magistrado se encontrasse um vindex294.
Diante do magistrado, iniciava-se a fase in iure, onde eram
recitadas as fórmulas solenes e os gestos ritualísticos específicos para
cada ação. Admitida a ação, e confessado pelo réu o direito do autor, ou
não havendo uma defesa adequada, o que deveria obedecer ao mesmo
sistema formal, concretizava-se o direito com a entrega da coisa ao autor,
ou caso se tratasse de direito pessoal ficava resguardado o direito à
proposição da ação de executória295.
Não havendo a confissão do réu, e sendo sua defesa
conveniente, as partes solicitavam ao magistrado que nomeasse um juiz
popular (iudex), que era uma pessoa do povo não representando o
293
ALVES. Moreira José Carlos. Op. cit. p., 194. uerba certa.
ALVES. Moreira José Carlos. Op. cit. p., 94. uindex, ..., alguém que o substituísse, ligando em seu
lugar.
295
ALVES. Moreira José Carlos. Op. cit. p., 195. actio per manus iniectionem.
294
235
.
governo ou o Estado ao praticar a jurisdição , sendo, contudo, eleito
296
pelo senado297.
Diante do iudex, desenvolvia-se a fase apud iudicem, que era
iniciada alguns dias após a nomeação pelo magistrado do juiz popular.
Nesta fase, o procedimento é informal e a presença das partes,
fundamental, sendo que se o réu não comparecesse, seria condenado.
Uma vez presentes as partes, era apresentada a ação (causae coniectio) e,
posteriormente, as razões do pedido e da defesa (causae peroratio). O
procedimento seguia com a apresentação das provas, que não sofriam
restrições uma vez que o juiz não necessitaria de apresentar uma
fundamentação para justificar o seu convencimento.
Superadas essas etapas do procedimento que deveriam se
desenvolver sem solução de continuidade, o juiz proferia uma decisão
que tinha um conteúdo condenatório, determinando o pagamento de uma
quantia ou a restituição de uma coisa ou a realização de uma obrigação
de fazer. Poderia ocorrer o indeferimento da ação quando o réu era
absolvido.
296
ALVES, Moreira José Carlos. Op. cit. p., 186. No direito romano, o conceito de iurisdictio é muito
controvertido, e constitui um problema até hoje não resolvido satisfatoriamente. ... A palavra
iurisdictio deriva de ius dicere, que significa dizer o direito, isto é, declarar, com relação a um caso
concreto e com efeito vinculante para as partes, a vontade da norma jurídica. Ocorre, no entanto, que
esse significado somente se ajusta ao processo extraordinário (cognitio extraordinária), em que o
magistrado – como ocorre atualmente – não apenas conhece do litígio, como também o decide na
sentença, onde declara a vontade da lei. ...
297
PRATA. Edson. Op. cit. p., 61. ... o juiz (“iudex”) ou árbitro (“arbiter”), eleito entre os senadores,
mas pessoa do povo, que não dependia do governo e não o representava quando praticava a jurisdição.
Esses juízes poderiam ser singulares ou coletivos, sendo os mais importantes, dentre estes últimos os
“tres arbitri”, os recuperadores, os decênviros, os centúviros, os “tresviri Capitales”.
236
Após a sentença, terminava a função do juiz, pois este, como
particular escolhido pelas partes, não dispunha de poderes para obrigar
ao cumprimento de sua decisão. Não havendo concordância quanto à
realização da obrigação estabelecida na sentença, caberia ao credor
propor uma nova ação com a finalidade de obter a concretização da
sentença, a qual era irrecorrível.
As ações da lei poderiam ter funções cognitivas, objetivando
uma declaração ou funções executivas. As primeiras eram a Legis actio
per sacramentum, a Judicis postulatio e a Condictio.
As ações executivas eram a Manus injectio e a Pignoris capio.
As ações de execução visavam a assegurar a concretização da situação
jurídica já reconhecida pela lei, pelo costume ou por um juramento,
sendo dirigida contra a pessoa do obrigado, ou seja, a execução era
pessoal e não patrimonial.
Tem sido considerada a mais antiga das ações romanas, a
Legis actio per sacramentum298 que, no início, era a única forma de pedir
perante o magistrado, e que, após a Lei das XII Tábuas, já no sistema
identificado como das Legis actiones, tornou-se uma espécie de ação
comum, no sentido de que poderia ser empregada em qualquer caso que
298
CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 283. As formalidades que cercam a actio per sacramentum são
o símbolo da intervenção da autoridade religiosa e dos magistrados da cidade nas controvérsias entre
particulares.
237
não houvesse uma ação específica. As Legis actio per sacramentum
poderiam ter caráter pessoal (sacramentum in personam) ou real
(sacramentum in rem). O perdedor pagava uma multa ao Estado.
Através da iudicis postulatio, era promovida a divisão da
herança e a cobrança de créditos decorrentes da sponsio. Foi considerada
uma ação especial porque sua finalidade era bastante restrita. Há
divergências quanto ao dever do perdedor de pagar uma pena/multa, pois
autores como José Carlos Moreira Alves299 afirmam que esta não era
devida; enquanto José Cretella Júnior300 menciona o contrário, ou seja,
haveria para o litigante perdedor o dever de indenizar à parte vencedora,
o que seria proporcional ao valor atribuído à ação.
A condictio301 ou per conditionem era mais simplificada e
tinha por finalidade a cobrança de dívidas em dinheiro ou de prestações
de coisa certa. Foi considerada uma ação abstrata, porque o autor não
precisaria fundamentar a origem da obrigação exigida. Pode ser
entendida como uma derivação da Legis actio per sacramentum visando
a fins específicos.
A manus injectio era uma ação de caráter executivo, aplicada
inicialmente para dar efetividade às sentenças proferidas na actio
299
MOREIRA ALVES. Op. cit. p., 200.
Ibidem, p. 285.
301
CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 285. Define-se a condictio como uma intimação em termos
solenes que o demandante dirige ao demandado para que este compareça diante do magistrado, dentro
de 30 dias, para tomar conhecimento da demanda.
300
238
sacramenti, na iudicis postulatio ou na condictio, quando se tratasse de
condenação a pagamento de quantia certa302. Era igualmente cabível
contra aquele que, na fase in iure, confessasse o direito do autor. Esta
ação sofreu consideráveis modificações ao longo da história do processo
romano, passando de uma fase rudimentar por ocasião da Lei das XII
Tábuas a um bom nível de elaboração posteriormente.
No sistema primitivo da manus injectio, o devedor deveria
pagar ou apresentar um uindex303 que se obrigaria “conjuntamente” com
aquele, e ainda, seria obrigado ao pagamento em dobro da dívida
primitiva caso fossem alegados fatos inverídicos quanto à sua obrigação.
Se nenhuma dessas situações ocorresse, o devedor responderia
corporalmente pela obrigação, quando seria aprisionado pelo credor, que
após conduzi-lo por três feiras sucessivas perante o magistrado, no
comitium, e não havendo acordo ou o pagamento, aquele seria morto ou
vendido como escravo no estrangeiro304.
302
ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 202. A manus iniectio somente podia ser utilizada para a
execução de quantia certa. Portanto, quando alguém condenado a restituir alguma coisa, ou a fazer
algo, ou a pagar importância incerta, era preciso que se reduzisse a condenação a quantia certa para
que fosse possível a execução pela manus iniectio. Para isso, parece, utilizava-se de um processo
sobre o qual, em verdade, quase nada sabemos o arbitruim liti aestimandae.
303
ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 202. Para livrar-se da execução, ou o devedor pagava a dívida, ou
apresentava um uindex, isto é, um parente ou um amigo que, em seu lugar, contestasse a legitimidade
do pedido do autor, salientando, por exemplo, eu a sentença condenatória era nula, ou, então, que a
dívida já fora paga.
304
PRATA. Op. cit. p., 64. Não conseguindo fiador, o pretor entregava o devedor ao credor e este o
prendia em casa, até por sessenta (60) dias neste período, o credor levava o devedor ao mercado por
três vezes se não achasse quem lhe pagasse a dívida (amigo ou parente do devedor), podia vendê-lo
como escravo fora de Roma (“Trans Tiberim”), ou matá-lo neste caso, sendo vários os credores,
distribuía-se o corpo do devedor entre os credores.
239
Em uma fase transitória entre o período das Legis actiones e o
período das per formulas praticamente na era clássica do direito romano,
a manus injectio ampliou suas hipóteses de admissibilidade para casos
em que se pretendia a cobrança de crédito a que se referiam
determinadas leis, como a Lei Publilia305 e a Lei Fúria de sponsu306. A
Lei Márcia permitia o emprego da manus iniectio pelo devedor para a
cobrança de juros usuários, sendo interessante mencionar que esta lei em
alguns casos exigia que o devedor declarasse o fundamento do direito
pleiteado307.
Também nessa fase foram se tornando mais brandos os efeitos
corporais da execução, sendo que após a Lei Poetelia Papira de nexix,
datada de aproximadamente 326 a.C., ficou proibida a venda como
escravo e a morte do devedor, porém, poderia o credor conduzi-lo até
sua casa para que pagasse o débito através de seu trabalho.
A Pignoris capio é uma ação de natureza executiva que
apresenta algumas particularidades que a diferenciam das demais Legis
acciones, entre aquelas pode ser mencionado o fato de que seu
procedimento se desenvolve em uma única fase, exclusivamente in
305
ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 203. ... a Lei Publilia concedia ao sponsor (fiador) que tivesse
pago a dívida, manus iniectio contra o devedor principal que não o reembolsasse dentro de seis meses.
306
Ibidem. p. 203. ... a lei Furia de sponsu – na hipótese de haver vários fiadores garantindo o
pagamento de uma dívida, e de o credor cobrar de um deles mais do que a parte a que estava obrigado
– dava ao fiador manus iniectio contra o credor.
307
Dizia-se manus iniectio pura quando o devedor não precisasse fundamentar a origem da obrigação.
Na manus iniectio pro iudicato não havia a necessidade de fundamentação da dívida.
240
iudicio, diante do juiz, a não-obrigatoriedade da presença do executado
durante o processo e sua tramitação em dias nefastos.
Essa ação308 era cabível relativamente aos débitos decorrentes
do soldo, pelo soldado contra o tribunus aierarii; pelo soldado de
cavalaria contra as partes que estavam obrigadas a contribuir para a
compra e a manutenção do cavalo; pelo vendedor de animal destinado a
sacrifício religioso contra o comprador, com relação ao preço; pelo
locador de um animal de carga contra o locatário, desde que este se
destinasse a ser aplicado em sacrifício religioso; e, pelo publicano contra
o contribuinte, com relação ao imposto (uectigal) devido.
Consistia a picnoris capio, basicamente na apreensão de uma
coisa móvel do devedor pelo credor, o qual a mantinha em sua posse, até
o término da ação, com o pagamento do débito ou com o reconhecimento
da inexistência do crédito pelo juiz através de uma sentença.
7.2.1.2 Processo formular ou per formulam
Como mencionado, não houve uma ruptura abrupta entre as
fases de desenvolvimento do processo romano, sendo que o período em
308
CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 286. Pignoris capio (“opero-me do penhor”) é a ação da lei pela
qual o credor, empregando formas especiais (certis verbis), mas sem autorização preliminar do
magistrado, faz a apreensão de objeto pertencente ao devedor e o conserva, como garantia, até que a
dívida seja paga.
241
que vigorou o processo formular se constitui como uma seqüência em
relação ao período das Legis acciones, sendo alterados alguns aspectos
do procedimento a partir da Lex Aebutia que data de aproximadamente
149-126 a.C., a qual foi modificada pela Lex Iulia, em 17 a.C, durante o
principado de Augusto, que tornou o processo formular obrigatório.
Durante o período compreendido entre a promulgação da Lex Aebutia e a
Lex
Iulia
o
processo
formular
era
facultativo,
coexistindo
simultaneamente com as ações da lei.
A predominância do processo formular vai até aproximadamente 342
d.C..
O procedimento das ações ocorria em duas fases, tal como se
verificava no período anterior, logo, a instrução e a sentença
permaneceram como ato de um juiz privado309.
A citação do réu é uma obrigação do autor, que, no entanto,
não mais poderia praticar arbitrariamente atos de violência na condução
do réu. Caso este se recusasse, o autor pedia ao magistrado uma actio in
factum que culminava ao réu uma multa caso não atendesse à citação. Se
ainda assim o réu permanecesse relutante em comparecer à presença do
magistrado, sua recusa seria considerada um delito e punida como tal.
309
ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 207. ... o processo formulário se distingue nitidamente do sistema
das ações da lei pelas seguintes características principais: a) é menos formalista e mais rápido; b) a
fórmula – documento escrito – tira-lhe o caráter estritamente oral de que se revestiam as ações da lei;
c) maior atuação do magistrado no processo; e d) a condenação se torna exclusivamente pecuniária.
242
Fundamentalmente, o que se modifica é o fato de que o
magistrado não mais se limitava a aceitar ou não a ação da lei
proclamada pelo autor310. No processo formular, o autor expunha suas
pretensões de forma simples, dispensando-se as palavras solenes e os
gestos simbólicos, o magistrado poderia criar a ação, ou melhor, a
fórmula311 para entregá-la às partes. Esta criação das fórmulas ocorria
através dos editos dos pretores. Na fase in iure, o magistrado, ao receber
o pedido do autor, verificava se aquele caso poderia ser convertido em
um conflito susceptível de ser julgado pelo juiz312 na fase in iudicio.
Definida a fórmula, as partes firmavam um compromisso
diante de testemunhas: estava caracterizada a lide, portanto, a litis cum
testatio313. A aceitação da fórmula pelos litigantes tinha a natureza de um
contrato judiciário, o qual estabelecia um vínculo entre as partes no
momento em que o autor, diante de testemunhas, lia a fórmula em voz
alta para o réu que concordava e recebia uma cópia.
310
CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 288. O processo formular assinala um momento culminante na
história da vida judiciária romana, porque só agora a figura do pretor se impõe, para resolver com
auxílio da eqüidade os casos concretos, antes submetidos ao frio e desumano rigorismo da
formalidades.
311
LOPES. Op. cit. p., 48-49. A fórmula consistia na designação do juiz (iudex) e no “quesito”. Ela
era, porém, negociada pelas partes perante o pretor: ou seja, as partes discutiam até que se
esclarecesse qual era efetivamente o ponto a ser decidido (uma questão à qual o árbitro/juiz pudesse
responder sim ou não) e o pretor se convencesse de que o ponto era compatível com a proteção
anunciada no edito.
312
LOPES. Op. cit. p., 49. O serviço de juiz ou árbitro (iudex) era um encargo próprio dos cidadãos,
ao qual muitos procuravam escapar, mas que se considerava em geral um ônus compatível com a
honra e o respeito devidos aos cidadãos superiores.
313
CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 290. Litis contestatio define-se, por tanto, como o ato mediante
o qual as partes concordam em submeter a controvérsia, nos termos da fórmula, ao julgamento de um
terceiro.
243
No momento em que se formava a litis contestatio, extinguiase o direito do autor que havia determinado o processo, surgindo um
novo direito que era o de receber em dinheiro, através de uma espécie de
indenização, a reparação pelos danos causados pelo réu, caso este fosse
condenado. Dessa forma, pode afirmar-se que com a litis contestatio
ocorria simultaneamente a extinção e a novação de direitos.
Ao que tudo indica, as fórmulas eram compostas por duas
partes; uma que seria considerada principal ou essencial, sendo idêntica
para todos os casos, por isso considerada rígida, era o caso da institutio
judicis, da intentio314, da demonstratio, da condenatio e da adjudicatio,
em algumas ações315. A parte acessória ou acidental é variável e redigida
de acordo com cada caso, é integrada pela exceptio, praescriptio,
replicatio, duplicatio e da triplicatio. É correto afirmar que a fórmula
equivalia à petição inicial na sistemática de processo atual.
Retomando a questão do edito através do qual se originavam
as fórmulas, é interessante mencionar que os magistrados ou pretores,
utilizando-se de seus poderes de imperium e da honra que lhes era
conferida, promulgavam anualmente normas relativas ao exercício do
seu cargo, estas eram denominadas editos e faziam parte do direito
314
CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 293. A intentio poderia ser in jus e in factum; in rem e in
personam; certa e incerta.
315
ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 212. A adjudictio é a parte da fórmula na qual se permite ao juiz
adjudicar a coisa a algum dos litigantes. Ela somente se encontra nas fórmulas das ações divisórias,
que eram três: a actio familiae erciscundae, a actio communi diuidundo e a actio finium regundorum.
244
pretoriano. Tratava-se o edito de uma proclamação verbal da tribuna, a
qual era escrita através de memoriais. Nos primeiros tempos, o
magistrado não era obrigado a atender o edito, sendo que, após a Lex
Cornelia que data de 67 a.C., as partes passaram a ter poderes para
invocar a subordinação do magistrado ao edito como se este fosse
verdadeiramente uma lei. Se o magistrado ou pretor entendesse que fosse
necessário, poderia proclamar o edito repentino, que visava a alteração
do edito ao longo do ano de sua vigência.
Durante o principado de Adriano, no período compreendido
aproximadamente entre 125-138 d. C., este determinou a Sálvio Juliano
que criasse um regulamento para todos os editos, que é reconhecido
como o edito perpétuo.
Interessante é observar que os efeitos da coisa julgada existiam
nesta fase de desenvolvimento do processo romano, contudo, esta não
decorria da sentença, mas da litis contestatio. Isto se explica porque a
autoridade estatal era do magistrado, portanto, quando este redigia a
fórmula e as partes a aceitavam, tornava-se imutável a ação, ou seja, não
mais seria possível pedir uma nova fórmula para o mesmo caso,
independentemente do resultado do julgamento proferido pelo juiz.
Na fase in iudicem, o juiz era subordinado aos termos da
fórmula, logo, sua função se restringia a propor um acordo entre as
245
partes, averiguar as provas sobre as alegações e responder aos
questionamentos ali contidos. O julgamento consistia em uma decisão do
juiz sobre a existência ou não do direito do autor sempre de acordo com
a fórmula. Sendo condenado o réu, seguia-se o cálculo de um
determinado valor em dinheiro para o pagamento do autor. Desse modo,
a sentença substituía a pretensão originária da ação. Em caso de acordo,
imediatamente se realizava o cálculo, sem a prolação da sentença. Não
havia critérios objetivos para a realização do cálculo, que, portanto,
ficava a cargo do juiz estabelecer.
O sistema probatório foi estruturado paulatinamente, tendo
sido admitidas as provas por testemunhas, confissão, juramento,
documentos, perícias e inspeções oculares. A produção das provas cabia
àquele que alegava o fato a ser provado.
Em princípio, não eram admitidos recursos, contudo, ao longo
do desenvolvimento e estruturação do processo romano, surgiram meios
de discussão da sentença, podendo ser mencionados a intercessio, a
revocatio in duplum e a restitutio in integrum. No período imperial, foi
criado o recurso de apelação da decisão do juiz ao magistrado que
redigia a fórmula. Dessa forma, organizou-se um sistema recursal em
que, posteriormente, recorria-se da decisão do magistrado inferior ao
246
magistrado superior e, assim sucessivamente, até o recurso ao
Imperador. Ressalta-se que a apelação tinha efeito suspensivo.
Após a conclusão do processo, e não sendo cumprida a
sentença pelo réu no prazo de 30 dias, o autor, diretamente, deveria
praticar os atos executivos316 os quais seriam dirigidos contra a pessoa
do devedor317. No processo formular, os atos de execução são
controlados pelo Estado através do magistrado, permanecendo, contudo,
o direito de escravização do devedor para que pagasse com seu trabalho
o débito. O direito de execução da dívida, através da morte do devedor,
tornou-se proibido. Posteriormente, a execução é promovida contra o
patrimônio do devedor318 através da venditio bonorum319. Em uma fase
evoluída e humanizada do processo em Roma, foi criada a Missio in
possessionem, que se tratava de uma ordem dada pelo magistrado/pretor
ao interessado para que tomasse posse de bens do réu ou devedor,
dependendo do caso, a fim de assegurar o cumprimento da sentença.
316
ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 226. Se não a cumprisse, o autor intentava contra ele a actio
iudicati, que, no processo formulário, substituiu a manus iniectio das ações da lei.
317
ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 224. Proferida a sentença, produzida ela os seguintes efeitos: a) se
fosse condenatória, daria ao autor o direito de exigir do réu o pagamento do valor da condenação,
direito esse que era protegido pela actio iudicati (pela qual, como veremos adiante, o autor procederia
à execução da sentença quando o réu não a cumprisse espontaneamente); ...
318
ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 227. Demais, por uma lei Júlia, da época do Imperador Augusto,
permitiu-se que o réu se subtraísse à execução sobre sua pessoa, desde que fizesse a cessio bonorum,
isto é, cedesse todos os seus bens ao autor.
319
ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 227. Quanto à execução sobre os bens do réu (uenditio bonorum),
seu processamento é mais complexo. Segundo tudo indica, a uenditio bonorum foi criada pelo pretor
Públio Rutílio Rufo, em 118 a.C., a princípio apenas contra o iudicatus (réu condenado, que não
cumpre a sentença); mais tarde, foi estendida ao confessus in iure (o que confessava, in iure – diante
do magistrado -, dívida certa em dinheiro, e que, por isso, se equiparava ao iudicatus) e ao indefensus
(o que não se defendia convenientemente).
247
No final do período formulário, havia hipóteses em que o
magistrado poderia diretamente julgar a causa, surgindo, assim, a
decisão extra ordinem320.
Acredita-se que durante o período formulário já seria possível
nortear o fortalecimento da figura do magistrado em relação ao juiz, pois
este exercia um papel restrito, uma vez que a fórmula delimitava as
questões relativas ao processo. A sentença seria objeto de recurso ao
magistrado em casos excepcionais, e havia hipóteses em que os
magistrados poderiam sentenciar.
Aproximadamente em 342 d.C., passou a ser adotado em
Roma como sistema geral o processo público extraordinário, revestido
de particularidades que permitem afirmar a existência de uma terceira
fase do processo em Roma.
7.2.2 Sistema da justiça pública ou da extraodinaria cognitio
Em relação ao processo extra ordinem, é válida a observação
320
ALVES MOREIRA. Op.cit. p. 241. O processo extraordinário surgiu, em Roma, para dirimir
questões de natureza administrativa ou policial. Não se tratando de matéria sujeita à jurisdição cível,
os magistrados, para solucionar esses conflitos, não se atinham às regras do ordo iudiciorum
priuatorum, e, assim, mandavam citar, para comparecer à sua presença, a pessoa contra a qual alguém
se queixara; a ausência do querelado não os impedia de conhecer do litígio e de decidi-lo; não se fazia
mister a elaboração de fórmulas nem a nomeação de iudex privado, pois todo o processo se
desenrolava diante dos magistrados, que afinal, decidiam a lide – enfim, os magistrados poderiam
empregar todos os meios, inclusive de coerção, para prontamente dirimir questões de ordem
administrativa ou policial.
248
segundo a qual não houve uma substituição brusca de uma forma
procedimental por outra. Assim, em relação aos processos que
envolvessem matérias de natureza administrativa ou penal, era adotado
um sistema pelo qual o Imperador conhecia e julgava a ação, portanto,
paralelamente à legis acciones e às fórmulas, vigorava um modelo
procedimental diferenciado, considerado extraordinário, tendo em vista
as causas que envolvessem a jurisdição de natureza pública. 321
A partir do século I d. C., no período do principado, o processo
da cognicio extraordinária começou a ser adotado em hipóteses
especiais relativas a causas de natureza civil ou privada. Estas situações
eram restritas a direitos subjetivos criados pelas constituições imperiais,
constituindo o ius extraordinarium, como era o caso do fideicomisso e as
obrigações alimentares322.
Durante o período de assimilação até a generalização do
processo da cognitio extraordinária, houve uma gradual aplicação desse
sistema nas províncias, para somente mais tarde se tornar obrigatório e
geral em Roma.
Não parece adequado estabelecer uma data precisa a partir da
qual o processo da cognicio extraordinária tenha prevalecido nas causas
321
WOLKMER. Op. cit. p., 403. Quando Justiniano mandou compilar o trabalho dos juristas do
período clássico, o processo e o rito que se refletiram na sua compilação eram típicos da cognitio
extra ordinem. Nesse sentido, o processo romano que sobreviveu até Justiniano muito pouco teve a
ver com o processo formular, origem da literatura jurídica clássica.
322
ALVES Moreira. Op. cit. p., 243.
249
cíveis, contudo, a doutrina tem admitido que a partir do governo de
Diocleciano323 a justiça tenha se tornado pública em Roma, no entanto,
coexistindo com o processo formulário. No ano de 342 d. C., uma
Constituição teria extinto o processo formulário, ocorrendo a
generalização do sistema da justiça pública com a estatização ou
publicização do processo324. É interessante observar que esta
característica do processo prevalece ainda no início do século XXI.
Podem ser identificadas características comuns entre o
processo da cognitio extraordinária e o modelo procedimental praticado
atualmente, como se verifica relativamente ao cabimento dos recursos e
ao emprego da força pública na execução das sentenças.
Em Roma, o problema da celeridade no andamento dos
processos era objeto de preocupações, sendo esta uma das causas
determinantes da adoção do procedimento da cognitio extraordinária,
pois o processo se desenvolvia em uma única fase diante do magistrado,
o que assegurava maior rapidez no julgamento da ação com a prolatação
da sentença.
A conseqüentemente mais importante da generalização da
cognitio extraordinária foi que o processo tornou-se público, assim
323
NOVA enciclopédia Barsa, v. 5. p. 181. Caio Aurélio Valério Diocleciano nasceu perto de Salona
na costa da Dalmácia, por volta do ano 245. ... foi reconhecido pelo Senado em 285 d. C., após o
assassínio do irmão de Numeriano, o co-imperador Carino.
324
LOPES. Op. cit. p., 53. Como sempre na história de Roma, a mudança justifica-se pela
restauração da república, mas de fato é substancialmente algo novo.
250
como o exercício da função do magistrado325 passa a ter idêntica
característica; deixaram de ser redigidas as fórmulas; generalizaram-se
as hipóteses dos recursos, estabelecendo-se graus hierárquicos entre os
funcionários públicos que exerciam a magistratura; os processos
passaram a ser julgados de acordo com o direito objetivo; as partes
passaram a pagar custas processuais; passaram a prevaler os atos
praticados por escrito. Segundo o professor Arruda Alvim, nesta fase o
processo começa a ser entendido como um meio para a “realização do
direito material (res in judicium deducta)”326.
Tendo em vista a existência de aspectos comuns entre a
cognitio extraordinária e o processo atual é interessante observar que a
citação do réu ocorria através da intervenção do magistrado. Houve
várias formas de citação, dependendo cada uma da presença ou da
ausência do réu na localidade onde tramitava o processo, ou mesmo se
estivesse em local indeterminado. A citação poderia ocorrer por
intermédio de um funcionário do Estado ou do próprio autor, que, neste
caso, disporia de autorização expressa neste sentido.
Aproximadamente no século V estava consolidado o sistema
segundo o qual o procedimento tinha início a partir do libellus
325
CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 297. Os magistrados são os juízes superiores, os ordinários e os
pedâneos.
326
ARRUDA ALVIM. Manual de Direito Processual Civil., v. 1, parte geral, p. 44.
251
conuentionis (petição de citação) e prosseguia com a manifestação do
réu no libellus contraditionis.
O autor redigia pessoalmente através de um funcionário do
Estado ou do tabularius o requerimento dirigido ao magistrado que,
reconhecendo a existência da tutela legal ao pedido, e após a prestação
da caução, determinava que fosse expedida a citação por libellus
conuentionis. A citação ocorria através de um funcionário público
denominado exsecutor, o qual entregava ao réu o libellus conuentionis e
recebia as sportulae, que eram custas proporcionais ao valor da causa. O
réu, a partir do recebimento do libellus conuentionis ou conveintionis,
tinha 10 (dez) dias para apresentar garantias de que compareceria em
juízo (cautio iudicio sisti) bem como negar por escrito e de forma
sumária as alegações do autor. Este documento era denominado libellus
contradictionis e seria enviado para o conhecimento direto do autor. As
partes durante o direito justinianeu tinham 20 (vinte) dias para
comparecerem diante do juiz.
A figura do procurador representante das partes em juízo surge
nesta fase do processo romano, contudo, a idéia da representação ainda
não era reconhecida como atualmente, pois a sentença era proferida em
relação à parte que comparecia em juízo.
252
Um outro aspecto inovador se refere a que o processo poderia
tramitar sem a presença de uma das partes diante do juiz. Esta situação
caracterizava a contumácia que, em relação ao réu, poderia ocorrer
quando não fosse localizado para a citação ou quando, embora citado,
deixasse de comparecer em juízo em qualquer momento do processo.
Poderia ocorrer a contumácia do autor quando este, após
iniciado o processo com a citação do réu, deixasse de comparecer em
juízo para dar prosseguimento ao processo apresentando a litis
contestatio; neste caso, o réu poderia pedir ao juiz que, decorridos 10
(dez) dias sem o comparecimento do autor, aquele fosse absolvido da
instância e o autor condenado a realizar o pagamento de uma multa ao
réu igual ao dobro das custas que este tivesse pagado. Após a superação
da fase inicial, se o autor abandonasse o processo por dois anos e meio, e
após ter sido intimado por 3 editos, não comparecendo, a causa seria
julgada, podendo o réu ser absolvido ou condenado, entretanto, o autor
seria nesta situação sempre condenado a pagar as custas processuais,
como penalidade pela contumácia.
A contumácia era a exceção, pois, normalmente, as partes
compareciam à presença do juízo no dia designado, o que poderiam fazer
pessoalmente ou através de um procurador. Não era exigida a caução nas
253
ações reais, quando as partes compareciam pessoalmente, das pessoas
ilustres e daqueles que não possuíssem bens.
Havia a obrigação das partes e de seus procuradores, quando
estes fossem constituídos, da prestação do iusiurandum calumniae, que
consistia no juramento de calúnia, ou seja, as partes perante às escrituras
juravam que estavam em juízo por acreditar na defesa do direito
requerido e não por chicana. O contraditório era valorizado, sendo que
em audiência as partes debatiam oralmente suas alegações, sendo que a
complexidade da causa determinava a forma e o número de vezes em
que isso ocorria. Era admitida a reconvenção. Era estabelecido um prazo
para o julgamento da ação, sendo que a partir da litis contestatio, o
magistrado tinha 3 (três) anos para proferir a sentença.
As provas escritas tinham prevalência sobre as demais327.
Prevalecia a regra segundo a qual o ônus da prova incumbe a quem
alega. Em ordem de prevalência às provas, era atribuído o seguinte valor:
documentos públicos redigidos por funcionários no exercício de suas
funções; instrumenta publica ou instrumenta publice confecta,
documento redigido em praça pública por notários ou pelos tabelliones,
327
ALVES Moreira. Op. cit. p., 249. Exposta a questão ao juiz, fazia-se mister que cada um dos
litigantes procurasse demonstrar a veracidade dos fatos que alegara. Daí, a fase probatória, onde as
partes produziam suas provas. Na extraordinária cognitio, ..., não gozava o juiz de ampla liberdade
para a avaliação das provas, pois, os imperadores, em constituições imperiais, estabeleceram algumas
regras em virtude das quais não só certas provas deveriam ser consideradas superiores a outras, como
também a algumas não poderia dar o juiz qualquer valor.
254
que não eram funcionários do Estado, mas gozavam de fé pública;
instrumentos privados, cujo valor dependia de terem sido redigidos
perante testemunhas e assinados pelas partes e por estas. A prova
testemunhal não desconstituía a prova documental, ressalvada a hipótese
da invalidação através da perícia do documento escrito. Nos casos em
que fossem ouvidas testemunhas, estas deveriam prestar o juramento de
dizer a verdade. Admitia-se ainda a prova pericial328, o juramento329, a
confissão330, o interrogatório em juízo e a presunção331, que poderia ser
praesumptio hominis (extraída pelo juiz dos elementos da demanda) ou
praesumptio iuris (estabelecida pela lei, podendo ser iuris tantum –
admite prova em contrário, ou, iuris et de iure – é absoluta.
É interessante observar que a publicidade dos atos processuais
é limitada, pois, enquanto nos períodos anteriores os atos procedimentais
ocorriam em grandes espaços abertos, nesta fase, surgem os recintos e
ambientes restritos onde são realizadas as audiências.
Excepcionalmente, quando a causa demandasse grande
328
Ibidem, p. 250. ... os peritos valem-se de processos ainda hoje utilizados, como a comparatio
litterarum (comparação de letras) e a manus collatio (cotejo entre o documento impugnado e outro
escrito pelo punho de quem deveria ter sido o autor do primeiro); ... havia as comadres, que eram
peritas a quem incumbia verificar se uma mulher estava, ou não grávida.
329
Ibidem, p. 250. ... o juiz, sendo insuficientes as provas apresentadas, pode deferir o juramento a
uma das partes, que, se o prestar, se exime de ter de produzir outra espécie qualquer de prova, pois, se
considera provado o fato objeto do juramento;
330
Ibidem, p. 250. ... no processo extraordinário, valia como causa para a condenação, ... , ao que
confessou era concedido prazo para ser executado; demais, nem sempre a confissão tinha força
probante: assim, por exemplo, não era ela suficiente para transformar um colono um homem livre;
331
Ibidem. p. 250. ... no processo extraordinário, o juiz podia valer-se, desde que a presunção fosse
séria e estivesse em relação direta com o fato que se pretendia provar, ...
255
dificuldade, o magistrado poderia determinar a contultatio, que consistia
na remessa dos autos a um magistrado superior ou ao Imperador332 para
o julgamento.
A sentença era escrita e, obrigatoriamente, conteria a
condenação ou absolvição do réu, sendo publicada em audiência e
registrada em livro. As sentenças definitivas poderiam ser impugnadas
no prazo de 10 dias pelo recurso333 de apelação, que era recebido com o
efeito devolutivo e suspensivo. Somente em caso de ilegalidade da
apelação, o magistrado poderia deixar de recebê-la, nas outras situações,
ao receber a apelação, redigia o “libelos demissórios” enviando-o com o
processo para o julgamento na instância superior. Para recorrer, exigia-se
o pagamento de custas processuais.
O surgimento dos recursos na cognitio extraordinária teve
relação direta com a profissionalização do direito.334
332
PRATA. Op. cit. p., 76. Não estando o juiz em condições de compor a lide, pode remeter os autos
ao Imperador que, pessoalmente ou através de sua assessoria, prolata a sentença mediante preescrito.
333
WOLKMER. Op. cit. p., 402. Ao contrário da jurisdição ordinária, dos pretores, nela (cognitio
extra ordinem) havia a possibilidade de apelo ao imperador, pois as decisões dos funcionários eram
feitas por delegação do poder imperial, e a este competia rever os atos de seus delegados.
334
WOLKMER. Op. cit. p., 402. Estando na mão de leigos e não-burocratas, o procedimento formular
abriu-se à influência dos juristas. Inicialmente os juristas eram homens da nobiliarquia romana que
davam seus conselhos em vários assuntos a outros cidadãos ... .Eram, nessa fase clássica, apenas
cidadãos privados, cuja autoridade provinha de sua posição social somada ao reconhecimento de seu
saber a respeito das fórmulas e formas jurídicas, , e de sua sabedoria prática. Sob Augusto, receberam
autorização para falar em nome do príncipe, isto é, do primeiro cidadão ( ex auctoritate principis). No
entanto, foi com o desenvolvimento de uma burocracia imperial, centralizada em torno da Corte,
que os juristas se transformaram, já a partir de meados do segundo século A.D., num grupo
profissional. Servindo o imperador, participavam da administração sendo escolhidos por força de seu
conhecimento jurídico. Este, por seu turno, deixara de ser apenas tradicional para transformar-se num
aprendizado que se fazia em escolas, em torno dos juristas mais velhos.
256
As conseqüências da apelação eram graves, podendo chegar a
casos em que ocorria o desterramento temporário e perda parcial do
patrimônio do recorrente perdedor; era admitida a reforma in pejus.
O sistema recursal não estava bem estruturado, sendo que, em
princípio, poderia se apelar tantas vezes quantos fossem os magistrados
hierarquicamente superiores, até ao Imperador. As restrições aos
recursos eram mais de ordem pragmática do que propriamente
procedimental, pois as condições para recorrer, como o pagamento das
custas, assim como as conseqüências da derrota do recorrente, eram
fatores limitantes. O procedimento na fase recursal era similar àquele
adotado na primeira instância, inclusive, sendo admitida a produção de
provas nos recursos.
Não havendo o exercício do direito aos recursos, ou quanto se
esgotassem todas aquelas possibilidades, o demandante vencedor, diante
da ausência do cumprimento espontâneo pelo demandado da obrigação
constituída na sentença, poderia iniciar o processo de execução através
da actio iudicati.
257
7.2.2.1 A execução forçada no sistema da justiça pública em Roma
O processo da cognitio extraordinária também inovou no que
se refere ao processo de execução. Alguns aspectos devem ser
destacados, como a criação da execução para entrega de coisa, de fazer e
não-fazer; a execução passa a ser patrimonial e, excepcionalmente
corporal, no entanto, neste caso, o devedor seria detido em cárcere do
Estado. Adotava-se o princípio da execução menos onerosa para o
devedor, logo, a expropriação se limitava aos bens necessários para a
satisfação da obrigação.
Antes de dar início à execução, era concedido ao devedor um
prazo para o cumprimento da obrigação. Há controvérsias quanto ao
tempus iudicati, o qual poderia ser determinado pelo juiz, que, no
entanto, não o fazendo, deveria ser de 4 (quatro) meses, de acordo com o
direito justinianeu.
Decorrido o prazo sem que o devedor cumprisse a sentença
espontaneamente, o credor poderia exigir a satisfação da obrigação
através da actio iudicati. O devedor poderia admitir a inadimplência ou
se defender alegando a nulidade da sentença ou o cumprimento da
obrigação. Neste caso era adotado um procedimento semelhante ao
258
processo de conhecimento, contudo, da sentença, não era admitido
nenhum recurso.
De acordo com cada caso, a execução seria manu militari ou
pignus judicati causa captum.
A execução manu militari dizia respeito aos casos em que a
obrigação era para a entrega de coisa, logo, o executado seria obrigado à
restituição, caso se recusasse, ficaria sujeito à força pública que
promoveria a constrição patrimonial contra a vontade do devedor.
Havia situações em que se tornava impossível a entrega da
coisa, havendo o seu perecimento, assim também quando a obrigação
fosse para fazer ou não-fazer, ou, ainda, quando se tratasse de obrigação
de quantia certa; nestes casos, havia procedimentos próprios.
A pignus judicati causa captum era a ação pela qual se fazia a
apreensão de bens do devedor através dos apparitores do juiz. Esses
bens se restringiam ao necessário para o pagamento, sendo que o
quantum era obtido por meio da venda em leilão. Havendo excedente
após o pagamento do credor, seria entregue ao devedor.
Outra modalidade de execução era a cessio bonorum ou
concurso de credores. O devedor poderia ter mais de um credor, neste
caso, também ocorria a apreensão de bens, mas estes não eram vendidos
em conjunto; procedia-se ao distractio bonorum, que consistia na venda
259
parcelada dos bens, de modo que uns eram vendidos após os outros, até
que fossem pagos todos os credores.
Em qualquer caso, a execução era limitada pela obrigação
constituída, logo, o credor somente poderia exigir daquilo que fosse
objeto do débito.
Apenas excepcionalmente a obrigação de entrega de coisa, de
fazer ou não-fazer seria convertida em obrigação pecuniária, ou seja, tais
casos ficavam restritos à impossibilidade do cumprimento nos termos
inicialmente estabelecidos.
Ressalta-se que, no caso da venda de bens do devedor para
satisfação do credor, este receberia somente o valor devido; devolvendose excedentes acaso existentes ao devedor.
O devedor que não tivesse bens poderia sofrer a pena de
prisão, mas esta seria cumprida em cárcere público, ou seja, nesta fase
não era admitido ao credor prender e escravizar o devedor, assim como
não poderia vendê-lo ou matá-lo.
Não havia se desenvolvido a teoria a respeito da classificação
das ações em conhecimento, execução e cautelar como foi admitido
posteriormente. Entretanto, os atos procedimentais para obter a cognição
ou a execução eram realizados de forma independente. Assim eram
praticados atos para obter a certeza do direito aplicável ao caso concreto,
260
e somente após o conhecimento do direito que deveria reger o caso, é
que se iniciavam os atos objetivando a execução forçada.
Observa-se, portanto, que a estruturação do processo foi se
constituindo segundo uma lógica que tendia à segurança e à efetividade.
É possível afirmar que, desde as suas origens, o processo se vinculava à
idéia de estabilização da organização societária. Acredita-se que para
estabilizar as relações humanas é necessária a existência de garantias
mínimas que possibilitem o desenvolvimento de um senso coletivo. Os
meios inerentes à concretização prática dessas garantias são afetos ao
processo, sendo que os romanos tiveram essa compreensão, podendo ser
atribuído a isto um dos fatores que explicam o bom nível de
desenvolvimento que a sociedade romana obteve. Neste aspecto,
focaliza-se a importância da segurança jurídica. Sob este ponto de vista,
pode ser afirmado que o direito consiste em um eficiente mecanismo
para a superação do individualismo.
Ocorre, contudo, que não é suficiente a existência das
garantias, é necessário, ainda, que a promessa garantida encontre as
condições para sua efetivação no plano concreto. No plano da
efetividade jurídica, em princípio, o Estado emprega sua força para que o
indivíduo possa usufruir daqueles direitos que lhe tutelam.
261
Os romanos não sintetizaram teorias a respeito da segurança e
da efetividade jurídica, mas construíram um modelo jurisdicional que
permite a afirmação de que durante o período histórico compreendido
aproximadamente entre 753 a. C. e 476 d. C., foi delineada a noção que a
segurança jurídica está voltada para a interação entre os indivíduos e
conseqüente constituição dos pontos de conexão que forma a teia social.
Por sua vez, a efetividade jurídica volta-se em sentido oposto àquele, a
fim de que o indivíduo, como uma unidade concreta e para o qual tende
toda a formulação jurídica, tenha assegurado o bem jurídico de acordo
com as regras estabelecidas, seja através de normas prévias e
abstratamente estabelecidas, ou através de costumes consolidados.
Por estes aspectos, entre outros, tem havido historicamente
inúmeras discussões sobre formas de realização da “justiça”, sob um
ponto de vista meramente procedimental, os debates e alterações legais
são
intermináveis.
Sob
uma
perspectiva
hermenêutico-crítico-
historicista, e considerando que o direito romano representa a estrutura
do “DNA” do direito ocidental é afirmado que a questão precípua está na
modulação entre o contexto dos interesses coletivos com caráter
sociológico e o contexto da proteção que o direito deve assegurar ao
indivíduo, no caso específico, quanto aos seus bens.
262
Destacam-se alguns aspectos que caracterizam o fim da fase
clássica do direito romano, como a centralização e concentração de
poderes políticos, o fim das tradições republicanas e o afastamento
progressivo dos leigos das tarefas de decisão dos conflitos335.
7.3 PROCESSO ROMANO-BARBÁRICO
Cronologicamente,
a
Alta
Idade
Média,
quando
se
desenvolveu um modelo diferente de organização jurídica, compreende
aproximadamente meados do século II, quanto se iniciou a invasão dos
bárbaros ao Império Romano até o século XI. Ressalta-se que no ano 476
d.C., ocorreu a tomada de Roma por Odoacro, sendo este fato
considerado o marco histórico do final do predomínio da civilização
romana336. Os invasores eram bárbaros de origem franca, ostrogoda,
saxônica, angla, bávara, sueva, lombarda, visigótica, entre outros, sendo
os seus costumes semelhantes, podendo ser mencionadas como
características desses povos o fato de serem sedentários, mas estarem em
peregrinação por causa de guerras e fome; não tinham uma organização
335
WOLKMER. Op. cit. p., 402. ... com o passar do tempo o processo deixava seu habitat leigo e
concentrava-se nos círculos do novo poder do Estado.
336
NOVA enciclopédia Barsa. v. 12, p. 442. O rei godo Alarico saqueou Roma no ano 410. As forças
imperiais, somadas às dos aliados bárbaros, conseguiram entretanto uma última vitória ao derrotar
Átila nos Campos Catalaúnicos, em 451. O último imperador do Ocidente foi Rômulo Augústulo,
deposto por Odoacro no ano 476, data que mais tarde viria ser vista como a do fim da antiguidade. O
império.oriental prolongou sua existência, com diversas vicissitudes, durante um milênio, a´te a
conquista de Constantinopla pelos turcos, em 1453.
263
urbana de vida; não tinham regras que garantissem direitos individuais.
Há unanimidade entre os historiadores em reconhecer que durante a Alta
Idade Média, houve um retrocesso no sistema de organização social, e,
por via de conseqüência, no modelo jurídico.
O contato entre os povos bárbaros e a civilização romana
produziu uma cultura fundida entre os costumes considerados primitivos
dos primeiros e os modelos de organização social constituídos no
Império
Romano
ao
longo
de
seus
períodos
históricos
de
desenvolvimento. Para o surgimento desse sistema, podem ser apontados
dois fatores muito importantes que são o reconhecimento por parte dos
povos bárbaros de que o direito romano era superior e importante para o
seu desenvolvimento; bem como a influência da igreja católica, que se
encontrava em processo de expansão.
Os povos germânicos, como ficaram conhecidos os invasores
bárbaros, adotaram um processo onde prevalecia o individualismo, a
jurisdição era decorrência da eleição em assembléia de um juiz, as
normas procedimentais existentes eram incipientes, apoiando-se em
preceitos divinos e as regras processuais coexistiam com a autodefesa.
A aplicação do direito romano-barbárico prevalece no período
compreendido entre o ano 568 até 1.088. A fusão entre a tradição
clássica romana e os costumes dos povos bárbaros não se encaixa em um
264
quadro de desenvolvimento da cultura jurídica sob a ótica processual337.
Contudo, o pragmatismo germânico, a ausência de um conjunto de
direitos e garantias a priori que tutelassem os indivíduos e a
fragmentação do poder do Estado, propiciaram o surgimento de um
modelo procedimental simplificado que visava à solução efetiva da
causa338, ainda que ao custo da relativização da segurança jurídica, de
modo que a proteção do indivíduo por regras de organização grupal não
era relevante, assim como não havia a preocupação com a estabilização
social ou institucional, pois o modus vivendi se desenvolvia em um
regime tribal.339
Até o século XI, quando surgiram novas condições para o
direito, os germânicos com o auxílio de juristas romanos haviam
transformado parte de seus costumes em regras legais, sendo que a Lex
Romana Visigothorum, era caracterizada como uma lei romana
337
PRATA. Op. cit. p., 82. O direito germânico primitivo era essencialmente costumeiro, na sua
primeira fase, que termina por volta do ano 500 ... . Os invasores não formavam uma nação, porém
um punhado de tribos. Daí porque podemos afirmar que o direito germânico primitivo era um
direito tribal ... .
338
WOLKMER. Op. cit. p., 227-228. ... a partir do século V o direito romano não se furtará de
conviver paralelamente com o direito germânico dos povos do norte, e, até o século VIII, observa-se a
progressiva condensação desses vários direitos. Antes de tal processo realizar-se totalmente, e
levando-se em conta o desmembramento do poder do Estado na Europa medieval, a segunda
observação possível dessa genealogia é a característica descentralização da justiça, isto é, a
dissolução da resolução das contendas particulares pelas várias autoridades temporais – os
senhores feudais – agora investidas de jurisdição. ... Na alta Idade Média, a partir do momento
em que deixa de existir um poder judiciário organizado, a liquidação das contendas era feita
entre os indivíduos: ... (grifos nossos)
339
LOPES. Op. cit. p., 75. ... o processo era oral e o sistema de provas era o dos ordálios, cheios de
testemunhas, desafios e duelos. Nas aldeias e no campo predominavam, em casos criminais, os
julgamentos por ordálios, assistidos por todos. A corte senhorial é presidia pelo senhor da região, mas
são os pares (vassalos) que julgam seus pares. As cortes julgam, mas são também órgãos de conselhos
e de grandes deliberações.
265
barbarizada ou vulgar e tem sido considerada uma das fontes legais
importantes desse período.
A Alta Idade Média é historicamente uma época de crises
estruturais profundas as quais determinaram uma fase de decadência,
pois houve um atraso considerável em decorrência do primeiro modelo
produtivo feudal340. Nessa fase, até o prestígio da igreja católica chegou
a ser afetado, pois as populações, vivendo nas regiões rurais isoladas,
voltaram a adotar credos primitivos. 341
A partir do século XI até o século XVI, surgiram as condições
para a retomada do desenvolvimento social, econômico e cultural na
Europa, sendo reconhecido para o direito o marco inicial de uma nova
fase durante a Baixa Idade Média342.
340
LOPES. Op. cit. p., 74. No primeiro feudalismo (do século VIII ao XI) os reinos eram etnias sob
um rei, comunidades de cristãos sob um rei, não eram territoriais propriamente. ... A diffidatio será
importante para a teoria política porque será a base do direito de resistência ao tirano, ao senhor
injusto. Será também importante, porque Gregório VII, durante a querela das investiduras, tomará
para si o privilégio de dissolver os laços de vassalagem, interferindo diretamente no arranjo político da
época.
341
LOPES. Op. cit. p., 71-72. Um ato a destacar é que a Igreja, no império ocidental, vê-se ameaçada
em sua hegemonia por dois fatores: a religião pagã dos próprios bárbaros e a adesão dos mesmos
bárbaros a versões heréticas do cristianismo (especialmente o arianismo). Apesar de progressivamente
converter os reis (que buscavam assim uma aliança com seus súditos romanos ou romanizados)
durante os primeiros séculos a Igreja foi incapaz de conter a “regressão” do paganismo. Cidades antes
florescentes e sedes de catedrais e bispados foram abandonadas. Regressão ao paganismo cujo sinal é
a longa vacância de sedes episcopais ... . No campo, as populações voltaram a crer no encantamento
dos bosques e nas forças da natureza, na mesma medida em que as áreas cultivadas e as estradas iam
sendo abandonadas.
342
WOLKMER. Op. cit. p., 403. Entre Justiniano e o século XI da Era Cristã, quando os textos
jurídicos que mandara reunir passaram a ser recuperados e estudados na Itália setentrional (Bolonha)),
a porção latinizada da Europa conheceu o fim das organizações relativamente estáveis e centralizadas
do Império Romano
266
7.4 PROCESSO JUDICIALISTA
Não há uma coincidência quanto às datas referentes à fase
denominada período ou processo judicialista e o início da Baixa Idade
Média ou Segundo Feudalismo343. No entanto, é possível verificar a
existência de uma proximidade cronológica, pois entende-se que o
período judicialista começa no ano de 1088 com a fundação da Escola de
Bolonha e se encerra em 1563 com a publicação do livro “Prática Civil e
Criminal e Instrução dos Escrivões”, de autoria de Moterroso. A Baixa
Idade Média, que é caracterizada pela última fase do feudalismo,
estende-se entre os séculos XI e XV.
Os aspectos culturais, econômicos, sociais e políticos da baixa
idade média refletiram no tipo do modelo jurídico adotado naquele
período histórico. A economia autosuficiente e tipicamente agrária foi
substituída gradativamente por uma economia comercial. No plano
social a estrutura rígida dos feudos foi cedendo lugar ao surgimento da
burguesia que era uma nova classe social originária da acumulação de
bens decorrentes das práticas mercantis. Politicamente foram se
343
LOPES. Op. cit. p., 74-75. O segundo feudalismo, ..., estabelece-se entre 1050-1150, justamente
no período de surgimento do direito canônico e civil nas universidades. ... Há paralelamente um
sistema de justiça feudal e senhorial. A justiça é o centro da vida jurídica. Dar regras gerais (ou seja,
legislar) e dar regras particulares (julgar) são apenas duas formas de se fazer justiça. ... Nestes termos,
a atividade legislativa é uma forma de justiça. ... Governar é sobretudo administrar a Justiça. Antes do
estabelecimento de poderes estatais nacionais, as decisões de justiça retributiva ou corretiva eram
muitas vezes proferidas por assembléias populares: ...
267
constituindo as condições para a centralização do poder e o surgimento
das monarquias nacionais européias. Durante esse período, ocorreram as
Cruzadas que representam a importância da Igreja e da grande
religiosidade do homem medieval.
Conquanto durante o período da Alta Idade Média não tenha
havido um satisfatório desenvolvimento dos estudos a respeito do
direito, com a criação da Escola de Bolonha esta situação se altera e o
direito romano, sobretudo, o Corpus iuris civilis passa a ser estudado
sistematicamente pelos glosadores344. O ambiente social da Baixa Idade
Média propiciou o aprofundamento dos estudos de direito fazendo
ressurgir as preocupações com sua organização e com as instituições que
lhe estruturam a aplicação.
As
relações
sociais
apresentam
uma
dinâmica
que
historicamente parece apontar para ciclos que levam à concentração do
poder e subseqüente esfacelamento da sua estrutura. Este fenômeno pode
ser associado à tentativa de preservação do status quo vigente para os
integrantes dos grupos de poder, o que termina por criar resíduos345
negativos no ambiente, de onde emergem os quadros diferenciados na
344
WOLKMER. Op. cit. p., 229. Estabelecida a legitimidade divina no decorrer da baixa Idade
Média, resta saber como essas leis foram organizadas. Um momento fundamental para compreender o
fenômeno do direito canônico, por ser este um direito escrito, é o de sua compilação. Após intensa
atividade jurisdicional, a Igreja passou a considerar o antigo direito romano como legislação viva
– embora esparsa -, que deveria ser interpretada por doutores abalizados pelo clero nas
universidades como a de Bolonha, responsáveis pelo sentido oficial dos textos romanos. (grifo
nosso)
268
reorganização social. Esse cenário tende a um processo de repetição
contínua, porém, sempre diferenciada.
Durante a primeira fase do feudalismo, a Igreja enfrentou
algumas dificuldades as quais estiveram vinculadas à descentralização
do poder, entre outras causas, no entanto, esta mesma situação tornou
propícia a ascensão do Direito Canônico como forma de ocupação do
poder. Assim, o processo judicialista representa um dos aspectos do
ressurgimento do direito romano e também uma das pontes para a
estruturação do direito canônico e da própria dogmática jurídica.
A Igreja como detentora do poder passou a justificá-lo também
sob o ponto de vista laico, desse modo após Irnérios346 ter descoberto em
Pisa um exemplar do “Digesto” e tê-lo estudado juntamente com seus
alunos, a Universidade de Bolonha foi credenciada como um grande
centro de estudos na Itália, uma vez que, inicialmente, havia o controle
do clero sob a interpretação literal que era realizada a respeito dos textos
legais originários de Roma. Podendo ser afirmado que a Universidade de
Bolonha era o centro onde se desenvolvia sob o controle da Igreja os
estudos a respeito do direito. Paralelamente a isto, outro aspecto
345
DICIONÁRIO brasileiro da língua portuguesa, v.2, p.1502. Resíduo ... . 8. Sociol. Elemento
cultural que sobreviveu a mudanças com as quais está em contradição.
346
PRATA. Op. cit. p., 100. Irnérius, fundador da Universidade de Bolonha, em 1088, alcunhado
“archote do direito”, “lucerna iuris”, “primus illuminatur scientiae nostrae”, assumiu a cátedra de
direito romano, criando escola, fazendo recrudescer o seu prestígio que mais salientava pela
interpretação dada aos textos romanos acomodada à prática das instituições vigentes.
269
importante para a organização do processo judicialista se refere ao
interesse dos monarcas em concentrar poderes através da adoção de um
direito comum que subtraísse o poder dos nobres, que aplicavam uma
legislação local.
A Universidade de Bolonha marca historicamente a retomada
do progresso nos estudos do direito processual. Mesmo durante a fase de
maior desenvolvimento das instituições processuais, em Roma não havia
uma organização entre os juristas daquela época que tivesse possibilitado
estudos sobre as normas processuais. Tais preceitos decorriam mais de
uma estrutura de organização governamental, devendo ressaltar-se que
sequer havia uma formulação sobre a existência das regras de caráter
material e instrumental.
A Escola dos glosadores caracterizou-se pelo respeito ao texto
original e ao apego sistemático ao Corpus Juris Civiles, buscando uma
interpretação literal daquela lei romana.
As glosas eram anotações realizadas junto ao texto da obra de
Justiniano, apostas nas laterais e às vezes em entrelinhas, com o objetivo
de aclarar o texto da lei romana347. Havia a preocupação em não se
alterar o sentido do texto originário.
347
PRATA. Op. cit. p., 101. ... quase sempre a força e o prestígio das glosas cresceram
assustadoramente, tanto que, na prática, aplicava-se mais a glosa do que o texto original.
270
Os glosadores visavam, inicialmente, constituir um direito
comum que assegurasse a manutenção do poder da Igreja, tanto que esta
apoiou seus estudos, prestigiando seus trabalhos. Não houve êxito no
objetivo de popularizar o direito fundado na interpretação literal do
Corpus Juris Civilis.348 Deve ser lembrado que durante a Idade Média
ocorreu a ascensão da filosofia sob um prisma teológico.
Aos glosadores coube também a elaboração das sumas que
eram pequenos compêndios a respeito do direito processual. Através
desses documentos, surgiu a idéia de fases processuais encadeadas
através de um sistema de procedimentos que se sucedem uns aos outros,
denominados tempos. Esses estudos levaram ao reconhecimento do
instituto da preclusão.
O
Corpus
Júris
Civilis
apresentava
obscuridades
e
contradições, sendo que o seu estudo completo pelos glosadores
demorou por um século e meio, o que, no entanto, não alterou aquelas
características, uma vez que a fidelidade ao texto original era uma
exigência. Associado a isto, ocorreu o acirramento da disputa entre os
poderes seculares da Igreja e imperiais. Esses fatos estavam
intrinsecamente ligados com as profundas alterações sociais que
348
WOLKMER. Op. cit. p., 403. A Idade Média conheceu também o problema político central da
separação entre Igreja e Estado, separação de jurisdições, autonomia dos respectivos representantes e
disputas de poder entre eles. Se a cristandade era inerentemente unitária, quem detinha o poder
final de dizer o direito? Essa disputa, como se verá, está na origem do processo moderno. (grifos
nossos)
271
ocorriam com o surgimento do processo de acumulação de riquezas
através das práticas mercantis e com a crescente consolidação da classe
social denominada burguesia. Esse ambiente foi propício para o
desenvolvimento dos Estados Nacionais, para a unificação da jurisdição
e estruturação do direito processual.
Nesse contexto de mudanças, a Escola dos Glosadores tornouse obsoleta, tendo ocorrido o aparecimento da Escola dos Ultramontanos
caracterizada pela tentativa, por parte de seus autores, em encontrar, na
aplicação do direito romano, soluções para problemas práticos do
cotidiano da sociedade dos séculos XII e XIII. A Escola dos
Ultramontanos também não conseguiu superar os problemas decorrentes
das incongruências do Corpus Júris Civilis.
No século XIV, surgiu a Escola dos Pós-glosadores349 que
procurou adaptar o direito romano ao contexto histórico daquele tempo.
Para tanto, admitiram uma interpretação mais elástica do direito
justinianeu, não raras vezes afastando-se do Corpus Juris Civilis, criando
verdadeiramente novos preceitos que tinham como inspiração o trabalho
já produzido pelos glosadores através das glosas e sumas.
A Escola dos Pós-glosadores é caracterizada pelo empenho em
349
PRATA. Op. cit. p., 104. Surgiu no século XIV a chamada Escola dos Pós-Glosadores, também
denominada Escola dos Comentadores, porque seus integrantes se valeram dos comentários aos textos
romanos estudados, assim como os glosadores da glosa se utilizaram.
272
dar aplicabilidade prática ao direito, de modo que este tivesse uma
utilidade para o povo. Algumas questões devem ser observadas, como é
o caso da preocupação com a criação de instrumentos que assegurem a
aplicação do direito, inicia-se uma valorização do direito processual e,
por conseqüência, os estudos a seu respeito passam a ter uma dinâmica
diferenciada, ou seja, abre-se espaço na cultura jurídica para o
reconhecimento do direito processual como um ramo específico do
direito. A emergente estrutura social e política, por sua vez, visando à
centralização do poder como meio de elevar a burguesia, que já era
detentora do controle econômico, ao centro das decisões políticas,
procurou oferecer à população uma alternativa para a realização da
“justiça”, de modo que foram constituídos os mecanismos para que o
povo tivesse acesso ao direito.
A Igreja neste cenário teve seu prestígio e poderio abalado
porque o “bem” e a “justiça” não seriam realizados exclusivamente no
ambiente estabelecido por ela, mas, gradualmente se organizaram os
meios para sua concretização no plano laico. Este foi o quadro que levou
à separação entre a Igreja e o Estado. A burguesia detentora do poder
econômico pôde separar-se do Vaticano e, para isto, um dos meios
usados foi a disseminação do direito para o povo e a promessa da
realização da “justiça” entre os homens com base em valores humanos.
273
Deve ser destacado que os princípios aplicados pelas
jurisdições vinculadas à instituição do Estado que estava se estruturando
eram originados da jurisdição do clero. Havia uma similaridade entre a
aplicação da “justiça” realizada pela Igreja e pelos reis e imperadores,
sendo que a diferença fundamental estava nos seus fundamentos 350.
Nesse contexto de disputa de espaço na organização e
estruturação da sociedade medieval, duas questões foram relevantes para
a Escola dos Pós-glosadores, uma se refere à necessidade de adaptar o
direito romano clássico à realidade do século XI e seguintes; outra,
relaciona-se com a importância do método escolástico351 o qual
propiciou a realização de estudos sistemáticos a respeito da aplicação da
“justiça”.
350
WOLKMER. Op. cit. p., 405. Os conselheiros dos reis também freqüentavam as universidades e
influenciavam as decisões quanto à justiça: os reis mesmos precisavam organizar suas cortes de
modo a fazê-las atraentes para os súditos. Com isto podiam neutralizar tanto os poderes locais
(cortes baronais e senhoriais) quanto os tribunais eclesiásticos (que pretendiam jurisdição sobre
negócios contratuais _ por força da promessa e do juramento ali implicados, como sobre heranças e
testamentos). Por outra parte, muitos eram os casos em que por negociação as partes submetiam suas
diferenças ao arbitramento segundo as regras do processo canônico; tratava-se de uma competição
clara, obrigando o rei a adaptar-se ao novo processo e a impô-lo. Os julgamentos régios
destacavam-se, progressivamente, da pessoa do rei e da corte (conselho ou parlamento) para serem
entregues a conselhos especialmente criados, compostos por letrados, isto é, juristas treinados nas
universidades. O processo ali desenvolvido, em geral, seguia os moldes do processo canônico,
sempre que possível. (grifo nosso)
351
NOVA Enciclopédia Barsa, v. 5. p. 469. Entende-se em geral por escolástica o ensino teológicofilosófico da doutrina aristotélico-tomista ministrado nas escolas de conventos e catedrais e também
nas universidades européias da Idade Média e do Renascimento. Como sistema filosófico e teológico
a escolástica tentou resolver, a partir do dogma religioso e mediante um método especulativo,
problemas como a relação entre fé e razão, desejo e pensamento; a oposição entre realismo e
nominalismo e a probabilidade da existência de Deus.
274
Durante o período judicialista, desenvolveu-se também a
Escola Humanista ou Histórico-Crítica ou Cujaciana352. Seus trabalhos
foram realizados na Alemanha, França e Itália, no século XVI,
principalmente. Essa escola do direito pautava-se fundamentalmente na
história remota do direito, realizando seus estudos através da tradução de
textos da Grécia e da Roma antiga. As traduções feitas pela Escola
Humanista foram importantes para a compreensão do direito e da
necessidade de sua inovação. Podem ser criticados por terem defendido a
preservação integral e a aplicação do direito antigo, o que significaria um
retrocesso.353
No final da Idade Média no século XV, o ambiente social
europeu estava transformado, sendo que a separação do trabalhador e dos
meios de produção através do trabalho assalariado sinalizou para o
surgimento de um novo modelo que possibilitou a acumulação
econômica nas mãos da burguesia e a concretização dos Estados
Nacionais, com a queda dos regimes absolutistas e a separação dos
poderes do clero e laico. O trabalho dos juristas no sentido de dar uma
aplicação prática ao direito que deveria regulamentar esta nova
352
PRATA. Op. cit. p., 110. A Escola Humanista não prestou grande contribuição ao direito
processual. Merece, entretanto, uma referência especial a obra do alemão Benedito Carpzow.
Preferimos, todavia, incluí-lo ente os componentes da escola dos práticos.
353
PRATA. Op. cit. p., 108. As interpretações humanistas caíram ruidosamente no conceito dos
doutos, enquanto a glosa e os comentários dos bartolistas cresceram a tal ponto de serem considerados
os verdadeiros fundadores do direito moderno. Mesmo assim, “ofereceram uma grande contribuição
tão somente para ilustrar o direito mais antigo. Neste sentido, a obra e a atividade de Donelo e Cujácio
foram verdadeiramente maravilhosas”. (Riccobono)
275
sociedade, havia se desenvolvido bem, e prenunciava o surgimento da
escola praxista do direito.
7.4.1 Direito Canônico
Há um consenso no sentido de reconhecer a importância do
direito canônico354 para o ocidente, podendo ser afirmado que coube à
Igreja o papel de preservar a cultura dos romanos e de, posteriormente,
transmiti-la através das universidades. Durante a Idade Média foram
observadas crises recorrentes no sistema de organização da sociedade,
acreditando-se que estas situações decorriam da ausência de uma
estrutura mínima de regras que regulamentassem as relações entre as
pessoas e entre estas e as coisas, e, principalmente, de um modelo
padronizado de solução dos conflitos que surgiam entre as pessoas.
Coube à Igreja recuperar o Corpus Iuris Civilis, fundar as universidades
para o estudo do direito romano e criar regras mais ou menos uniformes
para a solução dos casos que estivessem afetos à sua jurisdição.
Os princípios do direito canônico foram fundamentais para a
constituição do direito contemporâneo ocidental, sobretudo, no que se
354
TUCCI, José Rogério Cruz; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de processo civil canônico
(história e direito vigente), p. 15. O ius canonicum pode, pois, ser definido como “o conjunto de
normas jurídicas, de origem divina e humana (mas sempre de inspiração divina), reconhecidas ou
promulgadas, por autoridade da Igreja Católica, que determinam a organização e atuação da própria
Igreja e de seus fiéis, em relação aos fins que lhe são próprios”.
276
refere à preocupação com a humanização das relações jurídicas e com a
importância da constituição das regras eqüitativas para o regulamento
das relações sociais. A filosofia cristã fundada no amor ao próximo, no
perdão e na caridade afastou do direito, a partir do século XI, as penas
cruéis, os sacrifícios sangrentos próprios das ordálias e dos juízos dos
deuses germânicos355. Também foi repelida a autodefesa.
O direito canônico foi organizado a partir do papado de
Gregório I (Gregório Magno) que ocorreu entre os anos de 590 e 604. A
Igreja não era centralizada e hegemônica, sendo que as primeiras
iniciativas no sentido de se alcançar aqueles objetivos foram tomadas por
Gregório I que determinou o envio de monges missionários aos lugares
mais distantes do ocidente com o objetivo de unificar a Igreja. As
cruzadas que foram organizadas pela Igreja entre 1096 – Primeira
Cruzada e 1270 – final da oitava Cruzada tiveram finalidades
semelhantes. Dessa forma, não se tratava apenas de divulgar a fé cristã,
mas da estruturação do poder em uma sociedade desorganizada por
conflitos decorrentes das invasões bárbaras e da ausência de um modelo
355
TUCCI,José Rogério Cruz; AZEVEDO. Luiz Carlos de. Lições de processo civil canônico (história
e direito vigente), p. 39. A Igreja condena as ordálias, que somente seriam utilizadas como
instrumento subsidiário de convencimento do juiz. A prova racional suplanta então o sistema
probatório germânico.
277
de administração das questões relativas à vida em comunidade, inclusive
no que se refere a aplicação do direito.356
Pode ser afirmado que durante o período de 400 anos, desde
Gregório I até Gregório VII, a Igreja buscou a centralização, hegemonia
e uniformização das suas práticas. Desse modo, por volta do século X,
estavam criadas as condições para as reformas promovidas na Igreja por
Gregório VII, as quais serviram de modelo para a constituição dos
Estados Nacionais.357
A importância das reformas promovidas por Gregório VII se
relaciona com o fato de que até então havia a confusão entre o poder
político e espiritual dos reis. Não havia se estabelecido a idéia de limites
e esferas do poder, de competência para o exercício do poder. Desse
modo, a Igreja ficava subordinada em cada região ao poder do
imperador, que, por sua vez, poderia adotar práticas que divergiam dos
356
LOPES. Op. cit. p., 84. O evento que marca um ponto de passagem na história do direito canônico
é a transformação radical liderada por Gregório VII (papa entre 1073 e 1085). Até então, a Igreja do
Ocidente havia sido uma comunidade sacramental, espiritual, não jurídica e muito mais uma federação
de Igrejas nacionais do uma rígida monarquia centralizada em Roma. A disciplina comum era muito
menos intensa do que se pode imaginar. Certo que o esforço do bispo de Roma, o papa, havia sido
sempre no sentido de exercer uma hegemonia sobre a Cristandade latina, Gregório Magno (papa entre
590 e 604) enviara missionários (monges) até os confins do Ocidente, encarregara Agostinho de
Cantuária de estabelecer o cristianismo firmemente na Inglaterra ...
357
LOPES. Op. cit. p., 85. Nestes termos, a tradição latina anterior a Gregório VII é mais pluralista e
também mais sujeita à influência política. Para contrapor-se a esta espécie de subordinação ao poder
civil, as medidas desencadeadas por Gregório VII constituirão um conjunto destinado a marcar o
Ocidente. Tornam-se exemplares do que virá a ser o Estado: dominação burocrática (conforme a
tipologia weberiana) racional, legal, formal. Neste espaço político é que se desenvolve o direito
canônico. ... Gregório VII propõe-se libertar a Igreja Ocidental inteira, e isto só pode ser feito
organizando um poder político que seja mais eficaz do que o de seus adversários. Terá sucesso, e daí
por diante serão os institutos de direito canônico, particularmente o desenvolvimento racional e formal
do processo canônico, que serão imitados por reis, príncipes e senhores seculares. Por este caminho é
que a Europa reencontrará sua tradição jurídica racionalizante e formalizante.
278
princípios cristãos. De fato, havia várias Igrejas de origem católica,
como ainda hoje, sabe-se da Igreja Anglicana e na Igreja Ortodoxa.
Gregório VII organiza a Igreja através de uma burocracia racionalizada,
estabelece que a autoridade e a capacidade de governar é limitada a um
povo em determinado território; que o Papa é a autoridade suprema da
Igreja; que os bispos somente podem ser nomeados pelo Papa. 358 Com a
reforma gregoriana, a Igreja estava organizada de modo centralizado,
hegemônico, uniforme e burocrático359. A partir de então, tem ocorrido o
aperfeiçoamento do modelo adotado primeiramente pela Igreja através
do direito canônico.
A reforma provocou conflitos que culminaram com a guerra
das investiduras360 e com a Concordata de Worms361, de modo que na
eleição dos bispos o imperador teria o direito de participar, mas a
investidura seria exclusiva do Papa362.
358
LOPES. Op. cit. p., 88. O império era, pois, uma entidade militar/espiritual, não geográfica.
Vigorava ainda muitas vezes o princípio da personalidade (ou pessoalidade) das leis e, sobretudo, a
força dos costumes locais. O rei legislava pouco, eventualmente decidindo como árbitro. Contra esta
concepção de império, a reforma de Gregório será um golpe fatal.
359
LOPES. Op. cit. p., 89. A reforma gregoriana teve um aspecto revolucionário, na media em que
um dos atores sociais predominantes no tempo, o clero, mudara de posição e impusera reformas
institucionais de maneira consciente e rápida. A convulsão social parece ter sido grande e violenta. A
Reforma de Gregório VII é considerada por Berman a primeira revolução do mundo do mundo
Ocidental, pois foi rápida, total, universalizante, socioeconômica.
360
TUCCI, AZEVEDO. Op. cit. p., 46. Desse embate de poderes surge a célebre “querela das
investiduras”, iniciada entre Henrique IV e Gregório VII, ensejando profícua discussão teórica e,
conseqüentemente, uma rica literatura entre os juristas da época, a respeito da soberania e da lei.
361
TUCCI, AZEVEDO. Op. cit. p., 47. Tal concordata entre soberanos e pontífices não significava
apenas um protocolo de intenções entre as hierarquias civil e eclesiástica, mas sim o desejo de uma
eficaz colaboração recíproca, deveras necessária, quer sob o aspecto espiritual, quer sob aquele
político-jurídico.
362
LOPES. Op. cit. p., 89. Com isto, no Ocidente não se afirmou uma teocracia. Nem os reis
conseguiram afirmar-se como donos e líderes das respectivas religiões nacionais, nem o clero
conseguiu colocar-se acima da lei e julgar o Estado civil.
279
A obra fundamental desse período para o direito canônico
surgiu aproximadamente no ano 1140, sendo conhecida como Decreto de
Graciano ou Concordia Discordantium Canonum, tratava-se de uma
coletânea de mais de 3.800 textos cuja aplicação não era obrigatória para
os juízes, mas que tinham grande utilidade na solução das antinomias
dos cânones. Para tanto eram empregados quatro critérios: a) ratione
significationis; b) ratione temporis; c) ratione loci; d) ratione
dispensationis. Os canonistas estudiosos do Decreto de Graciano eram
chamados decretistas363.
Nesse contexto em que a Igreja exerceu um papel decisivo
para o direito, as decretais364 foram significativas porque representavam
uma fonte do direito canônico. Os concílios365 também foram
363
LOPES. Op. cit. p., 95. Começava na Igreja uma crescente hegemonia de canonistas, que foram
constituindo uma espécie de carreira e de burocracia. Aliás, foi a primeira burocracia moderna do
Ocidente.
364
TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 29. ... também se verificou a praxe de consultar-se diretamente o
Papa acerca de alguma questão relativa à disciplina monástica, ao matrimônio, à penitência etc. Em
resposta ao consulente, filho da Igreja ou membro do clero, o Papa emitia uma epistula decretalis. A
regra contida em tal manifestação, a exemplo dos rescripta dos imperadores romanos, passa a gozar
de força normativa (fins do séc. IV) e, portanto, é fonte de revelação do direito canônico,
conservada nas compilações canônicas. A autoridade do Pontífice é marcada pelo emprego nas
decretais da terminologia decernimus, constituimus, praecipimus, definimus, prohibimus ... (grifos
nossos)
365
TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 28. Apesar da notícia da realização de alguns concílios nos
primeiros séculos do cristianismo, foi somente a partir do século IV que ganharam importância. A
disseminação permitida da religião cristã na sociedade romana, a multiplicação das comunidades de
fiéis, o substancial aumento patrimonial da Igreja e a ocorrência de graves discórdias religiosas
impuseram a convocação dos bispos para se reunirem em concílios ecumênicos e regionais. ... Os
concílios são presididos geralmente pela autoridade que os convoca. Durante a Idade Média o próprio
Papa passa a dirigir os concílios ecumênicos. Nessa época também, especialmente nos séculos XII e
XIII, houve uma célebre polêmica acerca da supremacia dos concílios sobre o Sumo Pontífice ou viceverso. Da atividade doutrinária e judiciária dos concílios são extraídos os cânones, que
constituem importante fonte de direito canônico. (grifo nosso)
280
importantes, sendo que o IV Concílio de Latrão realizado em 1215366,
destacou-se porque representou um avanço na consolidação do direito
canônico quanto à organização e unificação das normas adotadas pela
Igreja.
Nesse cenário de unificação da Igreja, destacam-se os tribunais
da Inquisição, que visavam a imposição da fé aos hereges. Há notícias de
condenações à morte de hereges pela Igreja desde o século II, contudo
foi no IV Concílio de Latrão que ficou instituído o processo inquisitorial.
A criação do primeiro Tribunal do Santo Ofício367 ocorreu por iniciativa
do Papa Gregório IX em 1236. Os tribunais da inquisição foram extintos
em 1859.
Se por um lado no IV Concílio de Latrão foi estruturado o
processo através da adoção do sistema inquisitorial e, posteriormente,
organizados os Tribunais do Santo Ofício com o objetivo de impedir a
adoção de práticas religiosas distintas daquelas pregadas pela Igreja,
também neste concílio foi proibido aos clérigos participarem como
testemunhas de processos em que o julgamento dependesse de ordálios
ou juízos de Deus. Com isso é possível perceber que conquanto o
sistema processual, sobretudo, quanto às provas fosse muito violento nos
366
LOPES. Op. cit. p., 95. Inocêncio III (reinado de 1198 a 1216), papa durante o IV Concílio de
Latrão (1215), formado em cânones em Bolonha, deixou outras tantas decretais e racionalizou
especialmente o processo.
367
LOPES. Op. cit. p., 95. Porque escapavam da jurisdição ordinária (dos bispos locais) e porque
dispunha de regras processuais próprias, a inquisição constituiu um tribunal de exceção.
281
Tribunais da Inquisição, isto não se devia a adoção das práticas
germânicas quanto as ordálias. A Igreja institucionalizou um modelo
processual inquisitorial em que a denúncia da heresia poderia ser feita
por qualquer pessoa independentemente da apresentação de provas, as
investigações eram secretas e havendo suspeitas caberia ao acusado
provar sua inocência. O objetivo do processo era obter a sujeição do
acusado ao catolicismo, neste sentido chegou a ser admitida a tortura,
que sofria restrições, como a limitação das sessões a apenas alguns
minutos e a proibição de se quebrar ossos do torturado. Neste caso, a
tortura visava mais ao arrependimento e a conversão do acusado que
propriamente a prova do fato. A confissão não era o objetivo principal,
sendo que neste caso o acusado que se arrependesse, embora passasse
por humilhações públicas era absolvido da pena capital.
A obra clássica a respeito do direito processual canônico foi as
Decretais do Papa Gregório IX, tendo sido encomendadas ao dominicado
espanhol Raimundo de Penaforte368. Essas decretais foram divididas em
5 livros, tratando o segundo a respeito do processo canônico.
368
PRATA. Op. cit. p., 112. As Decretais de Gregório IX não são uma simples compilação, porém
um verdadeiro código, cuja redação se encomendou ao dominicado espanhol Raimundo de Penaforte,
confessor do Papa Gregório IX, antigo professor de Lógica em Barcelona e de direito canônico em
Bolonha.
282
O direito processual canônico se desenvolvia a partir do
comparecimento do autor perante o juiz369 370 que lhe concedia um prazo
para que trouxesse seu pedido por escrito371, devendo constar do mesmo
os nomes completos do autor e do réu; a motivação da causa; o
procedimento escolhido pelo autor e o nome do juiz. A citação do réu era
realizada pelo juiz, sendo, contudo, a petição entregue ao demandado
diretamente pelo demandante na presença do juiz. Havia diferenças
quanto a forma do pedido nas ações reais e pessoais, quanto àquelas
deveria haver maior detalhamento na elaboração do escrito.
Em sua defesa, o réu poderia alegar as exceções dilatórias a
respeito das quais se manifestava o juiz antes de abrir o prazo para a litis
contestatio372
373
. O réu poderia também reconvir, sendo que neste caso,
a competência do tribunal eclesiástico era prorrogada, pois, segundo o
direito canônico, o tribunal da Igreja estava investido de competência
universal. Em seguida, as partes prestavam o juramento que consistia em
369
TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 37. Os detentores do poder jurisdicional, no âmbito da igreja,
eram os bispos, os metropolitanos, os arcebispos, os patriarcas, os pontífices e o sínodo. Este era um
órgão colegiado, composto de diáconos, presbíteros e bispos.
370
TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 38. Os juízes tinham competência plena e exclusiva no âmbito
territorial de suas respectivas paróquias (dioceses). A competência em razão do valor não guardava
qualquer aspecto com a expressão econômica do litígio, mas, sim ,com a relevância que esta possuía.
371
TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 38.O processo se iniciava com a tentativa de conciliação, que
consistia em um ato informal cuja finalidade era a concórdia entre os litigantes. O fundamento desse
instituto processual advém de valores da ética cristã.
372
PRATA. Op. cit. p., 114. A entrega da demanda pelo demandante e sua oposição à mesma pelo
demandado constitui a litis contestatio. Por este ato formal que representa o fundamentum et initium
ipsius iudicii, formaliza-se o objeto do litígio e seu respectivo processo, vedando-se daí por diante
qualquer alteração unilateral da demanda.
373
TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 61. A presença das partes era imprescindível para a celebração da
litis contestatio.
283
um ato formal, através do qual era firmado o compromisso de não
caluniar e mentir em juízo374. O processo canônico valorizou a ética
como um preceito na relação jurídico-processual.
No direito processual canônico, surgiu a noção a respeito da
preclusão, pois desenvolveu-se a idéia a respeito das fases do processo,
as quais eram desenvolvidas de modo encadeado e sucessivo.
A fase probatória era regida pela lei, admitindo-se as provas
documental, testemunhal, pericial e a inspeção judicial. A confissão
desonera o acusador da prova do fato admitido pelo acusado. O ato de
comunicação da sentença ocorria na presença das partes, sendo aquela
proferida após o encerramento da instrução pelo juiz. A sentença deveria
designar o prazo para o seu cumprimento, que não deveria ser inferior a
15 dias nem superior a 6 meses.
O recurso de apelação era admitido das decisões injustas,
contudo, em caso de revelia, de juízo arbitral e depois de dois recursos
interpostos pela parte, não era cabível a via recursal. A apelação devolvia
integralmente a causa para novo julgamento, logo, todos os aspectos da
demanda poderiam ser revistos. Em relação às sentenças nulas, o recurso
adequado era o de cassação. Via de regra, os recursos apresentavam o
374
TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 61. O autor que houvesse oferecido prova plena de seu direito não
estava, todavia, obrigado a jurar.
284
efeito devolutivo e suspensivo, sendo conhecidos e julgados por
autoridade hierarquicamente superior.
As sentenças transitadas em julgado poderiam ser executadas
através de requerimento do exeqüente ou de ofício pelo juiz375. Naqueles
casos em que não tivesse sido fixado o prazo para o cumprimento da
obrigação da sentença, o executor deveria fixá-lo, respeitando os limites
temporais antes mencionados376. O juízo competente para a execução era
o mesmo da cognição, excepcionando-se os casos em que as partes
fossem religiosos, então a execução seria instaurada perante o superior
daquele que proferiu a sentença. Com fundamento nesta observação, “a
doutrina
especializada
reconhece
a
natureza
prevalentemente
administrativa da execução”377.
Era admitida a execução provisória que, contudo, poderia ficar
sujeita a prestação da caução quando houvesse o risco do dano
irreparável.
375
TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 145. A via do processo de execução é aberta após o “decreto
executório” constante do próprio título judicial ou proferido em momento ulterior (c. 1651). E isto se
justifica porque, em algumas hipóteses, impõe-se prévia liquidação da sentença (c. 1652).
376
TUCCI;AZEVEDO. Op. cit. p., 146. Tratando-se de ação real imobiliária, determina o cânone
1.655, § 1º, que a entrega do bem ao exeqüente deve ser cumprida em imediata seqüência ao trânsito
em julgado.
377
TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 145.
285
Havendo a nulidade da sentença ou a restitutio in integrum378,
o executor poderia deixar de promover a execução, comunicando tal fato
às partes e devolvendo o processo ao juízo de origem.
Apresentados sumariamente alguns aspectos do direito
processual canônico, considera-se importante mencionar que o mesmo
passou por diversas alterações, sendo que, em 1317, João XXII que
exerceu o papado entre 1316 e 1334, através da bula Quoniam nulla
reconheceu oficialmente as clementinas que instituíram o processo
sumário.
Após a publicação, em 1500, por Jean Chappuis de uma
coleção de textos reunindo o Decreto de Graciano, as Decretais de
Gregório IX, o Sexto de Bonifácio VIII, as Clementinas e as
Extravangantes considerou-se instituído o Corpus iuris canonici, o qual
foi alterado por diversas vezes até que em, 2 de junho de 1582, a Santa
Sé aprovou e publicou uma edição oficial do Corpus iuris canonici.
Neste texto, estavam incluídas as Instituições de Paolo Lancelotto que
continha, no livro 3, as normas de processo civil.
Em 1917, foi promulgado pelo Papa Benedito XV o Codex
Iuris Canonici que vigorou a partir de 1918 até 1983, quando entrou em
378
TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 156. A restitutio in integrum constitui um remédio extraordinário
de impugnação da sentença injusta, aparentemente válida, já transitada em julgado.
286
vigor o atual Código de Direito Canônico379. Durante os séculos XII a
XV, o direito canônico ao lado do estudo do direito romano teve grande
preponderância, inclusive exercendo um papel fundamental na
constituição
do
direito
comum
adotado
contemporaneamente.
Atualmente, este conjunto de lei da Igreja Católica Apostólica Romana
tem aplicação restrita às causas que dizem respeito às questões
eclesiásticas e relacionadas com os membros do clero ou dos fiéis que
professam o seu credo. Ressalta-se, no entanto, que quanto aos princípios
éticos ou morais, o direito canônico conserva sua importância.
Podem ser enumerados os seguintes princípios do direito
canônico que são basilares para o direito processual em geral: princípios
éticos como o dever de dizer a verdade, a adoção da eqüidade nos
julgamentos e da boa-fé das partes; limitações aos poderes do juiz, que,
embora, inicialmente, não precisasse fundamentar a sentença, com a
evolução dos institutos do direito canônico submeteu suas decisões à
lógica e às regras de experiência da vida; valorização da solução
negociada diretamente entre as partes, buscando, através da conciliação
prévia, da transação e da arbitragem, a composição direta dos interesses
conflituosos. Além desses princípios, podem ser mencionadas, ainda, a
379
TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 76. O novo Código de Direito Canônico para a Igreja católica
latina foi promulgado pela constituição apostólica Sacrae disciplinae leges Catholica Ecclesia, do
Papa João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983, tendo entrado em vigor em 27 de novembro deste
mesmo ano.
287
adoção do procedimento escrito, a admissão das exceções, a
regulamentação do sistema probatório e a exigência da caução. Estes
princípios foram desenvolvidos pelo direito canônico.
O processo canônico foi desenvolvido com vistas à unidade, à
segurança e à organização. Esteve voltado para a busca da perfeição,
considerando-se que a finalidade da Igreja foi e ainda é em grande parte
vinculada à realização da “justiça” de Deus na terra380. Para alcançar este
objetivo serviu-se o processo canônico da lógica.
Apesar da nobreza e grandiosidade do processo canônico, este
sempre esbarrou no problema da morosidade381. Seu procedimento era
complexo e demorado porque comportava uma infinidade de atos
processuais, sendo o desafio da celeridade uma das constantes no direito
processual canônico. Esta afirmação fica evidenciada com a criação de
um rito sumário onde os prazos foram reduzidos e a oralidade sempre
tem uma grande importância.
Há que se ressaltar, entretanto, que os valores do direito
processual canônico estão voltados para a fraternidade, harmonia,
eqüidade e solidariedade, donde se conclui que sua realização muitas
vezes demanda um considerável período de tempo.
380
TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 162. A preocupação quanto à realização da justiça, ao dispor o
direito canônico que a coisa julgada só corria depois de três sentenças conforme ... ,depois reduzida a
duas sentenças conformes ... . Além disso, a colocação tradicional de que as sentenças proferidas nas
causas sobre o estado das pessoas jamais passariam em julgado. É o que ocorre também na atualidade.
288
Afirmar que o direito processual comum ocidental está
embasado no Corpus Iuris Civilis tem algumas implicações dentre as
quais a de maior relevância é o fato do transcurso do longo período de
tempo existente entre o período justinianeu até à contemporaneidade. Por
outro lado, há os aspectos inerentes às transformações social, econômica
e, por via de conseqüência, jurídica ocorridas ao longo desses quase dois
mil anos de história.
Acredita-se que o fio condutor da história do direito ocidental,
o viés das experiências jurídicas ao longo do tempo, a partir do século II,
pode ser atribuído ao direito canônico, o qual associou valores cristãos
do direito romano e do direito germânico para organizar um direito
processual consentâneo com os valores socioeconômico e cultural da
Baixa Idade Média e do início da Idade Moderna. As realidades sociais e
o modelo econômico implantado a partir da Idade moderna alteraram
significativamente a forma da jurisdição e o direito processual.
Foi estruturado, durante o período do processo judicialista, um
modelo jurisdicional canônico que era compartilhado pelos Estados
nacionais nascentes. Como já afirmado, o sistema processual dessa época
era complexo e moroso, tornando necessários os estudos de caráter mais
381
LOPES. Op. cit. p., 99. É no campo da jurisdição e do processo que a influência do direito
canônico torna-se determinante.
289
pragmáticos que possibilitassem soluções práticas mais adequadas a uma
sociedade mercantilista.
7.5 PROCESSO PRAXISTA
O período dos práticos inicia na Idade Moderna em 1563 e
termina na Idade Contemporânea em 1806, estando intrinsecamente
vinculado com a necessidade de dar maior agilidade e praticidade a
aplicação da “justiça”.
A Idade Média é uma época de transição, ocorrendo a negação
do mundo medieval, a formação do capitalismo, a consolidação dos
ideais de progresso e desenvolvimento e o reforço do pensamento
racionalista e individualista. Os valores da burguesia ascendente se
contrapõem à ideologia católico-feudal, tendo em vista o objetivo de
conquistar o espaço social, político e ideológico.
Outros aspectos importantes como a alfabetização da
população, o surgimento da indústria gráfica e a publicação das obras no
idioma local foram preponderantes para que o sistema feudal fosse
enfraquecido até à consolidação do predomínio do capitalismo. Tais
circunstâncias podem ser atribuídas a fatores diversos, mas acredita-se
que a burguesia tenha interferido em todos estes acontecimentos, uma
290
vez que tinha interesses na desestruturação do feudalismo, onde não lhe
era reservado um espaço de poder. Dessa forma, foi buscar apoio entre o
povo proclamando os ideais da liberdade, onde se questionava os
tributos cobrados pelos senhores feudais para a locomoção em seus
territórios e sobre as transações ali realizadas; da igualdade, discutindo o
papel da nobreza decaída; e da fraternidade, questionando o papel da
Igreja quanto à disseminação da ideologia do amor ao próximo.
Os estudos do direito realizados nesse período são voltados
para a solução de problemas práticos relativos ao funcionamento da
justiça, havendo uma despreocupação e um afastamento em relação às
questões teóricas que caracterizaram o período anterior.
Podem ser reconhecidas as seguintes causas que justificam o
surgimento do praxismo: as dificuldades que os juristas enfrentavam
para realizar os estudos dos textos em latim do direito romano; a
necessidade de conhecer as coisas locais e contemporâneas; o
surgimento de um mercado de livros e a necessidade de obras jurídicas
que tratassem das questões práticas do direito.
Os estudos realizados pelos praxistas não tinham uma
sistematicidade ou um método. Nos comentários produzidos nesse
período, os autores se limitavam a se repetir uns aos outros as obras,
291
embora tivessem um conteúdo prático, não apresentavam nenhuma
didática.
O direito era tratado como arte, havia uma preocupação com o
embelezamento do comentário produzido, neste sentido os praxistas
chegavam a afastar-se do texto legal, distorcendo o seu sentido por
considerarem que seu trabalho era mais importante que a própria lei.
Com base na herança do direito romano, os praxistas382
entendiam que o processo tinha a natureza jurídica de um quase-contrato,
uma vez que uma de suas características seria o livre consentimento das
partes. A litis contestatio era um ato bilateral, de modo que a ausência da
manifestação da vontade de uma das partes impedia a formação da
relação jurídico-processual. No direito romano clássico, a primeira fase
do processo tramitava frente a um juiz que representava a autoridade
romana e a segunda fase se desenrolava de acordo com a escolha das
partes, as quais manifestavam sua vontade em submeter a causa a um
terceiro para o julgamento.
O direito processual era considerado adjetivo em relação ao
direito material que era substantivo, dessa forma, estabeleciam uma
382
PRATA. Op. cit. p., 131. Praxistas seriam os autores que escreveram sobre matéria processual e
práticas notariais.
292
relação de dependência do processo ao direito material383.
O direito processual era considerado simplesmente como o
estudo da prática forense e da beleza da forma.
Os estudos do processo realizados pelos praxistas foram muito
criticados, porque suas obras se limitavam a tratar das práticas forenses
que deveriam ser adotadas sem preocupações técnicas ou teóricas.
Assim, seus trabalhos apresentavam falhas, porque não adotaram um
método de estudos e nem mesmo se preocuparam com a coerência na
apresentação. Também não há notícias de que tenham almejado o
resultado pretendido, ou seja, não conseguiram simplificar e agilizar o
processo.384
Apesar das críticas que foram feitas em relação ao trabalho
produzido pelos praxistas385, houve contribuições para o direito que se
desenvolveram nesse período. Considera-se que a principal contribuição
foi a popularização do direito, o que ocorreu em virtude da alfabetização
da população, da adoção do idioma local nas obras literárias e do
surgimento da indústria gráfica que fornecia as obras jurídicas para os
383
PRATA. Op. cit. p., 128. Outra crítica injusta é a de que os praxistas misturavam normas de direito
processual com as de direito material. Ora, todos os escritores procediam assim. Até nosso Código
Civil, do início do século, está recheado de normas do direito processual. Não podemos nos esquecer
de que o direito processual nada mais era do que direito adjetivo.
384
PRATA. Op. cit. p., 127. Quem quiser examinar a obra dos praxistas com sério cuidado científico
terá que se lembrar, antes de mais nada, que eles produziram seus livros durante o período mais negro
da História da Humanidade, qual seja o da Inquisição.
385
PRATA. Op. cit. p., 127. Esta imagem, dos praxistas, na realidade, foi algo distorcida pelos
pregoeiros do processualismo científico, cujos estudos merecem toda consideração dos doutos.
293
estudos. No contexto do surgimento e posterior consolidação dos
Estados Nacionais a disseminação do direito teve preponderância.
Os praxistas produziram importantes trabalhos a respeito do
recurso de apelação, do conceito de instâncias e da intervenção de
terceiros. Embora seus trabalhos não apresentassem um método, tiveram
a preocupação de entender o processo como o desenvolvimento de
situações jurídicas, ou seja, como uma relação sucessiva de atos
processuais. A citação era considerada um instituto de direito natural.
Esse período teve uma importância considerável para o direito
português, sendo que o termo praxista foi usado em algumas situações
para designar todos os juristas portugueses. O praxismo português se
originou do direito romano e do direito canônico, havendo o predomínio
deste principalmente naqueles aspectos em que o direito português dessa
fase apresentou melhores níveis teóricos e científicos. Considerando que
no Brasil inicialmente foi aplicado o direito de Portugal, considera-se
adequado afirmar que a formação do direito brasileiro está vinculada ao
praximo português.386
O conteúdo das obras jurídicas desse período se referia a
apresentação de modelos de formulários que deveriam ser adotados em
386
PRATA. Op. cit. p., 142. O praxismo brasileiro descende dos portugueses, especialmente de
Pereira de Sousa, Lobão, Correia Teles, Manuel Mendes de Castro e outros. ... O direito processual
brasileiro origina-se diretamente do direito lusitano. Mesmo depois da Independência nacional, os
doutrinadores portugueses continuaram influindo grandemente na formação da cultura jurídica pátria.
294
cada caso. A parte artística da prática forense era a jurisprudência
formulária387.
Conquanto durante o processo praxista a finalidade dos juristas
tenha sido dar operacionalidade e rapidez ao processo, houve abuso por
parte dos juízes e dos advogados que ignoravam as formalidades,
transformando a argumentação forense em uma ginástica de chicanas,
confundindo a prudência com a astúcia.
Ao praxismo foi sucedido pelo período procedimentalista que
manteve como centro de suas preocupações as questões pragmáticas
relativas a aplicação do direito, mas que estudou o processo não apenas
como prática forense.
7.6 PROCESSO PROCEDIMENTALISTA
Este período da história do direito processual representa uma
fase intermediária entre um momento em que o processo foi confundido
com o procedimento e seus estudos eram voltados para a criação de
modelos no estilo formulários e a constituição de um arcabouço teórico
que possibilitou o reconhecimento de sua autonomia e da sua
387
PRATA. Op. cit. p., 134. Consiste ela na confecção da forma literal dos fatos jurídicos, isto é, das
fórmulas forenses. O complexo das fórmulas forenses, para serem aplicadas mutatis mutandis a cada
caso particular, denomina-se – formulário forense.
295
cientificidade. O procedimentalismo está intimamente ligado com a
Revolução francesa388 que, naquele momento histórico, representou os
maiores avanços quanto à organização de um novo sistema de produção,
tendo havido a superação da economia feudal e a estruturação da
economia capitalista.389
A Revolução Francesa é a demonstração de que a burguesia
estava pronta para assumir o poder e abrir o espaço necessário para o
desenvolvimento do capitalismo. A primeira fase do movimento
revolucionário que compreende o período entre 1789 e 1799, foi bastante
tumultuado, contudo, permitiu que fossem estabilizadas as disputas
existente em os burgueses, sobretudo, entre os girondinos e os jacobinos.
No século XVIII, a burguesia dominava a economia francesa,
porque o comércio, a indústria e as finanças estavam prevalentemente
sob seu controle. No entanto, o poder político permanecia com a nobreza
388
PRATA. Op. cit. p., 158. A França é a pátria do procedimentalismo, razão pela qual se constitui
numerosa a galeria dos adeptos da corrente no país.
389
WOLKMER. Op. cit. p., 417. A grande tentativa de reforma e ruptura do sistema judicial e
processual deu-se com a Revolução Francesa, no que diz respeito ao direito continental. As
funções judiciais haviam sido apropriadas por toda parte como cargos patrimoniais, como são até hoje
os cartórios privados. O processo revolucionário desejava incluir a justiça na esfera da cidadania
formal e liberal, e para tanto impôs novas características. Em primeiro lugar, toda justiça precisava
ser (re)ligada diretamente ao Estado as jurisdições não estatais foram supridas (como a eclesiástica)
ou consideradas existentes por permissão e sob a supervisão do Estado (como os tribunais mercantis).
Em segundo lugar, considerando que a soberania popular se exercia pela eleição dos oficiais
públicos, havia dois caminhos a seguir quanto ao aparelho judicial ou se elegiam os juízes (solução
adotada inicialmente e para algumas jurisdições), ou se subordinavam os juízes à vontade popular
expressa nas leis votadas pelos representantes eleitos (solução que se generaliza). Nesse segundo
caso, o aparelho judicial transformou-se num corpo profissionalizado de servidores públicos, gozando
de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Trata-se de um novo processo
de profissionalização, que cooperava para o isolamento de uma corporação profissional dentro
do Estado, ao lado do Exército regular e profissional que também se estabeleceu. (grifo nosso)
296
e o clero que gozavam de privilégios fiscais e judiciários, os quais não se
estendiam àqueles. Esta situação criava contradições e contrastes
insuperáveis, pois, o Rei Luis XVI exercia seu poder de forma absoluta,
embasado na teoria do direito divino dos reis com o quê a burguesia era
excluída do centro das decisões, entretanto, sendo obrigada a arcar com
os custos da manutenção daquele Estado absolutista. Há outros fatores
que influenciaram a revolução, a respeito dos quais se optou por não
estudá-los para evitar o distanciamento do tema central.
Em 1789, com a queda da Bastilha, foi inaugurada uma nova
fase na política francesa, a qual estava amparada ideologicamente pelo
Iluminismo e pelos princípios da igualdade perante a lei, o direito de
propriedade e o direito da resistência à opressão. A primeira Constituição
da França data de 1791 e estabeleceu uma monarquia Constitucional,
sendo a autoridade estatal exercida por três poderes, executivo,
legislativo e judiciário; o voto era censitário; previa a proibição da greve
e da associação de trabalhadores. Através desta Constituição, houve a
separação entre a burguesia e o povo. Também em 1791, foi proclamada
a república na França.
Em 1793, o Rei Luis XVI foi guilhotinado o que gerou a
primeira coligação dos países da Europa contra a França, visando à
contenção da burguesia, que poderia insurgir-se em outros locais caso a
297
Revolução Francesa obtivesse êxito. Nesse momento, a burguesia
ocupava o poder estando dividida entre os girondinos que desejavam
consolidar as conquistas burguesas, estancar a Revolução e evitar a
radicalização. Nas reuniões do parlamento, sentavam-se à direita; os
deputados da planície sentavam-se no centro, estes não tinham uma
posição política previamente definida; e à esquerda, localizavam-se os
jacobinos que representavam a pequena burguesia que liderava os sansculottes, defensores do aprofundamento da Revolução.
O termo sans-culottes refere-se ao povo, porque usavam calças
compridas em vez dos calções até ao joelho usados pela burguesia.
Indicava socialmente os pequenos comerciantes e assalariados,
posteriormente, o termo foi restringido às pessoas do povo que tivessem
engajadas no processo político revolucionário.
Esses grupos disputaram espaços durante todo o período da
Revolução Francesa, sendo que após várias fases se sucedendo no
domínio do poder, em 1799, com o golpe do 18 brumário foi instalado na
França o regime do Consulado representado por três elementos que
eram: Napoleão, Sieyès e Roger Ducos. Napoleão, que representava os
girondinos, exercia uma clara liderança sobre os demais membros do
Consulado, iniciando-se a era napoleônica.
298
O poder exercido por Napoleão foi uma decorrência de seus
êxitos como membro do exército, tendo chegado a general aos 24 anos
de idade, o que lhe atribuía a característica da disciplina e comando; da
insatisfação da burguesia com a instabilidade permanente que
atrapalhava o seu crescimento econômico; e do apoio do campesinato
para o qual havia garantido a posse das terras expropriadas da Igreja e da
nobreza emigrada.
É importante perceber o contexto político em que se constitui
o procedimentalismo, principalmente porque está associado à Revolução
Francesa que tem significado o momento final do feudalismo e a
implantação do capitalismo. Houve uma completa alteração nos
paradigmas que, naturalmente, refletiram-se no campo do direito.
Estavam sendo constituídas as condições para uma sociedade organizada
e progressista, contudo, mais excludente.
Em 1804, foi promulgado o Código Civil de Napoleão e, em 1º
de maio de 1807, entrou em vigor o Código de Processo Civil da França
o qual influenciou todo o direito processual no continente europeu,
sobretudo, os países que foram dominados pela França. O Código de
Processo Civil francês de 1807 caracteriza-se pelo procedimentalismo,
portanto, sendo supervalorizada a questão probatória e o procedimento,
ou seja, os atos praticados pelas partes, pelo juiz e auxiliares da justiça
299
no processo. Fundamentalmente, os procedimentalistas diferenciaram-se
dos praxistas porque adotaram um método de estudo, preocupando-se
com a criação de uma técnica processual que pudesse assegurar
resultados efetivos na prestação jurisdicional.
Considera-se interessante mencionar que a França, em 1667,
através da “Ordennance” de Luis XIV, havia codificado o direito
processual de forma metódica, desde então, cogitando a separação entre
o direito formal e o direito material. Em 1790, houve um movimento
reformista do processo civil francês, o qual visava a redução dos prazos
para apelar; a obrigatoriedade da fundamentação das sentenças; a
simplificação das formalidades processuais; o ius postulandi que
posteriormente foi substituído pela obrigatoriedade do profissional do
direito e o retorno da Corte de Cassação.
Nesse ambiente, o Código de Processo civil francês de 1807 se
insere em uma seqüência histórica de desenvolvimento do direito
naquele país, onde desde a fase praxista eram vislumbradas questões
técnicas e teóricas ainda ignoradas em outras regiões da Europa.
Justifica-se,
portanto,
o
papel
de
destaque
da
França
no
procedimentalismo que atualmente ainda é a referência teórica adotada
naquele país.
300
Entende-se adequado afirmar que, sob o prisma historicista, os
contornos do processo contemporâneo foram introduzidos na Revolução
Francesa e, através do procedimentalismo, nesse sentido alguns aspectos
são relevantes como a profissionalização da justiça e a busca da
uniformização dos procedimentos. O sistema recursal era fundamental,
pois permitia a supervisão e o controle político permanente das
instâncias inferiores pelas instâncias superiores.
A profissionalização da justiça e a uniformização do
procedimento se traduziram em uma crescente formalização do processo
que passou a operacionalizar com o conceito de verdade formal, o que,
no campo probatório, repercutiu na medida em que o convencimento do
julgador passou a ter parâmetros mais estreitos e, por outro lado,
possibilitou a revisão das provas através dos recursos. Ainda naquele
sentido, eram admitidos os recursos fundados em questões de natureza
meramente formal.
Percebe-se a existência de um fundamento ideológico na
reforma do processo ocorrido na Revolução Francesa que se refere à
estabilização dos meios da aplicação da lei e da realização da “justiça”
através exclusivamente do Estado burguês. As implicações dessa atitude
são inúmeras, mas uma pode ser prontamente identificada, como haver
independência
e
harmonia
entre
os
poderes
da
República?
301
Ideologicamente, a estabilização da direita girondina na França dependia
da criação de uma estrutura de controle ligada ao Estado burguês.
A burguesia francesa soube manejar bem com essas questões,
entretanto, no plano funcional e finalístico do direito processual, as
conseqüências têm sido lamentáveis, porque nesse quadro a prestação
jurisdicional é excessivamente onerosa inviabilizando a existência de um
Poder Judiciário tão eficiente quanto seguro, sobretudo, nos países
periféricos do sistema.
O procedimentalismo sob um ponto de vista técnico
estruturou-se melhor que as fases anteriores, contudo, não conseguiu
resolver o problema da realização da “justiça” célebre, segura e efetiva.
7.7 PROCESSO CIENTÍFICO
Seriam os pressupostos do conhecimento científico capazes de
oferecer respostas aos problemas relativos a aplicação do direito material
através do direito processual? A segurança e a efetividade da prestação
jurisdicional podem ser obtidas através do direito processual? Não
parece ser possível, de forma conclusiva, responder a tais questões.
Algumas considerações, contudo, podem ser feitas.
302
Sob o ponto de vista teórico, o processualismo científico
representa um ganho qualitativo para as técnicas de aplicação do direito
material. Quanto à operacionalidade do sistema processual há dúvidas
sobre os seus reais benefícios em termos de funcionalidade e finalidades
a serem realizadas pelo processo. Estas afirmações remetem a um ponto
fundamental do final do século XX, o paradigma da ciência está
corrompido, porque não conseguiu oferecer respostas a inúmeras
questões atinentes à solução efetiva dos problemas do Homem. No
campo do direito estão ocorrendo experiências similares àquelas
verificadas nas ciências naturais. O direito processual como instrumento
reflete, de forma clara, as frustrações produzidas através da quebra das
expectativas em relação à possibilidade de uma “vida melhor construída
pela ciência”.
O reconhecimento do processo como uma relação jurídica que
se desenvolve de acordo com determinados requisitos lógicos, que lhe
impõem princípios ordenadores e asseguradores de um resultado pautado
na eqüidade, foi sintetizada na fase científica do processo, contudo,
houve um período de formulação daquela compreensão, sendo que,
desde a história do direito na Grécia390, há notícias de preocupações com
390
WOLKMER. Op. cit., p. 76. Algo notável no direito grego era a clara distinção entre lei
substantiva e lei processual. Enquanto a primeira é o próprio fim que a administração da justiça busca,
a lei processual trata dos meios e dos instrumentos pelos quais o fim deve ser atingido, regulando a
conduta e as relações dos tribunais e dos litigantes com respeito à litigação em si, enquanto que a
primeira determina a conduta e as relações com respeito aos assuntos litigados.
303
o
aperfeiçoamento
da
técnica
do
direito
processual391.
Do
desenvolvimento desta história resultaram as concepções jurídicas que
formaram o processualimo científico.
A doutrina do processualismo científico foi inaugurada com a
publicação, em 1868, da obra “Teoria das Exceções Dilatórias e dos
pressupostos processuais”, cujo autor é Oscar Von Bülow. Foram
valorizadas questões de caráter teórico, como o problema da autonomia
do processo e sua cientificidade.
Em relação aos períodos anteriores de desenvolvimento do
direito processual, sobretudo, em relação ao praxismo e ao
procedimentalismo,
foram
abandonados
os
estudos
meramente
descritivos e analíticos das práticas forenses. Em substituição, surgiram
estudos
ligados
aos
pressupostos
do
conhecimento
científico
contemporâneo, ou seja, aqueles realizados a partir da definição do
objeto da investigação, da problematização, da justificativa, da
formulação de uma metodologia de abordagem, da adoção de uma
nomenclatura própria para a descrição e explicação do objeto estudado e
391
WOLKMER. Op. cit., p. 70/71. Antes do século VII a.C. os gregos não tinham leis escritas porque
a arte da escrita se perdera (escrita linear B) com o término do período Micênico. A escrita, ... ,
somente foi reaprendida pelos gregos no século VIII a.C. e um dos usos dessa nova arte foi a inscrição
pública de leis. ... o povo grego, em determinado ponto da história (por volta do século VII a.C.),
começou a exigir leis escritas para assegurar melhor justiça por parte dos juízes. ... As palavras de
Teseu nas Suplicantes de Eurípedes (produzida por volta de 420 a.C.) têm sido utilizadas como apoio
a essa posição: ‘Quando as leis são escritas, o pobre e o rico têm justiça igual.’ ... É interessante que
as maiores inovações introduzidas pelos legisladores, nas novas leis escritas, era com respeito ao
processo, justamente o ponto da queixa de Hesíodo. (grifos nossos)
304
a validação pela comunidade científica do conhecimento produzido.
Nesse contexto, o direito processual teve reconhecida a sua
natureza jurídica publicística, uma vez que sua aplicação está
diretamente ligada ao interesse do Estado392 em assegurar determinados
meios aos indivíduos ou mesmo às coletividades, visando à manutenção
ou restabelecimento da paz social393. Assim, foram definidos os pontos
que separam o direito processual e o direito civil e comercial, estes com
reconhecida natureza jurídica privatística.
Tendo em vista o caráter científico reconhecido ao direito
processual foram elaborados os conceitos fundamentais que deram
sustentação à Teoria Geral do Processo. Neste sentido, Ramiro Podetti
identificou a trilogia estrutura da ciência processual394, qual seja,
jurisdição, ação e processo.
Os codigos de processo do século XX surgiram como
392
ALVIM. Op. cit. p., , 91. Se o processo é meio a perseguir um fim – que se aceita como axioma –
põe-se relevante que a técnica é elemento fundamental no tratamento da disciplina. O escopo do
processo é, na realidade, não exclusivamente a consecução de um interesse privado das partes, mas
principalmente de um interesse público de toda a sociedade.
393
ALVIM. Ob.cit. p. 89. Em 1868, Oskar von Bülow publicou célebre obra, intitulada ‘Teoria das
Exceções Dilatórias e dos Pressupostos Processuais’, em que distinguia, com nitidez, o direito
material controvertido e o processo, através do qual se resolvia aquela. A relação material litigiosa
(res in judicium deducta) era, pois, algo de diferente da relação jurídica processual (judicium). Esta
conceituação foi de extraordinária importância, eis que o processo ficou conhecido como verdadeiro
‘continente’ e a lide (retrato do direito material expressado no processo – arts. 128, 460, caput) como
o seu ‘conteúdo’. A partir desta distinção passou-se a identificar, na principiologia do processo, a
predominância da marca do Direito Público.
394
J. Ramiro Podetti. Teoria y Técnica del Processo Civil da Trilogia Estructual de la Ciencia del
Processo civil.
305
decorrência da estruturação do direito processual395, sendo significativos
modelos de sistematicidade, organização e método. Os temas são
apresentados de forma compartimentada e de acordo com a classificação
das ações segundo a eficácia pretendida no pedido, o que demonstra o
comprometimento com os paradigmas constituídos pela ciência do
processo396.397
O processualismo científico reflete um momento histórico
onde se cristalizaram as teorias positivistas. O século XIX pode ser
considerado um período de transição entre o mundo clássico e a
modernidade com seus estilos romântico e realista se sucedendo. O
Estado moderno se estruturou nesse período e o direito como
instrumento de regulação nos Estados nacionalistas teve seu campo de
atuação definido, ou seja, os ambientes sócio-político-jurídico estavam
395
PRATA. Op. cit. p., 187. O Código de Processo Civil de 1939 trouxe no seu bojo os postulados
abraçados pela nova ciência processual. Aproveitou a doutrina chiovendiana da oralidade processual.
Disciplinou condignamente o processo de conhecimento, mas manteve o processo de execução
preso a um sistema de cognição, desfigurando-o até certo ponto. Assim, apesar do grande
avanço num confronto com os códigos estaduais, por ele revogados, o estatuto processual
elaborado por Pedro Batista Martins não conseguira renovar a legislação processual brasileira
como se esperava, fato este que os estudiosos iriam observar desde logo ... (grifo nosso)
396
O Código de Processo Civil de 1973 é ilustrativo da adoção do processualismo científico no Brasil.
Observa-se o rigor na abordagem dos temas, assim, o Livro I trata das questões conceituais próprias
da Teoria Geral do Processo, dos procedimentos no processo de conhecimento, dos processos nos
tribunais e dos Recursos; o Livro II dispõe a respeito do processo de execução; o Livro III
regulamenta o processo cautelar; o Livro IV trata dos procedimentos especiais; e o Livro V regula as
disposições finais e transitórias. Como se verifica houve a preocupação por parte da comissão relatora
do Código em lhe dar uma vertente teórica.
397
Exposição de Motivos do Código de Processo civil de 1973. Alfredo Buzaid. Capítulo I. As
palavras do insigne mestre italiano que servem de epígrafe a esta Exposição de Motivos, constituem
grave advertência ao legislador que áspera a reformar o Código de Processo Civil. Foi sob a
inspiração e também sob o temor desse conselho que empreendemos a tarefa de redigir o projeto, a
fim de pôr o sistema processual civil brasileiro em consonância com o progresso científico dos
tempos atuais.(grifo nosso)
306
preparados para a superação do pluralismo jurídico e a adoção de um
direito unicamente originado do Estado.
Deve ser considerado o fato de que o processualismo científico
e a teoria pura do direito estão inseridos em um momento histórico
conhecido pela racionalização do poder398. As teorias constituídas nesse
período têm o mérito de apresentar um elevado nível científico,
inclusive, porque estavam ligadas à idéia da importância do método de
investigação. Observa-se que conquanto seja possível identificar um bom
nível teórico-científico neste período, o problema concernente à
complexidade da aplicação prática do arcabouço conceitual criado ainda
não foi resolvido. Esta questão se torna mais evidente nos países cuja
estrutura do Estado apresenta-se desgastada seja pelo endividamento
interno e externo ou pela burocracia anacrônica que abre espaços para a
corrupção.
Dessa forma, os contornos da questão da efetividade e da
segurança da prestação jurisdicional pode ser objeto tanto do direito
como da administração pública, uma vez que o Poder Judiciário não tem
398
DINIZ. Op. cit. p., , 116-117. O racionalismo dogmático, ou melhor, a teoria kelseniana, expressão
máxima do estrito positivismo jurídico, é uma repercussão ideológica de sua época, é uma
conseqüência da decadência do mundo capitalista-liberal, marcado pela Primeira Guerra Mundial.
Para a ciência jurídica, segundo essa doutrina, não importa o conteúdo do direito. Isto porque, como
nos ensina Machado Neto e Legaz y Lacambra, essa teoria, fruto da época denominada
“racionalização do poder”, devia reconhecer a existência de ordens jurídicas de conteúdo político,
diverso do conteúdo liberal ou social-democrático que exibia nos povos europeus ocidentais. Deveria
constituir-se numa teoria do direito que tivesse condições conceituais para admitir a existência ao lado
do direito democrático-liberal, de um direito soviético, fascista, nazista.
307
autonomia financeira, portanto, permanecendo na “dependência”
orçamentária da União e dos Estados, e, ainda, do Poder Legislativo, na
medida em que não tem plena autonomia gerencial para determinar a
criação dos órgãos jurisdicionais399.
A importância da formulação dos conceitos e métodos
próprios elaborados pelo processualismo científico através da Teoria
Geral do Processo e a posterior Constitucionalização dos princípios
processuais como meio de resguardar os direitos individuais e coletivos
postos em juízo pode ser considerada fundamental para a segurança
jurídica. Inegável, contudo, é a insatisfação dos jurisdicionados com os
resultados apresentados pelo Poder Judiciário em termos da realização
efetiva da prestação jurisdicional. Esta situação agravou-se após 1988,
pois, com a promulgação da Constituição brasileira se reconheceram
novos direitos, o que levou o legislador a criar as leis que os
regulamentasse. A ampliação das tutelas individual e coletiva provocou a
expansão da jurisdicionalização das relações jurídicas e a sobrecarga de
trabalho do Poder Judiciário, o qual já se encontrava abarrotado.
399
Exposição de Motivos do Código de Processo civil de 1973. Alfredo Buzaid. Capítulo I. Depois de
demorada reflexão, verificamos que o problema era muito mais amplo, grave e profundo,
atingindo a substância das instituições, a disposição ordenada das matérias e a íntima
correlação entre a função do processo civil e a estrutura orgânica do Poder Judiciário.
Justamente por isso a nossa tarefa não se limitou à mera revisão. Impunha-se refazer o Código em
suas linhas fundamentais, dando-lhe novo plano de acordo com as conquistas modernas e as
experiências dos povos cultos. Nossa preocupação foi a de realizar um trabalho unitário, assim no
plano dos princípios, como no de suas aplicações práticas. (grifos nossos)
308
Embora não se esteja trabalhando com dados estatísticos, mas
com verificações obtidas a partir dos registros doutrinários e com as
justificativas dos movimentos reformistas do direito processual no
Brasil, há consideráveis razões para admitir a transformação do sistema
processual, bem como a ruptura com os postulados da sua cientificidade,
o que há indícios de que já tenha ocorrido.
Acredita-se na necessidade da identificação das novas
referências teóricas do direito processual no Brasil, pois não parece ser
possível obter a estabilização, no sentido da segurança e efetividade, das
relações jurídicas no campo jurisdicional a partir de casuísmos,
sobretudo, porque os ambientes sócio-político-cultural onde incide o
direito contemporaneamente é altamente complexo e extremamente
susceptível à influência do ambiente econômico.
Observa-se que, desde 1994, quando se intensificou o
movimento de reforma do Código de Processo Civil brasileiro, o modelo
adotado em 1973 vem passando por alterações consideráveis, sendo mais
relevantes sob o ponto de vista científico aquelas que implicaram na
obstrução dos compartimentos que separam os processos de acordo com
a eficácia pretendida no pedido, ou seja, não há nenhum critério razoável
para a classificação das ações atualmente, logo, o sistema ternário
adotado pelo Código não corresponde à situação atual, assim como a
309
classificação quinária segundo as potências contidas na sentença
apresentada por Pontes de Miranda400 também se revela insuficiente para
explicar a ocorrência dos atos executivos no âmbito da cognição, do
mesmo modo no que se refere à antecipação da tutela, com sua natureza
acautelatória.
O paradigma atual do direito processual brasileiro se assenta
na sua instrumentalidade, acredita-se, contudo, que ainda não tenha sido
sintetizado pela doutrina o adequado aparelhamento teórico que
resguarde o processo dos influxos dos ambientes sócio-políticoeconômico. Esta é uma das causas pela qual o direito processual está
sendo apropriado como meio para a realização dos interesses dos grupos
que dominam a cena política e econômica no Brasil.401 Logo, questões
teóricas basilares como aquelas referentes aos critérios para a
classificação das ações, parecem irrelevantes, ou pouco importantes, ou,
objeto de discussões sem caráter pragmático.
400
MIRANDA, Pontes de Francisco Cavalcante. Tratado das ações., t.1.
BECKER. L. A.; SANTOS, E. L. Silva. Elementos para uma Teoria Crítica do Processo, p. 47. A
instrumentalidade do processo surge como necessidade de criar um novo tipo de discurso nada
científico – já que sua finalidade é conferir o atributo de disciplina nada científica a esse ramo da
mecânica – ... Qualquer linguagem pseudocientífica, inclusive as da robótica, nesse passo, ajuda a
preservar nichos de poder, seja o do economista, seja o do processualista, seja o do robô. ... O direito
em geral e o processo em particular, para que sejam estudados com um mínimo de seriedade, precisam
constantemente ser acompanhados da seguinte questão: afinal, a que interesse econômico tal ou qual
instituto jurídico (processual) visa a defender? A questão não é ‘justiça de quem’ (Macintyre), mas
‘justiça para quem’ (ver Horkheimer, Max, Op. cit. p., , 45). Sem essas questões, que lhes expõem a
ideologia, os operadores do direito continuarão comendo a poeira dos economistas (que, aliás, na é
pouca) a ponto de serem descartados pelo mercado que defendem tão ardorosamente, qual velhas
vassouras esquecidas na despensa.
401
310
As referências teóricas elaboradas pela ciência, no entanto,
têm sido consideradas os pontos de sustentação do conhecimento
contemporâneo, por isso a verdade sobre um determinado objeto de
investigação é sempre relacionada com as teorias e métodos que estão
sendo utilizados para seu estudo. Isto pode ser considerado importante
porque assegurou, ao longo do século XX, o desenvolvimento de todos
os setores da vida contemporânea, em que pese não ter sido possível
trilhar todo o caminho na “longa batalha pela luz”.
311
8 O PROCESSO DE EXECUÇÃO INSTRUMENTAL
A Revolução Francesa representa um momento de transição
paradigmática porque houve a substituição da concepção da vida pautada
em valores metafísicos pela humanização das relações sociais. As idéias
iniciadas na Idade Moderna e que predominaram até à 2ª Guerra
Mundial, correspondem a um momento histórico conhecido como
modernidade402, nesse período, ocorreu a afirmação do Homem como o
centro de referência de todas as coisas. A ciência foi escolhida como o
meio para nortear as ações humanas. Dessa forma, o indivíduo é central
e a ciência é o seu Deus.
A Tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, por artesãos,
operários, camponeses e servos franceses é ilustrativa daquilo que se
sucederia nas camadas sociais, pois demonstra a necessidade da
criação de um sistema de inclusão econômica, social, cultural e legal das
402
TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade, p. 9. A idéia da modernidade, na sua forma mais
ambiciosa, foi a afirmação de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma
correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada mais eficaz pela ciência, a tecnologia
ou a administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animada pelo
interesse, mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões. Sobre o que repousa esta
correspondência de uma cultura científica, de uma sociedade ordenada e de indivíduos livres, senão
sobre o triunfo da razão? Somente ela estabelece uma correspondência entre a ação humana e a ordem
do mundo, o que já buscavam pensadores religiosos, mas que foram paralisados pelo finalismo
próprio às religiões monoteístas baseadas numa revelação. É a razão que anima a ciência e suas
aplicações; é ela também que comanda a adaptação da vida social às necessidades individuais ou
coletivas; é ela, finalmente, que substitui a arbitrariedade e a violência pelo Estado de direito e pelo
mercado. A humanidade, agindo segundo suas leis, avança simultaneamente em direção à abundância,
à liberdade e à felicidade. É esta afirmação central que foi contestada ou rejeitada pelos críticos da
modernidade.
312
massas desprivilegiadas de bens, títulos e honras. Através da razão
lógico-científica, buscou-se equacionar um sistema onde pudessem ser
acolhidas todas as reivindicações dos diferentes segmentos de
organização da sociedade. Assim foram instaladas as condições para a
criação das novas tutelas jurídicas compreendidas pelos direitos de
liberdade e ao desenvolvimento, identificadas como, respectivamente,
direitos de segunda e terceira geração.
Os direitos materiais foram expandidos de forma significativa,
surgindo as tutelas econômica, social, cultural, ao meio ambiente, à paz e
consumeira.
Em conseqüência desses fenômenos, cada indivíduo passou a
ser portador de um amplo conjunto de direitos a serem efetivados no
plano concreto, ou seja, a abstração legal necessariamente deve ser
aplicada, ainda que de modo coercitivo, diante do descumprimento da
lei. Neste caso o Estado atribuiu ao Poder Judiciário a autorização para
exigir de forma coercitiva o comportamento previsto na lei, logo, através
do processo de execução é possível obter a realização forçada do direito.
Considerado os paradigmas humanistas do individualismo e da
racionalidade exacerbada, optou-se por um modelo que adotou como
premissa a igualdade. Ao direito processual, a partir daqueles
pressupostos, atribuiu-se um caráter eminentemente técnico; ao juiz, a
313
obrigação da imparcialidade e adotou-se o postulado da verdade formal
no processo civil, em detrimento da busca da verdade real. Estes são
alguns dos aspectos que compõem o quadro das relações jurídicoprocessuais voltadas para aquela concepção social da modernidade.
Observa-se que se por um lado o direito material orientou-se
no sentido de incorporar os problemas inerentes ao contexto sóciohistórico-cultural através da ampliação das tutelas, o direito processual,
permaneceu hermético e, portanto, distante da necessidade da
implementação daqueles direitos de segunda e terceira geração. No
Brasil, as discussões à respeito da inadequação do processo em seu
modelo clássico e científico para atender às novas demandas somente
foram intensificadas a partir de 1988. Essa discrepância entre o direito
material e o direito processual tem estado ligada a uma compreensão
equivocada quanto ao sentido da proclamada autonomia do direito
processual.
A questão da autonomia do direito processual está resolvida
sob o ponto de vista da sua teleologia, pois sua existência vincula-se a
realização de finalidades diferenciadas em relação ao direito material.
Esta questão é reputada de considerável importância, porque da
afirmação anterior, não se pode concluir que o direito processual não
esteja ontologicamente ligado à ciência do direito. Logo, podem ser
314
mencionadas as finalidades próprias e específicas do direito processual e
aquelas outras finalidades de caráter geral, as quais são compartilhadas
por toda a ciência do direito, entre estas se destaca a estabilização das
relações jurídicas.
Acredita-se que a instrumentalidade do direito processual deve
estar referida aos fins gerais da ciência do direito, e sob este ponto de
vista representa um importante avanço na busca da segurança e da
efetividade da jurisdição.
8.1 A TEORIA DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO
Diante das questões relativas à ampliação das tutelas de direito
substancial, como já mencionado, e da dificuldade em obter a realização
efetiva do direito, surgiram concepções a respeito dos problemas que
afetam a prestação jurisdicional, bem como dos possíveis meios para
resolvê-los. Nesta seara, destaca-se o conjunto de postulados a respeito
da instrumentalidade do processo403.
403
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, p. 25. É a instrumentalidade o
núcleo e a síntese dos movimentos pelo aprimoramento do sistema processual, sendo consciente ou
inconscientemente tomada como premissa pelos que defendem o alargamento da via de acesso ao
Judiciário e a eliminação das diferenças de oportunidades em função da situação econômica dos
sujeitos, nos estudos e propostas pela inafastabilidade do controle jurisdicional e efetividade do
processo, nas preocupações pela garantia da ampla defesa no processo criminal ou pela igualdade em
qualquer processo, no aumento da participação do juiz na instrução da causa e da sua liberdade na
apreciação do resultado da instrução.
315
A Teoria da Instrumentalidade do processo propõe a
democratização do acesso ao Poder Judiciário e a garantia de uma célere
e efetiva prestação jurisdicional a partir da releitura da Teoria Geral do
Processo e dos princípios Constitucionais de processo404.
É considerado pelos instrumentalistas que a ciência processual
é portadora de um bom nível de abstração conceitual e metodológico, o
que leva à identificação de duas conseqüências principais; por um lado, o
enrijecimento formal das concepções positivistas do processo, e de outro,
o amadurecimento necessário do processo, o que autorizaria uma nova
interpretação e aplicação dos princípios Constitucionais de direito
processual. A partir dessas idéias básicas, é proposta a flexibilização da
segurança jurídica em prol do trinônimo certeza, probabilidade e risco405.
Nesse ambiente, a lei processual e os princípios Constitucionais de
processo podem ser considerados como pontos de referência para guiar a
interpretação e a aplicação concreta do direito processual, que teria,
como finalidade última, o amplo e irrestrito acesso à jurisdição célere,
404
DINAMARCO. Op. cit. p., , 27. A tutela constitucional do processo tem o significado e escopo de
assegurar a conformação dos institutos do direito processual e o seu funcionamento aos princípios que
descendem da própria ordem constitucional.
405
DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do Processo Civil, p. 17. Nesse clima e com esse
espírito, as Reformas do Código de Processo Civil dispuseram-se a transgredir dogmas
tradicionalmente levados a extremos perversos. De modo consciente, quiseram transigir racionalmente
em relação aos pilares da segurança jurídica dos litigantes, para poder cumprir com mais eficiência a
promessa constitucional de acesso à justiça. Uma boa ordem processual não é feita somente de
segurança e das certezas do juiz. Ela vive de certezas, probabilidades e riscos. Onde houver razões
para decidir ou para atuar com apoio em meras probabilidades, sendo estas razoavelmente suficientes,
que se renuncie à obsessão pela certeza, correndo algum risco de errar, desde que se disponha de
meios aptos a corrigir os efeitos de possíveis erros.
316
“justa” e efetiva.
No centro do instrumentalismo estão as idéias de que para o
positivismo os princípios e a Teoria Geral do Processo teriam finalidades
específicas as quais estariam voltadas para a auto-realização da ciência e
do método. Embasado nessa premissa, é afirmado que o processo
científico é excessivamente formalista, afastando-se do interesse
pragmático da jurisdição que seria a realização da paz social através da
“justiça”. Desse modo, pode ser concluído que através da aplicação do
processo instrumental seria possível a construção de uma sociedade mais
pacífica e justa.
A reforma do direito processual brasileiro tem alguns aspectos
de estrangulamento ou ruptura com a ciência processual, sendo que neste
tocante a justificativa passa pela idéia de que o individualismo no
processo é fruto das remanescências de sua vinculação ao direito
privado406. A partir deste fato é proposta a separação entre os fins da
ação segundo os efeitos pretendidos na sentença e a classificação das
406
DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p.52. Apesar da revolucionária abertura
favorável ao reconhecimento da natureza pública da relação processual, da ação e de todo o sistema
processual enfim, nos espíritos permaneceu a marca da idéia privatista. Os germânicos abandonaram
as preocupações centrais com a ação (Rechtsschutzanspruch) e passaram a referir-se ao direito de
demandar (Klagerecht), sem maior empenho e desviando para o objeto do processo (Streitgegenstand)
o centro metodológico do sistema processual. Mas os latinos, italianos à frente permaneceram
metodologicamente ligados à ação e às preocupações com ela e seu conceito e seus elementos e suas
condições, assim é, de modo superlativo, a orientação predominante entre os processualistas
brasileiros, caracterizada na “Escola Processual de São Paulo”. Numa palavra, a ciência dos
processualistas de formação latina apresenta a ação como pórtico de todo o sistema, traindo com isso a
superada idéia (que, conscientemente, costuma ser negada) do processo e da jurisdição voltados ao
escopo de tutelar direitos subjetivos..
317
ações ou tipos de processo. Assim também se justifica a fusão entre os
procedimentos previstos no Código, donde, na cognição são realizadas a
execução e a antecipação da tutela. O processo de execução e o processo
cautelar são esvaziados sob o argumento da necessidade da celeridade
para a obtenção da efetiva entrega do bem da vida ao jurisdicionado.
Tudo se realizando ao fundamento da possível reversibilidade da
situação anterior em casos de erros.
Após a apresentação geral dos aspectos fundamentais da
Teoria da Instrumentalidade do Processo, deve-se, ainda, mencionar que
a figura do julgador é central para a operacionalização da
instrumentalidade, porque o princípio dispositivo cede espaço ao
princípio inquisitivo, sendo que o juiz deve assumir uma postura ativa
em face da condução do processo e da aplicabilidade da lei, sempre
tendo em vista o contexto sócio-histórico-cultural atual ao momento do
julgamento, objetivando a uma justiça com conteúdo substancial.
O núcleo da Teoria Instrumental consiste na realização do
objeto
substancial
do
processo
que
deve
ser
a
“justiça”.
Axiologicamente, a “justiça” se vincularia à garantia do acesso ao Poder
Judiciário e à prestação jurisdicional célere e efetiva. As construções
tendentes à realização daquelas finalidades são realizadas no campo da
principiologia Constitucional e da Teoria Geral do processo. Nesse
318
contexto, há uma pretensão de se discutir o direito processual a partir da
sua abertura sistêmica em relação aos ambientes sócio-cultural.
No tocante ao reconhecimento da comunicação entre os
ambientes jurídico e sócio-cultural, a partir da axiologia do processo, e
da sua compreensão no âmbito da Teoria da Ciência do Direito, a Teoria
Instrumental está cumprindo um papel importante na incansável busca da
realização da prestação jurisdicional satisfatória.
8.2 A CRISE DOS PARADIGMAS E SEUS REFLEXOS NO DIREITO
Deve ser lembrado que a insatisfação quanto aos meios de
realização da “justiça” é um fenômeno histórico, assim, em todos os
tempos, lugares e civilizações houve tentativas que procuraram contornar
os problemas inerentes a adoção de um método eficiente para a aplicação
do direito. Neste sentido, o objetivo primordial do processo tem sido
assegurar a paz social através da aplicação das normas jurídicas de
direito material. Através de uma observação superficial poderia parecer
que o processo não tem um fim em si mesmo, repousando sua existência
sob o direito material.
Esta aparente vinculação entre o direito formal e o material, foi
superada com o processualismo científico, no entanto as questões
relativas ao modo como a jurisdição é operacionalizada continuaram
319
apresentando algumas dificuldades diante da incapacidade do Poder
Judiciário em atender, em tempo razoável, a demanda dos serviços que
lhe é exigido.
A partir dessas considerações pode ser afirmado que o direito
processual não está enfrentando uma crise de paradigmas, porque seus
conceitos e métodos não estão sendo substituídos, bem como não se está
diante de novos problemas a serem enfrentados pela ciência processual.
A comunidade jurídica especula a respeito das maneiras que possam
tornar os resultados da prestação jurisdicional céleres, efetivos e
“justos”. Nesses problemas reside, praticamente, toda a história de
formação do direito processual.
Deve observar-se que, embora através da Teoria da
Instrumentalidade exista uma tentativa de abertura do ambiente jurídico
processual, o que possibilitaria admitir o seu acoplamento estrutural, isto
efetivamente não ocorre, porque as propostas apresentadas através
daquela teoria são referidas ao fechamento operacional, ou seja, o
problema da efetividade da jurisdição não ultrapassou as fronteiras da
ciência processual para ser discutida nos ambientes econômico-políticosocial-cultural a saturação do Poder Judiciário.
Acredita-se que o “justo”, seja qual for o sentido que se
pretenda lhe atribuir, não se realizará como um bem inerente ao direito
320
processual, porque a amplitude e a magnitude dessa expressão não
podem ser limitadas a um ambiente restrito.
Ao tratar da crise dos paradigmas o que se pretende é remeter
à teoria dos sistemas autopoiéticos, estabelecendo os critérios para o
estudo da instrumentalidade do processo a partir das relações que este
pode estabelecer com ambientes extra-processuais. Logo, a crise está
localizada nos resíduos que a modernidade produziu como consectários
das transformações verificadas após a Revolução Francesa407, as quais
407
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: para um novo senso comum, v. 1. p.
23-24. Não parece que faltem no mundo de hoje situações ou condições que nos suscitem desconforto
ou indignação e nos produzam inconformismo. Basta rever até que ponto as grandes promessas da
modernidade permanecem incumpridas ou o seu cumprimento redundou em efeitos perversos. No que
respeita à promessa da igualdade os países capitalistas avançados com 21’% da população mundial
controlam 78% da produção mundial de bens e serviços e consomem 75% de toda a energia
produzida. Os trabalhadores do Terceiro Mundo do sector têxtil ou da electrónica ganham 20 vezes
menos que os trabalhadores da Europa e da América do Norte na realização das mesmas tarefas e com
a mesma produtividade. Desde que a crise da dívida rebentou no início da década de 80, os países
devedores do Terceiro Mundo têm vindo a contribuir em termos líquidos para a riqueza dos países
desenvolvidos pagando a estes em média por ano mais de 30 biliões de dólares do que o que
receberam em novos empréstimos. No mesmo período a alimentação disponível nos países do
Terceiro Mundo foi reduzida em cerca de 30%. No entanto só a área de produção de soja no Brasil
daria para alimentar 40 milhões de pessoas se nela fossem cultivados milho e feijão. Mais pessoa
morreram de fome no nosso século que em qualquer dos séculos precedentes. A distância entre países
ricos e países pobres e entre ricos e pobres no mesmo país não tem cessado de aumentar. No que
respeita a promessa da liberdade, as violações dos direitos humanos em países vivendo formalmente
em paz e democracia assumem proporções avassaladoras. Quinze milhões de crianças trabalham em
regime de cativeiro na índia; a violência policial e prisional atinge o paroxismo no Brasil e na
Venezuela, a violência sexual contra as mulheres, a prostituição infantil, os meninos de rua, os
milhões de vítimas de minas antipessoais, a discriminação contra os toxicodependentes, ... . No que
respeita à promessa da paz perpétua que Kant tão eloquentemente formulou, enquanto no século
XVIII morreram 4,4 milhões de pessoas em 68 guerras, no nosso século morreram 99 milhões de
pessoas em 237 guerras. Entre o século XVIII e o século XX a população mundial aumentou 3,6
vezes, enquanto os mortos na guerra aumentaram 22,4 vezes. Depois da queda do Muro de Berlim e
do fim da guerra fria, a paz que muitos finalmente julgaram possível tornou-se uma miragem em face
do aumento nos últimos 6 anos dos conflitos entre Estados e sobretudo dos conflitos no interior dos
Estados. Finalmente, a promessa da dominação da natureza foi cumprida de modo perverso sob a
forma de destruição da natureza e da crise ecológica. ... Nos últimos 50 anos o mundo perdeu cerca de
um terço de sua cobertura florestal. Apesar da floresta tropical fornecer 42% da biomassa vegetal e do
oxigênio, 600.000 hectares de floresta mexicana são destruídas anualmente. As empresas
multinacionais detêm hoje direitos de abate de árvores em 12 milhões de hectares da floresta
amazônica. A desertificação e a falta de água são os problemas que mais vão afectar os países do
Terceiro Mundo na próxima década. Um quinto da humanidade já não tem hoje acesso a água potável.
(grifos nossos)
321
afetam o direito a partir de seu estudo como sistema acoplado
estruturalmente.
A crise dos paradigmas da modernidade ocidental pode ser
localizada nas concepções a respeito da ciência e do direito, como
formas articuladas de poder social. Considera-se útil e necessário definir
que, no âmbito desta pesquisa, os paradigmas da modernidade são a
regulação408 e a emancipação409. Tendo em vista a complexidade e o
aspecto revolucionário que a modernidade representou em relação ao
mundo clássico, seu projeto criou contradições internas que levaram ao
que pode ser identificado como os excessos e os déficits da regulação e
da emancipação.410
408
SANTOS. Op. cit. p., , 50. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, formulado
essencialmente por Hobbes, pelo princípio do mercado, desenvolvido sobretudo por Locke e por
Adam Smith e pelo princípio da comunidade, que domina toda a teoria social e política de Rousseau.
O princípio do Estado consiste na obrigação política vertical entre cidadãos e Estado. O princípio do
mercado consiste na obrigação política horizontal individualista e antagônica entre os parceiros de
mercado. O princípio da comunidade consiste na obrigação política horizontal solidária entre
membros da comunidade e entre associações. (grifos nossos)
409
Ibidem,p. 50. O pilar da emancipação é constituído pelas três lógicas de racionalidade definidas
por Weber; a racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura, a racionalidade cognitivoinstrumental da ciência e da tecnologia e a racionalidade moral-prática da ética e do direito. (grifo
nosso)
410
Ibidem, p. 50. O paradigma da modernidade pretende um desenvolvimento harmonioso e recíproco
do pilar da regulação e do pilar da emancipação, e pretende também que esse desenvolvimento se
traduza indefectivelmente pela completa racionalização da vida, colectiva e individual. Esta dupla
vinculação – entre os dois pilares, e entre eles e a práxis social – vai garantir a harmonização de
valores sociais potencialmente incompatíveis, tais como justiça e autonomia, solidariedade e
identidade, igualdade e liberdade. ... Cada um dos pilares, e porque ambos assentam em princípios
abstractos, tende a maximizar o seu potencial próprio, quer pela maximização da regulação quer pela
maximização da emancipação, prejudicando, assim o êxito de qualquer estratégia de compromissos
pragmáticos entre ambos. Para além disso, os referidos pilares assentam em princípios independentes
e dotados de diferenciação funcional, cada um dos quais tende a desenvolver uma vocação
maximalista: ao lado da regulação, a maximização do Estado, a maximização do mercado ou a
maximização da comunidade; no lado da emancipação, a esteticização, a cientificização ou a
juridicização da praxis social. (grifo nosso)
322
Os excessos foram considerados como desvios fortuitos e os
déficits como deficiências temporárias, os quais deveriam ter sido
resolvidos com a utilização dos recursos material, intelectual e
institucional criados na modernidade. A reordenação dos excessos e dos
déficits foi confiada à ciência que subordinou o direito411, o qual
manteve um papel determinante412. Os critérios científicos da eficiência e
da eficácia se tornaram hegemônicos em relação ao outros pilares da
emancipação na medida em que a ciência assumiu o seu papel como
força produtiva,
Sob a regência do conhecimento identificado como científico
se estabeleceu uma relação circular de cooperação entre o direito e a
ciência, sendo, contudo, a racionalidade moral-prática e cognitivoinstrumental colocadas aos serviços dos pilares da regulação.
A respeito da relação de cooperação entre o direito e a ciência,
a conseqüência fundamental se refere a despolitização da vida social
através da gestão científica da sociedade. Em um ambiente com tais
411
Ibidem, p. 51-52. ... tanto a micro-ética – um princípio de responsabilidade moral reportada
exclusivamente ao indivíduo – como o formalismo jurídico – uma vasta constelação intelectual
jurídica que se estende das pandectas germânicas ao movimento da codificação (cujo marco principal
é o Código Napoleônico de 1804) e à teoria pura do direito de Kelsen (1967) – são valorizados de
acordo com a sua adequação à necessidades da gestão científica da sociedade. (grifo nosso)
412
Ibidem, p. 52. ... a racionalidade moral-prática do direito, para ser eficaz, teve de se submeter à
racionalidade cognitivo-instrumental da ciência ou ser isomórfica dela. Mas, apesar de subordinada,
foi também uma participação central porque, pelo menos a curto prazo, a gestão científica da
sociedade teve de ser protegida contra eventuais oposições através da integração normativa e da força
coercitiva do direito. Por outras palavras, a despolitização científica da vida social foi conseguida
através da despolitização jurídica do conflito social e da revolta social. (grifo nosso)
323
características, os princípios do Estado, do mercado e da comunidade
encontram condições favoráveis a exacerbação das suas práticas.413
O desequilíbrio entre a regulação e a emancipação ocorreu sob
o predomínio da regulação, identificando-se uma das causas que pode
justificar esta situação como a necessidade da neutralização dos conflitos
e revoltas sociais que pudessem desestruturar as organizações de poder
consolidadas pela burguesia, que após a Revolução, sonegou ao
proletariado o espaço que lhe havia sido prometido através da igualdade,
mitigando seu lugar através das políticas intervencionistas nas relações
trabalhistas e após a 2ª Guerra Mundial, nas relações consumeiras.414
O direito na transição entre o mundo clássico e o moderno
pretendeu ocupar um papel emancipatório ao lado das artes e da ciência.
Fatores diversos, como o modo pelo qual ocorreu a recepção do direito
romano pelos glosadores transformando-o em um sistema lógico, rígido
de estruturas formais baseadas na complexa combinação entre
autoridade, racionalidade e ética. A subordinação dos paradigmas da
413
Ibidem, p. 57. A redução da emancipação moderna à racionalidade cognitivo-instrumental da
ciência e a redução da regulação moderna ao princípio do mercado, incentivadas pela conversão da
ciência na principal força produtiva, constituem as condições determinantes do processo histórico que
levou a emancipação moderna a render-se à regulação moderna. Em vez de se dissolver no pilar da
regulação, o pilar da emancipação continuou a brilhar, mas com uma luz que já não provinha da
tensão dialética inicial entre regulação e emancipação – tensão que ainda pode ser percebida, já sob o
crepúsculo, na divisa do positivismo oitocentista - ordem e progresso -, mas sim dos diferentes
espelhos que reflectiam a regulação. Neste processo, a emancipação deixou de ser o outro da
regulação para se converter no seu duplo.
414
Ibidem, p. 57. A absorção da emancipação pela regulação – fruto da hipercientificização da
emancipação combinada com a hipermercadorização da regulação - , neutralizou eficazmente os
receios outrora associados à perspectiva de uma transformação social profunda e de futuros
alternativos.
324
modernidade ao desenvolvimento do capitalismo a partir do momento
em que este assumiu a posição de modo de produção dominante nos
países centrais, e ainda, a burguesia tendo se tornado uma classe
hegemônica; alteraram o papel do direito que se transformou em uma das
espécies do conhecimento-regulação. A ordem é a forma do saber para o
conhecimento-regulação.
Dessa forma, ocorreu a juridicização dos conflitos no ambiente
social, sendo que, ao ampliar horizontal e verticalmente sua autoridade
reguladora
sobre
operacionalização
a
sociedade,
funcional,
o
direito
politizando-se
comprometeu
excessivamente,
sua
e
desequilibrando sua autoprodução normativa.415
É considerada muito complexa a questão da crise dos
paradigmas da modernidade ocidental e suas repercussões no ambiente
jurídico, acreditando-se, contudo, que o desequilíbrio entre a regulação e
a emancipação verificado a partir da vocação maximalista dos pilares
que lhe dão sustentação e, principalmente, tendo como referências a
dominação do direito pela cientificização do conhecimento, como única
forma de saber válido, e da preponderância da regulação sobre a
emancipação, podem ser admitidos como os pontos onde são mais
415
Ibidem, p. 158. ... as disfunções redundam numa ineficácia do direito: é muito provável, ou até
quase certo, que a discrepância da lógica interna e da autoprodução dos padrões do direito com os das
outras esferas da vida social por ele reguladas torne a regulação jurídica ineficaz ou contraproducente.
(grifo nosso)
325
perceptíveis os reflexos da crise sobre o direito.
Quanto à tendência maximalista dos pilares da emancipação é
especialmente relevante o fato da judicização da praxis social416 porque
aí podem ser localizados alguns problemas operacionais do direito
regulatório, tais como a demora e os custos da prestação jurisdicional; o
congestionamento dos tribunais; a insuficiência dos serviços da justiça
que estão associados a fatores de ordem financeira e humana,
principalmente; as discrepâncias entre o direito escrito e o direito
aplicado, entre outros fatores.417
8.3 QUESTÕES INSTRUMENTAIS E PARADIGMÁTICAS DA
ALTERAÇÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO
Através do direito processual, deve ser assegurada a prestação
jurisdicional revestida das características da segurança jurídicas e da
efetividade. O conteúdo desses valores atribuídos ao processo tem
demandado discussões intermináveis, as quais são travadas entre
todos os setores do ambiente jurídico.
416
Ibidem, p. 151. A juridicização da prática social significou a imposição de categorias, interacções e
enquadramentos jurídicos estatais, relativamente homogéneos, nos mais diversos e heterogêneos
domínios sociais (família, vida comunitária, local de trabalho, esfera pública, processos de
socialização, saúde, educação, etc.). A manejabilidade do direito estatal pressupunha a maleabilidade
dos domínios sociais a regular juridicamente.
417
Ibidem, p. 161. ... para além do limitado – mas importante – nível “operacional”, esses problemas
não são jurídico-técnicos: são problemas políticos. Isto é sobretudo evidente em dois dos defeitos
da juridicização da vida social salientados pelos processualistas e os autopoieticistas: ineficácia e
materialização (sobrecarga). (grifo nosso)
326
A propósito da questão da segurança jurídica é possível
demarcar três dimensões as quais são acreditas como fundamentais: sob
o ponto de vista técnico-jurídico Constitucional, o princípio do devido
processo legal e suas garantias é uma referência; a instrumentalidade do
processo para a realização do pacta sunt servanda é representativa de
outra esfera de incidência da segurança jurídica, neste caso, enfocada
teoricamente. Considerando aspectos metodológicos, a segurança
jurídica pode assumir um importante papel no controle dos riscos quanto
aos desapontamentos ocorridos diante da potencial frustração das
expectativas verificadas no ambiente jurídico.
A efetividade apresenta um conteúdo mais restrito, podendo
ser vinculado à garantia da concretização do comando legal contido na
norma jurídica através do aparelho estatal, ou seja, por meio da ação do
Poder Judiciário, que para obter o resultado pretendido, poderá adotar
atos de violência institucional. Esta afirmação está ligada à idéia
largamente aceita e difundida de que o direito tutela a autonomia da
vontade, logo, quando ocorre a imposição da realização de atos
contrários à vontade, não é impróprio reconhecer-se a violência, e ainda
mais, que todo o sistema legal estará operacionalizando de forma
invertida.
327
É questionável a afirmação corrente que associa a efetividade à
celeridade e à “justiça” da prestação jurisdicional. Estes também são
reconhecidos como importantes características da prestação jurisdicional,
mas não se confundem com a garantia da realização prática do direito
através do poder judiciário.
Desta forma, os problemas que podem afetar a efetividade nem
sempre são iguais àqueles que comprometem a celeridade, ou ainda, a
“justiça”.
A celeridade é um substantivo feminino que se refere àquilo
que apresenta “grande atividade ou rapidez”418. O processo, pela sua
própria natureza e pelo seu estágio moderno de desenvolvimento,
vincula-se a certos valores que naturalmente comprometem as idéias que
tenham o objetivo de torná-lo algo essencialmente rápido. Nesse
diapasão, deve ser lembrado o princípio do contraditório e da ampla
defesa e a garantia do duplo grau de jurisdição, entre outros preceitos
normativos que instruem o sistema processual. Observa-se que tais
preceitos estruturantes da ordem processual vinculam-se ao princípio
fundamental da constituição do Estado Democrático de Direito419.
As idéias concernentes à “justiça” têm uma amplitude
418
419
AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa., v, 1. p. 670.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 1º
328
epistemológica, subjetividade histórica e relatividade espacial que
permite afirmar que o “justo” somente pode ser realizado considerandose aquelas contingências.
O processo de execução no Brasil tem apresentado bons níveis
de segurança jurídica, pois não há notícias de privação de bens ou
direitos sem a observância das garantias inerentes ao devido processo
legal420. Quanto à efetividade, não se vislumbra uma crise institucional
da República, onde a desobediência civil apresente proporções elevadas
ao ponto dos órgãos judiciários não conseguirem realizar as suas
funções.
Logo, o problema do direito processual e, sobretudo, da
execução não está relacionado com a segurança jurídica e nem mesmo
com a efetividade da entrega da prestação jurisdicional. Ressalta-se,
ainda, que estes são valores distintos e complementares, não se
admitindo o pressuposto da existência de fortes contradições e
contraposições entre eles.
Deve ser questionado, então, quais são as justificativas para o
movimento de reforma do direito processual e do poder judiciário no
Brasil. E mais, por que os jurisdicionados e os operadores do direito
420
Deixa-se de adentrar nos problemas da legitimação da ordem jurídica e do pluralismo legal porque
extrapolam os propósitos deste estudo.
329
manifestam um elevado grau de insatisfação com a prestação
jurisdicional?
Acredita-se na impossibilidade de se apresentar soluções para
tais problemas com base restritivamente nos elementos do ambiente do
sistema jurídico. É necessário reportar ao que foi identificado como a
crise dos paradigmas da modernidade ocidental, tendo havido o
predomínio da regulação sobre a emancipação e a maximização dos seus
pilares, os excesso e os déficits geraram como resíduos da modernidade,
entre outros, a incapacidade do Direito em responder à sua máxima
autoprodução normativa e à juridicização das práticas sociais.
O ponto central está em que a reforma do processo de
execução está sendo realizada com base em uma confusão entre o que
vem a ser a efetividade, a segurança, a celeridade e a “justiça” no
contexto do direito processual e do funcionamento do Poder Judiciário.
Como salientado, cada uma daquelas características são distintas e
autônomas entre si. Os problemas somente poderão ser adequadamente
enfrentados e resolvidos na medida em que houver o reequilíbrio entre os
pilares da emancipação e da regulação e a interpretação e a aplicação do
direito com base em teorias sistêmicas que admitiam o acoplamento
estrutural.
330
É desagradável a constatação angustiante de que as possíveis
soluções para o problema da insatisfação generalizada com os serviços
prestados pelo judiciário não possam ser viabilizadas através dos
postulados da teoria da instrumentalidade processual ou da sanção de
uma nova lei. O que está sendo tentado é uma “saída” que,
economicamente, não torne a estrutura do Poder Judiciário ainda mais
onerosa. No entanto, o que se está colocando em risco é a própria ordem
institucional do Estado brasileiro, porque as reformas estão sendo
promovidas ao sabor da ampliação dos poderes da magistratura, e do
emprego de uma linguagem processual indefinida e de conteúdo muito
vago. Desta forma, corre-se o alto risco de não serem resolvidos os
problemas quanto à insatisfação com a prestação jurisdicional e, ainda,
criarem-se outros problemas decorrentes da subjetividade do julgador e
da qualidade duvidosa da técnica da linguagem e do procedimento.
8.4 PRINCIPAIS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 11.232
DE 22/12/2005.
Na exposição de motivos no 204, de 15/12/2004421, foram
assumidos compromissos qualificados como fundamentais pelos Três
Poderes da República tendo em vista a morosidade dos processos
421
Pacto de Estado em favor de um judiciário mais rápido e republicano.
331
judiciais e a baixa eficácia de suas decisões. No mesmo sentido é a
exposição de motivos do Projeto de Lei que tramitou na Câmara com o
no 3.253-B de 2004, e no Senado, com o no 52/2004, tendo sido
sancionado em 22 de dezembro de 2005, na Lei 11.232.
O Instituto Brasileiro de Direito Processual exerce um
importante papel nas reformas que estão sendo promovidas porque,
através de seus membros, dentre os quais destaco a professora Ada
Pellegrini Grinover e o professor José Manoel de Arruda Alvim Neto;
estão sendo promovidas as discussões que têm resultado nos textos
legais aprovados, assim como as jornadas de estudos e os seminários,
com a participação da comunidade jurídica.
Sob o ponto de vista estrutural e legal, as reformas
representam grandes mudanças e terão repercussões profundas na
operacionalização dos procedimentos judiciais, acreditando-se que as
novas normas processuais possam ser hábeis ferramentas na realização
da prestação jurisdicional satisfatória.
Enfocando os aspectos estruturais, verifica-se que a Lei
11.232/2005 rompe definitivamente com o modelo compartimentado do
Código de Processo Civil de 1973. Desta forma, a separação entre a
cognição e a realização prática do comando legal concreto externado na
sentença, que se embasava na classificação das ações segundo a eficácia
332
pretendida na petição inicial, perde consideravelmente sua importância
para a doutrina processual brasileira.
As conseqüências dessa mudança serão percebidas de
diferentes maneiras, quer-se destacar seu possível alcance sob a
perspectiva procedimental. Para tanto, tome-se a petição inicial a qual
tem a finalidade precípua de nortear a pretensão objeto da causa. Logo,
nos requerimentos da inicial, deve ser mencionado tudo aquilo que se
pretenda obter através do processo. No modelo anterior, os pedidos
visavam, por exemplo, ao conhecimento a fim de que o poder judiciário
declarasse, constituísse ou condenasse, relativamente aos fatos argüidos
e provados. Necessariamente, a sentença se subordinava à pretensão, daí
não poder ser proferida extra, ultra ou citra petita422.
Há de se questionar, na petição inicial,se
deverá ser
manifestada a pretensão quanto à liquidação e ao cumprimento da
sentença nos termos dos recém-criados Capítulos IX e X, do Título VIII,
do Livro I do Código de Processo Civil?
Ressalta-se que a sentença não terá o efeito de terminar o
processo423, uma vez que os atos realizados para o seu cumprimento
422
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, v. 1, p. 456. A função do
juiz é compor a lide, tal como for posta em juízo. Deve proclamar a vontade concreta da lei apenas
diante dos termos da litis contestacio, isto é, nos limites do pedido do autor e da resposta do réu. São
defeitos, assim, os julgamentos extra petita (matéria estranha à litis contestatio); ultra petita (mais do
que pedido) e citra petita (julgamento sem apreciar todo o pedido).
423
Lei 11.232/05. Artigo 162 § 1º. Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas
nos arts. 267 e 269 desta Lei (CPC).
333
serão praticados como uma simples decorrência desta. O julgador poderá
ex officio promover os atos que se seguem à sentença a fim de obter o
seu efetivo cumprimento?
Havendo sido requerido pela parte na petição inicial que o
julgador na sentença, em caso de condenação, determine a liquidação e o
comprimento da mesma, tal pedido vincula sua manifestação para a
caracterização dos defeitos que podem atingi-la? Em caso positivo,
caberá embargos de declaração?
Admitindo-se
que
a
petição
inicial
possa
apresentar
requerimentos mistos, objetivando a condenação, a liquidação e o
cumprimento da sentença de modo sucessivo; proferida a sentença
condenatória, que neste caso, teria efeitos constitutivos integrativos e
executivos, e permanecendo inerte o órgão jurisdicional, ou seja, o Juízo
deixando de promover os atos tendentes à efetivação da sentença,
poderá, posteriormente, ser aplicada a prescrição intercorrente à parte?
O artigo 475-P, parágrafo único da Lei 11.232/05 dispõe sobre
a possibilidade legal da escolha pelo exeqüente quanto ao foro para a
tramitação do cumprimento da sentença. Neste caso, isto ocorrerá através
da carta precatória, ou através de um novo processo? Nesta segunda
situação, qual será o procedimento adequado? Observe-se que o
cumprimento da sentença, nos moldes das alterações, não caracteriza um
334
novo processo, mas apenas um conjunto de procedimentos realizados na
continuidade da cognição.
Tratando-se de sentença condenatória líquida em obrigação de
pagamento de quantia certa, portanto, dispensada a fase de liquidação,
qual o procedimento que deve ser adotado? Verifica-se que os artigos
475-I a 475-R, da Lei 11.232/05, que regulam o cumprimento da
sentença não mencionam, na hipótese aventada, como seria iniciado o
procedimento, limitando-se no artigo 475-J a afirmar que o nãopagamento pelo devedor no prazo de 15 dias gera direito ao credor a uma
multa de 10% (dez por cento). Como deverá ocorrer a comunicação
processual do devedor para que efetue o pagamento?
Quanto aos meios de impugnação do procedimento de
cumprimento da sentença, embora o artigo 475-M, da Lei 11.232/05,
tenha estabelecido como regra geral a não-concessão do efeito
suspensivo. Em sua segunda parte, prevê a possibilidade da suspensão do
andamento do processo “desde que relevantes seus fundamentos e o
prosseguimento da execução seja manifestamente suscetível de causar ao
executado grave dano de difícil ou incerta reparação”. Neste tocante,
verifica-se que o legislador confiou ao julgador a apreciação dos critérios
para a suspensão, pois a medida da relevância e os riscos efetivos dos
335
danos deverão ser averiguados segundo a sua compreensão diante dos
fatos.
Restaram ainda os embargos à execução da fazenda pública, o
que dispensa comentários diante dos reclamos dos operadores do direito
pela isonomia entre as partes no processo, ressaltando-se o fato de que
pode ser atribuída à fazenda pública boa parte dos problemas do Poder
Judiciário, tendo em vista seus privilégios processuais e as práticas
prograstinatórias que adota.
Pode transparecer certo pessimismo e resistência quanto às
inovações criadas, mas não é o caso. Realmente não se pode deixar de
notar um retrocesso na técnica utilizada, sobretudo, na linguagem
adotada. Os termos e expressões lingüísticos em muitos pontos são
portadores de uma indefinição que se acredita ser inadequada ao direito
processual. O intérprete e aplicador da norma jurídica processual precisa
ter bem demarcadas as maneiras através das quais fará atuar
concretamente o direito. Este fato consiste em um importante elemento
de segurança jurídica.
As situações levantadas comportam soluções, ora contidas no
texto legal, ora construídas através da analogia. Ao que tudo indica, o
legislador pretendeu assimilar o modelo praxista adotado no processo
336
trabalhista onde, sabidamente, o andamento dos processos consome
menos tempo.
Ressalta-se, ainda, que são adotadas fórmulas, algumas vezes
casuísticas para resolver os problemas que afetam o processo trabalhista.
Há, contudo, uma justificativa teleológica para as práticas
procedimentais da justiça do trabalho, trata-se do reconhecimento
pacificado segundo o qual entre as partes na lide trabalhista há diferenças
intransponíveis, resquícios da “questão social”424 , a qual jamais chegou
a ser superada, principalmente nos países periféricos do sistema
capitalista.
A autonomia do processo trabalhista em relação ao direito do
trabalho é reconhecida, mas entre eles pode ser observada uma relação
vertical, neste sentido, a instrumentalidade do processo tem
um
caráter
mais
profundo,
donde
há
importantes
doutrinadores que reconhecem a aplicação dos princípios da
424
NASCIMENTO, Amaury Mascaro do. Curso de Direito do Trabalho, p. 4. A expressão questão
social não havia sido formulada antes do século XIX, quando os efeitos do capitalismo e as condições
da infra-estrutura social se fizeram sentir com muita intensidade, acentuando-se um amplo
empobrecimento dos trabalhadores, inclusive dos artesãos, pela insuficiência competitiva em relação à
indústria que florescia. ... Daí porque Utz intenta delimitar a questão social nos seguintes termos: 1)
deve tratar-se de uma perturbação do corpo social; 2) mediante essa perturbação resultam prejuízos a
um ou diversos grupos sociais; 3) não se trata de um fenômeno individual e transitório, mas coletivo e
prolongado de irrealização do bem comum; 4) é definida como ‘problema ou procura das causas das
perturbações que dificultam a realização do justo social na totalidade da sociedade e igualdade o
esforço para encontrar os meios para superar essas causas’.
337
proteção 425 e da finalidade social426 no processo trabalhista em
atenção ao princípio protecionista do hipossuficiente econômico do
direito do trabalho.
O artigo 791, da Consolidação das Leis do Trabalho427, está
vigente, ressurgindo desse fato a manutenção do ius postulandi na justiça
do trabalho, o que representa um outro aspecto que diferencia o modelo
procedimental
trabalhista
do
civilista.
Em
decorrência
dessa
característica do procedimento na justiça do trabalho, o princípio
inquisitivo é aplicado na condução do processo a fim de tutelar o
reclamante.
Traçar um paralelo analítico entre o processo trabalhista e o
processo civil a fim se defender a adoção daquele modelo é temerário,
porque a relação jurídico-material sobre a qual se desenvolve o processo
425
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho, p. 66-67. Entre os
autores pátrios que reconhecem ser o princípio da proteção peculiar ao processo do trabalho,
destacamos Wagner D. Giglio, para quem, ‘embora muitas outras fossem necessárias, algumas normas
processuais de proteção ao trabalho já existem, a comprovar o princípio protecionista. Assim, a
gratuidade do processo, com isenção de pagamento de custas e despesas, aproveita aos trabalhadores,
mas não aos patrões, a assistência judiciária gratuita é fornecida ao empregado, mas não ao
empregador, a inversão do ônus da prova por meio de presunções favorece o trabalhador, nunca ou
raramente o empregador, o impulso processual ex officio beneficia o empregado, já que o empregador,
salvo raras exceções, é o réu, demandado, e não aufere proveito da decisão ... . A desigualdade
econômica, o desequilíbrio para a produção de provas, a ausência de um sistema de proteção contra a
despedida imotivada, o desemprego estrutural e o desnível cultural entre os sujeitos do processo do
trabalho certamente são realidades que são trasladadas para o processo do trabalho.
426
Humberto THEODORO JÚNIOR. Os princípios do direito processual civil e o processo do
trabalho. in Alice Monteiro de BARROS (Coord.). Compêndio de direito processual do trabalho. p.
61. ... o primeiro e mais importante princípio que informa o processo trabalhista, distinguindo-o
do processo civil comum é o da finalidade social, de cuja observância decorre uma quebra do
princípio da isonomia entre as partes, pelo menos em relação à sistemática tradicional do direito
formal. (grifo nosso)
427
BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Art. 791. Os empregados e os empregadores poderão
reclamar pessoalmente perante a justiça do trabalho e acompanhar as suas reclamações até o final.
338
do trabalho apresenta como característica fundamental a desigualdade
substancial das partes. A Justiça do Trabalho foi criada e existe para
exercer um papel de anteparo entre o capital e o trabalho, tanto que os
países que conseguiram promover o estado do bem-estar social não
precisam desse órgão jurisdicional especializado. Ressalta-se, ainda, que
o crédito trabalhista tem natureza alimentar. As partes no processo civil
apresentam-se em pé de igualdade e a relação obrigacional discutida
parte de diferentes pressupostos ligados à capacidade negocial e no
interesse na obtenção do lucro, neste caso, ressalvadas algumas situações
específicas, onde uma das partes objetive beneficiar a outra, como na
doação428.
No processo comum, não se verificam aquelas particularidades
que caracterizam e diferenciam consideravelmente o processo do
trabalho, isto não significa que seja impossível adaptar o modelo
trabalhista ao procedimento civil, mas não podem ser olvidados fatos
históricos, aspectos sociológico, cultural e jurídico que exigem uma
modulação na implantação desse sistema procedimental.
As alterações promovidas no processo civil e, particularmente,
na execução de sentença de obrigação de quantia certa que, doravante
será
428
denominada
cumprimento
de sentença,
BRASIL. Código Civil Brasileiro, art. 538 a 564.
não
levaram
em
339
consideração algumas questões que se procurou evidenciar quanto a
aspectos estruturais, procedimentais e teleológicos.
Não se defende um preciosismo tecnicista formalista e em
avançado estágio de superação, mas a adoção de um referencial teórico
claro que leve em consideração aspectos metodológico e histórico
através de uma análise crítica429, tomando-se como ponto de partida uma
abordagem autopoiética do processo.
429
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da ração indolente, p. 23. A análise crítica do que existe
assenta no pressuposto de que a existência não esgota as possibilidades da existência e que portanto há
alternativas susceptíveis de superar o que é criticável no que existe. O desconforto o inconformismo
ou a indignação perante o que existe suscita impulso para teorizar a sua superação.
340
9 CONCLUSÃO
Acredita-se
que
o
ato
de
conhecer
pressuponha
necessariamente referências para a formulação das proposições
lingüísticas que serão produzidas.
Assim, o mesmo objeto pode ser validamente conhecido de
diferentes maneiras. Dessa afirmação, resulta o reconhecimento da
possibilidade da existência de variadas teorias igualmente aceitas para a
descrição ou explicação de um mesmo objeto. Estas diferentes
linguagens
levam
o
Homem
a
um
estado
de
perplexidade.
Provavelmente este seja um dos fatores preponderantes na compreensão
do seu estado atual a que se referiu inicialmente.
Reconhecendo-se a imprescindibilidade da adoção de uma
metodologia para a realização do trabalho, optou-se por estudar o
processo a partir da problemática da segurança e da efetividade
jurisdicional sob o prisma da contextualização sistêmica do processo de
execução.
A pesquisa foi desenvolvida admitindo-se como pressuposto
básico que o direito pode ser conhecido cientificamente. Essa afirmação
teve como conseqüência a necessária estruturação de um
projeto
que
delineasse
alguns
objetivos,
hipóteses,
341
justificativas, problemas, métodos e a definição de uma teoria de
base que foi utilizada como ferramenta de trabalho na abordagem do
assunto problematizado.
No desenvolvimento do trabalho, não houve a preocupação
com a confirmação ou não das hipóteses, em razão disso, em
determinados aspectos, a pesquisa pode ter apresentado uma aparente
contradição entre afirmações a respeito das questões relativas ao objeto
estudado, qual seja, a segurança e a efetividade da jurisdição sob o ponto
de vista do cumprimento das sentenças das obrigações privadas para o
pagamento de quantia certa.
Foi necessário que o trabalho alcançasse um considerável
desenvolvimento para que se pudesse concluir que o sistema processual
brasileiro não está comprometido pela insegurança e inefetividade da
prestação jurisdicional.
De outra parte, foi possível verificar que, com relação ao
método funcional estruturalista de Niklas Luhmann, devem ser
diferenciadas as questões inerentes à segurança, à efetividade, à
celeridade e à “justiça” na entrega da prestação jurisdicional. Dessa
forma, ficou evidenciado o equívoco em se confundir aqueles termos,
342
pois tem-se tomado como problemáticas situações onde há o controle
dos riscos estruturais.430
As alterações processuais são pertinentes a problemas
decorrentes do reconhecimento da juridicização dos conflitos sociais, o
que ocorreu através da cristalização de um Direito excessivamente
regulatório dominado pelo paradigma da cientificização de todo o
conhecimento produzido na modernidade.431
O direito processual, sob o enfoque da Teoria da
Instrumentalidade do processo, não assimilou as novas realidades
jurídicas criadas através do paradigma dominante da regulação científica
e jurídica. Dessa forma, identificou-se um descompasso profundo entre a
ampliação das tutelas privadas e coletivas em contraposição com a
permanência do direito processual em um estágio de letargia histórica e
metodológica. Em conseqüência, ocorreu um distanciamento entre as
430
VILANOVA, Lourival. Escritos Jurídicos e Filosóficos,v,.1. p. 418. Sem a norma – sem lei
constitucional, ou sem lei ordinária, sem decreto executivo - ,seja qualquer a espécie exigida, sem ela,
plano nenhum de governo, programa nenhum de desenvolvimento econômico ou social passaria para
o campo concreto da realização. Por aí se está vendo como carece de fundamento a crítica que se
faz da crise do direito, tomando a crise como agonia de todo um sistema social juridicamente
orientado. Em toda a parte, salvo os hiatos de civilização e de cultura, ali onde há sociedades ainda
com largos setores de vida interna indesenvolvida, o processo nem é lento, passo a passo num tempo
social sem pressa, nem é espontâneo, desprogramado. É rápido e orientado, dentro de planos com
previsão para medir a velocidade e o alcance da ação. (grifo nosso)
431
Ib idem. p. 418. A racionalização do processo de desenvolvimento confere a globalização:
desenvolvimentos só setoriais desarticulam a composição do conjunto. Requer a politização: só um
agente, com o poder, dispõe de substância econômico-financeira, decisão sobre o todo do
desenvolvimento, duração e fins que ultrapassam a duração e os fins de indivíduos e, até, de gerações,
somente o poder político capacita-se para a programação dessa mudança que, pelo compasso e
velocidade, é mudança revolucionária, ultrapassando a singela fórmula do progresso dentro da ordem,
do Estado liberal-democrático. Requer planejamento. Tudo isso necessita mais Estado e, exigindo
mais Estado, exige mais direito.(grifo nosso)
343
exigências da sociedade contemporânea, altamente tutelada, tecnificada e
dotada de um sistema de comunicação rápido e acessível e o instrumento
processual estruturado para ser aplicado em uma sociedade onde os
valores e as práticas eram outros, principalmente porque ainda não havia
ocorrido a maximização dos pilares do Estado, da comunidade e do
mercado, o que somente pode verificar-se com a desestruturação do
modelo econômico soviético.
Sob o ponto de vista dos sistemas fechados, como aquele
idealizado na Teoria Pura do Direito, observou-se que seria impossível a
abordagem das interações e comunicações estabelecidas entre o direito
processual e a Teoria da Ciência do Direito, e ainda, com os sistemas
social, econômico e político. A contextualização do direito, em relação à
teoria dos sistemas, tornou-se fundamental porque levou a identificação
de uma sistêmica jurídica embasada no estudo crítico da hermenêutica da
Constituição Federal. Há uma crescente tendência ao reconhecimento de
um conjunto de preceitos legais desvinculados da praxis social. Paulo
Bonavides e Eros Roberto Grau trataram dessa problemática e suas
repercussões para o intérprete e aplicador do direito.
Considerada a importância da segurança jurídica, procurou-se
compreender a sua dimensão dogmática através do estudo da teoria dos
princípios.
A
esse
respeito,
foi
adotado
um
referencial
que
344
estruturalmente diferencia os princípios, as regras e os postulados
normativos, tendo em vista suas funções.
Em certo
momento,
duas
questões
assumiram muita
relevância, a Ciência do Direito e a apresentação dos conceitos
elementares da Teoria autopoiética dos sistemas sociais. Isto se justificou
porque a partir do estudo do direito como sistema fechado e tendo como
base a teoria husserliana das regiões ônticas, seu objeto é classificado
como ideal ou avalorativo, na medida em que a lei expressaria em si
mesma todo o conteúdo dos valores eleitos pelos seus destinatários.
Rompido o axioma dos sistemas jurídicos fechados, foi
necessário explicar como o direito processual pode ser estudado como
objeto cultural, portanto criado pelo Homem e dotado de uma gama
valorativa localizada nas proximidades do sistema jurídico, mais
precisamente nos sistemas com os quais interage e se comunica através
do acoplamento estrutural.
Nesse tocante, foi considerada fundamental a compreensão de
que o direito é uma estrutura lingüística que objetiva à simplificação da
complexidade do ambiente onde o Homem desenvolve sua existência.
Detectou-se uma relação diretamente proporcional entre a elevação da
complexidade e dos riscos estruturais e o surgimento de novas estruturas,
as quais têm a função de reduzir a complexidade e os riscos.
345
Deve ser esclarecido que o Homem é considerado o ambiente
do qual emanam ou se desenvolvem todos os sistemas. Para efeito deste
trabalho, o Homem é a figura central de onde provém tudo aquilo que
lhe é circundante. Assim, o sistema jurídico é uma estrutura que visa à
redução da complexidade da vida humana, porque lhe assegura, o
controle das expectativas e dos desapontamentos.
Identificadas a metodologia para a análise do objeto de estudo,
as questões teórico-científicas e dogmático-Constitucionais do trabalho
se entendeu que seria relevante a realização da abordagem dos fatos
históricos que demarcaram o direito processual desde os períodos préhistórico quando não havia sido criada a escrita. Assim, a autodefesa é
considerada como a primeira forma de pacificação social e o
processualismo científico o ápice de seu desenvolvimento, tomando-se
como referência as idéias de técnica, método e arcabouço teórico.
A Teoria da Instrumentalidade processual foi assimilada como
uma tentativa de ruptura com a macroteoria do sistema jurídico fechado,
concluindo-se, entretanto, que a ausência da definição dos métodos de
abordagem e de procedimento comprometeu seus resultados. Observa-se
que os objetivos e as justificativas formulados pelos instrumentalistas
são
consetâneos
com
a
problemática
do
direito
processual
contemporâneo, mas suas proposições são equivocadas na medida em
346
que realizam sua abordagem do processo com vista a aspectos que lhe
são intrínsecos, desconsiderando questões fundamentais como aquelas
referentes aos sistemas social, político e econômico que interagem com o
sistema jurídico.
Esta afirmação pode ser comprovada ao observar-se que há,
por parte dos adeptos da teoria da instrumentalidade, a tendência a
admitir a concentração dos poderes dos juízes, assim como a ampliação
de suas funções procedimentais. Quanto aos poderes que devem ser
atribuídos ao julgador sob o argumento de que ele deve ter a
sensibilidade social e o preparo jurídico para sopesar, de forma razoável
e proporcional, os fatos e valores que envolvem cada caso, alguns
problemas podem ser mencionados.
A magistratura é exercida por pessoas susceptíveis ao
ambiente onde exercem suas funções, arcando, contudo, com o ônus da
imparcialidade no exercício do cargo público que lhes impõe o dever de
interpretar a lei, aplicando-lhe aos fatos jurídicos, assim, tornando a
norma abstrata em concreta através da sentença.
Admitindo-se que o direito e sua interpretação se manifestam
através da linguagem e que todo processo comunicacional pressupõe
interferências ou ruídos, assim como sofrem influências as quais podem
ser identificadas como históricas e culturais, há que se concluir que a
347
concentração dos poderes do juiz terá, como conseqüências, a
variabilidade nas decisões e a prevalência dos interesses econômicos
sobre quaisquer outros.
Decisões variadas e divergentes, ainda que de caráter
procedimental, no âmbito do Poder Judiciário, deverão agravar os riscos
institucionais quanto ao desacreditamento na eqüidade e “justiça” dos
provimentos jurisdicionais.432 Em relação à questão econômica, é
corrente, tanto entre os operadores do direito quanto entre as pessoas em
geral, que o modelo econômico capitalista exacerbou no sistema social o
valor da economia e, portanto, tem lhe assegurado uma posição de
predomínio em relação a outros valores sociais.433
O magistrado interage e se comunica com aquele meio, logo,
432
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente, p. 181. Esta dimensão, sem
precedentes, do risco e do perigo desgastou a credibilidade da confiança proporcionada pelo
Estado. Por um lado, como alguns dos riscos e perigos foram globalizados, o seu controlo é agora
uma tarefa que está muito para além das capacidades dos Estados individuais e o sistema inter-estatal
não foi, de modo algum, concebido para compensar as deficiências de regulação dos Estados através
de acções internacionais concertadas. Por outro lado, a crescente consciencialização dos riscos e dos
perigos evidenciou as limitações estruturais dos mecanismos jurídicos usados pelos Estados para os
gerir (critérios estreitos de legitimidade processual, responsabilidade, prova relevante, dano; sistemas
judiciais lentos, frustrantes, selectivos, dispendiosos ou inacessíveis).(grifo nosso)
433
Ibidem, p. 213. As formas de direito distinguem-se também segundo o tipo de projecção da
realidade social que adoptam. A projecção é o procedimento através do qual a ordem jurídica define
as suas fronteiras e organiza o espaço jurídico no interior delas. ... Segundo o tipo de projecção
adoptado, cada ordem jurídica tem um centro e uma periferia. Isto significa, em primeiro lugar, que, à
semelhança do que se passa com o capital financeiro, o capital jurídico de uma dada forma de direito
não se distribui igualmente pelo espaço jurídico desta. Tende a concentrar-se nas regiões centrais, pois
é aí que é mais rentável e tem mais estabilidade. Nessas regiões, o espaço é catografado com mais
detalhe e absorve mais recursos institucionais, tais como tribunais e profissionais de direito, e mais
recursos simbólicos, como sejam os tratados e os pareceres dos juristas e a ideologia e cultura
jurídicas dominantes. Inversamente, nas regiões jurídicas periféricas, o espaço jurídico é
catografado com traço muito grosso, absorve poucos recursos institucionais (justiça inacessível,
assistência judiciária de baixa qualidade, advogados mal preparados, etc.) e igualmente poucos
recursos simbólicos (práticas jurídicas menos prestigiadas, teorização jurídica menos
sofisticada, etc.) (grifo nosso)
348
sendo natural que esteja influenciado por esse ambiente. Esperar que
adote um padrão comportamental desvinculado deste contexto não
parece razoável sob qualquer ponto de vista.
Em relação a ampliação das funções procedimentais da
magistratura, observa-se que os prazos que lhe são atribuídos pelo
Código de Processo Civil434 não são cumpridos sob o argumento da
sobrecarga de trabalho. Não parece viável, diante disso, atribuir-lhes
mais atividades, uma vez que um dos fatores apontados como
responsáveis pela morosidade na entrega da prestação jurisdicional é a
incapacidade da magistratura em atender à excessiva demanda de
trabalho que recebe.
Segundo o que foi averiguado através dessa pesquisa, as
estruturas sistêmicas são redutoras da complexidade. Não há dados
concretos que permitam afirmar que ao modelo compartimentado do
Código de Processo Civil brasileiro possa ser atribuída a morosidade do
Poder Judiciário. Por outro lado, observou-se que as alterações
promovidas pela Lei 11.232/2005 não chega a criar uma nova dinâmica
procedimental através da supressão de atos processuais. De fato,
promove o deslocamento dos atos que implicam a coerção estatal para o
processo de conhecimento, preservando aqueles procedimentos que antes
434
BRASIL. Código de Processo Civil, art. 189. O juiz proferirá: I – os despachos de expediente, no
prazo de 2 (dois) dias; II – as decisões, no prazo de 10 (dez) dias.
349
gozavam de uma autonomia teleológica, tais como, o requerimento para
o cumprimento da sentença quê, anteriormente, realizava-se através da
petição inicial executiva; a necessidade dos atos de acertamento ou
liquidação da sentença; não houve, ainda, a modificação dos atos
expropriatórios. As modificações são mais de forma que propriamente de
conteúdo.
Quanto às questões relativas às citações para cada processo
(execução, liquidação), o que passa a ocorrer através da intimação dos
advogados, há que questionar-se como se resolverá o problema quando o
mandato procuratório for restrito até a prolatação da sentença. Esta
situação não deverá ser incomum, uma vez que a sistemática para a
fixação dos honorários não foi alterada, ou seja, sua cobrança é
determinada por etapas processuais. No modelo anterior, havia clareza
quanto ao término de um processo e o início de outro, o que doravante se
modifica, pois a quantificação, a constrição e a expropriação ocorrerão
no próprio processo de conhecimento. Não são conhecidos mecanismos
procedimentais que autorizem a imposição ao advogado da obrigação à
prática de atos para os quais não tenha poderes.
Não se tratou de realizar uma abordagem desconstrutiva da
teoria da instrumentalidade do processo, pretende-se contribuir para a
ampliação das discussões em torno do problema generalizado
350
socialmente
com
a
insatisfação
quanto
à
prestação
jurisdicional no Brasil, a qual é considerada ineficiente e injusta em
face da demora excessiva entre o início do processo e o seu resultado
final.
Há aspectos que, conquanto sejam atinentes aos sistemas
social, político e econômico, poderão produzir resultados positivos se
forem adequadamente abordados no campo do sistema jurídico, através
do reconhecimento das interações e comunicações estabelecidas entre os
sistemas por meio do acoplamento estrutural admitido pela teoria
autopoiética.
Quanto ao sistema social, não se vislumbra a possibilidade do
re-equacionamento da juridicização dos conflitos sociais, contudo, pode
ser admitida a hipótese do pluralismo jurídico435 como uma alternativa
através da qual poderão ser constituídos modelos paraestatais para a
composição dos conflitos436.
Dessa forma, a própria comunidade desenvolveria
técnicas que observados, os princípios fundamentais da
Constituição Federal, pudessem resultar na pacificação do
ARNAUD, Arnaud, André-Jean. Dicionário enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. p.
585. Pluralismo jurídico – 1. Em direito; a) Existência simultânea, no seio de uma mesma ordem
jurídica, de regras de direito diferentes aplicando-se a situações idênticas; b) Coexistência de
pluralidade de ordens jurídicas distintas estabelecendo ou não relações de direito entre si. 2. Em
sociologia do direito; coexistência de pluralidade de quadros ou sistemas de direito no seio de uma
determinada unidade de análise sociológica (sociedade local, nacional ou mundial).
435
351
conflito de interesses entre seus membros 437. Neste sentido,
ressalvado a prática de atos de expropriação patrimonial, que
poderiam ficar sujeitos ao controle jurisdicional, podendo a parte
interessada demonstrando liminarmente a causa impeditiva da alienação
do bem por meio de simples petição, já devidamente instruída com as
provas dos fatos alegados, assegurar-se de eventuais danos irreparáveis.
Tomando como referencial o sistema político438 aqui entendido
como aquelas estruturas articuladas que se referem à organização e ao
exercício do poder através do Estado em uma determinada sociedade,
destaca-se a questão da complexidade relativa à independência e à
harmonia entre os poderes. Verifica-se uma interdependência entre os
poderes, interessando, particularmente, a vinculação estabelecida entre o
436
A Lei da Arbitragem (Lei 9.307 de 23/9/1996 ) se coaduna com a proposta da ampliação dos
modelos heterocompositivos para a solução dos conflitos de interesses decorrentes dos fatos jurídicos.
Acredita-se, contudo na possibilidade da simplificação quanto à criação e ao acesso a tais meios.
437
SANTOS, Boaventura de Sousa. O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica
jurídica. p. 11-12. ... com a valorização progressiva dos terrenos em que se implantaram as favelas e a
especulação selvagem daí decorrente, cresceram as pressões da burguesia urbana sobre o aparelho do
estado no sentido de remover em bloco para os arredores os bairros marginais da cidade, libertando os
terrenos para empreendimentos urbanísticos. Perante isto, os habitantes das favelas sempre
procuraram organizar-se de modo a melhorar as condições de habitabilidade, criando várias redes de
água e de electricidade administradas pelos utentes, constituindo brigadas de trabalho (sobretudo nos
fins de semana) para melhoria das ruas e outras infrastruturas colectivas. Procuraram sobretudo
maximizar o desenvolvimento interno da comunidade e garantir a segurança e a ordem nas relações
sociais entre os habitantes com o objectivo de, fortalecendo as estruturas colectivas, fazer subir os
custos políticos e sociais para o aparelho do estado de uma eventual destruição ou remoção forçadas.
Estas formas organizativas desenvolveram-se sobretudo no início da década de 60, numa conjuntura
populista do poder político burguês, e as lutas mais avançadas tiveram lugar à volta das associações de
moradores, que então se constituíram (ou reconstituíram) para coordenar as acções dos vários níveis
da vida colectiva e sobretudo para defender os interesses das comunidades perante as agências do
aparelho de estado. Com o tempo, algumas dessas associações passaram a assumir funções nem
sempre previstas directamente nos estatutos, como, por exemplo, a de arbitrar conflitos entre os
vizinhos, ...(grifos nossos)
438
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, v. 2.
Sistema Político. 1. Definição – Em sua acepção mais geral, a expressão Sistema político refere-se a
qualquer conjunto de instituições, grupos ou processos políticos caracterizados por um certo grau de
interdependência recíproca.
352
Poder Judiciário e o Poder Legislativo. Nos Estados Democráticos de
Direito, a administração e o orçamento público são vinculados à lei que
os regulamenta. Dessa forma, a ampliação dos serviços públicos e, por
conseguinte, dos órgãos do poder judiciário, bem como os recursos
financeiros para sua operacionalização dependem de uma decisão
política tomada na esfera do Poder Legislativo através da aprovação dos
projetos de leis que visem à melhoria e ampliação dos serviços prestados
na esfera do Poder Judiciário.
Entende-se que seriam positivas as ações em que os
operadores do direito analisassem a problemática das estruturas
organizacionais do Poder Judiciário em face das questões que envolvem
suas relações com os poderes executivo e legislativo, tendo em vista a
possibilidade da ampliação dos meios que garantissem o acesso à
jurisdição através da criação de órgãos aparelhados e cargos suficientes
para atender as demandas dos conflitos sociais, principalmente naquelas
causas que envolvessem direito indisponíveis e preceitos de ordem
pública.
Não há a pretensão de colocar em discussão o controle legal ou
o princípio da legalidade da administração pública, mas de ressaltar que
as iniciativas para resolver os problemas decorrentes da baixa eficiência
do Poder Judiciário quanto à realização concreta do comando legal,
353
poderiam ser objeto de propostas que não se restringissem às reformas
do modelo processual, abrangendo-se, também, a situação dos déficits
quanto à estrutura e organização do Poder Judiciário.
No que tange ao sistema econômico, ressalta-se que este
promove suas ações no campo do “risco”, isto significa afirmar que seus
ganhos resultam da oferta do crédito como mecanismo de propulsão de
sua própria atividade. Ou seja, a rentabilidade financeira do sistema
econômico está diretamente vinculada com a possibilidade da
inadimplência, até porque, admitindo-se como pressuposto que a
economia não dependesse do crédito, não haveria inadimplência e, por
sua vez, restariam controlados os “riscos” estruturais decorrentes dos
desapontamentos quanto ao processo de cumprimento de sentenças e da
execução.
Não
se
trata
de
desconsiderar
os
problemas
do
descumprimento das obrigações privadas de pagamento de quantia certa.
No entanto, é pertinente, sob o ponto de vista sistêmico realizar análises
que objetivem a identificação do papel do Poder Judiciário no controle
dos riscos que são inerentes à atividade do sistema econômico. É pouco
provável que se consiga reduzir, de forma significativa ou eliminar os
riscos financeiros, pois este é parte integrante do próprio sistema
econômico.
354
Desta forma, acredita-se que o direito processual não é capaz
de apresentar respostas satisfatórias aos problemas que envolvem a
lentidão na entrega da prestação jurisdicional, sobretudo, quando
abordado como um sistema fechado. As alterações realizadas a partir de
1994 não têm sido capazes de reduzir o tempo de espera dos
jurisdicionados, o quê por si só é um indicador da pertinência na
abordagem dos problemas inerentes ao sistema jurídico tendo em vista
suas relações com os sistemas social, político e econômico.
Interessa, fundamentalmente, demonstrar que a abordagem do
direito processual deve levar em consideração os seus mecanismos de
contato com outros ramos do direito, com a Teoria da Ciência do Direito
e com os demais sistemas que compõem o ambiente onde se
desenvolvem as relações humanas. Desta forma, as referências anteriores
aos possíveis efeitos positivos dessa análise sistêmica não têm o objetivo
de sugerir respostas ou soluções de lege ferenda, mas de demonstrar que
há aspectos que, se considerados, poderão produzir efeitos satisfatórios
quanto aos resultados apresentados pelo Poder Judiciário na realização
da “justiça”.
Não houve o propósito de prescrever fórmulas que pudessem
indicar mecanismos capazes de resolver os problemas que afetam a
eficiência quanto à prestação jurisdicional no Brasil. O aspecto central a
355
respeito do qual gravita este trabalho esteve relacionado com as causas
que tornam a questão do adimplemento através da ação do Estado
alguma coisa insusceptível de realizar-se de forma satisfatória.
Desse modo, procurou-se realizar a identificação e a descrição
de algumas das prováveis causas que justificam os problemas e,
particularmente, que ofereçam possibilidades de propostas mais
abrangentes e compatíveis com a complexidade do ambiente da
modernidade. O objetivo da pesquisa foi o desenvolvimento de análises
que pudessem exercer uma contribuição complementar aos trabalhos que
têm sido realizados no campo dogmático.
A construção de uma teoria de caráter especulativo a qual foi
denominada hermenêutico-crítico-historicista como método para o
conhecimento do processo e aplicação das normas instrumentais,
sobretudo, quanto ao cumprimento da sentença e execução, está
diretamente referida à principiologia Constitucional de processo, através
da qual se acredita na possibilidade de avançar no campo pragmático
relativamente às necessidades da sociedade contemporânea quanto a
aceleração dos procedimentos e acesso à jurisdição sem aumentar os
riscos estruturais ligados à instituição das organizações e organismos
estatais.
356
O referencial crítico se fez presente na adoção da autopoiese
dos sistemas sociais luhmanniano como mecanismo para a descrição das
relações que o objeto do estudo estabelece, através dos processos de
interação e comunicação decorrentes do reconhecimento da existência do
acoplamento estrutural entre os diversos sistemas que compõem o
ambiente humano.
Adotado o pressuposto khuniano, segundo o qual o
desenvolvimento do conhecimento ocorre através da acumulação dos
saberes e experiências constituídas historicamente, entendeu-se que não
havia a possibilidade de produzir conclusões a respeito do estudo sem
que fosse percorrida a trajetória do direito processual ao longo do tempo.
Neste caso, observando-se que a insatisfação dos jurisdicionados com os
serviços prestados pelo Estado, no campo da realização no mundo dos
fatos dos comandos jurídicos, elaborados abstratamente através da lei
revelam-se como um fenômeno histórico.
Nesta seara, ressurge a pergunta: Qual o real problema do Direito
Processual historicamente e contemporaneamente quanto à realização da
“justiça”? Entendeu-se que seja um problema vinculado ao método
sistêmico.
Finalmente, pode ser afirmado que se o Direito Processual não
poderá sozinho, resolver o problema da morosidade na aplicação dos
357
procedimentos judiciais, com certeza será um instrumento poderoso na
construção da “utopia”439 de um direito emancipatório, propulsor das
transformações esperadas, sobretudo, nos países periféricos.
439
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente, p. 167. O conhecimento
emancipatório pós-moderno a que tenho feito apelo visa descobrir, inventar e promover as alternativas
progressistas que essa transformação pode exigir. É uma utopia intelectual que torna possível uma
utopia política. ... Tais transições ocorrem quando as contradições internas do paradigma dominante
não podem ser geridas através dos mecanismos de gestão de conflitos e de ajustamento estrutural
desenvolvidos pelo paradigma em causa. (grifo nosso)
358
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
AULETE, Francisco Caldas. Dicionário contemporâneo da língua
portuguesa, v. 5, p. 3.625.
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense,
2002. v. 1.
ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith; GEWANDSZNAJDER, Fernando. O
método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e
qualitativa. 2. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001.
ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo. 8. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2003.
ALVIM NETO, José Manoel de Arruda. Manual de Direito Processual
Civil. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 3 v.(falta data)
ARNAUD, André-Jean. Dicionário enciclopédico de Teoria e de
Sociologia do Direito. Trad. Vicente de Paulo Barretto. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999.
ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à
análise sociológica dos sistemas jurídicos. Trad. Eduardo Pellew
Wilson. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2000.
ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 5. ed. rev. e atual.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
CALDAS Aulete. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 3.
ed. Rio de Janeiro: Delta, 1980. 5 v.
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à
aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
BARELA, José Eduardo. O massacre dos inocentes. São Paulo, Revista
Veja, n. 1.870, v. 37, n. 36, p. 106-119, de 8 de setembro de 2004.
359
BARROS. Alice Monteiro de (Coord.). Compêndio de Direito
Processual do Trabalho. São Paulo: LTr, 1998.
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova introdução ao Direito.
Rio de Janeiro: Forense, 2000.
BECKER, L.A.; SANTOS, E. L. Silva. Elementos para uma teoria
crítica do Processo. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002.
BERNARDES, Márcio de Souza. A compreensão do direito nas
matrizes neopositivistas e pragmático-sistêmica. Disponível em :
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5624>. Acesso em: 22
de outubro de 2004.
BERCOVICI, Gilberto. Carl Schmitt e a Constituição de Weimar: breves
Considerações. Belo Horizonte, Revista Latino-Americana de Estudos
Constitucionais, v. 2, p. 363-372, 2003.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de política. 12. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004.
2 v.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. São
Paulo: Malheiros, 2004.
BORGES, Alice Gonzáles. Interesse público: um conceito a determinar.
Revista de Direito Administrativo, n. 205, p. 113, jul./set. 1996.
BRASIL. Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005.
BRASIL. Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2005.
BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Saraiva,
2005.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa
do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2005.
CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. Trad. Luiz Abezia e
Sandra Drina Fernandez Barbiery. Campinas, SP: Bookseller, 1999. 3 v
360
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de
sistema na ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
2002.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria
da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002.
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil. 5. ed. rev. e
atual. Trad. Adrián Sotero De Witt Batista. Campinas, SP: Servanda,
1999. 3 v.
__________ . Sistema de Direito Processual Civil. Trad. Hiltomar
Martins Oliveira. São Paulo: Classic Book, 2000. 4 v.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1996.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 2.
ed. Trad. Paolo Capitanio. Campinas, SP: Bookseller, 1998. 3 v.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 11. ed.
rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1995.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. O Direito e os direitos: elementos para
uma crítica do Direito Contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Max Limonad,
2001.
COELHO, Luiz Fernado. Teoria crítica do Direito. 3. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003.
CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Romano Moderno. São Paulo:
Forense, 2002.
DICIONÁRIO brasileiro de língua portuguesa.
Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1983.
[São
Paulo]:
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo.
11. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
________ . Nova era do Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2004.
361
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito.
10. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
ENCICLOPÉDIA Mirador Internacional. São Paulo/Rio de Janeiro:
Antonio Houaiss, 1983. 20 v.
ESTEVES, João Pissarra. Niklas Luhmann: uma apresentação
Disponível em: <http://Ubista. Ubi.pt/~comum/esteves-pissarraluhmann.htm>.Acesso em: 10 de novembro de 2004.
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil. 2. ed. Rio de
Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003.
FOUREZ, Gerard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à
ética das ciências. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Unesp, 1995.
GRAU,
Eros
Roberto.
Ensaio
e
discurso
sobre
a
interpretação/aplicação do direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 17. ed.
atual. São Paulo: Saraiva, 2003. v.3.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução à Filosofia e à
epistemologia jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
_______ .Material para estudos de teoria do Direito. Fortaleza,
Nomos, v. 9/10, p. 49-82, jan./dez. 1990/1991.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad.
Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1975.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia
científica. 2.ed. São Paulo: Atlas, 1991.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do
Trabalho. 2. ed. São Paulo: Ltr, 2004.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. São Paulo: Saraiva,
1946.
________ . Manual de direito Processual Civil. Trad. e notas de
Cândido R. Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
362
LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições
introdutórias. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002.
LOZNEANU, Bronie. Prisioneiros das pílulas. Revista Época. Globo, n.
290, de 8 dedezembro de 2003.
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Trad. Gustavo Bayer. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
MACHIAVELLI, Niccoló. O príncipe. Trad. Lívio Xavier. Rio de
Janeiro: Ediouro, [19--].
MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil.
Rio de Janeiro: Forense, 1958. 5 v.
MARTINS FILHO, Ives Gandra. Manual esquemático de história da
Filosofia. 2. ed. São Paulo: LTr, 2000.
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado das Ações.
Atual. Vilson Rodrigues Alves. Campinas, SP: Bookseller, 1998. 7 v.
________ . Introdução à Sociologia Geral. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1980.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Trad. Roberto Leal
Ferreira e Álvaro Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 25. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 12.
ed., rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1996.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição
Federal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
NOVA Enciclopédia Barsa. São Paulo, 2001. 14 v.
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Manual de monografia jurídica. 4.
ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
363
OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de. Monografia jurídica:
orientações metodológicas para o trabalho de conclusão de curso. Porto
Alegre: Síntese, 1999.
PRATA, Edson. História do processo civil e sua projeção no direito
moderno. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2001.
________ . Lições preliminares de Direito. 13. ed. São Paulo: Saraiva,
1986.
ROCHA, Leonel; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à
teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005.
RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência: da Universidade de
Cambridge. Trad. Jorge Enéas Fontes. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
1991. 4 v.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 13. ed.
Porto: Afrontamento, 2002.
__________. O discurso e do poder: ensaio sobre a sociologia da
retórica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabrisr, 1988.
__________. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da
experiência. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001. 4 v.
SANTOS, Pedro Sérgio dos. Direito Processual Penal & a
insuficiência metodológica: a alternativa da mecânica quântica.
Curitiba: Juruá, 2004.
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da; GOMES, Fábio Luiz. Teoria geral
do Processo Civil. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000.
SIMMONS, John. Os 100 maiores cientistas da história. Trad. Antonio
Canavarro Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
364
TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do Direito. São
Paulo: Saraiva, 2001.
__________. Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. 7. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.
__________ . Ética: do mundo da célula ao mundo dos valores. 2. ed.
39. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 3 v.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil.
39. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 3 v.
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Trad. Elia Ferreira Edel.
7. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002.
TOWNSEND, Mark; HARRIS, Paul. O apocalipse está aí. Carta
capital, n. 280, p. 46-53, de março de 2004.
TUCCI, José Rogério Cruz; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de
processo civil: história e direito vigente. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001.
VICENTINO, Cláudio. História geral. São Paulo: Scipione, 2002.
VIEGAS, Valdir. Fundamentos de Metodologia Científica. 2. ed.
Brasília: Universidade de Brasília, 1999.
VILANOVA. Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito
positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997.
__________. Escritos Jurídicos e Filosóficos. São Paulo: Axix Mundi:
Ibet, 2003. 2v.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de;
TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. 5 ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 3 v.
WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos da História do
Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
Download