EMPODERAMENTO DE MULHERES AGRICULTORAS:

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS
INTERDISCIPLINARES MULHERES, GÊNERO E FEMINISMO
ANA ELIZABETH SOUZA SILVEIRA DE SIQUEIRA
EMPODERAMENTO DE MULHERES AGRICULTORAS:
POSSIBILIDADES E LIMITES DE UM PROJETO
DE DESENVOLVIMENTO RURAL NO SEMIÁRIDO BAIANO
SALVADOR
2014
ANA ELIZABETH SOUZA SILVEIRA DE SIQUEIRA
EMPODERAMENTO DE MULHERES AGRICULTORAS:
POSSIBILIDADES E LIMITES DE UM PROJETO
DE DESENVOLVIMENTO RURAL NO SEMIÁRIDO BAIANO
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos Interdisciplinares sobre
Mulheres, Gênero e Feminismo do Núcleo de
Estudo Interdisciplinar sobre a Mulher –
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia, como requisito
para a obtenção do grau de Mestre em Estudos
Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e
Feminismo
Orientadora: Profa.
Bacellar Sardenberg
SALVADOR
2014
Dra.
Cecília
Maria
Revisão de texto: Romulo José Ribeiro Costa
Revisão final e Formatação: Vanda Bastos
______________________________________________________________________
S619
Siqueira, Ana Elizabeth Souza Silveira de
Empoderamento de mulheres agricultoras: possibilidades e limites de
um projeto de desenvolvimento rural no semiárido baiano / Ana Elizabeth
Souza Silveira de Siqueira. – Salvador, 2014.
250 f.
Orientadora: Profª Drª Cecília Maria Bacellar Sardenberg.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2014.
1. Mulheres na agricultura - Bahia. 2. Liderança em mulheres.
3. Trabalhadoras rurais - Bahia. 4. Gênero. 5. Poder - Relações.
I. Sardenberg, Cecília Maria Bacellar. II. Título.
CDD – 305.4
__________________________________________________________________________
ANA ELIZABETH SOUZA SILVEIRA DE SIQUEIRA
EMPODERAMENTO DE MULHERES AGRICULTORAS:
POSSIBILIDADES E LIMITES DE UM PROJETO
DE DESENVOLVIMENTO RURAL NO SEMIÁRIDO BAIANO
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestra em Estudos
Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia.
Salvador, 25 de agosto de 2014
Banca Examinadora
Cecília Maria Bacellar Sardenberg (Orientadora) ___________________________________
Doutora em Antropologia Social
Boston University. EUA
Universidade Federal da Bahia.
Ana Alice Alcântara Costa _____________________________________________________
Doutora em Sociologia Política pela Universidad Nacional Autonoma de México
Universidade Federal da Bahia.
Tatiana Ribeiro Velloso _______________________________________________________
Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
A Maria Valderez, mãe amada,
por ser a primeira “Maria” em minha vida.
E por me ensinar a ser feminista.
AGRADECIMENTOS
Estou muito feliz por finalmente estar escrevendo os agradecimentos de minha
dissertação, porque isto significa que estou na reta final deste longo e rico processo de
aprendizado... Foi um trabalho solitário, às vezes angustiante, impossível, porém, sem a
colaboração e o carinho de tantos.
Agradeço, primeiramente, a Deus que, através de Nossa Senhora da Conceição, está
sempre presente em minha vida, enchendo-me de fé e força para trilhar a caminhada difícil e
prazerosa da vida. Algumas pessoas foram fundamentais nesta conquista. Pelo começo,
agradeço a minha amiga Lúcia Calil, por ter me estimulado a fazer o Mestrado, enviando o
edital de seleção, e pelas longas e boas conversas sobre como trabalhar gênero no Projeto
Gente de Valor.
Agradeço ao meu companheiro, Ruben Siqueira, pela presença em todas as horas, por
ter me ouvido nas dúvidas e ajudado a pensar o trabalho, por me orientar, estimular, criticar e
fazer correções. Sou grata aos meus “filhotes” Naiara, Cainan e Uirá: esta minha “tribo”
sempre me apoiou, tolerou ausências e angústias e torceu por mim. Aos meus pais, Marcos
(Quito) e Maria Valderez, que, mesmo sem entender muito bem o que significa um estudo de
Gênero, sempre me motivaram a estudar e a lutar pelos meus sonhos. Aos meus irmãos,
Marcos, Marconi, Murilo e Marcílio, a minhas cunhadas-irmãs, Adália, Jaqueline, Fabíola, e a
Priscilla, minha sobrinha, por estarem sempre a perguntar, apoiar e a torcer por mim. Ao meu
sobrinho, Marcos Júnior, por iniciar as transcrições das fitas e a minha cunhada, Darlene, pelo
apoio nas traduções. A Lourdinha, pelo seu carinho e cuidado comigo.
Institucionalmente, quero agradecer o apoio recebido do pessoal da CAR e do Projeto
Gente de Valor, muito especialmente ao coordenador do PGV, César Maynart, por ter
aceitado a flexibilização dos meus horários de trabalho de forma que eu pudesse cursar as
disciplinas do mestrado, realizar a pesquisa de campo e elaborar parte da dissertação durante
parte do expediente. Agradeço aos colegas de trabalho nas pessoas de Carlos Henrique,
Samuel, Heide, Maria do Amparo (Lia), Sérgio Amin, Élcio, Daniel e Geraldo Brito, que
sempre perguntaram, apoiaram, socializaram textos, conversaram sobre o tema, trocaram
informações. Ainda, aos amigos, Celso Celes e Carla Ferreira, pelo companheirismo,
solidariedade e por me ajudarem na pesquisa de campo, facilitando o grupo focal, fornecendo
sempre informações sobre o Projeto, contribuindo com o que eu precisava. Meu carinhoso
agradecimento a Rosi e a Samira, colegas de trabalho e amigas, que dialogaram e refletiram
comigo sobre dúvidas e conceitos. Sou muito grata a Graziela e Suzethe, pela troca de
experiência, pela parceria em texto, pelo comprometimento com a luta das mulheres
agricultoras, pela contribuição com questionamentos técnicos, metodológicos e políticos da
pesquisa, e, principalmente, pela amizade construída a partir da nossa intervenção prática no
campo.
Muito especialmente, agradeço a todas as “Marias”, mulheres agricultoras que
participaram da pesquisa, contaram suas histórias de vida, compartilharam comigo suas
trajetórias e experiências no espaço doméstico e no público. Sou-lhes muitíssimo grata pela
acolhida, confiança e pela amizade que se concretizou neste processo e por me ajudarem a
refletir as potencialidades e limites do Projeto Gente de Valor. Meus sinceros agradecimentos
à Associação Comunitária dos Produtores Rurais de Baixa da Roça e à Associação
Comunitária e Cultural do Bariri, Rio Seco, Alto e Rio Quente de Cima, por aceitarem
participar dos grupos focais, possibilitando-me ouvir os homens e ter a visão das organizações
sobre a intervenção do PGV.
Agradeço, profundamente, aos amigos, chefes de escritórios regionais do PGV,
Geraldo Varjão, Adailton e Rejane, por participarem da pesquisa com toda a boa vontade, por
me acompanharem nas idas às comunidades para as entrevistas com as mulheres, por me
contarem suas trajetórias e experiências pessoais e compartilharem suas críticas e
questionamentos ao trabalho desenvolvido pela assessoria de gênero do PGV.
Agradeço a minha orientadora Cecília Sardenberg – ou seria “desorientadora”, como
ela mesma diz? –, pelo apoio, estímulo e parceria em todas as etapas do trabalho. E por
deixar-me à vontade para buscar meus próprios caminhos. Agradeço, também, às duas
professoras da Banca de Qualificação, Ana Alice Costa (NEIM/UFBA) e Tatiana Velloso
(CETENS/UFRB), por suas contribuições extremamente relevantes para que eu pudesse
seguir adiante e concluir o processo de elaboração.
Por fim, agradeço de coração às colegas e companheiras de turma do Mestrado e do
Doutorado Juliana, Jacqueline, Regis Glauciane, Sabrina e Dina, pela amizade, carinho,
apoio, troca de materiais e de experiências de vida. Um agradecimento especial às amigas
Mara Antonia e Vanderlay, pela força e presença carinhosa, principalmente, na etapa final,
ajudando-me a crer que tudo ia dar certo.
Educar um homem é educar um indivíduo,
mas educar uma mulher é educar uma sociedade.
Rose Marie Muraro
RESUMO
Esta dissertação se volta para a investigação e análise da participação de mulheres agricultoras
no associativismo comunitário e na produção agrícola/agroecológica. Tem por objetivo
identificar de que forma e em que medida o exercício de cargos e funções de direção,
administração e gestão de recursos como executoras de projetos governamentais de
desenvolvimento rural propicia processos de empoderamento destas mulheres no espaço
público e no âmbito doméstico-familiar. Para tanto, foram registradas e analisadas as
trajetórias e experiências de mulheres agricultoras familiares que participaram das ações
desenvolvidas pelo Projeto Gente de Valor, da Companhia de Desenvolvimento e Ação
Regional, empresa pública do Estado da Bahia, em parceria com o Fundo Internacional de
Desenvolvimento Agrícola, em 34 municípios da região semiárida, entre 2007 e 2012. Os
dados foram obtidos a partir de uma abordagem qualitativa, baseada em observações de
campo, na realização de dois grupos focais e no registro de histórias de vida de 10 mulheres
que estão à frente das associações comunitárias locais ou que participam ativamente dos
grupos produtivos. Abordamos, também, as concepções e práticas no âmbito do Projeto Gente
de Valor, relativas ao trabalho com enfoque de gênero e como este é compreendido pelos
agentes técnicos e técnicas e pelas próprias mulheres. Os resultados obtidos são indicativos de
que as mulheres agricultoras se empoderaram, principalmente no nível do empoderamento
individual, mas, também, no nível organizacional. À luz da teoria feminista, concluímos que
esses importantes avanços são maiores na perspectiva desenvolvimentista a que se limita o
Estado, influenciado por organismos multilaterais financeiros. Porém, isto não impediu que
algumas mulheres, com seu engajamento social e político e articulação em redes com pessoas
e organizações, potencializados pelo Projeto Gente de Valor, tenham se empoderado, também,
na perspectiva feminista.
Palavras-chave: Empoderamento. Mulheres agricultoras. Relações de gênero. Relações de
poder. Bahia.
ABSTRACT
This dissertation refers to the participation of women agriculturalists in production and in
community associations. The main purpose of this paper is to identify in what form and to
what extent the practice of administering position where agriculturists women occupy
decision making positions and administering resources in governmental projects contributes
to their growth, and, as such, to their empowerment in public spaces and domestic
environment. The research data were collected in the course of the experiences of women
small farmers participating in the activities and workshops promoted by “Gente de Valor”
Project developed by the Company for Development and Regional Action, a public agency of
the State of Bahia in partnership with the Agriculture Development International Fund , in 34
counties of the semi-arid region between 2007 and 2012. The data were obtained from a
qualitative approach, based on systematic field observation of two focal groups and the
testimony of 10 women agriculturist’s life histories, ahead of the associations or of those who
actively participate in agriculture productive communities. We also reflected upon “Gente de
Valor” Project conceptions and practices related to work with gender focus and how this
process is understood (or not) by agency personnel and the women themselves. The results
indicate that the women farmers were empowered not only at the organizational perspective,
but mostly at the individual level. In the light of the feminist theory, we conclude that these
significant improvements are most likely to increase from a developmental perspective thus
considered by the State, under the influence of multilateral financial institutions. However,
this does not detract the fact that some women, with social commitment and political
articulation in networks with people and organizations, supported by the “Gente de Valor”
Project were also empowered from a feminist perspective.
Key-words: Empowerment. Women farmers. Gender relations. Power relations. Bahia.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Localização dos municípios pertencentes às Regiões Nordeste e Sudoeste
selecionados para o Projeto Gente de Valor, 2010 .............................................. 82
Gráfico 1 Distribuição percentual da população segundo a escolaridade, Projeto Gente de
Valor, 2009 .......................................................................................................... 94
Gráfico 2 Distribuição percentual dos responsáveis pelo domicílio segundo o gênero, por
especificidade sociocultural, Projeto Gente de Valor, 2009 ................................ 102
Gráfico 3 Distribuição etária dos moradores segundo a especificidade sociocultural e
sexo, Projeto Gente de Valor, 2009 ..................................................................... 103
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Níveis e indicadores do processo de empoderamento ......................................... 61
Quadro 2 Informações gerais sobre as mulheres entrevistadas ........................................... 101
Quadro 3 Perfil dos técnicos e da técnica do Projeto Gente de Valor a Região Nordeste
da Bahia ............................................................................................................... 133
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 População beneficiada dos municípios integrantes do Projeto Gente de Valor
selecionados para a pesquisa ˗˗ Estado da Bahia, 2009 ....................................... 91
Tabela 2 Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) dos municípios
integrantes do Projeto Gente de Valor selecionados para a pesquisa ˗˗ Bahia,
2010 ..................................................................................................................... 93
Tabela 3 Taxa de analfabetismo ampla da população com mais de 14 anos, por
município integrante do Projeto Gente de Valor selecionado para a pesquisa ˗˗
Bahia, 2009 .......................................................................................................... 94
Tabela 4 Consolidado de capacitações, Projeto Gente de Valor, 2007-2013 ..................... 105
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADS
Agente de Desenvolvimento Subterritorial
ANA
Articulação Nacional de Agroecologia
ANMTR
Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais
ARCAS
Associação Regional de Convivência Apropriada ao Semiárido
ATER
Assistência Técnica e Extensão Rural
BB
Banco do Brasil
BIRD
Banco Mundial
CAR
Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional
CDST
Conselhos de Desenvolvimento Subterritorial
CEBs
Comunidades Eclesiais de Base
CEDAW
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher
CEDITER
Comissão Evangélica dos Direitos da Terra
CEPAL
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CMDCA
Conselho Municipal da Criança e do Adolescente
CME
Conselho Municipal de Educação
CONTAG
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
COOPERACAJU Cooperativa da Cajucultura do Nordeste da Bahia
CNPM
Conferência Nacional de Políticas
CPF
Cadastro de Pessoa Física
CPT
Comissão Pastoral da Terra
DPMR
Diretoria de Políticas para as Mulheres Rurais
DRP
Diagnóstico Rural Participativo
EAD
Educação a Distância
EBDA
Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola
ECA
Estatuto da Criança e do Adolescente
EFA
Escola Família Agrícola
FAO
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
FETAGs
Federações de Trabalhadores na Agricultura
FIDA
Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola
FNDE
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
GAD
Gender and Development
GED
Gênero e Desenvolvimento
GEMAA
Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa
GPP-GER
Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDH
Índice de Desenvolvimento Humano
IDHM
Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
IDS
Institute of Development Studies
INCRA
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IRPAA
Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada
MAB
Movimento dos Atingidos pelas Barragens
MAPA
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
MDA
Ministério de Desenvolvimento Agrário
MDS
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
MI
Ministério de Integração Social
MMC
Movimento de Mulheres Camponesas
MMM
Marcha Mundial das Mulheres
MMTR-NE
Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste
MOP
Manual de Operação do Projeto
MPA
Movimento dos Pequenos Agricultores
MST
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MSTTR
Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
NEIM
Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher
OIT
Organização Internacional do Trabalho
ONG
Organização Não Governamental
ONU
Organização das Nações Unidas
PAA
Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar
PAE
Programa de Alimentção Escolar
PAG
Plano de Ação em Gênero
PAGE
Programa de Assessoria de Gênero
OSC
Organização da Sociedade Civil
PEA
População Economicamente Ativa
PEC
Proposta de Emenda Constitucional
PGV
Projeto Gente de Valor
PIB
Produto Interno Bruto
PJR
Pastoral da Juventude Rural
PNAE
Programa Nacional de Alimentação Escolar
PNATER
Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural
PNDTR
Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural
PNHR
Programa Nacional de Habitação Rural
PNPM
Plano Nacional de Políticas para Mulheres
PNUD
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
POPMR
Programa de Organização Produtiva de Mulheres Rurais
PPA
Plano Plurianual
PRODECAR
Projeto de Desenvolvimento Comunitário para as Áreas Rurais mais
Carentes do Estado da Bahia
PRONAF
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PROGAVIÃO
Projeto de Desenvolvimento Comunitário da Região do Rio Gavião
PRONAT
Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais
PRONATER
Programa Nacional de ATER
PT
Partido dos Trabalhadores
REDOR
Rede Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Relações de
Gênero
SEAGRI
Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Reforma Agrária, Pesca e
Aquicultura
SEBRAE
Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SEDIR
Secretaria do Desenvolvimento e Integração Regional
SEPLAN
Secretaria de Planejamento do Estado da Bahia
SETRE
Secretaria do Trabalho Emprego Renda e Esporte
SPM
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
STTRs
Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
UFBA
Universidade Federal da Bahia
UFRPE
Universidade Federal Rural de Pernambuco
UNESCO
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UNIFEM
Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher
WID
Women in Development – Mulher no Desenvolvimento
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 19
FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS E PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS ....................................................................................................... 26
1 TEORIZANDO SOBRE O PROCESSO DE EMPODERAMENTO DE
MULHERES .................................................................................................................. 35
1.1 CONCEITUANDO EMPODERAMENTO ................................................................. 36
1.1.1 Na perspectiva de desenvolvimento ........................................................................ 36
1.1.2 Na perspectiva feminista ......................................................................................... 39
1.2 DIMENSÕES HISTÓRICAS ....................................................................................... 43
1.3 DIMENSÕES DO PROCESSO DE EMPODERAMENTO ........................................ 51
1.4 NÍVEIS OU SUJEITOS DE EMPODERAMENTO .................................................... 52
1.5 OPERACIONALIZAÇÃO DO EMPODERAMENTO NO PROJETO GENTE DE
VALOR ......................................................................................................................... 57
1.6 COMO ESTUDAR O EMPODERAMENTO DAS MULHERES .............................. 59
2 CONTEXTUALIZANDO A BUSCA DO EMPODERAMENTO DE
MULHERES AGRICULTORAS ................................................................................. 63
2.1 CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO .................................................................... 63
2.1.1 Breve histórico da luta recente das mulheres ........................................................ 63
2.1.2 A luta dos movimentos de mulheres rurais no Brasil ........................................... 64
2.2 CONTEXTO POLÍTICO BRASILEIRO ..................................................................... 69
2.2.1 Conceitos relevantes ................................................................................................ 71
2.3 GÊNERO E DESENVOLVIMENTO NO BRASIL E NO PROJETO GENTE DE
VALOR ......................................................................................................................... 77
2.4 BREVE HISTÓRICO DO PROJETO GENTE DE VALOR ....................................... 78
2.4.1 Estratégias de gênero do Projeto Gente de Valor ................................................. 85
3 MULHERES AGRICULTORAS FAMILIARES NO PROJETO GENTE
DE VALOR .................................................................................................................... 89
3.1 CONTEXTUALIZAÇÕES DA ÁREA ESTUDADA/PESQUISA ............................. 89
3.2 CARACTERIZAÇÃO DAS MULHERES PESQUISADAS ...................................... 95
3.3 DADOS QUANTITATIVOS E QUALITATIVOS ..................................................... 102
3.3.1 Participação e apropriação/construção de conhecimentos .................................. 107
3.3.2 O olhar das mulheres pesquisadas e as dificuldades em participar .................... 111
4 O OLHAR DE OUTROS ATORES SOBRE O ENTRELAÇAR DO PROCESSO
DE EMPODERAMENTO ............................................................................................ 116
4.1 GRUPOS FOCAIS: O QUE PENSAM OS HOMENS SOBRE AS MULHERES? ... 116
4.1.1 Sinais de mudanças nas relações de gênero ........................................................... 123
4.2 OUVINDO OS FACILITADORES NO PROCESSO DE EMPODERAMENTO ...... 129
5 TRAJETÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DAS MULHERES AGRICULTORAS ....... 146
5.1 GÊNERO E A INTERSECCIONALIDADE COM OUTRAS CATEGORIAS .......... 146
5.2 AS MULHERES AGRICULTORAS: HISTÓRIAS DE VIDA E
EMPODERAMENTO .................................................................................................. 152
5.2.1 Infância ..................................................................................................................... 152
5.2.2 Adolescência e juventude ........................................................................................ 165
5.2.3 O trabalho como empregada doméstica ................................................................ 170
5.2.4 O despertar da sexualidade, namoro e casamento ................................................ 174
6 PROJETO GENTE DE VALOR: EMPODERAMENTO E/OU
DESEMPODERAMENTO DAS MULHERES AGRICULTORAS? ...................... 180
6.1 EMPODERAMENTO PSICOLÓGICO OU INDIVIDUAL ....................................... 180
7 O CURSO DO EMPODERAMENTO ORGANIZACIONAL .................................. 210
7.1 O EMPODERAMENTO NO NÍVEL DE COMUNIDADE ........................................ 220
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 230
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 239
19
INTRODUÇÃO
Este estudo tem como tema a participação de mulheres agricultoras familiares na
produção agrícola/agroecológica e no associativismo comunitário no qual passam a exercer
cargos e funções de direção, administração e gestão de recursos como executoras de projetos
governamentais de desenvolvimento rural. Pretende-se demonstrar que esta inserção nos
espaços organizativos e produtivos contribuiu para o crescimento pessoal, social e político
dessas mulheres, levando-as a se empoderar no espaço público.
Reflito, a partir de uma perspectiva feminista, sobre como se dá esta inserção das
mulheres agricultoras familiares, ao ousarem exercer, em suas comunidades rurais, atividades
tidas como incomuns para mulheres. Elas protagonizam um processo de construção individual
e coletiva de um possível empoderamento com significativas repercussões sociais.
O estudo foi construído a partir de uma pesquisa em torno da intervenção do
Estado por meio do Projeto Gente de Valor (PGV), da Companhia de Desenvolvimento e
Ação Regional (CAR), vinculada à Secretaria do Desenvolvimento e Integração Regional
(SEDIR) do Governo da Bahia. O Projeto Gente de Valor começou a ser implementado no
início de 2007 pela CAR, com prazo de execução de seis anos e encerramento previsto para
dezembro de 2012. É um Projeto do Governo do Estado da Bahia em parceria com o Fundo
Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), órgão das Nações Unidas (ONU). Sua
área de abrangência compreende 34 municípios da região semiárida, todos com baixo Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH), sendo 26 municípios na região Nordeste do Estado 1 e
oito na região Sudoeste2.
A CAR é uma empresa pública que atua, desde 1983, nos 417 municípios do
Estado da Bahia. Coordena programas de combate à pobreza rural, realiza vários
investimentos expressivos em infraestrutura física e em capital humano, social e produtivo nas
ações de desenvolvimento rural na Bahia e executa vários programas e projetos de
desenvolvimento, dentre eles, o Projeto Gente de Valor.
1
2
Abaré, Adustina, Antas, Banzaê, Cansanção, Canudos, Chorrochó, Cícero Dantas, Coronel João Sá,
Euclides da Cunha, Fátima, Glória, Heliópolis, Itapicuru, Jeremoabo, Macururé, Monte Santo,
Nordestina, Novo Triunfo, Paripiranga, Pedro Alexandre, Quijingue, Ribeira do Amparo, Rodelas,
Santa Brígida e Sítio do Quinto.
Aracatu, Boa Nova, Bom Jesus da Serra, Caetanos, Manoel Vitorino, Mirante, Planalto e Poções.
20
O Projeto Gente de Valor visa o desenvolvimento rural realizado na região
semiárida do Estado3, adotando uma perspectiva territorial que prevê o desenvolvimento
econômico, social, cultural e ambiental de forma integrada. Foi pensado e implementado
conforme os ditames do modelo neoliberal4, segundo as orientações do governo federal
referenciadas nos “Objetivos do Milênio da ONU” (UNESCO–Brasil, 2005) que visam
reduzir, significativamente, os níveis de pobreza e a pobreza extrema das comunidades rurais
do semiárido brasileiro. Para tal, o projeto tem o objetivo de melhorar as condições
socioeconômicas das comunidades rurais pobres através de um desenvolvimento social e
econômico ambientalmente sustentável com equidade de gênero, tendo como diretrizes
estratégicas o empoderamento e a participação das comunidades rurais nos processos de
desenvolvimento local e o desenvolvimento produtivo e de mercado, com enfoque na cadeia
produtiva e no uso sustentável dos recursos naturais do semiárido.
Especificamente, no desenvolvimento da pesquisa, busquei descrever e analisar as
estratégias desenvolvidas na prática pelo PGV na perspectiva de gênero, tida como um dos
temas transversais do projeto.
O interesse pelo tema vem de minha experiência como engenheira agrônoma,
mulher, militante da agroecologia em entidades não governamentais e, atualmente, Assessora
de Gênero do Projeto Gente de Valor. Pessoalmente identificada com o feminismo e com a
luta das mulheres, venho acompanhando, com particular interesse, a trajetória destas
agricultoras familiares. Tendo observado, ao longo desta trajetória de muitos anos
assessorando movimentos sociais no campo assim como participando diretamente da
3
4
Entre 2009 e 2012, o PGV atuou em 34 municípios do Semiárido da Bahia, 26, na região nordeste e
8, na região sudoeste, a saber: Nordeste ˗˗ Abaré, Adustina, Antas, Banzaê, Cansanção, Canudos,
Chorrochó, Cícero Dantas, Coronel João Sá, Euclides da Cunha, Fátima, Glória, Heliópolis,
Itapicuru, Jeremoabo, Macururé, Monte Santo, Nordestina, Novo Triunfo, Paripiranga, Pedro
Alexandre, Quijingue, Ribeira do Amparo, Rodelas, Santa Brígida e Sítio do Quinto; Sudoeste ˗˗
Aracatu, Boa Nova, Bom Jesus da Serra, Caetanos, Manoel Vitorino, Mirante, Planalto e Poções.
Foram atendidas 282 comunidades rurais, constituídas por agricultores e agricultoras familiares ou
quilombolas ou indígenas; criadas (34) e regularizadas (77), um total de 111 associações
comunitárias e apoiadas e fortalecidas 14 cooperativas. Participaram 18.820 mulheres e 17.652
homens durante o período de desenvolvimento do projeto (2007 a 2012). Dados do “Relatório de
Acompanhamento FIDA – Sistema de Resultados de Primeiro e Segundo Nível” (RIMS, 2012).
Estes ditames passam a empreender um processo de transformação produtiva e tecnológica,
caracterizado pela emergência de um novo padrão de organização da produção, que envolve um
aumento da concentração do capital e a criação de empresas gigantescas e poderosas operando em
escala mundial e a intensificação com as relações financeiras internacionais, sob os pressupostos
neoliberais da abertura comercial, da liberalização dos mercados financeiros, da desregulamentação
do mercado do trabalho, das privatizações e da redução do papel do Estado. Disponível em:
<http://www.simposioestadopoliticas.ufu.br/imagens/anais/pdf/AC04.pdf>. Acesso em: 28 ago.
2014.
21
implementação de políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, que, apesar da
participação crescente das mulheres agricultoras nas atividades produtivas e organizativas,
elas continuam a enfrentar barreiras para se inserirem no espaço público. Entre os desafios,
têm que disputar poder nas relações de gênero em casa e na comunidade, desde o cotidiano
até os espaços próprios da política a elas vedados ou apenas parcialmente permitidos ou
conquistados.
Pensando nessa realidade, o que se segue é um esforço de situar as pessoas e
grupos que são objeto do estudo em seu contexto social, enquanto mulheres agricultoras
familiares da região nordeste da Bahia, semiárida. Busco integrar a riqueza do olhar
antropológico com as limitações do pensamento objetivista de uma pesquisadora com
formação na engenharia agronômica. Meu primeiro encontro com a antropologia se deu na
convivência acadêmica, em 1991, quando fiz a disciplina Antropologia Cultural, no Curso de
Especialização em Associativismo, na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
E, mais recentemente, no diálogo em sala de aula no Núcleo de Estudos Interdisciplinares
sobre a Mulher (NEIM), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), durante as aulas da
disciplina Dinâmica das Relações de Gênero e de Classe com uma antropóloga, minha
professora e orientadora, Cecília Sardenberg, que me encantou com o rico e crítico debate
sobre a teoria feminista.
Percebo que é necessária ao exercício do estudo a reconstrução analítica do
campo, que demanda um grande esforço, enquanto uma pesquisadora ainda em processo de
aprendizado nesta difícil tarefa de pesquisa de campo e escrita. Para tanto, estudo as
diferentes trilhas percorridas nesse processo vivenciado pelas mulheres agricultoras familiares
nos espaços privado e público, os percalços por elas enfrentados para participarem destes
espaços, a sobrecarga de trabalho, a dominação sexista e as responsabilidades produtivas e
reprodutivas. No espaço público, observo o desempenho das mulheres participantes do PGV
na gestão das associações, espaço de poder político mais próximo e acessível a estas
comunidades rurais. Interessa-me melhor conhecer como vem se dando a participação das
mulheres agricultoras à frente de associações comunitárias, assumindo cargos diretivos e
exercendo poder de decisão: será que isto tem franqueado a elas o poder de agenda nos temas
que afetam suas vidas, nos programas e nas políticas especiais para as mulheres?
A relevância deste estudo vem do fato de levantar e debater as diferentes
perspectivas do empoderamento das mulheres agricultoras familiares a partir das lógicas que
as constituem e do ponto de vista delas e dos demais atores envolvidos. Pergunto pelos
impactos que estão tendo as atividades políticas e econômicas das mulheres agricultoras em
22
função da sua participação nas associações produtivas comunitárias, impactos sobre as
relações de gênero tradicionais na família e na comunidade. Existem poucos estudos
abordando esta temática à luz das teorias feministas bem como carência de informações sobre
como diferentes mulheres vivenciam o processo de empoderamento.
As contribuições deste estudo dizem respeito, primeiro, em uma perspectiva de
empoderamento emancipatório, ao crescimento pessoal e como sujeitos políticos das próprias
mulheres enquanto gestoras de suas organizações e demandantes e coexecutoras de políticas
públicas de desenvolvimento em suas comunidades; que elas possam ter voz, visibilidade,
influência e capacidade de ação e decisão nos espaços doméstico e público. Em segundo
lugar, acredito ser sumamente necessário estudar as estratégias de intervenção de um projeto
governamental na perspectiva de gênero, com o objetivo de fomentar a equidade e o
empoderamento, suas ações, as ferramentas utilizadas e os resultados alcançados. Creio ser
importante analisar suas dificuldades e avanços ao executar suas propostas, observar o
entendimento e a prática sobre as questões de gênero pelos técnicos e técnicas do Estado.
Aqui, a contribuição visa a construção de conhecimento institucional que possa favorecer o
interesse e a incorporação efetiva da perspectiva de gênero nos demais projetos da CAR e
mesmo de outros setores governamentais, organizações da sociedade civil e agências de
desenvolvimento, como um componente essencial ao desenvolvimento rural na perspectiva
sustentável.
O objeto deste estudo é, portanto, o processo de empoderamento das mulheres
agricultoras familiares que participaram do Projeto Gente de Valor, a maneira como elas vêm
se constituindo como sujeitos políticos, no semiárido baiano. São mulheres que se mobilizam
e se articulam através de grupos de interesses e de associações, organizam experiências
produtivas e de comercialização em busca de melhores condições de vida.
Investigo de que forma, e em que medida, vem se processando o empoderamento
das mulheres agricultoras familiares na participação que tiveram no Projeto Gente de Valor.
Proponho-me a identificar e analisar, em especial, até que ponto as estratégias de intervenção
com perspectiva de gênero, através de um processo participativo de capacitação e
sensibilização em gênero, contribuíram para desconstruir responsabilidades de gênero préestabelecidas e reestruturar relações de poder na perspectiva de um novo modelo de
desenvolvimento rural nas comunidades, como se propunha o PGV.
São objetivos específicos deste estudo: (i) investigar e analisar o processo de
empoderamento das mulheres agricultoras familiares que participaram do PGV, inseridas nas
atividades de produção agrícola e não agrícola e nas organizações comunitárias; (ii) examinar
23
como vem se dando o empoderamento dessas mulheres nos espaços domésticos e públicos;
(iii) analisar de que forma e em que medida a estratégia de gênero do Estado, empregada no
Projeto Gente de Valor, tem proporcionado às mulheres agricultoras familiares o deslanchar
de processos de empoderamento pessoal, social e político; e (iv) analisar como e em que
medida o processo de formação na área produtiva (agroecológica) e organizativa
(associativismo), desenvolvido pelo PGV, contribuiu para a autonomia e empoderamento das
mulheres agricultoras nas associações e nas comunidades.
Interessa, também, examinar as tensões, dificuldades, limites e avanços na
igualdade de oportunidades que se pode observar nas relações de gênero, no âmbito familiar e
na comunidade, estabelecidas pela participação das mulheres agricultoras, principalmente no
associativismo comunitário, exercendo cargos de direção, administrando e gerindo recursos
como executoras de projetos governamentais. Se há empoderamento das mulheres
agricultoras a partir da intervenção estatal, onde, quando se pode observá-lo, como ele se
expressa, que consequências tem para o conjunto das relações sociais?
Em um plano mais amplo, esta dissertação se insere na perspectiva dos chamados
Estudos Feministas, um campo multidisciplinar de conhecimentos que se desenvolveu nas
ciências humanas e sociais a partir da década de 1970. É um estudo engajado, no sentido de
que sua proposta é contribuir para dar visibilidade às mulheres agricultoras familiares e suas
organizações.
Ao estudar as trajetórias de vida dessas mulheres agricultoras familiares que
participam das atividades do Projeto Gente de Valor, tento compreendê-las à luz das
contribuições de diversos autores e autoras que estudam gênero como uma categoria de
análise e que nos ajudam a entender as questões desta temática e sua pertinência como
explicação e/ou questionamento das situações empíricas. Sobre a proposta de intervenção do
Projeto Gente de Valor na perspectiva de gênero, que vem sendo desenvolvida desde 2007,
busco construir um olhar crítico a partir das teorias feministas, levantando argumentos para
debater estereótipos e preconceitos de gênero, raça, classe e geração.
Esta pesquisa pretende, no confronto entre a teoria e a experiência concreta,
enriquecer o debate sobre como a questão de gênero interfere na organização social do espaço
público e privado e leva a pensar nos valores e contravalores que estão associados a cada uma
das designações atribuídas a homens e a mulheres na sociedade contemporânea. A discussão
teórica se faz em torno das responsabilidades produtivas e reprodutivas assumidas por
mulheres nos espaços doméstico/privado e público, com o objetivo de iluminar os conceitos,
trajetórias e experiências das agricultoras familiares. Para tanto, dialogo com a bibliografia de
24
fundamentos teóricos e metodológicos da crítica feminista à teoria social. As principais
categorias que nos ajudam na compreensão do problema e suas implicações são:
empoderamento, relações de poder, patriarcado, gênero, mulher, raça/etnia, geração,
trajetória, experiência, diferença e interseccionalidade.
Observo que, enquanto empoderamento feminino, este processo cobra um preço
na vida pessoal e pública destas mulheres, pois tensões têm sido geradas nas famílias e nas
comunidades, com dificuldades nas relações entre cônjuges, entre parentes e entre vizinhos.
Neste contexto, estou dialogando com o conceito de empoderamento de mulheres a partir de
uma perspectiva feminista, ou seja, como um processo da conquista de autonomia, de
autodeterminação, implicando, portanto, na libertação das mulheres das amarras da opressão
de gênero, da opressão patriarcal construída historicamente. Neste sentido, diálogo com o
pensamento da feminista Srilatha Batliwala (1994) quando afirma que o empoderamento é um
processo individual e coletivo de questionar as ideologias e as bases das relações de poder
patriarcais em vigor. Percebo, com Magdalena de León (2001), que o processo de
empoderamento começa, no caso dos indivíduos, quando eles/as, além de reconhecerem as
forças que os oprimem, se mobilizam através de ações coletivas dentro de um processo
político para mudar esta realidade e as relações de poder existentes.
As mulheres agricultoras familiares do semiárido do nordeste, em geral, vivem,
cotidianamente, o peso da cultura machista, sexista e patriarcal. A formação doméstica
reafirma o poder legitimado do homem sobre as mulheres, mantendo-as oprimidas na família,
assumidamente figuras subalternas (SAFFIOTI, 1992). Esta dominação se materializa e se
corporifica por intermédio da cultura, das tradições e da divisão sexual do trabalho, que
impõe, desde muito cedo, sobre quem tem o sexo “fêmea”, o desempenho de determinadas
tarefas ditas femininas. Nas relações familiares e comunitárias destas mulheres, observamos
como a ordem de gênero patriarcal ainda impera e é mantida cotidianamente por homens e
mulheres as quais, por outro lado, reproduzem o patriarcado e se tornam peças importantes na
sua reprodução e continuidade, por meio, sobretudo, da educação dos filhos e filhas.
Heleieth Saffioti (2004) ajuda a compreender o patriarcado, ao considerar que ele
é um caso específico de relações de gênero, pois, dentro do binômio dominação–exploração
da mulher, os dois polos da relação possuem poder. Porém, defende Saffioti que este poder é
experimentado de maneira desigual, já que as relações entre homens e mulheres são desiguais
e hierárquicas. Segundo esta autora, ao sexo feminino cabe uma pequena parcela de poder
dentro de uma relação de subordinação. Esta parcela de poder mesmo pequena permite que as
mulheres questionem a supremacia masculina e encontrem meios diferenciados de resistência.
25
Joan Scott nos ajuda a compreender a categoria gênero e a defini-la. Segundo ela:
“O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas
entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (1995, p.
86). Acreditando que o propósito de Scott foi tornar bem visível e especificar como se deve
pensar o efeito do gênero nas relações sociais e institucionais, adoto aqui esta definição de
gênero, considerando-a uma categoria de análise relacional que possibilitará perceber a
dinâmica das relações sociais de gênero vividas pelas mulheres agricultoras aqui pesquisadas.
Na interpretação de Scott (1995), o gênero deve ser compreendido como uma
manifestação de relações de poder porque estabelece, entre homens e mulheres, entre as
próprias mulheres e também entre os homens, um acesso diferenciado aos recursos simbólicos
e aos recursos materiais da sociedade. O poder é entendido na perspectiva foucaultiana como
relacional, como algo que circula, se pratica e se exerce. Para Michel Foucault (1985), o poder
não é algo que se detém como uma coisa, não é apropriado como bem. O que existe são
práticas ou relações de poder nas quais, a depender da relação, podemos ora ocupar o lugar do
dominante ora ser o dominado. Estas relações se apresentam entre pessoas de classes sociais
diferentes, raças e etnias diferentes, pessoas de mesmo sexo ou de sexo diferente.
O gênero precisa ser pensado dentro de uma lógica de relações de forma
interconectada com sexo, classe, raça, idade, geração etc. A partir da orientação de Kimberlé
Crenshaw sobre o conceito de interseccionalidade, entende-se que estas relações plurais
levam a pensar a subordinação a começar desta imbricação entre os sexos, entre as classes e
entre as gerações, a pensar em sexo e gênero não como conceitos intercambiáveis, pois um
não substitui o outro, um não desaparece no outro; na realidade, eles operam e se imbricam.
Percebo como o gênero se intersecta com outras identidades e como estas intersecções
contribuem para a vulnerabilidade alimentar, trabalhista, educacional, habitacional e da vida
privada das mulheres e de seus grupos familiares. Podemos dizer, ainda com a autora, ser “a
discriminação interseccional difícil de ser identificada em contextos onde forças econômicas,
culturais e sociais moldam o pano de fundo de forma a colocar as mulheres em uma posição
onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de subordinação” (2002, p. 176). As
mulheres foram e continuam sendo vítimas de uma sociedade desigual; não só por serem
mulheres, também por serem pobres, são colocadas em um lugar de inferioridade social no
qual são mantidas como se sua condição e posição fossem o resultado imutável ou natural da
vida e não houvesse por trás todo um aparato social hegemônico e opressor, muitas vezes
invisível.
26
É o caso das mulheres agricultoras familiares investigadas que, ao assumirem um
cargo na associação, mulheres antes confinadas à esfera doméstica – onde o modo de
organização da família implica uma rígida hierarquia moral que estabelece posições sociais,
deveres e obrigações próprias a cada um, conforme a inserção de gênero e de geração –
precisam tentar equilibrar as posições pelo exercício de sua autonomia como ser humano igual
aos homens, como cidadãs com os mesmos direitos sociais que seus companheiros ou irmãos.
Ao ocuparem este espaço, as mulheres têm acesso à espécie de autoridade, prestígio e valores
culturais tidos como prerrogativas exclusivas do homem.
Ao reconhecer as relações de gênero estabelecidas, precisamos superar as
desigualdades que se materializam no cotidiano destas relações. A equidade de gênero e o
acesso, através do associativismo, ao exercício de cidadania buscam possibilitar o acesso às
políticas públicas. As capacitações previstas contribuem, principalmente, para a qualificação
das mulheres, fortalecendo suas capacidades para um bom desempenho em cargos diretivos e
nas suas organizações. Observo que, através de um trabalho específico com as mulheres,
preparando-as e capacitando-as, pode-se conseguir que participem dos processos e espaços
representativos com uma maior consciência de suas responsabilidades e que ocupem cargos
de poder com autonomia. Para tanto, cabe trabalhar na perspectiva do seu empoderamento e
de suas lideranças, estimulando a autoestima, na expectativa de mudanças reais de
mentalidade e de atitude que deem substância à sustentabilidade desejada para o
desenvolvimento rural.
FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Neste estudo, tentei manter todo o tempo o diálogo entre prática e teoria feminista,
adotando uma perspectiva interdisciplinar e baseando-me nas Standpoint Theories.5 Trabalhei
com estas teorias por proporcionarem uma perspectiva da visão de mundo feminista com a
qual me identifico a partir da minha própria experiência profissional. É este o lugar de onde
falo e faço minhas escolhas metodológicas. Sei das possibilidades de conexões e aberturas
inesperadas que o conhecimento situado oferece. Na verdade, o modo de encontrar, nesta
5
As teorias de perspectiva são desenvolvidas pelo feminismo, a partir da afirmação de que o lugar
de onde se vê (e se fala) – a perspectiva – determina nossa visão (e nossa fala) do mundo. Tais
teorias tendem a sugerir que a perspectiva dos subjugados representa uma visão privilegiada da
realidade. (Segundo nota de Sandra Azeredo, em artigo de Donna Haraway: Saberes localizados: a
questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p.
7-41, 1995).
27
pesquisa, uma visão mais ampla desses saberes localizados da pesquisadora – meu, enquanto
assessora de gênero em um projeto de desenvolvimento rural – e dos atores – mulheres e
homens agricultores, técnicos e técnicas que participaram do projeto – é, em particular, de
onde se vê e se fala a partir da construção de um conhecimento situado e corporificado.
Neste sentido, durante a pesquisa, apoiada na minha história profissional prática,
trabalhei com uma epistemologia como reflexão ligada à própria produção do conhecimento
científico e com uma vigilância interna crítica sobre os procedimentos e os resultados.
Acredito que a epistemologia escolhida leva à reflexão de seus fundamentos e reflete sobre a
pertinência dos conceitos, das teorias e dos métodos utilizados.
Trabalhei em uma perspectiva de ciência libertadora, mesmo sabendo que a
ciência é androcêntrica, se tornou hegemônica, não é pura nem neutra, tem uma ideologia e
está a serviço de um determinado interesse e de uma visão de mundo. Trabalho com uma
perspectiva feminista da ciência por acreditar que, a partir da análise feminista, podemos
questionar a filosofia androcêntrica e contribuir para o diálogo e o embate entre a ciência e a
sociedade. O desafio é tentar compreender a ambivalência e a complexidade intrínsecas da
ciência que, mesmo sendo libertadora, traz possibilidades de subjugação. Para compreender
este problema tenho que desconstruir a ideia da ciência “boa”, que só traz benefícios, e da
ciência “má”, que só traz prejuízos. Sei que o processo de crescimento e de extensão do saber
do conhecimento científico é também de transformações e de rupturas com uma teoria.
Reconheço que a metodologia feminista é o caminho que melhor dialoga com a pesquisa aqui
proposta, pois adoto as lentes feministas durante a investigação. Concordo com Cristina
Bruschini (1992) quando afirma que, independente do método adotado durante a pesquisa,
devemos ficar atentas às questões de gênero, que devem estar presentes em todas as etapas.
Problematizo a construção da trajetória desse tema na vida dessas mulheres a
partir do olhar de gênero na perspectiva da crítica feminista, fazendo a interseção entre
gênero, classe, raça e geração. Sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto, busco uma
profunda identidade do método com a teoria.
A pesquisa tem como seu universo as mulheres agricultoras familiares das
comunidades rurais da região Nordeste do Estado da Bahia, que participaram do Projeto de
desenvolvimento rural, “Gente de Valor”, que é um dos projetos executados pela Companhia
de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR). Das duas áreas de atuação do PGV no
Semiárido da Bahia, Nordeste e Sudoeste, escolhi a região Nordeste por ter área de
abrangência maior e também por ser considerada uma das mais pobres do Estado. A nossa
amostra é não probabilística e intencional.
28
Trabalho com pesquisa participante, por entender que é um caminho que
possibilita uma construção de relações mais democráticas entre as pessoas envolvidas e uma
melhor interação entre os atores, atrizes, técnicos, técnicas e a pesquisadora. E, também, por
acreditar que a pesquisa participante facilita obter as informações e observar em campo o
empoderamento ou não destas mulheres agricultoras. Para tal, investigo as mulheres
agricultoras que participaram do grupo de experiência produtiva (quintal produtivo, corte e
costura, artesanato de fiapo e bordado) mesmo sendo grupos de trabalho tradicionalmente
femininos, mas por serem estes os espaços onde as mulheres demonstraram maior domínio,
conhecimento e visibilidade. Em especial, volto-me para aquelas que assumem cargos de
direção das associações comunitárias de produtores rurais conveniadas com o Projeto Gente
de Valor, dando um recorte no período de maior intensidade na execução, entre 2009 e 2012.
Participam dessas associações 89 mulheres. Tendo por base suas histórias de vida,
escolhi aprofundar a trajetória de 10 delas, duas das quais são presidentes, uma vicepresidente; três são tesoureiras, uma assume o cargo de coordenadora de gênero na associação
e as outras são associadas ou apenas participam das reuniões e atividades promovidas pela
associação. As associações de que elas participam são: Associação dos Moradores da
Comunidade Beleza (município de Santa Brígida); Associação Comunitária dos Produtores
Rurais de Baixa da Roça (Novo Triunfo); Associação Comunitária Bananeirinha e Adriana
(Jeremoabo); Associação Comunitária Cultural do Bariri, Rio Seco, Alto e Rio Quente
(Ribeira do Amparo); Associação Comunitária dos Agricultores Familiares de Raso Pintado e
Lage da Boa Vista e Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Fazenda Pedrinhas
(ambas do município de Fátima); e Associação das Famílias Agricultoras Remanescente do
Quilombo da Maria Preta (Banzaê).
Conforme Vincent de Gaulejac (2005 apud BARROS et al., 2007, p. 31), acredito
que, “por meio da história de vida contada da maneira que é própria do sujeito, tentamos
compreender o universo do qual ele faz parte”. Nesta perspectiva, a história de vida se
mostrou um instrumento analítico fundamental para visibilizarmos as experiências concretas
dessas mulheres e, a partir delas, tentar mostrar a relação do universo subjetivo com os fatos
sociais. Os nomes das mulheres agricultoras familiares entrevistadas foram aqui modificados:
para não identificá-las, nomeamos a todas como “Marias” e com um segundo nome para
diferenciá-las entre si. Conforme combinado com elas, durante a negociação da pesquisa, isto
lhes garantiria o direito de anonimato. O critério para a troca de cada um dos nomes foi
completamente aleatório. Também os nomes de companheiros, namorados, maridos, filhos e
29
outras pessoas referidas nas histórias de vida e nas entrevistas foram modificados, dentro do
mesmo propósito, também de forma aleatória.
As narrativas orais e histórias de vida, as entrevistas semiestruturadas e os grupos
focais foram realizados no período entre outubro e novembro de 2013. Com as narrativas e
histórias de vida, busco reconstruir as trajetórias de vida dessas mulheres, em especial,
quando e enquanto parceiras e executoras do PGV, como esta experiência é apreendida por
elas e a visão que têm agora sobre suas próprias ações.
A escolha das dez mulheres6 e também dos dois grupos focais se deu a partir da
minha própria experiência e trajetória dentro do Projeto, ao observar e facilitar os encontros
de mulheres, o que me permitiu ter um maior conhecimento da realidade vivida por elas e me
possibilitou construir o olhar de pesquisadora sobre a realidade delas, do que enfrentavam no
dia-a-dia de discriminação, preconceitos, violência doméstica, resistências e esforços pela
superação disso tudo e ao coordenar o processo de sistematização de experiências de alguns
desses grupos de mulheres que acompanhei durante as quatro etapas da sistematização.
No processo de escolha dessas mulheres, também dialoguei com os/as chefes dos
escritórios locais de Ribeira do Pombal, Cícero Dantas e Jeremoabo, já que eles/as
acompanharam diretamente as mulheres e os grupos a que pertencem. Solicitei que cada chefe
indicasse quatro mulheres para a entrevista semiestruturada, perfazendo um total de 12
mulheres, ou melhor, 12 histórias de vida. Duas tiveram que ser excluídas, uma por motivo de
viagem a São Paulo no período da coleta de campo e a outra por ser indígena, o que
demandaria mais tempo para aprofundar esta especificidade cultural.
Foram os seguintes os critérios para a escolha das mulheres agricultoras: a)
participar do Projeto, de preferência desde o início; b) assumir algum cargo na associação ou
nos empreendimentos produtivos; e c) considerar que, no decorrer do Projeto, elas
apresentaram mudanças positivas como uma maior consciência crítica nas suas falas e na
qualidade de sua participação, levando-as a mudanças em suas atitudes tanto na vida pessoal
como na relação com o grupo e com a comunidade. Duas dentre estas dez mulheres assumiam
cargos de presidentes de associações, uma na Associação dos Moradores de Beleza,
subterritório Os Batalhadores, no município de Santa Brígida, e a outra da Associação
Comunitária dos Produtores Rurais de Baixa da Roça, subterritório Serra Redonda, município
6
O perfil das entrevistadas segue estas características: ocupam cargos diretivos nas associações
(presidente, vice-presidente, tesoureira, secretária ou conselho fiscal); têm idades entre 20 e 60
anos; com ou sem escolaridade (analfabetas, semianalfabetas, com primário/completo ou
incompleto, com ensino fundamental, com ensino médio e com curso superior completo ou
incompleto).
30
de Novo Triunfo, quando participaram do processo de Sistematização de Experiências das
Mulheres, em 2011, coordenado pela assessoria de gênero do PGV. Por este motivo, fizemos
questão de envolvê-las na pesquisa com o objetivo de poder comparar o nível de
empoderamento delas. Durante as entrevistas no campo, constatei o desempoderamento de
uma delas, fato que tratarei no terceiro capítulo.
Os dados de campo foram coletados a partir da observação participante7, entre
2008 e 2013. Entrevistei as dez mulheres agricultoras familiares, entre os dias 07 e 09 de
outubro de 2013, conforme um roteiro semiestruturado sendo a conversa gravada. Seus relatos
sobre as próprias vidas trazem elementos relevantes para a discussão das dinâmicas das
relações de gênero, classe, raça e geração: a relação com os pais e as avós, a infância na área
rural, a dificuldade para estudar, a condição econômica e social, a participação em grupos, o
exercício da sexualidade, a oportunidade de trabalho, a discriminação racial, etc.
Maria Lúcia Servo e Priscila Araújo (2012, p. 8) dizem que: “o interesse por
entrevistas em grupo pauta-se na facilidade de se obter dados com certo nível de
profundidade, em um período curto de tempo”. Com este entendimento, utilizei a técnica de
grupo focal por entendê-lo como um grupo de reflexão informal, com número reduzido de
participantes e que tem como objetivo obter dados, informações qualitativas em profundidade
e, principalmente, revelar as percepções dos participantes sobre os temas discutidos.
Na perspectiva de observar como o empoderamento dessas mulheres se expressa e
que consequências isto tem para elas mesmas e para o conjunto das relações sociais vividas na
associação e no grupo produtivo, trabalho com dois grupos focais: um na Associação
Comunitária dos Produtores Rurais de Baixa da Roça e o outro com o grupo de artesanato do
fiapo, constituídos por sócios e sócias, homens e mulheres artesãos.
Para a concretização das entrevistas com os dois grupos focais, ao final de
dezembro de 2013, contei com a colaboração da equipe técnica de monitoria do PGV, mais
especificamente um técnico e uma técnica8. Experientes nesta técnica de pesquisa, envolvidos
e comprometidos com o enfoque de gênero, ajudaram-me a planejar, elaborar o roteiro de
discussão e mediar o trabalho com os grupos focais. O primeiro grupo focal foi realizado no
município de Novo Triunfo, com a Associação Comunitária dos Produtores Rurais de Baixa
da Roça, com a presença de 12 pessoas (cinco homens e sete mulheres). No segundo, no
7
8
Entende-se observação participante como uma das técnicas de pesquisa adotada pela abordagem
qualitativa que consiste na inserção do pesquisador no interior do grupo observado, tornando-se
parte dele, interagindo por longos períodos com os sujeitos, buscando partilhar o seu cotidiano para
sentir o que significa estar naquela situação. (QUEIROZ ET AL., 2007, p. 278).
Celso José Alves Celes e Carla Silva Ferreira.
31
município de Ribeira do Amparo, na comunidade de Bariri, com o grupo de artesanato do
fiapo9, estiveram presentes sete pessoas (três homens e quatro mulheres). O roteiro de
discussão estava estruturado em três blocos, com várias perguntas cada tendo como objetivo
perceber os níveis de empoderamento: psicológico ou individual, organizacional e o de
comunidade. Isto nos possibilitou ouvir a comunidade em conjunto, em especial, os homens,
que também participam das associações de produção.
Ao planejar a pesquisa, percebi a importância do papel dos técnicos e técnicas
como mediadores e facilitadores do processo de empoderamento das mulheres rurais. Com o
objetivo de refletir sobre as concepções e práticas no âmbito do PGV no esforço pelo
empoderamento das mulheres agricultoras e na perspectiva de averiguar como este é
compreendido ou não pelos chefes e agentes técnicos/as, realizei três entrevistas
semiestruturadas, em outubro de 2013, uma com cada chefe do escritório local (de Ribeira do
Pombal, Jeremoabo e Cícero Dantas), sobre a temática das relações de gênero. As entrevistas
com os dois técnicos e com a técnica chefes dos escritórios locais foram realizadas em dois
momentos. Aproveitei o fato de que os técnicos estavam me acompanhando nas entrevistas
com as mulheres agricultoras nas áreas de seus respectivos escritórios e fiz, no final de cada
dia, a entrevista com os técnicos homens chefes dos escritórios de Jeremoabo e Cícero
Dantas. Entrevistei a técnica chefe do escritório de Ribeira do Pombal em dezembro do
mesmo ano, um dia depois da realização dos grupos focais.
Em relação à metodologia adotada, a opção por uma abordagem qualitativa
pareceu ser menos uma escolha e mais uma imposição, diante do processo de construção do
objeto e do delineamento dos objetivos da investigação. O método biográfico é, justamente,
aquele que fornece indicações válidas para a proposta de reconstrução das trajetórias e
experiências das mulheres agricultoras em uma perspectiva articuladora das práticas e
representações e se mostrou como uma via privilegiada para que os sujeitos da pesquisa
pudessem ser estudados.
Além do material da revisão bibliográfica sobre o tema e dos dados (do diário) de
campo organizados conforme o recorte teórico, tomo, também, como fonte de pesquisa, os
documentos de registro de monitoria do Projeto Gente de Valor10.
9
10
Artesanato feito com cordão de algodão ou fibra de sisal sendo confeccionadas várias peças como
almofadas, tapetes, redes, estantes, porta revistas e outros.
Relatório da Sistematização de Experiências ˗˗ O que falam as mulheres; histórias de mulheres:
organização e autonomia, 2012; e Estudos de Base para o Projeto de Desenvolvimento Comunitário
das Áreas Rurais mais carentes do Estado da Bahia – PRODECAR/ Projeto Gente de Valor,
Avaliação de Impacto – Grupos Focais, 2012.
32
Para melhor apresentar os resultados e reflexões deste estudo, o primeiro capítulo
discorre sobre a caracterização do objeto e a sua abordagem, a discussão teórica do conceito
de empoderamento, os níveis individuais e de grupo e como estudá-los. No segundo capítulo,
tratamos de apresentar o contexto histórico e político, apresentando o Projeto Gente de Valor,
fazendo um recorte no período de 2009 a 2012, descrevendo a área visitada e os grupos a
serem pesquisados. A ideia desenvolvida neste capítulo é mostrar a ideologia que está na
elaboração de um projeto de desenvolvimento rural, inserido no combate à pobreza. Neste
contexto o Projeto Gente de Valor segue as orientações do Fundo Internacional de
Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e do Governo Federal. Inclusive no discurso da
agroecologia, incorporada como um dos princípios norteadores do PGV, que no período de
2003 a 2009 estava em evidência e teve sua consagração como enfoque a ser adotado pela
política de extensão rural. É importante frisar que nesse período havia um rico debate entre o
Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) com a Articulação Nacional de Agroecologia
(ANA), ONGs que atuavam na agroecologia, e os movimentos sociais rurais organizados, que
pressionavam o Governo Federal para que a agroecologia fosse incorporada na Política
Nacional de Assistência Técnica de Extensão Rural (PNATER).
Contextualizar o processo de exclusão das mulheres agricultoras nos projetos de
desenvolvimento rural, e apresentar as principais teorias que legitimaram esta exclusão,
mostrando o discurso do desenvolvimento rural androcêntrico e ideologicamente
comprometido com um modelo de desenvolvimento excludente, concentrador e capitalista,
que ao longo da história privilegia os grandes proprietários e empresas de capital estrangeiro.
Analisar se a estratégia de gênero do Estado, empregada no Projeto Gente de
Valor, que adota a perspectiva territorial, prevendo o desenvolvimento – produtivo
(agroecológico), social, cultural e ambiental de forma integrada foi realizada e se deu certo.
Nessa perspectiva de gênero, foi vista a transversalidade do tema, que tem como objetivo
fomentar a equidade e o empoderamento (pessoal, social e político) das mulheres que
participaram das ações produtivas e organizativas promovidas ao longo dos anos de execução
do Projeto (2007 a 2012).
O terceiro capítulo traz as experiências das mulheres agricultoras familiares que
participaram das ações desenvolvidas pelo Projeto Gente de Valor (PGV), os dados
quantitativos, os sócios biográficos e os cruzamentos destes dados. Verificar como as
representações de gênero estavam articuladas com as de raça, etnia, classe, região e geração,
trançando um perfil das primeiras mulheres que participaram de organizações associativas de
produção.
33
A ideia a ser desenvolvida neste capítulo é que as mulheres agricultoras têm
dificuldades e estão geralmente, desempoderadas ou em desvantagem e muitas vezes são
excluídas de participar de projetos de desenvolvimento rural, das atividades de produção
agrícola e das associações. Para tal, necessitam de intervenções externas de indivíduos ou
organizações, ou mesmo de projetos, que possibilitem a inclusão, a promoção de direitos, de
cidadania e de oportunidades para transformar as relações desiguais de poder. As mulheres
agricultoras continuam confinadas na esfera doméstica/privada sem acesso aos espaços de
domínio masculino de autoridade e poder.
Como pano de fundo, a luta pelo acesso aos direitos para as mulheres,
desenvolvida pelo movimento de mulheres rurais, uma breve retrospectiva histórica, e as
conquistas de políticas voltadas para as mulheres rurais. A trajetória de luta feminina no
movimento agroecológico e de suas organizações por dentro das associações rurais para
conquistar direitos de participar e acessar programas e projetos governamentais. Refletir o
papel dos homens e das mulheres nas atividades produtivas, já que a grande maioria nos
grupos de interesse é composta de mulheres. Identificar o empoderamento das mulheres
agricultoras inseridas nas atividades de produção agrícola e não agrícola e nas organizações
comunitárias; e analisar se o processo de formação na área produtiva (agroecológica) e
organizativa (associativismo) desenvolvido pelo PGV contribuiu para a autonomia e
empoderamento das mulheres agricultoras nas associações e nas comunidades.
No quarto, quinto e sexto capítulos, apresentamos as trajetórias das mulheres
entrevistadas, seu perfil, e os processos de empoderamento e desempoderamento vividos por
elas nos espaços domésticos e públicos. As ideias desenvolvidas nos capítulos finais buscam:
relatar as diferentes trilhas percorridas nesse processo vivenciado pelas mulheres agricultoras
nos espaços privado e público, os percalços por elas enfrentados para participarem desses
espaços, a sobrecarga de trabalho, a dominação sexista, as responsabilidades produtivas e
reprodutivas; analisar as narrativas de histórias de vida das mulheres agricultoras pesquisadas,
as influências nas relações sociais de gênero na vida delas na família, na comunidade e na
associação; investigar as histórias de empoderamento dessas mulheres para entender como se
dá esse processo e como diferentes mulheres vivenciam o processo de empoderamento;
observar, no espaço público, o desempenho das mulheres participantes do PGV na gestão das
associações, espaço de poder político mais próximo e acessível a estas comunidades rurais; e
analisar, também, o entendimento e a prática sobre as questões de gênero pelos técnicos e
técnicas do Estado.
34
Na conclusão, procuro mostrar a relevância da pesquisa realizada tanto em termos
teóricos como metodológicos. Apresento considerações sobre o conceito de empoderamento
de mulheres a partir de uma perspectiva feminista e como entendo esse conceito. Combinando
a análise das narrativas de histórias de vida das mulheres agricultoras pesquisadas com as
trajetórias dos coletivos em que elas estavam inseridas, tendo como pano de fundo as ações e
atividades desenvolvidas pelo Projeto Gente de Valor, evidenciando elementos fundamentais
para entender como vêm se dando a construção desses sujeitos políticos.
35
1
TEORIZANDO SOBRE O PROCESSO DE EMPODERAMENTO DE
MULHERES
Nas últimas três décadas, cresceu, no mundo todo, a necessidade de medidas para
aumentar a equidade social, econômica e política, na perspectiva do empoderamento de
mulheres. Pesa o predomínio de mulheres entre os pobres e o fato de que isto é consequência
do desigual acesso feminino às oportunidades econômicas e sociais. Na América Latina, no
Brasil e na Bahia, constata-se o aumento da exclusão social e da pobreza absoluta. No espaço
governamental de políticas públicas, no Brasil, a abordagem de empoderamento de mulheres
baseada em direitos sociais está mais presente nos debates sobre desenvolvimento e combate à
pobreza. E não é diferente no semiárido baiano, especificamente na Região Nordeste, áreafoco desta pesquisa.
Neste contexto, o Projeto Gente de Valor (PGV) tinha como orientação do Fundo
Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e do Governo Federal seguir como
referência os “Objetivos do Milênio da ONU” (UNESCO – Brasil, 2005), dentre os quais
consta o de “promover a igualdade de gênero e a autonomia das mulheres”. As estratégias de
intervenção do PGV adotam as seguintes perspectivas: a territorial, prevendo o
desenvolvimento produtivo, social, cultural e ambiental das comunidades; e a de gênero, em
que a transversalidade do tema buscou como objetivo fomentar a equidade e o
empoderamento das mulheres que participam das ações produtivas e organizativas,
promovidas ao longo de seis (06) anos de execução do Projeto (2007 a 2012).
Nessas ações, os relatos das mulheres revelavam que elas enfrentam preconceito,
discriminação e uma série de barreiras, desde os próprios medos e inseguranças em sair da
área doméstica, dos arredores da casa, do espaço privado de seu total conhecimento, para se
arriscar em atividades de gestão administrativa e financeira, antes reduto exclusivo dos
homens, mesmo tendo que “desobedecer” a seus maridos para participarem de capacitações e
reuniões. Este é um grande desafio para estas mulheres agricultoras, nordestinas, de baixa
renda, de pouca escolaridade, formadas culturalmente para serem do lar, subordinadas aos
seus pais e maridos.
As experiências das mulheres agricultoras familiares que participaram das ações
desenvolvidas pelo PGV, estudo em que é medida a inserção e a participação das mulheres
agricultoras nos espaços organizativos e produtivos, têm gerado tensões, dificuldades, limites
e avanços no que diz respeito à igualdade nas relações de gênero no âmbito familiar e na
comunidade. Esta pesquisa tem como objetivo responder se há empoderamento das mulheres
36
agricultoras que participaram das ações do PGV; onde e quando se pode observá-lo e como
ele se expressa, que consequências têm para o conjunto das relações sociais? Essa inserção
nos espaços organizativos e produtivos pode de fato contribuir para que elas se empoderem no
espaço público?
Essas questões terminaram por orientar a minha busca por um referencial teórico
metodológico/epistemológico que me permitisse entender as trajetórias e experiências dos
sujeitos de minha investigação. Busco conhecer em termos mais qualitativos, como a situação
de empoderamento vem sendo vivenciada por mulheres rurais o que significa compreender,
entre outros aspectos, a diversidade de trajetórias que terminam por levá-las à condição de
empoderadas ou não e, a partir daí, a forma como essa experiência influencia suas relações
objetivas e subjetivas com o grupo produtivo, a organização familiar e com a comunidade.
A intenção deste estudo, portanto, é buscar desvendar como se dá o entrelace de
uma série de desigualdades e discriminações nas experiências dessas mulheres agricultoras e
de que maneira são conformadas suas opções e alternativas de vida, sem, no entanto, cair em
uma perspectiva de vitimização dos sujeitos inseridos neste contexto.
Este capítulo irá discutir o conceito de empoderamento e terminará mostrando
como ele vai iluminar os capítulos seguintes, ou seja, as demonstrações (empíricas e teóricas)
de como as mulheres, a partir do PGV, se empoderam ou não. Daí surge a preocupação
teórica deste trabalho, o de buscar maior compreensão sobre o processo de empoderamento e
desempoderamento das mulheres, apresentando-o como elemento relevante para a
compreensão de possibilidades e limites na promoção da participação social e política. O
próximo passo é, pois, esclarecer de qual “empoderamento” estou falando.
1.1
CONCEITUANDO EMPODERAMENTO
Como, sob o termo empoderamento, se escondem vários conceitos bastante
diferentes cujos significados variam muito de acordo com a perspectiva que se adote, faz-se
necessário apresentar um olhar sobre o termo empoderamento na perspectiva do
desenvolvimento e na perspectiva feminista, abordagens fundamentais a esta pesquisa.
1.1.1
Na perspectiva de desenvolvimento
Segundo Jorge Romano (2002), nos últimos anos, no debate ideológico em torno
do desenvolvimento, o empoderamento é uma das categorias, dentre outras como capital
37
social11, participação e direitos, presentes em discursos críticos ao desenvolvimento vigente
que têm, de um lado, defensores de uma globalização regida pelo neoliberalismo e, de outro,
grupos que argumentam que “a construção de um outro mundo é possível”.
Alerta Romano (2000) que a apropriação do tema “empoderamento” no discurso
de órgãos governamentais, de organizações da sociedade civil, pelas agências de cooperação e
organizações financeiras multilaterais, por exemplo, o Banco Mundial e o FIDA12, tem levado
a um processo de despolitização do conceito, pois estes atores enfatizaram sua dimensão
instrumental e metodológica, afastando a conotação mais radical e política pensada pelos
movimentos feminista e negro. Nos últimos anos, as próprias agências de cooperação e
organizações financeiras multilaterais, a partir das experiências práticas das instituições da
sociedade civil, vêm adotando, progressivamente, na formulação de suas políticas e
estratégias, a abordagem que se apoia na promoção de direitos humanos (civis, políticos,
econômicos e culturais). Tanto no caso de empoderamento, como no campo de
desenvolvimento, a noção de direitos passa a ser motivo de debate e disputa. Mas é
importante ressaltar que as discussões sobre o enfoque do empoderamento no sentido de
direitos humanos estão principalmente relacionadas às propostas de agências de cooperação.
Este é o caso da proposta de intervenção do Projeto Gente de Valor na perspectiva de gênero.
Passaram-se mais de 50 anos da Declaração sobre a Eliminação da Discriminação
contra a Mulher das Nações Unidas (1967), mas muitos dos seus princípios ainda não se
cumprem na sua totalidade. E, apesar dos progressos realizados em matéria de igualdade de
direitos entre homens e mulheres, continua existindo considerável discriminação contra a
mulher, o que impede sua participação ativa na vida política, social, econômica e cultural e
constitui um obstáculo ao desenvolvimento completo das potencialidades da mulher, pois
existe uma série de problemas comuns, econômicos e culturais que se traduzem em diferentes
formas de discriminação, subordinação e opressão. A dificuldade de inserção da mulher em
lugares específicos da sociedade civil, sobretudo no mundo do emprego, na atividade
produtiva – em nosso caso específico, na área rural –, é um problema de natureza cultural,
educativa e política. Exige-se o redobramento de esforços no sentido de superar preconceitos,
11
12
Capital Social uma das categorias utilizadas no Projeto Gente de Valor – um dos seus componentes
é chamado Capital Humano e Social. “O capital social é constituído pelo conjunto de recursos
atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos
institucionalizadas de conhecimento e reconhecimento” (Ver: BOURDIEU, Pierre, Le capital
social: notes provisoires. Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, n. 31, jan. 1980, p. 2).
Entendendo, assim como Bourdieu, para além do econômico, aplicando-o também a dimensões não
materiais e simbólicas.
Este último, o FIDA, é o parceiro internacional (co-financiador) do Projeto Gente de Valor, através
de um contrato de acordo assinado com o Governo do Estado da Bahia.
38
abolir práticas tradicionalistas e eliminar restrições ligadas aos aspectos culturais ancestrais,
difíceis de mudar. Neste contexto, a mulher sempre foi e continua a ser um pilar importante
do desenvolvimento, embora, muitas vezes, de forma invisível.
Na década de 1980, têm início os estudos sobre as relações de gênero, com papéis
específicos que envolvem não só as mulheres, mas, também, os homens. A mulher passa a ser
promotora de mudanças e de luta, agente ativa de desenvolvimento do modelo de
modernização conservadora. Só nos meados daquela década, começa-se a considerar a mulher
como um pilar do desenvolvimento econômico pelos defensores das políticas neoliberais, mas
de uma forma utilitarista, ao usarem os argumentos, antes apresentados como de exploração
da mulher pobre, tais como trabalham mais, são mais confiáveis de investir e mais fáceis de
mobilizar, então, como prova de eficiência; na medida em que as mulheres eram bemsucedidas na administração e gestão dos recursos econômicos, passaram a ser consideradas
como melhor investimento tanto econômico quanto político (BATLIWALA, 2013).
No paradigma do desenvolvimento humano, o princípio de empoderamento é o
que o diferencia dos outros tipos de desenvolvimento, já que os homens e as mulheres estão
em posição de exercer sua capacidade de escolher de acordo com suas ideias, seus desejos e
de decidir sobre suas vidas. Contudo, para muitas agências e órgãos governamentais, o
empoderamento das mulheres é visto como instrumento para o desenvolvimento, para
erradicar a pobreza, para inseri-las nos espaços produtivos, para levá-las a participar de
diferentes atividades de interesse coletivo, para a democracia etc. Nesta perspectiva, o
processo de empoderamento é visto como estreitamente relacionado ao de participação, um
elemento constitutivo das metodologias e estratégias que possibilitam processos de
empoderamento. Mas, tendo as mulheres agricultoras a oportunidade de participar, de estarem
presentes em todos os fatores promotores do desenvolvimento e de mudança social, saindo
finalmente do reduto doméstico isto faz com que se materialize em seu cotidiano a igualdade
de gênero. Isto implica dedicar uma atenção explícita às necessidades, interesses e
perspectivas das mulheres trabalhadoras.
Apesar desse discurso na perspectiva de desenvolvimento ser participativo e de
inclusão das mulheres, ele apresenta contradições fundamentais no uso do conceito de
empoderamento, pois coloca ênfase nos aspectos individuais.
Uma das contradições fundamentais do uso do termo ‘empoderamento’ se
expressa no debate entre o empoderamento individual e o coletivo. Para
aqueles que o usam a partir da área do indivíduo, com ênfase nos processos
cognitivos, o empoderamento se circunscreve ao sentido que os indivíduos
39
se autoconferem. Tomo um sentido de domínio e controle individual, de
controle pessoal. E ‘fazer as coisas por si mesmo’, e ‘ter êxito sem a ajuda
dos outros’. Esta é uma visão individualista, que chega a assinalar como
prioritários os sujeitos independentes e autônomos com um sentido de
domínio próprio, e desconhece as relações entre as estruturas de poder e as
práticas da vida cotidiana de indivíduos e grupos, além de desconectar as
pessoas do amplo contexto sócio-político, histórico, do solidário, do que
representa a cooperação e o que significa preocupar-se com o outro (LEÓN,
2001, p. 96).13
Segundo aponta León (2001), o processo de empoderamento deve estar atrelado
ao gradual reconhecimento, por parte das mulheres, das estruturas de poder que estão
presentes na vida dos indivíduos (na própria vida delas) e dos grupos (a que elas pertencem).
Este reconhecimento motiva as mulheres e demais grupos excluídos a se mobilizarem para,
juntos, alterarem as estruturas sociais existentes, isto é, para reconhecerem o imperativo da
mudança e, quem sabe, abalar e, enfim, destruir a ordem patriarcal vigente nas sociedades
contemporâneas.
Concordo com León (2001) quando afirma que o empoderamento inclui tanto a
mudança individual como a ação coletiva, esta última, quase sempre, deixada em segundo
plano na perspectiva de desenvolvimento, pois, embora seja importante reconhecer as
percepções individuais, o empoderamento não pode se reduzir apenas ao individual de
maneira que ignore o histórico e o político. Ela alerta que este empoderamento pode ser uma
simples e mera ilusão se não estiver conectado com o contexto e não se relacionar com ações
coletivas dentro de um processo político.
1.1.2
Na perspectiva feminista
A construção feita sobre o conceito de empoderamento apresentado está baseada
nos debates e análises feitas pelas feministas do Terceiro Mundo. Segundo Batliwala (apud
SARDENBERG, 2009), as origens do conceito de empoderamento estão em uma articulação
das propostas feministas com as reflexões de Paulo Freire sobre os princípios da educação
popular14 e, também, em uma linha inspirada nos trabalhos de Gramsci15. Para as feministas, o
empoderamento implica na alteração radical dos processos e das estruturas que reproduzem a
13
14
15
Tradução nossa do original em espanhol.
Presentes em Pedagogia do oprimido (FREIRE, 1987) e nas pedagogias libertadoras, de um modo
em geral.
Essa linha de pensamento se refere à necessidade de criar mecanismos participativos com o
objetivo de construir democracias mais equitativas. (GRAMSCI, 1971).
40
“posição”16 da mulher como submissa. Este conceito está diretamente relacionado à noção de
interesses estratégicos de gênero e implica na mudança da posição das mulheres na sociedade.
Para tal, o processo de empoderamento das mulheres deverá levar à igualdade entre homens e
mulheres e a mudanças nas relações patriarcais, em especial, na família para que as mulheres
empoderadas, de fato, mudem a dominação tradicional dos homens sobre as mulheres, de
modo que elas tenham autonomia de poder decidir sobre suas vidas, se sentirem e serem
donas delas mesmas.
Na perspectiva feminista aqui adotada, o empoderamento de mulheres é, pois,
entendido como o processo da conquista da autonomia, da autodeterminação, implicando,
portanto, na libertação das mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão
patriarcal. Neste sentido, o objetivo maior de ações voltadas para o empoderamento das
mulheres é propiciar as condições para que elas possam questionar, desestabilizar e se
organizar com vistas à erradicação da ordem patriarcal vigente (SARDENBERG, 2009).
Segundo aponta a feminista indiana Batliwala (1994), a característica mais
conspícua do termo empoderamento está na palavra “poder“, vez que, para ela,
“empoderamento” é o processo de questionar as ideologias e relações de poder patriarcais
vigentes:
O termo empoderamento se refere a uma gama de atividades, da
assertividade individual até à resistência, protesto e mobilização coletivas,
que questionam as bases das relações de poder. No caso de indivíduos e
grupos cujo acesso aos recursos e poder são determinados por classe, casta,
etnicidade e gênero, o empoderamento começa quando eles não apenas
reconhecem as forças sistêmicas que os oprimem, como também atuam no
sentido de mudar as relações de poder existentes. Portanto, o
empoderamento é um processo dirigido para a transformação da natureza e
direção das forças sistêmicas que marginalizam as mulheres e outros setores
excluídos em determinados contextos. (BATLIWALA, 1994, p. 130)17.
O empoderamento é um processo que precisa ser desencadeado por fatores ou
forças externas, podendo ser uma pessoa, um grupo, um projeto ou uma instituição, de forma
que, com este apoio, as mulheres possam reconhecer as estruturas que as oprimem e
desenvolver uma consciência crítica. No caso das mulheres agricultoras familiares, o desafio
maior é desnaturalizar e quebrar a dominação masculina. Nesta difícil caminhada, o primeiro
Segundo Ana Alice Costa, no texto “Gênero, poder e empoderamento das mulheres” (2004, p. 6),
posição, aqui, “é o status econômico, social e político das mulheres comparado com o dos homens,
isto é, a forma como as mulheres têm acesso aos recursos e ao poder comparado aos homens”.
17
. Tradução do original em inglês feita por Cecília M. B. Sardenberg no texto “Conceituando
‘empoderamento’ na perspectiva feminista” (2009, p. 6).
16
41
passo deve ser o despertar da consciência em relação à discriminação de gênero, à existência
da desigualdade entre homens e mulheres. O importante é, ao reconhecer a existência desta
desigualdade no seu cotidiano, ficar incomodada e indignada com esta situação e querer
mudá-la na sua vida e na das outras mulheres.
Michel Foucault (1984), em Microfísica do poder, chega à conclusão de que a
instauração da sociedade moderna supôs uma transformação na consagração de novos
instrumentos pelos quais se pode canalizar o poder. Segundo ele, o poder não existe. O poder
“não é algo que se detém como uma coisa”, não é apropriado como um bem. O poder é
entendido como “algo que circula”, se pratica e se exerce. Para ele, o que existe são práticas
ou relações de poder. O poder deve se materializar por meio de diferentes formas, sendo
necessário que passe a integrar parte do ser de cada indivíduo. Nesta perspectiva, a dominação
só é possível quando o próprio ser dominado considera “natural” ser subjugado. Por outro
lado, todo poder pressupõe resistência. No caso em estudo, as mulheres agricultoras
dominadas acham que o espaço doméstico é responsabilidade só delas e muitas não
conseguem perceber este espaço e suas práticas como relações de poder instaladas no
cotidiano.
Foucault chama a atenção para a ação do feminismo, ao afirmar que os problemas
domésticos, o poder nas relações cotidianas devem ser denunciados como questões de
domínio público ao politizar a entrada das mulheres na esfera pública tanto quanto na esfera
privada. De fato, “o poder não opera em um só lugar, mas em lugares múltiplos: a família, a
vida sexual, a maneira pela qual tratamos os loucos, a exclusão dos homossexuais, as relações
entre os homens e as mulheres [...] todas essas são relações políticas” (FOUCAULT, 1994b,
p. 473). Para as mulheres agricultoras que há muito tempo estão excluídas dos espaços
públicos como cidadãs e confinadas ao mundo doméstico, politizar o privado é um grande
desafio, implica em olhar para o espaço doméstico não só como um lugar de reprodução,
como mães que nutrem e cuidam dos filhos e filhas, mas percebê-lo como um espaço de
poderes e saberes, de luta, de resistência e de reivindicações por direitos, enfim, um espaço de
disputa de poder. Mas, será que só ressignificar este espaço doméstico não seria querer travar
a real disputa pelo espaço público ainda restrito aos homens?
Para que essas mulheres possam resignificar o espaço doméstico, precisamos,
primeiro, desconstruir nelas próprias as imagens construídas de si mesmas que lhes foram
impostas pelo conjunto da sociedade e por elas assimiladas e reproduzidas e, então, buscar a
libertação das formas de sujeição pelo contrato sexual e pela cultura. Romper no dia-a-dia e
libertar-se deste modelo hegemônico de feminilidade pelo qual a mulher deve ser doce e
42
passiva e, muitas vezes, assexuada é um grande desafio, pois é uma luta contra essas
identidades prontas e impostas, apresentadas, ao longo da história, como naturais.
Nos espaços trabalhados nos projetos de desenvolvimento rural, as relações de
poder estão diretamente ligadas às relações de gênero, do que resulta a diferença de inserção
das mulheres nos espaços produtivos e organizativos, espaços de poder que têm uma forte
implicação de gênero, requerendo uma transformação no acesso da mulher tanto aos bens
econômicos quanto ao poder, transformação esta que depende de um processo de
empoderamento da mulher. Joan Scott (1999) diz que experiência é aquilo que queremos
explicar e não a origem de nossa explicação. Afirma, ainda, que esta abordagem questiona os
processos pelos quais os sujeitos são criados, favorecendo novos caminhos e mudanças. A
experiência de poder tende a resgatar a autoestima das mulheres como sujeitos, mudanças de
mentalidade e atitude, de modo a dar visibilidade a sua importante contribuição nos processos
familiares, comunitários, organizativos, ambientais, produtivos e de comercialização, que
deem substância à sustentabilidade desejada para o desenvolvimento rural. Mas trata-se de um
processo de mão dupla, pois, como bem atenta León (2001, p. 97), “o empoderamento como
autoconfiança e autoestima deve integrar-se em um sentido de processo com a comunidade, a
cooperação e a solidariedade”.
O empoderamento é uma categoria complexa que vem se transformando em
categoria analítica e empírica em diversas disciplinas e envolve uma multiplicidade de
métodos e indicadores os quais dificilmente podem ser universalizados, como se pode ver na
experiência de empoderamento das mulheres agricultoras familiares, um processo que tem
aspectos tanto coletivos como individuais.
Empoderamento é o mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as
comunidades tomam controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida,
de seu destino, tomam consciência da sua habilidade e competência para
produzir e criar e gerir. (COSTA, 2004, p. 7).
As participações em diversas atividades e as capacitações em várias temáticas
organizativas e produtivas constituem ferramentas necessárias para o empoderamento destas
mulheres agricultoras. O Projeto Gente de Valor implementa estas ações, mas, muitas vezes,
longe de uma perspectiva feminista, ou seja, de uma perspectiva que privilegie a conquista
pelas mulheres da autonomia sobre seus corpos, suas vidas e seus destinos.
43
1.2
DIMENSÕES HISTÓRICAS
A bibliografia sobre empoderamento revela como esse tema vem sendo discutido
e utilizado em vários âmbitos, dentre eles o rural, na perspectiva do desenvolvimento local18.
São tantas concepções e interpretações que elevam o grau de dificuldade em defini-las.
A palavra “empoderamento” não existe no nosso dicionário da língua portuguesa.
Sua formulação inicial – empowerment – vem de países de língua inglesa, sobretudo dos
EUA, sendo várias as versões sobre suas origens. Em termos históricos, segundo Vathsala
Aithal (1999), o conceito de empoderamento migrou da “práxis” para a “teoria”, sobretudo
através dos movimentos de base nas lutas pelos direitos civis, encabeçados, principalmente,
por ativistas feministas e negros/as. O termo “empoderamento” foi usado, pela primeira vez,
no contexto de mobilização política, na década de 1960, por militantes do Movimento
Panteras Negras, nos EUA. Desde então, este termo passou a fazer parte de campos do
conhecimento os mais diversos. Alguns autores alertam para a polissemia do conceito de
empoderamento (ROMANO, 2002; ANTUNES, 2002; GOHN, 2004), que pode ser utilizado
para ações distintas e de modo indiscriminado por todos, independentemente da posição no
espectro político-ideológico. Porém, é importante ressaltar que há duas posições radicalmente
distintas quanto ao conceito e à abordagem sobre empoderamento no campo ideológico de
desenvolvimento. A disputa se dá entre os defensores do desenvolvimento vigente regido pelo
neoliberalismo e os críticos deste desenvolvimento dominante que defendem a construção de
um outro mundo (ROMANO, 2002).
Segundo Peter Oakley e Andrew Clayton (2003), a construção do conceito de
empoderamento se deu na década de 1970, a partir do conceito de desenvolvimento então
baseado na teoria da “modernização” e na teoria da “dependência” como explicativas do
subdesenvolvimento. Na América Latina, a teoria da modernização se baseou na perspectiva
desenvolvimentista impulsionada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
(CEPAL), que defendia a industrialização como paradigma do crescimento econômico,
negava a importância do comércio internacional e se opunha fortemente às expectativas da
economia neoclássica. Portanto, a teoria de modernização tentou dar uma explicação às
desigualdades entre as economias nacionais, incorporando à discussão fatores de cunho
institucional e estrutural situados para além do mercado (GALLICHIO, 2002).
18
Desenvolvimento local entendido como uma estratégia para criar e favorecer as condições para que
as pessoas e as comunidades melhorem sua qualidade de vida com seus próprios recursos e
potencialidades.
44
No Brasil, de meados da década de 1970 a meados da de 1980, observa-se a
“modernização conservadora” em que o Estado atuava de forma autoritária e centralizada,
tinha uma forte penetração de caráter produtivista e tipicamente capitalista voltada para a
agricultura de exportação e para as grandes propriedades de exploração agropecuária
nacional, ressalto que em prejuízo de uma agricultura de base familiar. A extensão rural
difusionista do Estado implantada nesta época tinha o consentimento das classes detentoras do
poder do setor agrícola interessadas em retirar maiores lucros da produção, não sendo,
portanto, fruto de luta e reivindicações dos agricultores e agricultoras. Com o início da crise
da teoria da modernização, este modelo desenvolvimentista começou a ser questionado,
devido à incapacidade do capitalismo de reproduzir, nos países periféricos19, experiências
bem sucedidas de desenvolvimento, surgindo daí a teoria da dependência que, embasada na
economia
política
marxista
não
dogmática
dos
processos
de
reprodução
do
subdesenvolvimento na periferia do capitalismo mundial, enfatizava a dependência externa e
a análise dos padrões estruturais que vinculam as economias centrais às periféricas.
A ideia central dessa teoria era que o desenvolvimento desses países estaria
submetido ao desenvolvimento de outros países, à superação do subdesenvolvimento
passando pela ruptura com a dependência (subordinação) e não pela modernização e
industrialização da economia. Com a teoria da dependência, introduziu-se o conceito de
dominação, uma dominação entre classes e não entre nações, destacando que um
desenvolvimento autônomo não seria possível, criticando, assim, a possibilidade de um
desenvolvimento nacional e o socialismo como única saída (GALLICHIO, 2002).
Continuou, nesse período, um intenso debate entre as escolas fundamentadas em
um discurso que colocava em dúvida todas as explicações anteriores baseadas no modelo
neoclássico de desenvolvimento econômico, focado no aumento da produtividade econômica
e na exclusão social, contra o discurso do “desenvolvimento alternativo”, que trazia uma nova
perspectiva centrada nas relações entre pessoas e em harmonia com o meio ambiente. Os
autores do desenvolvimento alternativo defendem os direitos humanos universais e os direitos
particulares dos cidadãos na perspectiva de proteger os interesses das pessoas, especialmente
das pobres sem poder. Apoiado em seus princípios de sustentabilidade, equidade,
produtividade e empoderamento, o desenvolvimento alternativo traz um discurso de
transformação que tem como ponto central a relação entre “poder” e “pobreza”. No decorrer
das décadas de 1980 e 1990, há um refinamento dos paradigmas “alternativos” sobre
19
São aqueles países onde os fluxos, o desenvolvimento da ciência, da técnica e da informação
ocorram em menor escala.
45
desenvolvimento. Por volta de 1990, em um período de tempo muito curto, o termo
empoderamento se tornou comum e central no discurso e na prática dos grupos da corrente do
desenvolvimento alternativo, aparentemente adequando-se bem às perspectivas de
desenvolvimento e às estratégias de diversos atores, desde as Organizações Comunitárias de
Base, ONGs nacionais e internacionais, até instituições como o Banco Mundial e as maiores
agências bilaterais e multilaterais. Também nos últimos anos, o termo empoderamento vem
sendo apropriado pelo discurso dos órgãos governamentais.
No entanto, há críticas profundas à maneira como têm sido re-apropriadas e resignificadas a abordagem e o conceito de empoderamento nos discursos e nas práticas
dominantes do mainstream, tal qual expressos pelas ações dos bancos e das agências de
desenvolvimento bilaterais e multilaterais, dos governos e de diversas organizações da
sociedade civil. Tal abordagem é vista como despolitizando o processo de empoderamento, ao
tirar a questão essencial e central o “poder” da sua equação (ROMANO, 2002). O poder, ou
melhor, as mudanças nas relações de poder existentes no processo de empoderamento se
tornaram uma questão diluída, perdendo seu papel central entre os elementos que compõem o
empoderamento. De fato, trata-se agora de uma estratégia para continuarem fazendo o que
sempre fizeram, só que agora de forma “disfarçada”, apropriando-se de uma proposta
inovadora para usar como um instrumento de legitimação de práticas muito diversas e não
necessariamente empoderadoras. Segundo Romano (2002, p. 10), apropriar-se e desvirtuar o
novo com o objetivo de garantir a continuidade das práticas dominantes é uma situação típica
de transformismo (“gattopardismo”).
É preciso ressaltar que o conceito de empoderamento, ao ser apropriado nos
discursos por outras áreas de debate sobre “desenvolvimento”, durante este processo, foi
perdendo suas conotações mais radicais presentes na sua origem feminista. A noção de
empoderamento que tem sido propagada por agências de desenvolvimento dominantes,
governos e organizações difere, consideravelmente, do significado original do pensamento
feminista. Por exemplo, no caso do Banco Mundial, o empoderamento é visto como a última
etapa nos processos de “participação” e a prática promovida pela instituição vê o
empoderamento das mulheres como um instrumento para o desenvolvimento, para a
democracia e para a erradicação da pobreza. Este significado é bastante diferente daquele
dado ao empoderamento pelo feminismo, principalmente pelas feministas latino-americanas –
às quais me filio –, entendido como significado central nas relações de poder e o
empoderamento das mulheres como um processo que as leva a questionar, desestabilizar,
transformar e, finalmente, se libertar da opressão patriarcal de gênero. Segundo Cecilia
46
Sardenberg (2009, p. 2), as divergências entre a perspectiva das agências de cooperação
internacionais e a dos movimentos feministas não são apenas teórico-metodológicas, mas,
principalmente, de ordem política.
Na academia, esse conceito ganha espaço nas perspectivas feministas sobre
“poder”. Segundo Sarah Mosedale (2005), a questão de poder é central à noção de
empoderamento e sobre esta afirmação há concordância no pensamento feminista. As
feministas, porém, preferem usar o termo empoderamento, ao invés de “poder”. Sardenberg
(2009), baseada em Mosedale (2005, p. 249), apresenta as formas distintas pelas quais o
“poder” pode ser pensado: “poder sobre” – de controle sobre o outro; “poder para” –
construção de capacidades para fazer algo; “poder de dentro” – autoestima, autoconfiança; e o
“poder com” – ação coletiva. Segundo Sardenberg (2009) e Shirin Rai (2002, p. 134), a
preferência das feministas pelo uso do conceito de empoderamento se dá, não apenas em
função do seu maior enfoque nos oprimidos, mas, sobretudo, pela ênfase na noção de “poder
para”, pois pode ser visto como um poder que afirma, uma fonte de emancipação, uma forma
de resistência.
No contexto do discurso sobre gênero e desenvolvimento, o conceito de
empoderamento vem ganhando força tanto teórica quanto instrumental a partir de sua
utilização vinculada à questão de gênero. As pesquisas baseadas neste conceito demonstram
que o desenvolvimento e a mudança social incidem de maneira diferente nos homens e nas
mulheres. Nos primeiros anos da década de 1970, as pesquisadoras começaram a centrar-se na
divisão do trabalho baseada no sexo e no impacto das estratégias de desenvolvimento e
modernização sobre as mulheres. A motivação primária consistia na superação da pobreza,
uma vez que mulheres pobres são excluídas dos direitos mínimos. Durante este período, foi
introduzido o conceito de participação das mulheres no processo de desenvolvimento Women
in Development (WID) ˗˗ Mulher no Desenvolvimento , expressando a preocupação pela
desigualdade ou posição desvantajosa das mulheres e o desejo de superar a discriminação de
que elas são alvo.
No início da década de 1980, segundo Cecília Iorio (2002), o enfoque WID
começa a ser questionado nos seus fundamentos, devido ao escasso impacto direto sobre o
desenvolvimento. Um dos principais questionamentos e críticas feitos às teóricas feministas
que defendiam este enfoque foi o fato de apresentar uma noção de empoderamento fortemente
vinculada à noção de “poder sobre”, de controle sobre os outros e sobre recursos. Isto
significa que, para que houvesse um empoderamento seria necessário inverter a situação de
poder, ou melhor, de que para uns ganharem poder outros teriam que perder. Esta postura me
47
parece um pouco equivocada, pois poder implica relações, logo, não necessariamente,
precisamos perder poder para mudar as relações de desigualdade, pensando poder com base
em Mosedale e na proposta original feminista de empoderamento que foca no “poder para”,
na perspectiva da construção de capacidades dos oprimidos para a sua resistência e
emancipação.
Teóricas feministas sofreram muitas críticas por não proporem mudanças
estruturais nas relações de poder dentro de uma sociedade em que alguns o detêm e outros
não. De fato, suas estratégias estavam ancoradas na perspectiva de empoderamento baseada
no conceito de “poder sobre”, havendo apenas uma reversão da relação de poder pela qual as
mulheres deveriam conquistar espaços nas estruturas econômicas e políticas da sociedade,
ocupando posições de poder que antes eram dos homens, porém, não se questionava a forma
como o poder é distribuído na sociedade. É evidente que esta noção de poder provocou forte
resistência por parte daqueles que detinham o poder e se sentiam ameaçados de serem
destituídos desta posição, que passaria a ser ocupada pelas pessoas empoderadas, neste caso,
as mulheres. É necessário compreender como se estrutura a nossa sociedade e como as
diferenças de gênero, de classes, de etnia, de geração, de regionalidade e de políticas
comportam desigualdades a serem superadas. A perspectiva do WID foi amplamente criticada
por seus fundamentos neoliberais que não levavam em consideração o peso das estruturas
dominantes na subordinação das mulheres na sociedade (SARDENBERG, 2009).
Como uma perspectiva alternativa ao enfoque do WID, surge, em 1980, o enfoque
Gênero e Desenvolvimento (GED) – Gender and Development (GAD) –, que se concentra no
problema da desigualdade das relações entre homens e mulheres buscando promover a
participação ativa da mulher no desenvolvimento. Na realidade, mais do que integrar as
mulheres em um determinado processo de desenvolvimento, trata-se de construir um modelo
novo que modifique aquelas relações de poder baseadas na subordinação das mulheres e que
perpetuam a opressão e a exploração, sobretudo, das mulheres pobres. Nesta perspectiva, o
enfoque Gênero e Desenvolvimento pode promover uma mudança nessas relações sociais
através do fortalecimento da posição social, econômica e política das mulheres, desde que as
estratégias de desenvolvimento ataquem os fatores estruturais das desigualdades de gênero,
consequentemente, facilitando o desenvolvimento das mulheres, o que hoje vem sendo
chamado de “empoderamento” da mulher.
48
É com essa concepção que a comunidade internacional vai assumindo a
importância de incorporar a perspectiva de gênero nas suas ações de desenvolvimento. O
grande desafio, para todas as instituições que trabalham com este enfoque, é sair do discurso
para a prática, incorporando a perspectiva de gênero para transformar as relações de poder
entre os sexos, enfrentando, no cotidiano da intervenção, as estruturas que mantêm as
mulheres na subordinação, desconstruindo, a cada dia, os valores culturais que reforçam e as
mantêm neste lugar. Porém, críticas e diferentes contestações estão sendo feitas à abordagem
GED, a como “gênero” tem sido entendido e vem sendo trabalhado por instituições de
desenvolvimento.
Ao analisar o que se tornou gênero em desenvolvimento, em relação aos
essencialismos20 e generalizações nas abordagens de várias instituições, e suas implicações
para a implementação das políticas públicas, programas e projetos, Cecília Sardenberg alerta
que o termo “gênero” vem sendo empregado em vários contextos disciplinares, em diferentes
usos e conotações, tornando-se um conceito genérico. Afirma, ainda, que este problema se
deve ao processo de massificação do termo a partir da apropriação por representantes de
diferentes e divergentes correntes de pensamento, em particular, por agências internacionais
de cooperação e organizações voltadas para o desenvolvimento (2014, p. 20). Assim, o termo
gênero é visto, pelos tecnocratas e governantes, como uma forma de abordagem técnica, uma
ferramenta estratégica, um mecanismo ou uma estrutura para o desenvolvimento
predominantemente
economicista. Desta forma, gênero,
como
esses instrumentos
metodológicos, se torna destituído de intenção política e objetivo e resultado a serem
alcançados pela intervenção das instituições de desenvolvimento (CORNWALL, 2013, p. 10).
Assim, para os órgãos institucionais do poder público governamental, a incorporação da
perspectiva de gênero é, na prática, uma mera adição no vocabulário técnico de planejamento.
Cecília Sardenberg, em seu depoimento, em 2003, ao participar do workshop no
Instituto de Estudos de Desenvolvimento (Institute of Development Studies – IDS), levanta um
questionamento sobre “como ‘fazer gênero’ se transformou em algo diferente de ‘fazer
feminismo’”. Ela reflete sobre as maneiras pelas quais um projeto político de gênero, à
medida que vai sendo implementado na prática, acaba sendo reduzido a apenas um “kit”
técnico, focado apenas nas “necessidades práticas” das mulheres, ou melhor, em ações de
capacitação para atividades produtivas geradoras de renda ou em atividades organizativas nas
20
Aqui entendido a partir do ponto de vista filosófico, como a crença na existência das coisas em si
mesmas, não existindo qualquer atenção ao contexto em que existem. Disponível em:
<http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=1021&Itemid=2>
. Acesso em: 14 ago. 2014.
49
quais se discute direitos constitucionais e autoestima, mas se deixa a discussão das relações de
poder de lado. Em alguns casos, como no Projeto Gente de Valor realizado pela CAR, o tema
gênero é trabalhado em função de cumprir um requisito do FIDA e tem ocorrido a
profissionalização em gênero e desenvolvimento como se a incorporação da perspectiva de
gênero em sua intervenção fosse puramente teórica e técnica, uma ferramenta a ser aplicada e
com uma relação cada vez mais descolada, desconectada do feminismo. Sardenberg afirma
que, em muitos casos, “fazer gênero” veio para apresentar algo seguro, desvinculado da
política e, consequentemente, do feminismo (CORNWALL, 2013a, p. 19).
As agências financiadoras do enfoque de Gênero e Desenvolvimento também
recebem críticas, por levarem para seus parceiros uma abordagem hierárquica e por também
trazerem suas demandas institucionais, muitas vezes impondo aos parceiros a incorporação do
enfoque de gênero em todos os níveis, no âmbito institucional, sem que esta abordagem fosse
incorporada na missão e na prática institucional das organizações. As entidades parceiras
correm um risco ao transversalizar gênero, ao incluí-lo em tudo, pois o enfoque de gênero
pode acabar ficando diluído, como mais um, como algo secundário, desnaturado e
despolitizado. Por certo, a transversalização21 de gênero é uma estratégia fundamental para a
construção e incorporação sistemática de uma perspectiva de gênero em todas as ações
institucionais, seja nas atividades e estruturas internas de uma organização – suas políticas,
sua estrutura, seus sistemas e procedimentos – e, também, quanto ao operacional, referindo-se
às ações e programas externos que a organização desenvolve ou nas quais está envolvida
(SARDENBERG, 2010). No entanto, é importante ressaltar que as instituições de
desenvolvimento precisam incorporar as estratégias de transversalização do enfoque de
gênero não só como procedimentos técnicos, mas, também, como uma estratégia política,
caso contrário, como observam muitas feministas que trabalham com GED, “quanto mais o
gênero é transversalizado, menos encontramos políticas efetivas de equidade de gênero, nos
espaços e documentos principais de formulação de políticas” (SARDENBERG apud
CORNWALL, 2013a, p. 3).
Um fator positivo do GED é que seu campo de abordagem facilita a captação de
recursos e proporciona a criação de um corpo significativo de profissionais de diversas áreas
de formação e de organizações governamentais e não governamentais que trabalham em sua
intervenção com as temáticas de gênero transversalmente. No entanto, observa-se que uma
21
Aqui entendido com seu duplo significado, estando relacionado às estratégias de formulação de
políticas específicas versus a de “integração de gênero em todas as políticas” (SARDENBERG,
2010, p. 10).
50
parte significativa destes profissionais, homens e mulheres, não têm compromisso nem
experiência provenientes de movimentos feministas e nunca estiveram engajados com
políticas referentes a estas questões. Nestes casos, mesmo quando os profissionais têm uma
formação teórica e metodológica para o trato da categoria, falta-lhes o comprometimento
político e o entendimento analítico de que a perspectiva de gênero foi originalmente uma
construção e demanda do feminismo.
Algumas feministas que trabalham com GED reconhecem que tiveram limitados
ganhos, porém importantes, na abordagem de gênero em desenvolvimento, mas existe um
enorme abismo entre as aspirações feministas por efetivas mudanças sociais e o que se
realizou no desenvolvimento deste enfoque, já que as desigualdades de gênero têm se
mostrado muito mais profundas e a resistência das burocracias muito mais forte do que se
esperava (CORNWALL, 2013b). Para Sardenberg (2014), a situação atual daquilo que se
tornou gênero em desenvolvimento, no Brasil, tem a ver com a combinação dos processos de
globalização, com o avanço do neoliberalismo e com a reestruturação produtiva. O resultado
desta combinação tem ampliado ainda mais as desigualdades econômicas e sociais entre
homens e mulheres assim como entre raças, classes e gerações.
Apesar do cenário global e de todas as críticas, até mesmo da concordância com
algumas delas, e do reconhecimento de algumas frustrações ao enfrentarem barreiras para
efetivar uma prática transformadora de gênero, as feministas engajadas no desenvolvimento, e
aqui me incluo, acreditam que esta abordagem contribuiu para dar um sentido de direção ao
trabalho desde que focado na transformação das estruturas sociais. Ao revisitar as agendas
feministas a partir de uma visão mais ampla do contexto nacional, percebe-se que as
discussões em torno do que significam gênero e desenvolvimento permanecem disputadas e
se tornam objeto particular de contestação quando é aplicado e defendido dentro de
burocracias. A necessidade de intercambiar as conquistas e limitações com outras feministas,
nos âmbitos local, nacional e internacional, se torna extremamente necessária e vitalmente
importante para fortalecer o engajamento feminista dentro e fora das instituições de
desenvolvimento. Portanto, é preciso continuar aprofundando o debate de forma a
reposicionarmos nossas estratégias e direcionamentos na perspectiva de repolitizar o projeto
feminista com o desenvolvimento e, assim, trabalhar, de fato, no sentido do empoderamento
das mulheres.
51
1.3
DIMENSÕES DO PROCESSO DE EMPODERAMENTO
O empoderamento apresenta múltiplas dimensões, assume diversos aspectos
particulares e estágios sucessivos de uma progressão. Para Sardenberg (2009), o processo de
empoderamento é uma espiral, não é linear; não existe um estágio de empoderamento
absoluto, pois as pessoas são empoderadas ou desempoderadas, sempre em relação a outros
ou a si próprias, em momentos anteriores. Enquanto categoria analítica, empoderamento é um
processo, não um simples produto.
Busco compreender como o processo de empoderamento se concretiza nas
diferentes dimensões da vida social das mulheres agricultoras familiares aqui pesquisadas. A
partir da literatura consultada, trabalho com as quatro dimensões no processo de
empoderamento conforme Nelly Stromquist:
O empoderamento consiste de quatro dimensões, cada uma igualmente
importante, mas não suficiente por si própria para levar as mulheres para
atuarem em seu próprio benefício. São elas a dimensão cognitiva (visão
crítica da realidade), psicológica (sentimento de auto-estima), política
(consciência das desigualdades de poder e a capacidade de se organizar e se
mobilizar) e a econômica (capacidade de gerar renda independente). (2002,
1995, p. 232)22.
Para Ana Alice Costa (2004), a “dimensão cognitiva” do empoderamento se refere
à compreensão que as mulheres têm da sua subordinação e das causas desta em níveis micro e
macro da sociedade. Já a “dimensão psicológica” diz respeito ao desenvolvimento de
sentimentos como autoconfiança e autoestima que as mulheres podem pôr em prática em nível
pessoal e social para melhorar sua condição. A “dimensão política” supõe a capacidade das
mulheres para analisar o meio em seu redor, em termos sociais e políticos, e também de se
organizar e se mobilizar para transformar as estruturas sociais visando à redistribuição de
poder. A quarta e última dimensão, a “econômica”, está relacionada à independência
econômica das mulheres.
Maria Elisabeth Kleba (2009) afirma que, nas dimensões psicológica e política, os
processos do empoderamento são interdependentes e se concretizam no cotidiano dos
indivíduos quando estes desenvolvem suas competências e a capacidade de enfrentar as
22
Tradução do original em inglês feita por Cecília Sardenberg, em 2009, no texto: Conceituando
“empoderamento”
na
perspectiva
feminista.
Disponível
em:
<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/6848/1/Conceituando%20Empoderamento%20na%20Per
spectiva%20Feminista.pdf>.
52
dificuldades, o que ocorre nos espaços da micropolítica cotidiana. Ao experienciá-las,
despertam e viabilizam o crescimento de habilidades individuais e coletivas de enfrentar
situações difíceis. É neste processo que isto é fortalecido no espaço da política macro, à
medida que as pessoas se apropriam de habilidades de participação democrática e do poder
político de decisão.
Outros autores, como John Friedmann (1996) e Carmen Silva e María Martínez
(2004) consideram três dimensões de análise do processo de empoderamento: a psicológica, a
grupal ou das organizações sociais e a política. Para Kleba, no processo de empoderamento, a
dimensão psicológica “refere-se ao desenvolvimento de um determinado modelo de
autorreconhecimento, através do qual as pessoas adquirem ou fortalecem seu sentimento de
poder, de competência, de autovalorização e autoestima”. Já o empoderamento político
“implica na transformação das estruturas sociais visando à redistribuição de poder,
produzindo mudanças das estruturas de oportunidades da sociedade” (2009, p. 738). Para
Friedmann (1996, p. 125), as três dimensões do processo do empoderamento estão
interligadas, centradas no sujeito e na unidade doméstica e estas, por sua vez, se relacionam a
outras unidades, formando uma rede social que se ajuda e se reforça mutuamente.
1.4
NÍVEIS OU SUJEITOS DE EMPODERAMENTO
Silva e Martinez propõem três níveis de análise do processo de empoderamento,
entendendo “por nível uma unidade de análise do agregado social que tem suas metas,
recursos, processos, interações e um contexto em que está imerso, podendo ser indivíduos,
organizações ou uma comunidade geográfica” (2004, p. 7).
Para efeito da nossa pesquisa, dialogo com o referencial de análise exposto por
Rodrigo Horochovski (2006) sobre os níveis ou sujeitos do empoderamento, identificando
elementos que caracterizam o processo de empoderamento em três níveis: indivíduos, grupos
ou organizações e comunidades (estrutural ou político). É importante ressaltar que em cada
um destes níveis experimenta-se processos de empoderamento em um ou vários contextos,
que lhes oferecem maiores ou menores oportunidades de desenvolvimento.
O empoderamento individual ocorre mediante a participação dos indivíduos nos
mais variados espaços de sociabilidade – no nosso caso específico, nos quintais produtivos, na
apicultura, no beneficiamento de frutas, no artesanato, no corte e costura e na associação,
espaços nos quais os indivíduos “são/se auto-percebem como detentores de recursos e de
competências que lhes permitem influir nos e mesmo controlar os cursos de ação que lhes
53
afetam” (HOROCHOVSKI, 2006, p. 16). As pessoas percebem seus ambientes, sentem uma
competência pessoal, provavelmente em decorrência da sua participação no processo de
tomada de decisão, tomam consciência de sua própria capacidade de lutar pelos seus
interesses e de influenciar outras pessoas. Ao tomar parte deste processo enquanto exercício
de tomada de decisão, com uma participação ativa, o indivíduo passa a ter confiança em si
mesmo para agir diante das adversidades e sentir que sua presença tem importância e,
consequentemente, neste processo, ocorre algum grau de empoderamento pessoal.
Para Kleba (2009), no nível pessoal ou psicológico, um dos aspectos centrais é a
percepção do sujeito de suas próprias forças e esta consciência leva à mudança de
mentalidade resultando em um comportamento de autoconfiança. Seria importante, também, a
percepção das próprias limitações, além das próprias forças. Ela alerta ainda para o emprego
do conceito de empoderamento psicológico, por considerar que este revela uma perspectiva
filosófica individualista no momento em que ignora e desconecta o indivíduo de seu contexto
de inserção sociopolítica. Quanto ao empoderamento psicológico, este ocorre quando o
indivíduo vivencia seu poder através de experiências vividas no seu cotidiano, em situações
de carência ou de ruptura, quando reconhece seus recursos e possibilidades pessoais ou
coletivas e também sua capacidade de enfrentar e sair , em seu cotidiano, de uma situação de
impotência e ameaça.
Ressalte-se que esse processo de empoderamento individual pode ser ativado por
animadores externos, como agentes sociais, ONGs, órgãos do Estado, empresas, que atuam
como mediadores, tendo a função de facilitar o processo, provendo oportunidades para as
pessoas exercerem o controle sobre suas vidas, propiciando que estas formem novos grupos
empoderadores, em um processo solidário e continuado de formação cidadã.
Em nível individual, os processos de empoderamento das mulheres agricultoras
familiares podem ser alcançados através da participação em organizações ou atividades
comunitárias, ao integrar grupos de interesses (quintais produtivos, corte e costura,
beneficiamento de frutas e artesanato), do aprendizado de novos conhecimentos e do
desenvolvimento de novos potenciais e novas tarefas. O exercício de trabalhar em grupo com
outras mulheres e homens, com objetivos comuns a serem atingidos e metas a serem
cumpridas em um determinado espaço de tempo, já pode ter um potencial empoderador, na
medida em que estas “desobedecem” seus pais ou maridos, rompem com a dominação para
participarem das atividades do Projeto, e se cria uma disciplina e uma dinâmica de grupo que
as levam a experimentar a divisão de tarefas e de responsabilidades construindo laços de
confiança entre as pessoas envolvidas no processo que sofre influências diretas (positivas ou
54
negativas) do contexto social, uma vez que o empoderamento não é fruto do consenso, mas
sim resultante de tensões e conflitos.
Um exemplo disso é o conflito gerado quando as mulheres teimam em querer
participar das atividades organizativas e produtivas. Neste momento, começam a questionar as
relações patriarcais existentes, principalmente na família, desencadeando uma verdadeira
disputa de poder porque o seu empoderamento significa uma perda de poder dos homens, ou
seja, a perda da posição privilegiada concedida, histórica e culturalmente, aos homens pelo
patriarcado. Representa a perda desse poder dominante, desse poder sobre (que controla, de
forma negativa), desse poder subordinador. Poder que controla a capacidade de se mover, a
participação no mundo público, o acesso aos bens materiais, o direito a seus corpos e à
sexualidade dessa. Poder que se reflete, muitas vezes, no abuso físico, em violação impune,
em abandono e sem decisões consensuais afetando a família (LEÓN, 2001).
Para Batliwala (1994), nesse processo de empoderamento das mulheres, em meio
às disputas de poder, os homens também são libertados, libertados do seu papel de opressores
e exploradores. Olhando por outro lado, significa que os homens também se empoderam, do
poder de forma positiva, do poder da solidariedade, quando começam a vivenciar as relações
de gênero de outra forma, quando começam a desconstruir, no cotidiano, os estereótipos de
gênero aprendidos com os ancestrais, tão difíceis de remover, quando tiram o duro fardo que a
sociedade lhes deu de únicos provedores, de serem os únicos que têm a obrigação de sustentar
a família.
O empoderamento organizacional, para Rodrigo Horochovski (2006), dialoga
com o que descreve Perkins e Zimmerman (1995), sobre a organização como unidade de
análise identificando seus objetivos e processos como um sistema organizacional. Para
Horochovski é
o processo pelo qual as organizações formais – agências governamentais,
empresas, organizações da sociedade civil – constituem mecanismos de
compartilhamento do poder decisório e da liderança, de modo que as
decisões sejam mais coletivas e horizontais. (HOROCHOVSKI, 2006, p.
17).
O nível empoderamento grupal ou organizacional, segundo Silva e Martínez
(2004)23, diz respeito ao processo de fortalecimento das organizações sociais (comunitária,
grupos de interesses, associações) que oferecem oportunidades de formação dos seus
23
Nossa tradução do original em espanhol.
55
membros, geram processos de liderança compartilhada, processos de tomada de decisões para
atingir os objetivos e metas da organização como um sistema ou unidade, além de apoiar e
desenvolver um sistema de comunicação eficaz entre seus membros, criando ambientes de
troca de informações e recursos, a distribuição de papéis e responsabilidades de acordo com a
capacidade de cada um, um modelo ou estilo de gestão adequada dependendo do crescimento
e desenvolvimento organizacional. Todo esse processo gera uma dinâmica associativa entre
os membros da organização construindo um sentido de confiança e de comunidade.
Tratar do nível organizacional do empoderamento implica em um processo de
fortalecimento da organização (do grupo de interesse dos quintais produtivos ao grupo das
associações comunitárias). Para tal, todos que participam têm de se sentir parte do grupo; de
fato, é muito importante, para legitimar e fortalecer o grupo, esta noção de pertencimento,
para o que contribuem as estruturas participativas de decisão compartilhadas. É necessário
colocar em prática esses processos de liderança compartilhada, de capacitação de membros
em função dos objetivos da organização, de tomada de decisões, a partir de sistemas de
distribuição de funções e responsabilidades conforme a capacidade de cada um/a e a criação
de mecanismos de intercâmbio de informações e recursos, ou seja, um modelo ou estilo de
gestão adequada em função do crescimento e desenvolvimento da organização. Para que o
grupo atinja seus objetivos comuns enquanto grupo, todos devem respeitar uns aos outros, ter
confiança, tolerância e ser solidários uns com os outros. Desta forma, reduzindo o conflito de
papéis, o sentido de comunidade é experimentado e a vida comunitária se torna melhor. Aqui
o empoderamento das mulheres deve favorecer (e não dificultar) o empoderamento coletivo,
comunitário (KLEBA, 2009).
Segundo Silva e Martínez (2004), alguns autores diferenciam as organizações em
empoderadoras (empowering) e empoderadas (empowered). As organizações empoderadoras
favorecem e apoiam seus membros no processo de empoderamento individual e coletivo,
enquanto as instituições empoderadas são aquelas que trabalham em redes, influenciam
políticas, alcançam suas metas, desenvolvem formas para aumentar sua efetividade, enfim
desenvolvem um processo de empoderamento organizacional que se concretiza em sua
capacidade de se envolver em interesses sociais e políticos.
O empoderamento comunitário ocorre quando
Indivíduos e grupos de uma comunidade coletivamente formulam estratégias
e ações para potencializar e obter recursos – sejam esses oriundos da própria
comunidade ou oriundos de instituições públicas ou privadas – que lhe
56
permitam influenciar nas decisões
(HOROCHOVSKI, 2006, p. 17).
que
são
de
seu
interesse.
Para Kleba (2009), o empoderamento comunitário apresenta alguns fatores que se
relacionam com o nível de empoderamento estrutural ou político. No empoderamento
individual, estão presentes a autoconfiança e a autoestima; na mesoesfera social, estruturas de
mediação nas quais os membros compartilham conhecimentos e ampliam a sua consciência
crítica; por fim, no nível macro, há estruturas sociais como o estado e a macroeconomia.
Então, ambos – o empoderamento comunitário e o estrutural – favorecem e viabilizam o
engajamento, a corresponsabilização e a participação social na perspectiva da cidadania.
O nível comunitário do empoderamento é um nível mais complexo, pois resulta
dos níveis individual e organizacional. Neste nível se reconhece a possibilidade de indivíduos
coletivos desenvolverem competências para atuarem, no início, na comunidade (no local),
desde as unidades domésticas, discutindo sobre questões de seu interesse, sem desconsiderar
as lutas globais (nível macro). Durante este processo, a capacidade de analisar criticamente o
meio social e político vai sendo adquirida e qualifica a ação política do grupo. Neste processo
de conscientização política e cidadã, as pessoas, as organizações e as comunidades são
empoderadas – isto significa que temos indivíduos empoderados e organizações voltadas para
o empoderamento. Em outras palavras, são comunidades que participam igualitariamente, sem
exclusões, defendem os seus direitos e os dos outros, interessam-se pelo bem coletivo,
solidarizam-se com o semelhante, lutam pela inclusão social de modo a empoderar outros
grupos, têm visão crítica sobre as injustiças sociais e econômicas, em nível local e mundial, e
que respeitam o meio ambiente.
Ressalto que o empoderamento comunitário (estrutural) implica em promover a
interação e o mútuo apoio entre os indivíduos e organizações, entre organizações
governamentais e não governamentais e instituições da comunidade local. Esta cooperação
mediante a troca de informação e experiência deve levar em conta todos os agentes
envolvidos, na perspectiva do desenvolvimento de redes intersetoriais de organizações de
modo a influenciar políticas.
Segundo Kleba (2009), os níveis de empoderamento são interdependentes, ou
seja, na vida prática, não existe separação em níveis, na medida em que os indivíduos
influenciam e sofrem influência de seu meio e que, para agir, reagir e interagir dependem de
condições objetivas e subjetivas. De fato, a separação em níveis é apenas um recurso didático
e avaliativo. O empoderamento é um processo, não existindo um estágio de empoderamento
57
absoluto já que é simultaneamente o processo e o resultado deste processo, o que dificulta a
separação entre eles. Daí o desafio em levantar e discutir as diferentes perspectivas do
empoderamento das mulheres agricultoras familiares a partir das lógicas que as constituem e
do ponto de vista de seus atores e os impactos nas atividades sociais, políticas e econômicas
das mulheres agricultoras, em função da participação delas nas associações produtivas
comunitárias, sobre as relações de gênero tradicionais na família e na comunidade.
1.5
OPERACIONALIZAÇÃO DO EMPODERAMENTO NO PROJETO GENTE
DE VALOR
A intervenção do Projeto Gente de Valor, um projeto de desenvolvimento rural
com perspectiva participativa, que traz como estratégia promover a equidade de gênero,
estimulou a participação de homens e de mulheres agricultoras lançando mão de técnicas de
Diagnóstico Rural Participativo (DRP)24. Essa opção metodológica se deu por intermédio da
orientação da nova Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER) que
enfatizava que a prática extensionista fosse baseada em metodologia que favorecesse a
participação dos beneficiários em toda a etapa de sua intervenção. O PGV utilizou várias
ferramentas do DRP para levantar as demandas iniciais das comunidades rurais que seriam
beneficiadas com suas ações. Estas ferramentas pedagógicas facilitaram o processo de
reflexão coletiva e o levantamento de informações sobre a realidade da comunidade.
O DRP foi um instrumento essencial para envolver as pessoas da comunidade na
elaboração do plano de desenvolvimento de cada subterritório. A metodologia participativa
utilizada no DRP conseguiu envolver as mulheres agricultoras familiares em todas as etapas
do processo do diagnóstico. No PGV, o empoderamento estava sendo visto como um
resultado do processo de participação das mulheres agricultoras familiares, em todas as
atividades desenvolvidas. Neste sentido, tinha sido orientado pela coordenação do Projeto
que, em todas as ações e atividades, houvesse a participação de 50% de mulheres.
Essa orientação possibilitou que as mulheres, ao participarem mais que os
homens, assumissem os grupos produtivos (quintais, artesanato e beneficiamento de frutas) e
as associações comunitárias. Desta forma, ficar à frente destes grupos como lideranças
24
DRP é um instrumento de investigação que utiliza técnicas participativas para coletar informações
acerca de uma dada realidade, sem que estejamos atrelados ao uso de técnicas tradicionais.
Segundo Miguel Expósito Verdejo: “é um conjunto de técnicas e ferramentas que permite que as
comunidades reflitam sobre a sua realidade e a partir daí comecem a autogerenciar o seu
planejamento e desenvolvimento” (2006, p. 6).
58
possibilitou às mulheres exercitarem o poder e a autoridade, o que, consequentemente, gerou
conflitos e disputas. Essas disputas se iniciaram, em casa e no grupo, entre o sexo masculino e
o feminino; nestas disputas, as mulheres sentiram a forte estrutura do poder patriarcal, através
da opressão dos homens (brancos ou negros), por meio dos privilégios a eles concedidos. É
importante ressaltar que, nessas disputas, as mulheres reconhecem a diferença racial e tentam
enfrentar os diversos problemas decorrentes destas diferenças. Elas sentem a estrutura do
poder patriarcal racista por meio dos privilégios, alternativas e recompensas que as mulheres
de pele branca têm, por se identificarem com o poder patriarcal. As mulheres brancas são
mais propensas que as mulheres negras a serem enganadas e tendem a se unir ao opressor com
a suposição de compartilhar o poder (CARNEIRO, 1995).
A abordagem do empoderamento das mulheres se apresenta, na intervenção do
PGV, na perspectiva de desenvolvimento, como fundamental para fazer acontecer a
autonomia econômica das mulheres agricultoras e se limita a criar condições de produção e
renda para que esta contribua com a renda familiar. (SCHEFLER, 2013). Um dos desafios é
quebrar o preconceito e as limitações das mulheres agricultoras familiares com relação à
participação delas nos espaços públicos, nas atividades produtivas e organizativas, não por
causa das exigências da vida e das atividades domésticas, mas por serem espaços de poder.
Em se tratando da agricultura familiar, para a mulher realizar o trabalho de produção na roça,
ter presença em reuniões de entidades comunitárias e, ao mesmo tempo, dar conta das tarefas
domésticas, precisa ter uma dupla, tripla ou contínua jornada de trabalho.
O
PGV,
como
objetivo
estratégico,
focou
o
empoderamento
como
desenvolvimento da capacidade de mulheres e homens, em particular quanto ao
empoderamento de grupos e organizações locais, promovendo processos de capacitação e de
aprendizagem a partir de um discurso dialético da importância crítica da reflexão e,
fundamentalmente, da noção de “inclusão das mulheres” e “autonomia” na ação. Nessa
corrente, é típico o compromisso com o fortalecimento do “capital humano e social” 25 das
instituições da sociedade civil parceiras na execução, como associações, cooperativas, escolas
família agrícola, sindicatos rurais, pastorais rurais e ONGs que atuam na área de intervenção
do Projeto.
A iluminação de Michel Foucault (1979) sobre o poder não serve apenas para a
situação das mulheres no exercício do poder – nas associações, quintais produtivos etc. –,
25
Entendendo por capital humano e social o conjunto de investimentos e ações destinados à formação
educacional e profissional de determinada população na perspectiva de formação de sujeitos
individuais e coletivos capazes de interpretar e agir criticamente no conjunto de relações que os
envolvem.
59
mas, também, cotidianamente. As relações de poder em torno dos papéis produtivos e
reprodutivos assumidos pelas mulheres agricultoras familiares nos espaços doméstico/privado
e público são relações cotidianas mais estreitas entre a teoria e a prática nas quais elas usam as
formas de resistência por meio de micropoderes contra as diferentes formas de poder. Em
ambas as situações, resistem, como é da natureza do poder, segundo Foucault (1979). Assim,
ao pensar as relações de poder através do antagonismo, das estratégias empregadas por estas
mulheres na perspectiva de visibilizar um contradiscurso expresso nas alternativas e nas
inovações que usaram a partir do que lhes ofereceu o PGV, tomo as resistências das mulheres
como ponto de partida visto que as exceções não têm que estar na periferia do discurso, para
falar dos que estão tentando inovar, ter autonomia nas suas escolhas, decisões, inclusive,
sobre seu próprio corpo. E, a partir do modo pelo qual as mulheres agricultoras familiares
assumiram os cargos de diretoria nas associações comunitárias, ao exercerem o poder,
tornando-se um sujeito social e político.
É importante relembrar, com a contribuição de Batliwala (2002; 2013), que dar às
mulheres pobres acesso aos recursos econômicos é uma conquista que surgiu da luta bemsucedida das mulheres feministas em ganhar reconhecimento para o papel desenvolvido pelas
mulheres na economia familiar e em apoiar lideranças femininas no desenvolvimento local.
As teóricas feministas entendiam que o poder econômico e o acesso aos recursos produtivos
enfraqueceriam as relações e os papéis de gênero tradicionais, logo, acreditavam no
empoderamento das mulheres pobres para que demandassem mais mudanças.
1.6
COMO ESTUDAR O EMPODERAMENTO DAS MULHERES
Os níveis de empoderamento e indicadores qualitativos que nos ajudam a medir se
houve ou não empoderamento das mulheres estão conectados e dialogam com o referencial
apresentado.
Enquanto feminista, entendo o empoderamento das mulheres como um processo
de mudança individual conectado com o contexto social e que se relaciona com ações
coletivas dentro de um processo político. Ao mesmo tempo, é um instrumento/meio de
enfrentar a opressão de gênero e um fim em si mesmo, quando resulta na libertação das
mulheres das amarras da opressão de gênero e da opressão patriarcal vigente nas sociedades
contemporâneas.
Assim como Batliwala (1994) e Magdalena de León (2001), entende-se que o
empoderamento das mulheres se integra em um sentido de processo individual, na conquista
60
da autonomia, da autoconfiança, da autodeterminação, e coletivo, quando esta participa
ativamente no grupo produtivo e/ou organizativo, na comunidade, experimentando a
cooperação e a solidariedade entre elas e a comunidade. Um empoderamento que reconheça e
não ignore o histórico e o político. O empoderamento das mulheres implica desestabilizar,
alterar e destruir as estruturas sociais existentes com o objetivo de acabar com a ordem
patriarcal que sustenta a opressão de gênero.
Por meio da pesquisa participante e da observação, investigo histórias de
empoderamento, ao analisar as “histórias de vida” de 10 (dez) mulheres agricultoras para
entender como se dá esse processo na trajetória de participação e a inserção nos espaços
organizativos e produtivos promovidos pelo PGV. Observo e analiso como projetos e políticas
públicas têm contribuído, criando condições para o desencadeamento de processos de
crescimento pessoal (autoestima/autoconfiança/voz), social (poder de decisão, autonomia,
decisões mais coletivas/compartilhadas e horizontais) e político (articulação em redes, papel
mediador entre os grupos excluídos – as mulheres – e o governo e outras instância de poder –
participação em conselhos municipais); e, principalmente, nas relações associativas
comunitárias, exercendo cargos de direção, administrando e gerindo recursos como
executoras de projetos governamentais.
Partindo do entendimento de que o empoderamento depende dos sujeitos e que
ninguém se empodera sozinho, realizamos dois grupos focais com os grupos mistos (homens
e mulheres) da Associação Comunitária e Cultural do Bariri, Rio Seco, Alto e Rio Quente de
Cima (município de Ribeira do Amparo) e da Associação Comunitária dos Produtores Rurais
de Baixa da Roça (município de Novo Triunfo), com o objetivo de ouvir o que pensam os
homens sobre o empoderamento das mulheres e observar se, durante este processo, os homens
também se empoderaram. Neste espaço grupal, procurei registrar indícios do empoderamento
das mulheres no espaço público, ciente dos limites, das dificuldades, das tensões e conflitos
gerados no âmbito familiar e na comunidade, procurando identificar avanços na igualdade de
oportunidades que se pode observar nas relações de gênero.
Busco com o Quadro 1, formular uma matriz de indicadores para melhor
pesquisar e analisar o processo de empoderamento das mulheres agricultoras familiares nos
seus diferentes níveis (psicológico ou individual, grupal ou organizacional e de comunidade),
procurando explicitar como os níveis de empoderamento se relacionam com os indicadores
trabalhados nos próximos capítulos. É necessário esclarecer que, por falta de dados suficientes
para analisar a renda, não me deterei na dimensão econômica das mulheres pesquisadas.
61
Quadro 1 – Níveis e indicadores do processo de empoderamento
INDICADORES PARA MEDIR O
NÍVEIS DE
PROCESSO DE EMPODERAMENTO
EMPODERAMENTO
(Qualitativos)
- Identificar processo de
- Participação e apropriação de conhecimentos;
Psicológico ou
empoderamento das mulheres
- Mudança na autoestima das mulheres/
Individual
agricultoras inseridas nos espaços
sentimento de autovalorização;
produtivos e organizativos.
- Integração na comunidade e reconhecimento
junto ao grupo;
- Redefinição de normas e regras de gênero
(mudanças no exercício dos papéis tradicionais).
- Examinar como se dá o
Nível Organizacional
empoderamento das mulheres
- Habilidade para discutir e analisar;
(MICRO)
agricultoras familiares nos espaços
- Estrutura interna e elementos de autogestão
domésticos e públicos.
(Habilidades de gestão administrativo-financeira);
- Analisar de que forma e em que
- Atividades coletivas e sentido de Solidariedade
medida o processo de formação na
(práticas solidárias);
área produtiva (agroecológica) e
- Ações por seus direitos;
organizativa desenvolvido pelo
- Satisfação entre os membros do grupo ou
PGV contribuiu para a autonomia e
organização (crer em seus membros).
empoderamento das mulheres
agricultoras nas associações e nas
comunidades.
- Analisar de que forma e em que
- Consciência de pertencimento da comunidade;
Nível Comunidade/
medida as estratégias de gênero do estrutural (MACRO) - Participação em instituições locais e ou
Estado empregada no Projeto Gente
regionais;
de Valor propiciam o processo de
- Representação em conselhos municipais (saúde,
empoderamento pessoal, social e
educação, territorial e outros)
político das mulheres agricultoras.
- Sensibilização a buscar recursos existentes
(elaboração de projetos)
- Acesso a políticas públicas e a programas
governamentais;
- Articulação em redes com outras pessoas,
organizações e movimentos sociais;
- Obtenção de segurança econômica (renda)
OBJETIVOS
Fonte: Elaborado pela autora como parte dos estudos desta dissertação
A partir do Quadro 1, observa-se, por um período (2009-2012), a participação das
mulheres nas atividades (quais e quantas) e nos grupos (quintais, artesanato e associação); o
grau de apropriação de novos conhecimentos; o desenvolvimento da consciência crítica, de
novos potenciais, o exercício de novas tarefas, se elas se mobilizam para a ação; o exercício
de cargos na associação ou no empreendimento produtivo; se participam de espaços de poder
e de decisão sobre o grupo e sobre suas próprias vidas; e se estão em espaços de
representações políticas; em que medida essas mulheres agricultoras rompem com a
dominação (dos pais e maridos) para participarem das atividades do Projeto e se, no grupo,
experimentaram a divisão de tarefas e de responsabilidades construindo novas relações entre
as pessoas.
Além desses indicadores, surge a necessidade de observar outros aspectos no segmento
social em questão, tomando-se assim algumas variáveis de ordem bioculturais – como o
62
pertencimento a diferentes grupos étnicos/raciais e etários e variação no tamanho da prole –, e
outras mais estritamente sociais, tais como profissão/ocupação, escolaridade, religião,
orientação sexual, fase do ciclo de vida e situação conjugal.
No próximo capítulo, delineio o contexto social e político e faço um breve esboço de
quem são as mulheres agricultoras pesquisadas e de como esse sujeito político, através da
participação social e da capacidade das mulheres em se organizar e se mobilizar, pode
transformar as estruturas sociais visando à redistribuição de poder.
63
2
CONTEXTUALIZANDO
A
BUSCA
DO
EMPODERAMENTO
DE
MULHERES AGRICULTORAS
Este capítulo, que está voltado para a temática do empoderamento das mulheres
agricultoras no âmbito do Projeto Gente de Valor, se divide em duas partes: a primeira
contextualiza esta temática e a segunda traz os dados de nossa pesquisa para fundamentar a
nossa análise.
2.1
CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO
2.1.1
Breve histórico da luta recente das mulheres
Nas últimas três décadas do século XX, cresceu, em nível mundial, a necessidade
de medidas para aumentar a equidade social, econômica e política na perspectiva do
empoderamento de mulheres. A incorporação de um enfoque de gênero nas políticas públicas
é um processo relativamente recente e ainda não totalmente consolidado.
O marco inicial pode ser localizado na I Conferência Mundial do Ano
Internacional da Mulher, que aglutinou mulheres de todo o mundo, em 1975, no México. Aí
foi declarado, pela ONU, o período entre 1975 e 1985 como a “Década da Mulher”. Em 1979,
como resultado de uma intensa mobilização internacional, foi proposto o primeiro tratado
internacional sobre os direitos humanos das mulheres – “Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher” (CEDAW)26 – que contemplava direitos
civis, sociais, educacionais, econômicos e políticos. O Brasil ratificou sua assinatura deste
tratado em 1984, porém, com algumas reservas. Tais reservas só foram suspensas em 1994
quando, finalmente, o país pode endossar o documento total, que foi ratificado sem reservas.
Em 1985, em Nairóbi (Quênia), foi realizada a III Conferência Mundial Sobre a
Mulher, quando foram aprovadas estratégias de ação voltadas para o progresso da mulher.
Criou-se também o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM).
Porém, segundo Ana Alice Costa (2002, p. 132), foi na IV Conferência Mundial das
Mulheres, realizada em Beijing/Pequim (China), em 1995, que os organismos internacionais27
26
27
Disponível
em:
<http://www.observatoriodegenero.gov.br/eixo/internacional/documentosinternacionais>. Acesso em: 13 maio 2014.
Exemplos: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Banco Mundial
(BIRD), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização Mundial de Saúde (OMS),
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), entre outras.
64
reconheceram a legitimidade do enfoque de gênero e passaram a incorporá-lo em suas
políticas, inclusive como requisito para aplicações de recursos. A conferência instaura uma
nova agenda de reivindicações: além dos direitos, as mulheres reclamam a efetivação dos
compromissos políticos assumidos pelos governos em conferências internacionais através do
estabelecimento de políticas públicas. Ana Alice Costa (2002) ressalta que o movimento
feminista lutou, ao longo destes trinta anos, para interagir com o Estado nas definições das
políticas públicas. Todo este processo de articulação política é resultado da atuação dos
movimentos sociais de mulheres na esfera pública, enquanto sujeitos políticos e coletivos.
Em 2001, aconteceu a III Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, África do
Sul. Esta conferência teve maior visibilidade mundial, pois foi um grande marco na luta do
movimento global de combate ao racismo, ao sexismo e à xenofobia e outras discriminações.
Durante esta conferência, o grupo de discussão das mulheres desempenhou um papel
significativo, ao apontar os modos pelos quais o racismo se intersecta com a pobreza, a
homofobia, a discriminação de gênero de fundo étnico-racial, como acontece com mulheres
negras e indígenas.
Para Ana Alice Costa (2002), as Conferências de Beijing (1995) e Durban (2001)
fortaleceram a inclusão das políticas públicas de gênero e raça nas agendas nacionais. A
Plataforma de Ação adotada em Beijing, assinada por 184 países, reafirmou ser preciso que os
governos nacionais passassem a integrar perspectivas de gênero na legislação, nas políticas
públicas, nos programas e projetos nacionais, com o objetivo de garantir o acesso feminino
aos benefícios gerados pelo desenvolvimento.
2.1.2
A luta dos movimentos de mulheres rurais no Brasil
Na década de 1980, a mobilização das mulheres por sua valorização e
reconhecimento como trabalhadoras rurais foi intensificada. Este período de redemocratização
é visto como sendo o momento em que foram criadas as condições para o aparecimento dos
movimentos específicos das mulheres rurais (DEERE, 2004) os quais foram provenientes do
resultado do trabalho de organização delas, impulsionado por setores da Igreja Católica
progressista – pastorais sociais que organizavam as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) –,
assim como da consolidação do movimento feminista e de mulheres no Brasil. No final dessa
década, ganha força a luta das mulheres rurais pela ampliação da cidadania, como sujeitos
políticos, e pelo reconhecimento como agricultoras (enquanto profissão), incluindo a
65
participação no movimento sindical (sindicalização das mulheres e a disputa nos espaços de
direção dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais) e como produtoras, no interior da família. Na
luta por reforma agrária, as reivindicações eram em torno dos direitos igualitários à terra e à
titulação conjunta da propriedade da terra.
Na Região Nordeste do Brasil, em 1986, é constituído, a partir das reflexões das
feministas rurais e do intercâmbio de trabalhadoras rurais dos estados de Pernambuco e
Paraíba, o Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR-NE)28, que seria o
responsável pelo encaminhamento da proposta de sindicalização das mulheres trabalhadoras
rurais à CONTAG29.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 ampliou a participação das mulheres,
de um modo geral, incluindo o estabelecimento de direitos iguais para homens e mulheres
rurais e urbanos em relação à legislação do trabalho e aos benefícios de seguridade social
(DEERE, 2004). No âmbito do sindicalismo rural, representado até então, praticamente com
exclusividade, pela CONTAG, realizou-se, em 1988, a primeira Plenária Nacional de
Mulheres Trabalhadoras Rurais, com o objetivo de fazer pressão junto ao Congresso Nacional
para garantir que as conquistas da Constituinte não fossem diluídas no processo de votação
das legislações complementares.
Já na década de 1990, os diferentes movimentos de mulheres rurais (organizações
autônomas ou sindicais) sentiram a necessidade de articulação com as mulheres organizadas
nos demais movimentos mistos do campo, para lutar por políticas agrárias e agrícolas e
reivindicar o acesso aos direitos sociais e econômicos. Este processo de articulação foi
marcado pela criação da Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais
28
29
Em 1984, criou-se o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais no Sertão Central de
Pernambuco. O MMTR-NE, atualmente, em sua intervenção, trabalha com a perspectiva da
educação popular iniciada por Paulo Freire e com a abordagem de gênero em uma perspectiva
feminista. A instituição, através de seus programas e projetos, capacita mulheres trabalhadoras
rurais na perspectiva de aumentar a autonomia das mulheres, transformar a mentalidade de
submissão e combater todo tipo de discriminação e preconceito. Disponível em:
<http://www.mmtrne.org.br/quemsomos.html>. Acesso em: 27 jul. 2014.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura é um movimento sindical de
trabalhadores e trabalhadoras rurais que completou 50 anos de fundação em 2013. Ao longo de
todos esses anos luta pelos direitos dos homens e das mulheres do campo e da floresta que são
agricultores familiares, acampados e assentados da reforma agrária, assalariados rurais, meeiros,
comodatários, extrativistas, quilombolas, pescadores artesanais e ribeirinhos. Atualmente tem,
como filiados 27 Federações de Trabalhadores na Agricultura (FETAGs) e mais de 4.000
Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTRs). Tem como principais bandeiras de
luta: reforma agrária, agricultura familiar, direitos dos assalariados, políticas sociais para o campo,
novas relações de gênero e geração, agroecologia e reforma política. Disponível em:
<http://www.contag.org.br/index.php?modulo=portal&acao=interna&codpag=215&nw=1>.
Acesso em: 27 jul. 2014.
66
(ANMTR)30, em 1995, em um encontro nacional com representações de dezessete estados.
Entretanto, foi em 1997 que a ANMTR lançou a Campanha “Nenhuma Trabalhadora Rural
sem Documentos”, fazendo com que este problema ganhasse dimensão nacional. Esta
campanha serviu para conscientizar que ter documentos é um direito e para denunciar a
situação das mulheres rurais que não tinham documentos civis básicos, como carteira de
identidade, o Cadastro de Pessoa Física (CPF), a carteira de trabalho, dentre outros.
Na luta dos movimentos rurais, a priorização do acesso à documentação continuou
na pauta em agosto de 2000 quando foi realizada, em Brasília, a maior manifestação nacional
de mulheres rurais já feita na época, a primeira Marcha das Margaridas31 que teve como
principais reivindicações o título de propriedade de terra conjunta para casais e o acesso à
documentação, seguidas das outras políticas de reforma agrária. A Marcha das Margaridas foi
coordenada pela Comissão de Mulheres da CONTAG em parceria com uma das organizações
regionais de mulheres rurais autônomas, o MMTR-NE, contando ainda com outros grupos
(DEERE, 2002).
Na área agrícola, exigiram acesso a crédito específico para as mulheres,
assistência técnica e programas de cooperativismo e comercialização. Segundo Andrea Butto
e Renata Leite (2010, p. 3), as mulheres rurais encamparam, além da luta pelas políticas
agrárias e agrícolas, outras lutas sociais pelos direitos das trabalhadoras rurais à previdência
social (aposentadoria, licença-saúde, licença-maternidade) na condição de seguradas especiais
e o acesso aos serviços públicos como saúde e educação, que são deveres do Estado.
Toda essa bagagem trazida pelos movimentos autônomos de mulheres associados
aos demais movimentos sociais e sindicais reafirmou a luta das mulheres em dois eixos:
gênero e classe. Traziam, ainda, como bandeiras de luta, a continuidade e ampliação dos
direitos previdenciários, a saúde pública, novo projeto popular de agricultura, reforma agrária,
campanha de documentação e outras.
30
31
A ANMTR reúne as mulheres dos seguintes movimentos: Movimentos Autônomos, Comissão
Pastoral da Terra (CPT), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Pastoral da
Juventude Rural (PJR), Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), alguns Sindicatos de
Trabalhadores Rurais e, no último período, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
A Marcha das Margaridas é uma ação estratégica das mulheres do campo e da floresta que integra a
agenda permanente do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (MSTTR) e
de movimentos feministas e de mulheres. Tornou-se amplamente reconhecida como a maior e mais
efetiva ação das mulheres da América Latina. As três primeiras marchas, realizadas em 2000, 2003
e 2007, focaram na plataforma política e na pauta de reivindicações “Contra a fome, a pobreza e a
violência sexista”. Em 2011, o lema foi “Desenvolvimento Sustentável com Justiça, Autonomia,
Igualdade e Liberdade”. “Margaridas” faz referência à líder sindical de Alagoa Grande (PB),
Margarida Maria Alves, pioneira destemida na luta pelos direitos trabalhistas rurais, assassinada em
1983 como represália a esta luta.
67
No cenário atual, desde 2005, contamos com a presença de outro forte movimento
de mulheres rurais: o Movimento de Mulheres Camponesas, que nasceu em Santa Catarina,
mas vem crescendo em nível nacional, por sua prática de luta e por encampar um Projeto
Popular que se opõe ao agronegócio e busca o fortalecimento da agricultura familiar. Este
movimento tem um forte compromisso com as mulheres camponesas de articular a
transformação das relações sociais de classe com a mudança nas relações com a natureza e a
construção de novas relações sociais de gênero.
Butto e Leite (2010) afirmam que as grandes mobilizações nacionais, como a
Marcha das Margaridas, liderada pela CONTAG, começam a dar frutos e têm um maior
reconhecimento social com suas pautas de reivindicações, construindo assim, condições
favoráveis para a formulação e implementação de políticas públicas e para a afirmação de
uma agenda feminista no desenvolvimento rural. Ao longo dos últimos anos, os conteúdos das
reivindicações se transformaram para enfrentar e superar as desigualdades de gênero ainda
presentes no meio rural. Em busca de maiores conquistas, a Marcha passa a reivindicar, com
maior ênfase e objetividade, a inserção das mulheres nas atividades produtivas bem como a
exigir linhas de crédito especiais para as mulheres rurais (Pronaf32 Mulher), políticas de
comercialização e assistências técnicas especializadas. A agenda se ampliou para outras
demandas, como o aumento do salário mínimo, o combate à violência contra a mulher que
está presente e é naturalizada no meio rural.
Apesar da agenda política própria das mulheres no campo ter constituído
demandas legítimas de interlocução com o Estado e de organização dos movimentos sociais,
outras demandas internas ao segmento representado por estas mulheres ainda necessitam de
avanços muito maiores. É o caso das mulheres quilombolas e indígenas (povos tradicionais):
quando comparadas às trabalhadoras rurais, as proposições, o reconhecimento e a garantia dos
seus direitos estão muito distantes do êxito.
Atualmente, esses movimentos sociais, para fortalecer a luta contra o
neoliberalismo com a proposição de um modelo global alternativo de agricultura e de
desenvolvimento passaram a se articular em redes internacionais tais como a Via Campesina33
32
33
O Programa de Fortalecimento Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF) foi criado em 1996,
no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. É uma política pública de crédito voltado
para os agricultores e agricultoras familiares e assentados e assentadas da reforma agrária.
A Via Campesina é um movimento internacional de camponeses e camponesas, pequenos e médios
produtores, mulheres rurais, sem-terra, indígenas, juventude rural e trabalhadores agrícolas. As 148
organizações que formam a Via Campesina são de 69 países da Ásia, África, Europa e das
Américas.
68
e a Marcha Mundial das Mulheres34. A Via Campesina reúne organizações de 56 países da
Ásia, África, América e Europa. É uma articulação internacional popular, que surgiu e se
desenvolveu em contraponto ao avanço das formas de produção capitalista para a agricultura,
em nível mundial, nas últimas décadas. As organizações membro da Via Campesina se unem
nas lutas antiglobalização e nas questões específicas da agricultura e enfrentam os organismos
internacionais defendendo um projeto alternativo que se materializa na proposta da soberania
alimentar (VIEIRA, 2008).
Outro movimento internacional que está inserido nas lutas contra o sistema
capitalista é a Marcha Mundial das Mulheres (MMM). Este movimento feminista surgiu em
2000, como uma grande mobilização, reunindo milhares de mulheres do mundo todo em uma
campanha chamada “2000 razões para marchar contra a pobreza e a violência sexista”. A
Marcha Mundial das Mulheres foi inspirada em uma manifestação ocorrida em 1995, na
cidade de Quebec, no Canadá, onde 850 mulheres marcharam 200 quilômetros pedindo, de
forma simbólica, “Pão e Rosas”35. Porém, esta ação marcava o retorno das mulheres nas ruas
para protestar contra o sistema capitalista. Como resultado desta mobilização, as mulheres
lograram diversas conquistas, a saber: o aumento do salário mínimo, mais direitos para as
mulheres imigrantes e apoio à economia solidária.
Percebe-se, ainda, uma ação dos movimentos de mulheres e de algumas ONGs
voltadas a dar visibilidade ao trabalho das mulheres na melhoria da segurança alimentar e
nutricional da família. Outro ponto importante e bastante atual é a relação entre gênero e
agroecologia, já que as mulheres no campo desempenham um importante papel no manejo
sustentável e na conservação da biodiversidade.
No Brasil, nas últimas décadas, cresceu significativamente a participação das
mulheres agricultoras nas lutas sociais rurais e, também, nas experiências produtivas
vinculadas à agricultura familiar e ao movimento agroecológico. Os movimentos de mulheres
rurais vêm acumulando, ao longo de sua caminhada de luta, algumas conquistas, na sua
extensa pauta de reivindicações, principalmente a partir de 2003 quando novas estruturas
34
35
No Brasil, o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento de Mulheres
Camponesas (MMC), o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos
Pequenos
Agricultores
(MPA)
integram
a
Via
Campesina.
Disponível
em:
<http://www.social.org.br/cartilhas/cartilha003/cartilha012.htm>. Acesso em: 28 jul. 2014.
A Marcha Mundial das Mulheres (MMM) é um movimento feminista internacional iniciado em
2000 com a finalidade de realizar uma campanha mundial contra a pobreza e a violência contra as
mulheres. Disponível em: <http://www.sof.org.br/em-movimento/marcha-mundial-das-mulheres>.
Acesso em: 28 jul. 2014.
Essa é uma citação aos movimentos grevistas de tecelãs em Lowell, Massachusetts, Estados
Unidos, deslanchados no século XIX.
69
institucionais governamentais possibilitaram o ambiente de diálogo e algumas políticas do
Governo Federal foram direcionadas para as mulheres rurais, na perspectiva da superação das
desigualdades, da promoção da autonomia econômica e da igualdade de gênero, orientadas
para a inclusão das mulheres rurais no desenvolvimento sustentável36.
2.2
CONTEXTO POLÍTICO BRASILEIRO
O Brasil, no final dos anos 1990, no segundo mandato do presidente Fernando
Henrique Cardoso (FHC), enfrentava uma grave crise econômica que resultou em queda na
taxa de crescimento, desemprego e aumento da dívida pública, criando um clima de
desconfiança e incerteza para possíveis investimentos no país. Este panorama antecedeu as
eleições de 2002, quando o Partido dos Trabalhadores (PT) lançou, pela quarta vez, Luiz
Inácio Lula da Silva à presidência. Ao contrário das outras três eleições frustradas, o PT se
coligou com partidos mais conservadores e obteve apoio de grupos ligados a estes partidos. A
estratégia da candidatura de Lula foi definida na “Carta ao Povo Brasileiro” na qual assumia o
compromisso de cumprir contratos firmados durante o governo anterior de FHC. O governo
Lula tomaria medidas aliando interesses conservadores e progressistas, o que decepcionou
setores da esquerda brasileira. Entretanto, apesar desta conjuntura, o cenário político era de
muita esperança, no que diz respeito a mudanças sociais e políticas, com as eleições
presidenciais de 2002, que conduziram ao governo federal, com uma votação expressiva, um
projeto oriundo no campo democrático e popular. Devido à história e trajetória sindical de
Lula, esperava-se atividades e medidas mais fortes em defesa do trabalho e de mudanças
estruturais. Assim, em 2003, ocorre a posse presidencial com a maior festa popular da história
deste país.
A partir das suas propostas programáticas, o governo liderado pelo Partido dos
Trabalhadores busca reposicionar o Estado brasileiro, abrindo caminho para a participação e o
controle social sobre as políticas públicas, de modo que se estabeleçam possibilidades
concretas para que o aparato estatal e os serviços públicos em geral fiquem à disposição da
população, particularmente daqueles segmentos até então mais alijados do processo de
36
É o desenvolvimento capaz de suprir as necessidades da geração atual, sem comprometer a
capacidade de atender às necessidades das futuras gerações. É o desenvolvimento que não esgota
os recursos para o futuro. Definição da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento,
criada
pelas
Nações
Unidas.
Disponível
em:
<http://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/questoes_ambientais/desenvolvimento_sustentavel/>.
Acesso em: 28 jul. 2014.
70
desenvolvimento, em nosso caso, as mulheres, especialmente as do campo e da região
semiárida.
Foi um marco do Governo Lula, desde seu primeiro mandato, criar espaços de
participação. Com o discurso de democracia participativa, ampliou as formas de interação
com a sociedade civil organizada através do estímulo à participação social em conselhos e
conferências nacionais, estaduais e municipais.
Fato relevante foi a entrada no governo de muitas pessoas que militavam em
organizações e movimentos da sociedade civil, ascendendo a postos e cargos administrativos
de políticas e programas sociais e de desenvolvimento, não só em âmbito federal, mas
também estadual e municipal. Um dos órgãos em que mais isto ocorreu foi o Ministério de
Desenvolvimento Agrário (MDA), que tinha sido criado em 1999, no governo de Fernando
Henrique, e que, naquela época, como até hoje, não se realizou nenhum concurso público para
o preenchimento dos cargos. Os cargos de direção e equipes técnicas passaram a ser
assumidos por profissionais saídos de instituições sociais ligadas às lutas agrárias e agrícolas,
agroecológicas e também feministas.
Por outro lado, como consequência da estratégia política do governo Lula, aliando
interesses conservadores e progressistas e tentando gerir conflitos de interesses, houve uma
duplicação de instâncias de governo. Podemos observar essa condução ao verificarmos que,
em uma mesma estrutura federal, há dois ministérios para tratar do mundo rural, o Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(MAPA), responsáveis por trabalhar com a agricultura no Brasil, um para a agricultura
familiar e o outro para o agronegócio, respectivamente.
A estrutura do MDA, órgão federal, tem por competências a reforma agrária, o
reordenamento agrário, a regularização fundiária na Amazônia Legal, a promoção do
desenvolvimento sustentável da agricultura familiar e das regiões rurais e a identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes
das comunidades dos quilombos. Nos últimos dez anos, a destinação de recursos federais para
a agricultura familiar cresceu 15 vezes.
O MDA, a partir de 2003, passa a ter a atribuição da assistência técnica e extensão
rural. Neste momento e a partir de um intenso debate entre o Ministério, os movimentos
sociais rurais e as ONGs, constituiu a Política e o Programa Nacional de Assistência Técnica
e Extensão Rural, com muita pressão e propostas que exigiam a adoção de processos mais
participativos e a incorporação da agroecologia. Como resultado da luta e pressão dos
movimentos, houve uma opção de trabalho em favor da agricultura familiar e dos
71
assentamentos de reforma agrária existentes, visando não mais a simples transmissão de
tecnologias, mas a promoção de processos sustentáveis de desenvolvimento, que buscam
ampliar a cidadania no campo. Observa-se uma forte preocupação com o meio ambiente, que
se expressa na ênfase dada à agroecologia. Algumas medidas foram incluídas, como a
incorporação da dimensão de gênero com uma orientação de cunho feminista, passando por
uma mudança na ótica de trabalho: indicação de conteúdos, critérios de seleção de projetos a
serem financiados e orientações metodológicas deviam ser considerados para atender às
necessidades das trabalhadoras rurais e, também, promover a igualdade de gênero (BUTTO;
LEITE, 2010).
A partir de 2003, o governo buscou institucionalizar políticas públicas de
igualdade de gênero por meio de um organismo governamental específico, a Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), vinculada diretamente à Presidência da
República com status de ministério que tem como atribuições coordenar as políticas dos
diferentes ministérios e demais órgãos federais, garantir a transversalidade de gênero nos
programas e a participação e controle social por parte da sociedade civil. Outra ação política
importante foi a realização da I Conferência Nacional de Políticas (I CNPM) para as
Mulheres, em 2004, que resultou na elaboração do Plano Nacional de Políticas para Mulheres
(PNPM). Temos, também, a ampliação de diversas políticas, como a inclusão da
transversalidade de gênero no Plano Plurianual (PPA) 2004/2007 do Governo Federal e a
criação de uma linha de crédito especial para as mulheres rurais, Pronaf Mulher. Seguiram-se
a II CNPM, realizada em 2007, e a III CNPM, em 2010, ambas buscando o aprimoramento do
PNPM37.
Vivia-se, neste período, um momento ímpar na história do Brasil, e foi justamente
nesta época que se deu a elaboração e execução do Projeto Gente de Valor. Portanto, os
objetivos do Projeto e algumas de suas ações dialogaram diretamente com os conceitos e
propostas que eram debatidos e aprofundados, como, por exemplo, agroecologia, gênero e
povos tradicionais (quilombola, indígenas, fundo de pasto e pescadores).
2.2.1
Conceitos relevantes
Para assegurar coerência entre a reflexão e a proposta da pesquisa, é necessário
retomar alguns aspectos relevantes. Em primeiro lugar, impõe-se uma retomada das raízes
37
Disponível em: <http://spm.gov.br/pnpm/pnpm>.
72
epistemológicas de conceitos como extensão rural, agricultura familiar, agroecologia,
desenvolvimento rural e mulher.
O desenvolvimento rural, em uma perspectiva sustentável, se apresenta como uma
alternativa crítica ao modelo de desenvolvimento econômico capitalista hegemônico.
Ressaltamos que a crise deste modelo resultou em críticas, inclusive, ao modelo “tutorial” de
extensão rural no qual “a ação do agente externo é orientada no sentido de introduzir ideias
previamente estabelecidas sem a participação da população alvo de sua ação” (ALENCAR,
1990, p. 25). Dentro da CAR e, consequentemente, dentro do PGV, coexistiram e coexistem a
extensão tutorial e a extensão participativa, apesar de a coordenação do PGV ter promovido
momentos de debates para repensar o papel da extensão rural pública, isto foi insuficiente
para avaliar e rediscutir a prática extensionista realizada pelo Estado, na perspectiva de
desconstruir práticas e vícios autoritários dos técnicos e técnicas e efetivar mudanças.
Para que ocorram reais mudanças dentro do PGV e dentro da CAR, é preciso um
longo tempo, para atingir uma extensão rural pública democrática e criativa em sintonia com
o Plano Nacional de Extensão Rural do Governo Federal no qual a inclusão do caráter
participativo foi como um pré-requisito para garantir a efetividade e a legitimidade das
políticas públicas para a agricultura familiar. É necessário ressaltar que a categoria
“agricultura familiar” é uma nova concepção teórica utilizada para caracterizar as unidades de
produção, substituindo as categorias de análise utilizadas anteriormente como campesinato,
pequena produção, agricultura de subsistência, entre outras que, segundo Rosangela
Hespanhol (2000), perderam seu poder explicativo. Entende-se por “agricultura familiar” o
conceito estabelecido na Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, considerando-se agricultor
familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo,
simultaneamente, aos seguintes requisitos:
I – não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos
fiscais; II – utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas
atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III –
tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades
econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida
pelo Poder Executivo; IV – dirija seu estabelecimento ou empreendimento
com sua família. (Art. 3º, 2006).
Então, agricultura familiar, a partir da década de 1990, como uma categoria de
análise ainda é utilizada para:
73
[...] designar genericamente as unidades produtivas, nas quais a terra, os
meios de produção e o trabalho encontram-se estreitamente vinculados ao
grupo familiar, deve ser aprendida como um reflexo das alterações recentes
ocorridas na agricultura brasileira e que, em última análise, levaram a
valorização do segmento familiar. (HESPANHOL, 2000, p. 2).
Porém, é na última década do século XX, que o emprego do conceito “camponês”
é substituído, sem maiores reflexões, pelo conceito de “agricultura familiar”. Esta substituição
de conceitos é aceita pela academia, pelo Estado e, também, pelos agricultores e seus
sindicatos e movimentos sociais.
Mudanças foram possibilitadas pela crise do modelo de desenvolvimento
econômico capitalista, produtivista, autoritário e fomentador da crescente desigualdade
econômica e social, da concentração fundiária, do êxodo rural, da degradação ecológica, da
contaminação por agrotóxicos e da insegurança alimentar nutricional, que se observa nas
cidades e no campo; mudanças na visão de desenvolvimento que, por sua vez, alcançaram a
extensão rural.
Ressalto que alguns técnicos e técnicas do Projeto trouxeram, em sua prática
profissional no campo, no trabalho de extensão rural nos movimentos sociais e ONGs a
perspectiva de Paulo Freire (1977), que se requer como “prática educativo-participativa” e
não mais como transferência de conhecimentos. O diálogo é o ponto de partida para a partilha
do conhecimento e a troca de saberes e experiências entre técnicos/técnicas e agricultores/
agricultoras, se torna uma prática fundamental na intervenção. A participação ativa de todos –
homens e mulheres – enriquece o processo de aprendizagem e contribui para o
reconhecimento do indivíduo enquanto ser coletivo, capaz de escolher e decidir sua própria
vida para, neste processo, se perceber verdadeiramente cidadão ou cidadã.
Outro conceito fundamental para um bom entendimento da concepção que
norteou a intervenção do PGV no campo, para além de um modismo atual, é a agroecologia.
Ela pretende apoiar a superação dos atuais modelos de agricultura e de desenvolvimento rural,
que se baseiam no modelo da Revolução Verde os quais visam o aumento da produtividade
agrícola e da lucratividade do agronegócio, pelo uso intensivo de fertilizantes químicos,
agrotóxicos, máquinas e implementos agrícolas e pela especialização da produção vegetal e
animal, modelo que, do ponto de vista socioambiental, já se mostrou insustentável, em
particular, nos países considerados pobres. Em contraposição a este modelo da Revolução
Verde, a agroecologia vem, a cada ano, se constituindo como uma alternativa para os
agricultores e agricultoras familiares. A agroecologia tem sua base tecnológica na preservação
dos recursos naturais, no manejo sustentável da biodiversidade, na diversidade produtiva, na
74
autonomia das famílias e no respeito ao meio ambiente; valoriza o saber do agricultor e da
agricultora, respeita sua cultura e suas experiências; supõe o diálogo e a interação entre eles e
elas e os técnicos e técnicas. Nas palavras de Susanna Hecht, “é uma abordagem agrícola que
incorpora cuidados especiais relativos ao ambiente, assim como aos problemas sociais,
enfocando não somente a produção, mas também a sustentabilidade ecológica do sistema de
produção” (2002, p. 26).
A agroecologia se propõe a ser um enfoque científico e, também, uma prática da
agricultura que atua sobre os agroecossistemas com critérios de sustentabilidade. Segundo
Hecht:
A agroecologia apenas recuperou uma herança agrícola que havia sido
destruída pela agricultura moderna e, particularmente, pelas ciências
agronômicas, que imbuídas, em muitos casos, de preconceitos de classe,
etnia, cultura e gênero, haviam desprezado esse conjunto de conhecimentos e
as pessoas que os produziam e repassavam. (HECHT, 2002, p. 22).
A implantação da chamada “agricultura moderna” veio com a estratégia de
desqualificar os conhecimentos, os saberes e as formas tradicionais de agricultura praticadas,
há séculos, pelos agricultores e agricultoras, nas diversas regiões do país. Esta estratégia, que
ignora a cultura local e reforça os preconceitos de classe, étnico-culturais e de gênero, ameaça
os agricultores e as agricultoras familiares e, sobretudo, desvaloriza o trabalho das mulheres
agricultoras, colocando em risco as bases de vida, a saúde e a segurança alimentar de toda a
família.
A agroecologia, ao contrário, trouxe em sua proposta a afirmação do
protagonismo dos agricultores e agricultoras em sua diversidade – camponeses, quilombolas,
outros povos e comunidades tradicionais do campo, inclusive indígenas – como elemento
central na construção de um novo desenvolvimento rural e contribuiu para evidenciar o
importante papel desempenhado pelas mulheres na sustentabilidade da agricultura. No
entanto, ainda é preciso incorporar transversalmente à agroecologia a perspectiva de gênero,
pois permanece o desafio de reconstruir a relação das mulheres do campo com os espaços
produtivos e com os mercados locais. Isto implica em inclui-las na produção e na
comercialização dos produtos com a perspectiva de um envolvimento consciente na gestão
dos recursos, inclusive financeiros.
O Projeto Gente de Valor, por ser um projeto governamental, usa em sua
abordagem o termo “agricultoras” e não “camponesas”. Há uma importante discussão em
torno das razões dos usos destes diferentes conceitos no Brasil. Porém, aqui neste trabalho de
75
pesquisa, usarei “agricultora” por estar analisando o empoderamento de mulheres a partir da
intervenção de um projeto de governo que utiliza esta concepção.
A palavra “mulher” existe carregada de contexto histórico, marcada pelo
machismo38 impregnado pela sociedade, tanto nos homens quanto nas mulheres. A mulher
agricultora enfrenta, cotidianamente, o peso da diferença de gênero cruzada pelas diferenças
de classe social, raça, etnia, geração, regionalidade entre outras, geradas pela associação de
sistemas múltiplos de subordinação que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos
(CRENSHAW, 2002), tornando resistência e luta o ato de se organizar contra o sistema
opressor e discriminatório que cria desigualdades pelas formas como se exercem e se
combinam o racismo, o patriarcalismo e o capitalismo.
Embora todas sejam “mulheres” e possam participar de um “grupo de mulheres”,
o PGV as trata como se todas fossem iguais, mesmo sabendo que são mulheres de raças,
etnias e gerações diferentes. As ações desenvolvidas, as atividades produtivas estimuladas e a
forma de trabalhar não tinham especificidade para contemplar esta diversidade de mulheres –
índias, negras e brancas – muito menos para as jovens ou idosas. Elas são diferentes entre si,
porém, todas sofrem preconceito por serem da roça e discriminação por serem mulheres, não
sendo tratadas igualmente como os outros indivíduos.
Scott diz que “os indivíduos não serão tratados com justiça (na lei e na sociedade)
até que os grupos com os quais eles são identificados sejam igualmente valorizados” (2005, p.
13). A experiência do PGV leva a concordar com ela e a reconhecer que existem tensões, mas,
também, pontos de interconexões entre igualdade e diferença, entre direitos individuais e
identidades grupais. A luta das mulheres tem que ser coletiva, se pretende superar o
preconceito e a discriminação, pois se estes permanecerem em nossa sociedade é porque se
continua a utilizar critérios diferentes para avaliar os indivíduos, dando mais atenção aos
status econômico, político e social dos grupos, ignorando outras identidades tão importantes
quanto estas.
O Projeto Gente de Valor por não dialogar com o acúmulo das teorias feministas
ainda trabalha com uma proposta geral do enfoque de gênero, ao tentar ignorar a força política
da categoria “mulher” e não reconhecê-la como uma identidade de estratégia política de
sobrevivência pessoal e coletiva. Claudia de Lima Costa argumenta que, apesar das críticas à
política de identidade e das questões relativas ao “essencialismo estratégico” 39, o feminismo
38
39
Segundo o Dicionário Aurélio, o machismo é a atitude ou comportamento de quem não aceita a
igualdade de direitos para o homem e a mulher.
A fabricação de uma identidade de gênero fixa.
76
atual, com toda a sua diversidade de discursos, reconhece a “mulher” como uma categoria
histórica e heterogeneamente construída e fundamenta sua análise nas práticas cotidianas das
mulheres e nas resistências destas em relação às especificidades histórico-discursivas. A
categoria “mulheres”, apesar de ser volátil e dependente do contexto conjuntural, é utilizada
para articular as mulheres politicamente (2002, p. 67).
Vivemos em uma sociedade baseada nas relações de poder. A realidade na
sociedade rural se baseia em valores patriarcalistas e o princípio masculino ainda é tomado
como parâmetro universalizante. As mulheres, com o papel de reprodução, se tornam
submissas e responsáveis pela esfera doméstica. Hoje, porém, já é possível identificar na
sociedade rural que este processo de naturalização vem se desconstruindo: já não é tão forte
como no passado.
Nos últimos anos, observa-se que o empoderamento da mulher na sociedade rural
tem tomado a atenção de grande parte da esfera pública, tanto que, para celebrar o Dia
Internacional da Mulher, em 2012, dada a importância do papel das mulheres rurais em todos
os países, a ONU Mulheres, entidade específica das Nações Unidas, escolheu o tema
“Empoderamento das mulheres rurais – Acabar com a fome e a pobreza”.
O Projeto Gente de Valor se insere nesta concepção e, em suas ações, parte do
reconhecimento do papel desenvolvido pelas mulheres agricultoras, da importância do seu
trabalho na economia rural local, concentrado nas atividades voltadas ao autoconsumo
familiar, nas tarefas domésticas, no cuidado com os filhos, na criação de pequenos animais, na
horticultura, no cultivo e resgate das plantas medicinais, no zelo pelo jardim, no manejo da
caatinga e na produção da lavoura. Por outro lado, percebe-se que as mulheres agricultoras na
Bahia ainda são discriminadas e oprimidas e têm dificuldades ou são excluídas de participar
ativamente de projetos de desenvolvimento rural com a perspectiva sustentável. O PGV, em
sua proposta de intervenção, incorpora a participação das populações excluídas do
desenvolvimento, participação que se dá na formulação e condução das políticas públicas
voltadas para o campo. Deste modo, possibilitou a inclusão das mulheres agricultoras nas
atividades de produção agrícola e nas associações comunitárias previstas no Projeto.
É o que se pretende verificar através da análise dos dados sobre a participação das
mulheres no Projeto, como se deu a promoção e a efetivação de direitos, de cidadania, de
oportunidades para transformar as relações desiguais de poder presentes no meio rural.
77
2.3
GÊNERO E DESENVOLVIMENTO NO BRASIL E NO PROJETO GENTE DE
VALOR
Após a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da realização
das conferências e da elaboração do Plano Nacional de Políticas para Mulheres, o governo
mostra que começou a cumprir com suas promessas de campanha, no caso das mulheres, ao
promover e desenvolver estas ações de inclusão social e de combate às desigualdades sociais,
no sentido de incorporar a perspectiva de gênero e igualdade racial em todas as políticas,
programas e projetos, nas diferentes áreas governamentais. Para materializar a implementação
das políticas de inclusão das mulheres, também criou, em diferentes ministérios e organismos
federais, alguns departamentos, coordenadorias e/ou setores especializados para trabalharem
em articulação com a SPM a proposta de incorporação das questões de gênero (COSTA,
SARDENBERG, 2008). No caso das mulheres rurais, a transversalidade das políticas nos
programas governamentais se deu através da integração das secretarias do Ministério de
Desenvolvimento Agrário (MDA) com a então criada Diretoria de Políticas para as Mulheres
Rurais (DPMR) e superintendências regionais do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), no II Plano Nacional de Reforma Agrária; no Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), no
Programa Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (PRONAT) e no Programa Nacional de
ATER (PRONATER). Entre as ações desenvolvidas com recursos do Orçamento Geral da
União e de órgãos federais, estaduais e locais, com o objetivo de promoção de igualdade estão
o Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR) e o Programa de
Organização Produtiva de Mulheres Rurais (POPMR).
Essas ações de apoio às mulheres rurais fazem parte do Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres, reconhecendo os direitos das mulheres no meio rural, incluindo-as
nas políticas públicas como beneficiárias diretas com acesso à documentação, apoio à
produção e comercialização e direitos igualitários à terra integrando-as, desta forma, na
promoção de um projeto de desenvolvimento rural na perspectiva sustentável com igualdade
de gênero e possibilitando a afirmação de seu protagonismo e autonomia econômica.
Como foi dito no capítulo anterior, a princípio, o que tinha sido pensado para o
Projeto Gente de Valor, à época de sua elaboração, entre os anos de 2005 e 2006, tinha como
orientação as concepções do FIDA e do Governo Federal. Então, ainda não estavam bem
entendidas, pela equipe técnica, a concepção e as ações que deveriam ser desenvolvidas para
promover uma inclusão plenamente cidadã das mulheres no desenvolvimento rural. As
78
percepções predominantes sobre a relação das mulheres com o desenvolvimento estavam
diretamente relacionadas à pobreza e fortemente associadas à inclusão na área econômica e,
por isto, dissociadas da noção de políticas que integram, para além de uma atuação
econômica, também as dimensões social, cultural e ambiental. A concepção de inclusão das
mulheres pela superação da pobreza, que predominava mundialmente, foi incorporada na
proposta do Projeto Gente de Valor, apesar do discurso de gênero e desenvolvimento. O ponto
de partida foi a constatação de que as mulheres, principalmente as pobres, rurais, idosas,
negras e indígenas, são um segmento mais pobre entre os pobres, um dos grupos sociais mais
vulneráveis.
A proposta do Componente de Desenvolvimento Produtivo e de Mercado do PGV
tinha como um dos elementos centrais de suas estratégias para a diminuição da pobreza a
melhoria das oportunidades para gerar maior receita, o que deveria, ao final, fazer com que as
pessoas se empoderassem, através da melhoria das condições econômicas e, para tal, apoiar os
pobres para que tivessem acesso a recursos econômicos tangíveis ou ao desenvolvimento de
atividades produtivas, de microempreendimentos e de cooperativas de produção. É, porém,
importante chamar a atenção que a maior participação, democratização e desenvolvimento da
capacidade significam pouco, se os pobres (principalmente as mulheres) não conquistarem
maior inclusão e controle.
O que parece ser menos evidente é a noção do empoderamento como controle
econômico e de poder, embora seja interessante observar que o “empoderamento das
mulheres” frequentemente se expressa em relação ao seu acesso a recursos econômicos,
principalmente quando elas estão à frente de atividades produtivas que geram renda, tais
como quintais produtivos (hortaliças, plantas medicinais, frutas), beneficiamento de frutas e
de mandioca e artesanato. Também é preciso romper com a ideia de que os “quintais” são
espaços somente de mulher, que elas produzem para o consumo familiar, visto que, não
entrando nos cálculos econômicos como renda monetária, é pouco valorizado, mesmo
enquanto produção e preservação da biodiversidade. Não se pode também negar a importância
que o quintal da casa tem dentro do sistema agro ecológico.
2.4
BREVE HISTÓRICO DO PROJETO GENTE DE VALOR
Faz-se necessário contextualizar a instituição que executa o PGV, a Companhia de
Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), empresa pública de direito privado, criada por Lei
79
Estadual, em 3 de março de 198340, fundada no fim de um período ditatorial, em um contexto
político e social de movimentação para as eleições diretas e a volta dos movimentos sociais às
ruas e a realização da Assembleia Geral Constituinte. Carlos Henrique Ramos41 (2013, p. 1),
segundo quem “os seus trabalhadores pioneiros trouxeram consigo essa matriz de sociedade
expressa na forma de pensar, agir e se posicionar, expondo muitas vezes contradições e
diferenças” afirma que, nos primeiros anos de sua criação, investia na formação de seus
profissionais proporcionando cursos de pós-graduação, diversos treinamentos, discussões
internas e seus técnicos tinham o privilégio de estudar Marx, Lenin, Paulo Freire, Chico de
Oliveira, Gramsci e Celso Furtado. Porém, ao longo dos 31 anos de existência, a CAR esteve
sob o domínio de vários grupos políticos diferentes, a serviço de ideologias conservadoras,
com práticas clientelistas e como instrumento de uma extensão rural difusionista,
caracterizada pelas instituições da época, norteadas por um modelo de desenvolvimento
concentrador e hierárquico. Apesar das mudanças ocorridas no país ao longo destes anos, após
a redemocratização, a CAR continua com a estrutura verticalizada e burocratizada de gestão
pública. Nas palavras de Ramos:
Decorridos trinta anos, nos encontramos mergulhados numa crise
civilizatória de caráter multidimensional com reflexos na qualidade do meio
ambiente, nas relações sociais, econômicas, tecnológicas e políticas, o que
requer, portanto, uma abordagem inter e multidisciplinar no que se refere às
teorias do desenvolvimento, desprezando àquelas acometidas de um desleixo
quanto aos aspectos sociais e ambientais e de estratégias clientelistas. Por
outro lado, mesmo as novidades instituídas pela Constituição de 1988 não
conseguiram substituir a estrutura verticalizada e burocratizada de gestão
pública, da mesma forma que os movimentos sociais têm encontrado
dificuldades para a superação do caráter reivindicatório das suas lutas além
de se depararem com o avanço do agronegócio em áreas tradicionalmente
ocupadas pela agricultura familiar. (2013, p. 1).
Atualmente, a CAR tem como missão “promover o desenvolvimento regional por
meio da inclusão socioprodutiva, contribuindo para o combate à pobreza”. Para cumprir sua
missão, realiza parcerias com o Governo Federal, através de contratos de repasse, celebra
convênios e termos de cooperação técnica com secretarias estaduais, firma contratos com
organismos financeiros internacionais, como o Banco Mundial e o FIDA, além de executar
emendas parlamentares. Desta forma, desenvolve seus programas e projetos próprios, tais
como: Produzir, Gente de Valor, Mata Branca e Quilombolas, por meio de financiamento ou
40
41
Disponível em: <http://www.car.ba.gov.br/institucional/a-car/>.
Técnico em Desenvolvimento Regional da CAR, subcoordenador do Projeto Gente de Valor. Texto
não publicado.
80
doações de organismos internacionais e de recursos do Governo do Estado. Também realiza
ações dos programas Água para Todos42 e Vida Melhor43, ambos do Governo da Bahia. A
CAR operacionaliza suas ações firmando convênios e contratos com associações comunitárias
e cooperativas de todo o Estado da Bahia. Também executa a supervisão, junto às associações
e cooperativas, da aplicação dos recursos e capacita as diretorias das organizações para a
gestão e administração dos empreendimentos. Porém, a prática de extensão rural desenvolvida
pela empresa ainda está baseada no modelo de desenvolvimento conservador, a assistência
técnica é feita em uma lógica de segmentação na qual a parte produtiva é trabalhada pelos
homens, geralmente agrônomos, e as questões sociais são desenvolvidas pelas mulheres que,
geralmente, são assistentes sociais, economistas domésticas etc. Continua usando e tratando
as associações comunitárias como uma forma de controle social do Estado sobre a classe
trabalhadora para manter e difundir o modelo difusionista do pacote da chamada “Revolução
Verde”44.
Apesar dessa realidade institucional, o desenho do Projeto Gente de Valor
começou a ser elaborado no final de 2005, em uma Missão do FIDA que tinha o propósito de
preparar a formulação do Projeto, a Missão de Avaliação Ex Ante do “Projeto de
Desenvolvimento Comunitário para as Áreas Rurais mais Carentes do Estado da Bahia –
PRODECAR” (APPRAISAL). Esta missão para a sua elaboração contou com uma equipe de
especialistas45 contratados pelo FIDA, com a CAR e os técnicos do Pró-Gavião46, que estava
42
43
44
45
É um Programa promovido pelo Governo Federal, através do Ministério de Integração Social (MI)
e se integra no Plano Brasil Sem Miséria. O programa tem o objetivo de universalizar o acesso e o
uso de água para populações carentes, em situação de extrema pobreza, seja para o consumo
próprio ou para a produção de alimentos e a criação de animais, possibilitando a geração de
excedentes comercializáveis para a ampliação da renda familiar dos produtores rurais.
É um Programa do Governo do Estado da Bahia de inclusão produtiva, com atuação em área
urbana, que atua no fomento a empreendimentos individuais e familiares da economia informal.
Esse programa apoia um conjunto de atividades, destacando-se os arranjos produtivos urbanos de
alimentação, costura, ambulantes, agricultura urbana e resíduos sólidos.
A “Revolução Verde” reforçou a “modernização conservadora” da agricultura brasileira nos anos
1960. Ao introduzir, em nome do aumento da produtividade e do combate à fome, tecnologias
dependentes de insumos industriais, como equipamentos e maquinário, adubos e agrotóxicos,
concentrou a produção em grandes propriedades monocultoras, sem cuidados sociais, como a
queda do emprego agrícola, o êxodo rural e a violência no campo, e ambientais, como a degradação
de solos e águas. Aos pequenos e médios produtores, cabia a marginalização ou a integração ao
sistema, induzidos pelos pacotes tecnológicos financiados pelos bancos. Foi uma modernização
conservadora porque manteve as estruturas de propriedade e as relações de poder sob o controle
das classes dirigentes que já as controlava.
Missão constituída por: Dr. Benjamin Quijandria, Agrônomo, Ph.D. Especialista em
Desenvolvimento Rural e Chefe da Missão; Dra. Pilar Campaña, Antropóloga, Ph.D., Especialista
em Organização Camponesa, Capacitação e Gênero; Dr. Pedro de Hegedus, Agrônomo, Ph.D.,
Especialista em Acompanhamento e Avaliação de Projetos; Engenheiro Agrônomo Bernardo Lima,
Especialista em Organização e Gestão de Projetos; Dr. Vittorio Silvestri, Economista, e Analista
81
em processo de fechamento das suas atividades. Nesta época da elaboração, a CAR ainda
estava vinculada à Secretaria de Planejamento do Estado da Bahia (SEPLAN).
Em 2007, o Governo do Estado da Bahia cria a Secretaria de Desenvolvimento e
Integração Regional (SEDIR) e, neste mesmo ano, o Projeto recebeu o seu primeiro nome
fantasia: “Projeto Terra de Valor”. Em 2008, este nome foi mudado para “Projeto Gente de
Valor”. O motivo da mudança se deu pelo fato de o governador ter gostado do nome e ter
resolvido colocá-lo em um programa do Governo do Estado. Com prazo de execução
contratual com o FIDA de seis anos, começou a ser implementado, no início de 2007, com
encerramento previsto para dezembro de 2012. Porém, o Projeto continua com algumas ações,
por mais alguns anos, com o objetivo de acompanhar a consolidação dos grupos produtivos e
de seus empreendimentos.
Executado pela CAR é um projeto com recursos47 do Governo do Estado da Bahia
em parceria com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) órgão das
Nações Unidas (ONU), através do Contrato de Empréstimo no 696-BR-FIDA. O Projeto se
insere entre as políticas de desenvolvimento agrícola e rural, de ações sociais e de redução da
pobreza do Governo da Bahia. Como já foi dito anteriormente, a meta proposta para o Projeto
estava de acordo com as Metas de Desenvolvimento do Milênio nas quais consta a redução
significativa dos níveis de pobreza e da pobreza extrema das comunidades rurais semiáridas
do estado do Bahia. Seu objetivo geral era “melhorar as condições sociais e econômicas das
comunidades rurais pobres através de um desenvolvimento social e econômico
ambientalmente sustentável com equidade de gênero” (APPRAISAL, 2005, p. 2).
A estrutura organizacional do Projeto Gente de Valor é composta por um
Coordenador Estadual, dois Subcoordenadores – um do Componente de Desenvolvimento do
Capital Humano e Social e outro do Componente de Desenvolvimento Produtivo e dos
Mercados – e por cinco Assessorias: Administrativa e Financeira, de Monitoramento e
Avaliação, de Gênero, de Conservação e de Manejo Ambiental e da Infraestrutura, que
formam a coordenação do PGV. Sua unidade de gestão compreende a Coordenação em
46
47
Financeiro; Engenheiro Raoul Simonini, Especialista em Mercados e Empresas Rurais; e
Economista Maria Sisto, M.Sc., Especialista em Desenvolvimento Produtivo e de Mercados. A
Missão esteve acompanhada pelo Sr. Jean Jaques Gariglio, Gerente de Operações do FIDA para o
Brasil. Ajuda Memória da Missão de Avaliação Ex Ante realizada em Salvador, em 2005.
Projeto de Desenvolvimento Comunitário da Região do Rio Gavião que ainda estava em processo
de fechamento de suas atividades. O Pró-Gavião serviu como referência para a elaboração do novo
Projeto. E nas ações em gênero do PGV ele serviu como referência, pois o Pró-Gavião tinha um
subprojeto especial, o Programa de Assessoria de Gênero (PAGE).
O valor do projeto é de US$ 60 milhões, sendo US$ 30 milhões de empréstimo do FIDA e 30
milhões de contrapartida estadual.
82
Salvador, as Gerências Regionais e os Escritórios Locais, que exercem as funções de
planejamento, supervisão e avaliação das ações do Projeto.
Na Figura 1 é apresentada a localização das duas regiões no estado da Bahia
contempladas pelo Projeto.
Figura 1 ˗˗ Localização dos municípios pertencentes às Regiões Nordeste e Sudoeste selecionados para
o Projeto Gente de Valor, 2010
Fonte: Relatório Estudos de Base (PRAXIS, 2009, p. 14) – IBGE (mapa básico) e CAR (municípios
selecionados).
Segundo o “Manual de Operações”, o Projeto Gente de Valor teve como objetivo
geral:
Melhorar as condições socioeconômicas das comunidades rurais pobres,
através de um desenvolvimento social e econômico, ambientalmente
sustentável com equidade de gênero, tendo por marco, a referência às Metas
do Milênio que visam reduzir, significativamente, os níveis de pobreza e a
pobreza extrema das comunidades rurais do semiárido.48
48
Manual de Operações (MOP) do Projeto Gente de Valor, 2008, p. 9.
83
Em outras palavras, o PGV se propunha a desencadear o desenvolvimento rural
através da construção de alternativas agroecológicas, de convivência com o semiárido, com
promoção da segurança alimentar e nutricional e equidade de gênero, para melhorar a
qualidade de vida de 282 comunidades rurais constituídas por agricultores e agricultoras
familiares ou quilombolas ou indígenas. Participaram 18.820 mulheres e 17.652 homens. A
estratégia operacional do projeto se baseou em três pilares: na consonância com prioridades
do Governo Federal e do Governo do Estado para a redução da pobreza e o desenvolvimento
rural; na participação dos beneficiários e de suas organizações desde o planejamento até a sua
implementação e gestão; e na perspectiva do desenvolvimento territorial49, que prevê o
desenvolvimento – social, cultural, ambiental e produtivo – de forma integrada.
Para a sua operacionalização, o PGV seguiu, basicamente, a mesma estrutura do
Projeto de Desenvolvimento Comunitário da Região do Rio Gavião (Pró-Gavião), estruturado
em três componentes: Desenvolvimento Produtivo e de Mercado; Desenvolvimento de
Capital Humano e Social e o da Administração do Projeto. Na execução do projeto, o
componente Desenvolvimento Produtivo e de Mercado teve como objetivo desenvolver e
potencializar sistemas de produção, beneficiamento e comercialização. O Componente de
Capital Humano e Social buscou, em sua abordagem, estreitar as interações das forças sociais
com os processos de desenvolvimento. Este componente teve como objetivo contribuir com o
processo de autogestão e fortalecimento das pessoas, das comunidades rurais e de suas
organizações e, para tal, incentivou nas comunidades, como forma de organização, a criação
de Conselhos de Desenvolvimento Subterritorial (CDST) que contavam com a participação
equilibrada de homens e mulheres, com representações das comunidades e de diversos
segmentos da sociedade civil. Nestes conselhos, foram debatidos os principais problemas das
comunidades, as soluções, a gestão dos recursos e dos equipamentos, definidos
encaminhamentos operacionais e financeiros, além de discutidos alguns temas do Projeto
(segurança alimentar, agroecologia, associativismo, relações de gênero, cidadania e o plano de
desenvolvimento subterritorial).
É importante lembrar que foi o projeto anterior ao PGV, também apoiado pelo
FIDA, conhecido como Pró-Gavião, executado durante o período de 1998 a 2005, o primeiro
49
O modelo de Desenvolvimento Territorial aqui entendido como o que é desenvolvido pelo
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e pelo MDA que concilia
combate à pobreza, segurança alimentar e nutricional, proteção ambiental e geração de renda e, no
qual o território se torna um novo espaço de construção de projeto e articulação de políticas
públicas em parceria com estados, municípios e sociedade civil. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br/seguracaalimentar/desenvolvimentoterritorial>. Acesso em: 31 jul. 2014.
84
projeto, dentro da CAR, a trazer em sua estratégia de intervenção o enfoque de gênero, em
relação aos demais projetos desenvolvidos pela empresa naquele período. Ressalto que, na
concepção original do Pró-Gavião e em seu documento “Appraisal Report”, elaborado em
1995, não existia uma linha de ação prevista em relação à perspectiva de gênero, apenas
indicações de atividades específicas para o público feminino. No início da execução do
projeto, em 1998, devido à falta de uma proposta definida de estratégias para a inclusão das
mulheres no processo de desenvolvimento rural, foi elaborada a Proposta de Apoio à Mulher
Rural na Região do Rio Gavião. Para viabilizar a proposta, foi realizado um convênio de
parceria com a Rede Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Relações de
Gênero (REDOR) no qual se estabeleceu que o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a
Mulher (NEIM), órgão suplementar da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e filiado à
REDOR, seria a entidade responsável pela formulação do Programa de Assessoria de Gênero
(PAGE) do Pró-Gavião e implementação das ações com enfoque de gênero. No Pró-Gavião, a
estratégia de operacionalização do enfoque de gênero era garantir a participação ativa das
mulheres e homens no processo de desenvolvimento rural, de forma sustentável, através da
incorporação da perspectiva de gênero por todos os componentes e ações do Projeto (COSTA;
SARDENBERG; PASSOS, 1998)50.
É necessário mencionar que a incorporação do enfoque de gênero nos Projetos
executado pela CAR, tanto no Pró-Gavião como também no Projeto Gente de Valor, se deu
por imposição do FIDA, já que, desde os anos 1990, as questões de gênero foram
incorporadas na formulação de seus desenhos e estratégias de ação. Logo, seus parceiros
devem incorporar a perspectiva de gênero nos projetos de desenvolvimento rural sustentável,
por ele financiados. Precisamos, porém, ressaltar que mesmo a incorporação teórica da
perspectiva de gênero na formulação desses dois Projetos encontrou barreiras, quanto mais a
sua adoção na prática e a efetiva aplicabilidade nas ações desenvolvidas pelo Pró-Gavião e
pelo Gente de Valor.51
50
51
É o núcleo de estudos feministas mais antigo do Brasil, criado em maio de 1983 na Universidade
Federal da Bahia (UFBA). O NEIM está vinculado ao Mestrado em Ciências Sociais da UFBA,
Disponível em: <http://www.neim.ufba.br/wp/apresentacao/>. Acesso em: 21 maio 2014.
Cito os trabalhos nos quais essas barreiras foram refletidas e analisadas: SARDENBERG, Cecilia.
Migrações perigosas: as (des)aventuras semânticas do conceito de gênero nos projetos e políticas
para mulheres no Brasil. In: GONÇALVES, E. et al. (Org.). Iguais? gênero, trabalho e lutas
sociais, Goiânia: PUC Goiás, p. 19-48, 2014; Da transversalidade à transversalização de gênero. In:
ALVES, I. et al. (Org.). Travessias de gênero na perspectiva feminista. Salvador: NEIM/EDUFBA,
2010, p. 37-73; Liberal vs liberating empowerment: a Latin American perspective. Pathways
Working Paper 7, Pathways of Women’s Empowerment, Brighton, UK: IDS- Institute of
Development Studies, 2009; Liberal vs liberating empowerment: a latin american feminist
85
2.4.1
Estratégias de gênero do Projeto Gente de Valor
É necessário salientar que a intervenção em gênero por dentro da proposta geral
do Projeto Gente de Valor adotou a mesma proposta construída durante a execução do PróGavião, seguindo as duas estratégias centrais que nortearam todas as ações desde o início do
projeto. A primeira foi a transversalidade do tema de gênero, por dentro de todas as ações dos
Componentes Produtivo e de Mercado e do Capital Humano e Social previstas nos projetos de
desenvolvimento subterritorial. A segunda estratégia foi a construção de um processo de
formação específica com enfoque de gênero, voltado, principalmente, para as mulheres e suas
organizações52
No início da intervenção do PGV, para o avanço da proposta de equidade de
gênero e empoderamento das mulheres envolvidas, foi fundamental a decisão, pela
coordenação do Projeto, depois de fortes argumentos e da orientação do consultor do FIDA na
época, de promover a igualdade de oportunidades para mulheres e homens por meio das ações
afirmativas53, entendendo essas ações afirmativas como medidas e orientações do governo, ou
melhor, do Projeto, para que os grupos de pessoas tenham seus direitos respeitados, já que na
ausência destas medidas, permaneceriam excluídos. Estas medidas tinham o objetivo de
retificar desigualdades sociais com base no gênero, para possibilitar o acesso das mulheres a
processos de formação e a empregos, antes a elas negados. Propunham-se, também, a garantir
a cota de 50% de mulheres e 50% de homens e de 30% de jovens (homens e mulheres) em
todas as ações promovidas pelo Projeto, o que foi determinante para a inclusão das mulheres
52
53
perspective on conceptualising women’s empowerment. IDS Bulletin, v. 39, p. 18-27, 2008;
Introducing gender sensitizing to elementary school teachers in rural Bahia, Brazil. In:
THEHERANI-KRÖNER, P.; SCHMITT, M.; HOFFMANN-ALTMANN, U. (Ed.). Knowledge,
education and extension for women in rural areas. Berlin: Humboldt-Universität zu Berlin, 2000.
p. 46-54; e SARDENBERG, Cecilia; COSTA, Ana Alice; PASSOS, Elizete. Rural development in
Brazil: are we practising feminism or gender? Gender and Development, v. 7, n. 3, p. 28-38, 1999;
Análise crítica do Pró-Gavião na perspectiva de gênero. BAHIA, CAR/SEPLANTEC, 1998,
documento interno.
SIQUEIRA, Ana Elizabeth S.S. Plano de Ação em Gênero: Projeto Gente de Valor, 2010, p. 8.
Entendidas como uma política focal do governo que aloca recursos em benefício de pessoas
pertencentes a grupos discriminados (mulheres, negros/as, homossexuais, etc.) e vitimados pela
exclusão socioeconômica no passado ou no presente. “Trata-se de medidas que têm como objetivo
combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, aumentando a
participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens
materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural”. GRUPO DE ESTUDOS
MULTIDISCIPLINARES DA AÇÃO AFIRMATIVA (GEMAA). Ações afirmativas, 2011.
Disponível
em:
<http://gemaa.iesp.uerj.br/index.php?option=com_k2&view=item&layout=item&id=1&Itemid=21
7>. Acesso em: 14 maio 2014.
86
agricultoras. Na contratação da equipe técnica, o desafio foi assegurar o acesso de 50% de
mulheres técnicas agrícolas às vagas, na perspectiva de abrir fendas em uma área de quase
total domínio masculino.
Para enfrentar o desafio de promover a equidade de gênero em todas as ações
desenvolvidas no projeto, a estratégia metodológica foi trabalhá-la de forma transversal.
A transversalidade do tema de gênero é vista de forma inovadora, inclusiva, ao
adotar a viabilização da inclusão social, a equalização das oportunidades e garantir que o
recorte transversal de gênero esteja presente por dentro da estrutura de execução do projeto e
de todas as ações dos Componentes Produtivo e de Mercado e do Capital Humano e Social,
conforme o modo como se organiza o Projeto. Reforçando o que já foi dito no primeiro
capítulo, entendo a transversalização do enfoque de gênero como uma estratégia política e não
só um procedimento técnico para desencadear um processo de discussão interna no PGV
sobre as questões de gênero. Esta estratégia “obrigou” que o enfoque de gênero estivesse
presente em todas as ações, apesar das dificuldades da coordenação, dos técnicos e técnicas
em entender a importância e necessidade de trabalhar o enfoque de gênero, partindo do
reconhecimento da existência de relações hierárquicas de gênero transformadas em práticas
sociais de desigualdades entre homens e mulheres dentro da própria estrutura do PGV.
O
grande
desafio
da
estratégia
da
transversalização
é
incorporar,
sistematicamente, a temática de gênero por dentro das atividades produtivas, organizativas,
políticas, culturais e ambientais, construindo um novo olhar para o campo das relações
humanas como estratégia fundamental para a promoção do desenvolvimento rural e não
deixar que o enfoque de gênero fique invisível ou não aconteça no interior das ações dos
componentes. Para não incorrer neste risco, a assessoria de gênero, instância responsável na
estrutura do PGV para elaborar e coordenar as ações com o enfoque de gênero, promoveu
várias reuniões de sensibilização das equipes de técnicos e técnicas sobre a temática de
gênero. Nessas reuniões, discutia-se como, no cotidiano das ações a serem desenvolvidas seja
dos Componentes de Desenvolvimento de Capital Humano e Social ou do Desenvolvimento
Produtivo e do Mercado, a transversalidade de gênero deveria estar sendo trabalhada pelos
técnicos e técnicas. Estes momentos de sensibilização foram insuficientes para cumprir com
seu objetivo, principalmente porque a equipe técnica não tinha interesse sobre as questões de
gênero.
Nas reuniões com a equipe técnica de cada escritório, refletiu-se como seria a
execução dos projetos com o enfoque de gênero de forma transversal, por dentro das metas
previstas no produtivo, ambiental e sociocultural, buscando construir um “olhar de gênero”
87
individual e coletivo. Estas reuniões forçaram os técnicos e técnicas a pensar em como se dão
as relações de gênero em suas vidas e no dia a dia do trabalho na área rural. Como resultado
deste processo de reflexão, cada equipe dos sete escritórios, a partir da sua realidade, elaborou
seu Plano Operativo com o enfoque de gênero. Esta estratégia impôs aos técnicos e técnicas o
exercício de elaborar ações e atividades com esta perspectiva. A ideia era favorecer a atuação
do Projeto em situação de desigualdade entre homens e mulheres que, antes deste processo,
era invisível aos olhos da equipe técnica, através de atividades como: reuniões dos conselhos
e comitês, participação na associação comunitária, quintais produtivos, roças comunitárias
etc., dando visibilidade às mulheres e projeção para o reconhecimento e fortalecimento de
suas capacidades.
Em 2010, foi elaborado, pela assessoria de gênero, o Plano de Ação em Gênero do
Projeto Gente de Valor, a partir dos Planos Operativos de cada escritório, que serviu para
orientar a maneira pela qual o trabalho com o enfoque de gênero do PGV deveria possibilitar
a equidade entre homens e mulheres e o empoderamento das mulheres e jovens. Para o
avanço do enfoque de gênero por dentro da estrutura do Projeto, foi necessário e essencial
desenvolver primeiro com os técnicos e técnicas o processo de sensibilização e capacitação
sobre as questões de gênero. Porém não houve uma formação teórica específica, focada só em
gênero para aprofundar este assunto de forma sistemática. A formação em gênero sempre foi
realizada com interfaces com outras temáticas desenvolvidas pelos componentes produtivo e
social, por exemplo: gênero e segurança alimentar, gênero e agroecologia, gênero e quintais
produtivos, gênero e associativismo.
A equipe técnica, formada por assistente social e pedagoga, do Componente de
Desenvolvimento de Capital Humano e Social, foi a que ficou responsável por trabalhar nas
comunidades com as famílias, com os homens e as mulheres a equidade de gênero e o
empoderamento das mulheres. O processo de sensibilização teve início com os encontros de
mulheres, que aconteceram nos subterritórios54, refletindo e visibilizando as contribuições das
mulheres agricultoras. Através do trabalho específico com as mulheres, estas se prepararam e
se capacitaram para a participação nos processos e espaços sociais representativos com uma
maior consciência de si e de seu papel, ocupando cargos de poder com autonomia.
Como estratégia metodológica, buscou-se assegurar a realização das “Cirandas
das Crianças”: espaço educativo e recreativo para as crianças, paralelo às atividades de suas
54
Conjunto de três ou quatro comunidades com características e identidades culturais semelhantes.
88
mães, uma ação afirmativa para oportunizar a participação das mulheres de forma integral, o
quanto possível, despreocupadas com seus filhos e filhas.
Essas ações estratégicas foram importantes para ir rompendo com os estereótipos
de gênero, mostrar as mulheres como profissionais e possibilitar o acesso das mulheres
técnicas e agricultoras às atividades produtivas e organizativas, consideradas na zona rural
reduto de quase exclusivo domínio masculino.
89
3
MULHERES AGRICULTORAS FAMILIARES NO PROJETO GENTE DE
VALOR
3.1
CONTEXTUALIZAÇÕES DA ÁREA ESTUDADA/PESQUISA
Durante a execução do Projeto Gente de Valor, enquanto assessora de gênero,
ficava a me questionar, a partir das observações in loco e dos relatos das mulheres
agricultoras familiares que participaram dos encontros de mulheres, das “rodas de conversas”
e da sistematização de experiências – realizada entre outubro de 2011 a março de 2012 – se as
mulheres agricultoras que estavam participando da maioria das atividades desenvolvidas – de
formação, capacitações específicas na área produtiva ou social (pedreiras, gestão de convênio,
associativismo e outras) – e, ao mesmo tempo, assumindo cargos à frente das associações ou
dos empreendimentos comunitários estavam, de fato, empoderadas e como experimentavam o
processo de empoderamento pessoal, social e político. E, ainda, se o preconceito enfrentado
no cotidiano das relações de gênero, na sociedade, na família, no trabalho, as levou a perceber
que o pessoal é político. Foram estes questionamentos que acabaram me levando ao Mestrado
no NEIM. Busco responder a estas dúvidas por meio deste estudo com autobiografias e
narrativas de vida, respaldado por reflexões no campo da antropologia.
Entendo História de Vida como um método, dentro da metodologia qualitativa
biográfica, que visa apreender as articulações entre a história individual e a história coletiva.
A escolha desses dois instrumentos – história de vida e grupo focal – tem relação com a
prática pedagógica da pesquisadora, antes educadora popular, e por acreditar na importância e
necessidade de proporcionar espaços alternativos para ouvir a voz dessas mulheres rurais que,
no seu cotidiano, são tão oprimidas e desprestigiadas. Estes instrumentos nos proporcionaram
conhecer a versão delas sobre os grandes e pequenos acontecimentos de suas vidas.
O primeiro passo foi definir a área da pesquisa, já que o PGV abrangeu duas
regiões – a Nordeste e a Sudoeste da Bahia. A área de maior abrangência, porém, foi na
região Nordeste, com aproximadamente 77% da área total do projeto. Este foi o motivo para
delimitar a pesquisa nesta região. Dentre os 26 municípios integrantes da Região Nordeste,
todos os seis municípios escolhidos (Novo Triunfo, Fátima, Banzaê, Ribeira do Amparo,
Jeremoabo e Santa Brígida) fazem parte do Programa do Governo Federal Território da
90
Cidadania Semiárido Nordeste II55. Os cinco escritórios do PGV cobrem esta região Nordeste,
com sede em Abaré, Euclides da Cunha, Ribeira do Pombal, Cícero Dantas e Jeremoabo.
No Nordeste da Bahia, predomina o bioma caatinga, região chamada de “sertão”.
O clima é tropical semiárido, que alterna um período seco (abril/maio a setembro/outubro) e
outro chuvoso (outubro/novembro a março/abril) e se caracteriza por grande irregularidade do
período chuvoso e por secas que podem ser rigorosas. O sistema de cultivo agrícola
predominante
é
o
de
subsistência.
As
atividades
agrícolas
são
desenvolvidas,
predominantemente, em regime de chuvas e são voltadas, principalmente, para lavouras
alimentares como mandioca, milho e feijão, com comercialização apenas da produção
excedente, muitas vezes incerta. É importante, também, a pecuária extensiva, de bovinos, mas
sobretudo de caprinos e/ou ovinos (10 a 40 cabeças por família), para o consumo da casa e
reserva para eventualidades, em pequenas propriedades de até 100 ha em área de caatinga.
A área da pesquisa faz parte do Território Semiárido Nordeste II – BA, composto
por 18 municípios56, em uma área total de 16.056,70 km². A população do território é de
407.964 habitantes dos quais 224.676 vivem na área rural, o que corresponde a 55,07% do
total. O território possui 55.761 agricultores familiares, 668 famílias assentadas da Reforma
Agrária, três comunidades quilombolas e três terras indígenas57.
Dentre os 18 municípios que formam o Território Semiárido Nordeste II, estamos
focando nossa pesquisa em seis municípios que, juntos, apresentam uma área total de
7.019,925 km². Segundo o IBGE (2013)58, as populações estimadas, para cada um destes
municípios são: Santa Brígida – 15.381 habitantes; Jeremoabo – 40.587 habitantes; Novo
Triunfo – 15.943 habitantes; Fátima – 18.524 habitantes; Banzaê – 12.534 habitantes e
Ribeira do Amparo – 15.186 habitantes.
55
56
57
58
São 120 os Territórios da Cidadania, um Programa do Governo Federal lançado em 2008, que tem
como objetivos promover o desenvolvimento econômico e universalizar programas básicos de
cidadania por meio de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável. Disponível em:
<http://www.territoriosdacidadania.gov.br/dotlrn/clubs/territriosrurais/xowiki/oprograma>. Acesso
em: 30 jan. 2014.
Santa Brígida, Jeremoabo, Pedro Alexandre, Coronel João Sá, Sítio do Quinto, Euclides da Cunha,
Novo Triunfo, Antas, Adustina, Paripiranga, Cícero Dantas, Fátima, Banzaê, Ribeira do Pombal,
Heliópolis, Ribeira do Amparo, Cipó e Nova Soure.
Fonte: Sistema de Informações Territoriais (HTTP://sit.mda.gov.br). Portal da cidadania. Governo
Federal. Disponível em: <http://www.territoriosdacidadania.gov.br/dotlrn/clubs/territriosrurais/
semiaridonordesteiiba/one-community?page_num=0>. Acesso em: 11 jan. 2014.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA ˗˗ IBGE. Estimativas
populacionais para os municípios brasileiros em 01.07.2013. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2013/estimativa_dou.shtm>.
91
Segundo os dados do Estudo de Base realizado pelo PGV (PRAXIS, 2009), o
universo populacional do projeto está concentrado na região Nordeste, com 26 municípios e
28.204 moradores, dos quais 14.468 homens (51,3% da população) e 13.569 mulheres
(48,1%), representando 78,1% do total pesquisado. O Projeto atendeu um total de 282
comunidades, das quais 240 da região Nordeste. Nos municípios selecionados para a pesquisa,
foram beneficiadas 9 comunidades em Banzaê, 8 em Fátima, 12 em Jeremoabo, 7 em Novo
Triunfo, 11 em Ribeira do Amparo e 10 em Santa Brígida.
As comunidades desses municípios apresentam especificidades socioculturais que
as caracterizam como tradicionais59 e negras ou quilombolas. As comunidades tradicionais de
agricultura familiar visitadas foram Baixa do Mocó e Canabrava, no município de Santa
Brígida; comunidade de Bananeirinha, no município de Jeremoabo; Comunidade Baixa da
Roça, em Novo Triunfo; Pedrinha e Raso Pintado, no município de Fátima; e a comunidade
Bariri, em Ribeira do Amparo. A única comunidade quilombola visitada foi Maria Preta,
localizada no município de Banzaê.
O tamanho médio da população por município beneficiada pelo Projeto Gente de
Valor era de 1.062 pessoas. A maioria dos municípios apresenta predominância do
contingente masculino, que supera em 6,2% o feminino, situação que se repete na Região
Nordeste. Podemos comprovar esta predominância ao analisarmos os dados dos municípios
na Tabela 1.
Tabela 1 – População beneficiada dos municípios integrantes do Projeto Gente de Valor
selecionados para a pesquisa ˗˗ Estado da Bahia, 2009
População
Beneficiada (no)
Homens
(no)
Homens
(%)
Mulheres
(no)
Mulheres
(%)
Banzaê
1.073
543
50,6
527
49,1
Fátima
1.204
631
52,4
564
46,8
Jeremoabo
1.541
808
52,4
728
47,2
564
292
51,8
266
47,2
Ribeira do Amparo
1.099
593
54,0
502
45,7
Santa Brígida
1.036
557
53,8
475
45,8
Município
Novo Triunfo
Fonte: CAR/ASVG, Cadastro de Domicílio, 2009 – Estudo de Base (PRAXIS, 2009)
59
O PGV decidiu utilizar a expressão “comunidades tradicionais” para aquelas comunidades de
agricultores e agricultoras familiares do semiárido, definidas por uma caracterização preliminar dos
aspectos socioeconômicos, do uso e posse da terra e da infraestrutura básica. E utilizou outras
especificidades culturais para definir as comunidades: negras ou quilombolas, fundo de pasto,
indígenas e ribeirinhas.
92
O município de Jeremoabo apresenta o maior número de pessoas beneficiadas:
1.541 pessoas. Já o município de Novo Triunfo com 564 pessoas beneficiadas, das quais 292
homens (51,8%) e 266 mulheres (47,2%) é a menor expressão numérica de habitantes
encontrada entre os municípios selecionados.
Os indicadores sociais sintéticos permitem ter informações da situação dos
municípios selecionados com relação ao IDH60. O IDH médio do Território é de 0,58 e o dos
seis municípios pesquisados varia entre 0,579 e 0,512, considerado segundo as classificações
oficiais, um IDH médio. O município de Banzaê apresenta o IDH mais alto (0,579) entre
esses municípios, enquanto o município de Ribeira do Amparo apresenta o mais baixo
(0,512), seguido logo após pelo município de Santa Brígida com IDH de 0,546.
Ao analisar as diferenças de desenvolvimento humano entre os municípios
selecionados na pesquisa, observo que a esperança de vida é maior (0,769) em dois
municípios, Banzaê e Novo Triunfo, seguidos, logo atrás, por Santa Brígida (0,710), o que
significa que, nestes municípios, as pessoas têm uma expectativa de vida mais longa e
saudável do que no município de Fátima, que apresenta o índice mais baixo (0,686). O
município de Jeremoabo tem a maior renda (0,561) e Ribeira do Amparo, a menor (0,503),
quando comparados aos outros municípios.
60
O IDH é constituído por três pilares (saúde, educação e renda), indicando um valor quantitativo
para a renda Produto Interno Bruto (PIB) per capita, longevidade (expectativa de vida ao nascer) e
educação, referente a cada município. O índice varia de zero (nenhum desenvolvimento humano) a
um (desenvolvimento humano total), portanto, quanto mais próximo de um (1) ele é mais alto. Para
a avaliação da dimensão longevidade, o IDH municipal considera a esperança de vida ao nascer,
mostra o número médio de anos que uma pessoa nascida naquela localidade no ano de referência
(no caso, 2000) deve viver. O cálculo do IDH municipal para a dimensão educação considera dois
indicadores com pesos diferentes: a taxa de alfabetização de pessoas acima de 15 anos de idade tem
peso dois e a taxa bruta de frequência à escola peso um. O primeiro indicador é o percentual de
pessoas com mais de 15 anos capaz de ler e escrever um bilhete simples, considerados adultos
alfabetizados, por este motivo a medição do analfabetismo se dá a partir dos 15 anos. O segundo
indicador é o somatório de pessoas (independentemente da idade) que frequentam os cursos
fundamental, secundário e superior e, também, os alunos de cursos supletivos de primeiro e de
segundo graus, de classes de aceleração e de pós-graduação universitária; é dividido pela população
na faixa etária de 7 a 22 anos do município. No critério usado para a avaliação da dimensão renda
municipal per capita, ou seja, a renda média de cada residente no município, soma-se a renda de
todos os residentes e divide-se o resultado pelo número de pessoas que moram no município
(inclusive crianças ou pessoas com renda igual a zero). Porém, o IDH apresenta imperfeições e
limitações, sendo criticado em alguns pontos em seu processo de construção pela natureza distinta
de suas variáveis; sua fórmula de cálculo apresenta limites quanto a agregabilidade e
desagregabilidade de informações; e à falta de um modelo teórico explícito de causa e efeito que
justifique a aglutinação de variáveis de naturezas distintas em um indicador único. (MOURA,
SAUER, 2009, p. 115). Disponível em: <http://www.frigoletto.com.br/GeoEcon/idhmcalc.htm>.
Acesso em: 20 maio. 2014.
93
Na Tabela 2, apresento o índice de desenvolvimento humano dos municípios onde
moram as mulheres pesquisadas.
Tabela 2 – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) dos municípios integrantes
do Projeto Gente de Valor selecionados para a pesquisa ˗˗ Estado da Bahia, 2010
Município
IDHM
Banzaê
Fátima
Jeremoabo
Novo Triunfo
Ribeira do Amparo
Santa Brígida
0,579
0,559
0,547
0,554
0,512
0,546
IDHM
Renda
0,539
0,554
0,561
0,513
0,503
0,533
IDHM
Longevidade
0,769
0,686
0,689
0,769
0,694
0,710
IDHM
Educação
0,468
0,459
0,424
0,430
0,384
0,431
Nota: Dados dos censos 1991, 2000 e 2010
Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano Brasil 2013. Disponível em:
<http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/Ranking-IDHM-Municipios-2010.aspx>. Acesso em: 11 jan. 2014.
Na perspectiva de auferir o avanço na qualidade de vida das pessoas desses
municípios, é preciso considerar outras características sociais, culturais e políticas que
influenciam a qualidade da vida humana, além da renda, que é um indicador importante,
porém como um dos meios do desenvolvimento e não como seu fim. Já o acesso à educação,
ao conhecimento, nos leva a olhar diretamente para as pessoas (homens e mulheres), suas
oportunidades e capacidades. Diante do IDHM Educação desses municípios, observo que o
acesso à educação é maior em Banzaê (0,468) e menor em Ribeira do Amparo (0,378),
quando comparados com os outros municípios. Porém, a diferença numérica do IDH-E entre
os seis municípios é muito pequena.
Segundo os dados do Estudo de Base do Projeto Gente de Valor (PRAXIS, 2009),
sobre o nível de escolaridade para o conjunto da população beneficiada, 43,8% dos moradores
não têm como acessar os canais de informação que lhe permitam maior inclusão social. Dos
9.962 analfabetos recenseados pela pesquisa, na faixa com idade superior a 25 anos, encontrase a maioria do grupo em questão, totalizando 6.422 pessoas e 64,5% do total. A proporção de
analfabetos é elevada, alcançando 27,6% da população (a média brasileira, em 2000, era igual
a 16,7%). A este grupo em situação mais precária, seguem os 16,2% que declararam apenas
saber ler e escrever, excluídos do grupo seguinte, daqueles que completaram desde a primeira
série até a quinta série do Ensino Fundamental. Outro dado importante é que, das pessoas que
apenas sabem ler e escrever – um total de 5.843 – a grande maioria (77%) está na faixa de
idade superior a 25 anos, representada por 4.500 adultos. Portanto, a concentração neste
subgrupo de idade é bem mais expressiva do que no caso do analfabetismo. (Gráfico 1).
94
Gráfico 1 – Distribuição percentual da população segundo a escolaridade, PGV, 2009
Fonte: CAR/ASVG, Cadastro de Domicílio, 2009 – Estudo de Base (PRAXIS, 2009)
No Gráfico 1, considerando os moradores que declararam algum nível de
escolaridade: 35,1% do universo populacional possuem de 1ª a 5ª série; 10,4% estão na faixa
de 6ª a 9ª série; no nível médio são 7,2%, completo ou incompleto; e 0,7%, no nível superior
completo ou incompleto. Estes dois grupos com escolaridade mais elevada totalizam apenas
2.874 pessoas em todo o universo populacional. Ao se focar o subgrupo com maior
escolaridade (médio e superior, completo ou incompleto), vê-se que essa população reside
predominantemente nas comunidades tradicionais (2.027 pessoas) e negras/quilombolas (602
pessoas), representando 91,5% do contingente desta categoria. As comunidades tradicionais e
negras/quilombolas acompanham o desempenho regional, devido ao seu elevado peso no
universo populacional.
A Região Nordeste do PGV totaliza 5.608 pessoas analfabetas que correspondem
a 50,39% do total e apresenta um total de 3.880 pessoas com mais de 14 anos que sabem ler e
escrever.
Tabela 3 – Taxa de analfabetismo ampla da população com mais de 14 anos, por município
integrante do Projeto Gente de Valor selecionado para a pesquisa ˗˗ Bahia, 2009
Banzaê
153
Sabem ler e
escrever
180
333
Taxa de
analfabetismo (%)
51,23
Fátima
229
219
448
53,46
Jeremoabo
319
246
565
53,15
Novo Triunfo
152
76
228
64,41
Ribeira do Amparo
200
76
276
40,71
Santa Brígida
208
114
322
45,8
Região/Município
Analfabetos
Fonte: CAR/ASVG, Cadastro de Domicílio, 2009 – Estudo de Base
Subtotal
95
Na Tabela 3, podemos observar que Novo Triunfo (64,41%) é o município que
apresenta taxa mais elevada do que a média regional. Ainda com relação à escolaridade, quase
todos os municípios apresentam, pelo menos, 200 pessoas nesta situação de analfabetismo
amplo (analfabetismo e apenas saber ler e escrever), merecendo destaque em termos
absolutos, Fátima (448) e Jeremoabo (565).
3.2
CARACTERIZAÇÃO DAS MULHERES PESQUISADAS
Realizada uma breve caracterização do campo e apontadas algumas características
em torno do empoderamento das mulheres, o próximo passo é responder quem são essas
mulheres, quais suas principais características e como vivem. Para adentrar o universo das
entrevistadas, retomo aqui anotações e observações realizadas quando das primeiras
experiências de contato com as mulheres no campo. Com relação à cor da pele/raça, as
próprias entrevistadas se autodeclararam.
1.
Maria dos Anjos, 24 anos, nasceu no dia 4 de maio de 1989, no município de
Santa Brígida. Mora na comunidade de Canabrava, no Subterritório Sertão de Valor. É
solteira, vive uma união consensual há cinco anos e tem uma filha de quatro anos de idade.
Como profissão, é agricultora, mas a sua ocupação é artesã. Tem oito irmãos adotivos, pois
foi criada por um tio e sua esposa, que trabalham como vaqueiro e lavadeira, respectivamente.
Ela concluiu o ensino médio, não participa da associação, somente do grupo de artesanato.
2.
Maria Alice, 26 anos, nasceu no dia 11 de janeiro de 1988, no município de
Ribeira do Amparo. Morou, por 16 anos, em São Paulo e, atualmente, na comunidade Bariri,
no Subterritório Unidos do Brar. É solteira e vive uma união consensual há 10 anos. Não tem
filhos. Como profissão, é agricultora e sua ocupação é artesã do fiapo. Tem cinco irmãos e
seus pais são separados. Sua mãe é doméstica, seu pai pedreiro e ambos moram em São Paulo.
Ela concluiu o ensino médio e exerce o cargo de secretaria na Associação Comunitária e
Cultural do Bariri, Rio Seco, Alto e Rio Quente de Cima.
3.
Maria Esperança, 29 anos de idade, nasceu no dia 17 de janeiro de 1985, no
município de Jeremoabo. Mora na comunidade Bananeirinha, no Subterritório Ribeirinhos. É
casada e tem dois filhos: um menino e uma menina. É agricultora e apicultora, mas,
atualmente, também é estudante do curso técnico em agropecuária. Ela já tem o ensino médio
completo. Tem cinco irmãos e seus pais são agricultores. Ela exerce o cargo de vicepresidente na Associação Comunitária Bananeirinha e Adriana.
96
4.
Maria das Dores, 31 anos, nasceu no dia 28 de junho de 1982, no município
de Banzaê. Mora na comunidade quilombola Maria Preta, Subterritório Juntos Venceremos.
Seu estado civil é solteira, mas está recém-separada de uma união consensual que durou doze
anos. Desta união, tem um filho de nove anos. De profissão, é agricultora e também artesã, e
concluiu o magistério. Tem quatro irmãos e mãe e pai agricultores. Na Associação das
Famílias Agricultoras Remanescente do Quilombo de Maria Preta, exerce o cargo de
“coordenadora de gênero”.
5.
Maria da Paz, 32 anos, nasceu no dia 2 de junho de 1981, no município de
Fátima. Mora na comunidade Fazenda Pedrinhas, Subterritório Nossa Senhora do Bom Passo.
Seu estado civil é solteira e tem um filho de quatro anos de idade. De profissão é agricultora,
mas às vezes, quando tem encomenda, assume a ocupação de costureira na comunidade. Tem
o Ensino Fundamental II incompleto, tendo estudado até a 7ª série. Têm três irmãos, todos
morando em São Paulo. Seu pai é agricultor e sua mãe é falecida. Exerce o cargo de tesoureira
na Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Fazenda Pedrinhas.
6.
Maria dos Prazeres, 32 anos, nasceu no dia 1 de junho de 1981, no município
de Novo Triunfo. Mora na comunidade Baixa da Roça, Subterritório Serra Redonda. Seu
estado civil é solteira, mas vive uma união consensual há 12 anos, da qual tem duas filhas. É
agricultora de profissão mesmo tendo concluído o curso de pedagogia do ensino superior.
Tem seis irmãs e seus pais são agricultores. Na Associação Comunitária dos Produtores
Rurais de Baixa da Roça assume o cargo de presidente.
7.
Maria do Sossego, 38 anos, nasceu no dia 15 de novembro de 1975, no
município de Santa Brígida. Mora na comunidade de Canabrava, Subterritório Sertão de
Valor. É solteira e convive com o marido há 20 anos. Desta união, tem dois filhos: um menino
e uma menina. É agricultora, e a sua ocupação é de merendeira na escola da comunidade; é
também artesã. Tem o Ensino Fundamental II incompleto, pois estudou só até a 5ª série. Tem
seis irmãos e seus pais são agricultores. Exerce, de fato, o cargo de tesoureira na Associação
Comunitária dos Produtores e Produtoras Rurais Unidos por Canabrava, mesmo seu nome não
constando oficialmente neste cargo. Também é a tesoureira do grupo do artesanato.
8.
Maria de Lourdes, 42 anos, nasceu no dia 25 de dezembro de 1972, no
município de Ribeira do Amparo. Mora na comunidade de Bariri, Subterritório Unidos do
Brar. É solteira, porém, vive sua terceira união consensual, esta há oito anos. Seu marido atual
mora em São Paulo e vem duas vezes ao ano. Tem um total de seis filhos, uma filha da
primeira união, dois da segunda união e três da atual. É agricultora de profissão e tem também
como ocupação ser artesã do fiapo. Iniciou o Ensino Fundamental I, mas fez apenas a 1ª série.
97
Tem sete irmãos e a mãe é agricultora. Seu pai é falecido, morreu em consequência do
alcoolismo. É sócia da Associação Comunitária e Cultural do Bariri, Rio Seco, Alto e Rio
Quente de Cima.
9.
Maria Amélia, 50 anos, nasceu em 20 de junho de 1963, no município de
Fátima. Mora na comunidade Raso Pintado, Subterritório Boa Esperança. Seu estado civil é
casada, porém está separada há alguns anos por não aguentar a violência do ex-marido
alcoólatra. Tem oito filhos, cinco homens e três mulheres. É agricultora de profissão, mas tem
como ocupação cuidar da casa e ser costureira. Tem o Ensino Fundamental I completo, fez até
a 4ª série. Seu pai morreu quando ela era ainda pequena; sua mãe, que era agricultora, casouse novamente e teve oito filhos. Ela afirma que foi ela quem criou os irmãos para que a mãe
pudesse trabalhar na roça ou como doméstica. Na Associação Comunitária dos Agricultores
Familiares de Raso Pintado e Lage da Boa Vista ela assume o cargo de tesoureira.
10. Maria José 50 anos, nasceu no dia 8 de abril de 1963, no Estado de Alagoas.
Mora na comunidade Baixa do Mocó, Subterritório Os Batalhadores. É casada há 29 anos.
Têm sete filhas, cinco moram em São Paulo, uma em Pernambuco e apenas a mais nova mora
com ela. É agricultora de profissão e de coração, diz. Concluiu o Ensino Fundamental I, fez
até a 4ª série. Seus pais são agricultores e, atualmente, estão separados. Sua mãe teve quinze
filhos, dos quais vivos são sete homens e três mulheres. No período de nossa pesquisa (2009 a
2012), exercia o cargo de presidente na Associação dos Moradores da Comunidade Beleza;
atualmente, é apenas sócia.
Dentre as dez mulheres entrevistadas, duas têm o ensino médio completo e
afirmam ser de origem urbana, uma da cidade de Santa Brígida e a outra de São Paulo, ambas
vindas na adolescência para a comunidade rural onde moram. As outras oito entrevistadas
afirmam ser de origem rural: sete nasceram nas comunidades onde moram ou em
comunidades vizinhas e uma, no estado de Alagoas.
As duas entrevistadas mais jovens são Maria Alice, 25 anos, e Maria dos Anjos,
24 anos. A primeira de cor parda, é solteira, vive há dez anos em união consensual, sem filhos
e mora na comunidade de Bariri, município de Ribeira do Amparo. Maria Alice é alegre e
muito inteligente. Artesã, trabalha com fiapo de pano fazendo almofadas, redes, tapetes e diz
que, através do grupo do artesanato, a comunidade ficou mais unida. Ela assume o cargo de
secretária, na Associação Comunitária e Cultural do Bariri, Rio Seco, Alto e Rio Quente de
Cima. Durante a entrevista, lembrou-se da infância em São Paulo, do vício de jogar bingo de
sua mãe e da vida dura que o pai levava para cuidar da casa e dos filhos. É a filha mais velha e
com apenas 9 anos tinha de assumir o cuidado com os irmãos para que seu pai pudesse
98
trabalhar como pedreiro. Já Maria dos Anjos nasceu na cidade de Santa Brígida, tem cor
parda, é solteira e vive há cinco anos uma união consensual da qual tem um filho. Maria dos
Anjos tem cabelos pretos e lisos, fala baixo, é tímida, mas participa do grupo do bordado
porque queria aprender a fazer crochê. Mora na comunidade de Canabrava e participa da
Associação Comunitária dos Produtores e Produtoras Rurais Unidos por Canabrava.
Maria do Sossego é da mesma associação que Maria dos Anjos, da qual é uma
das fundadoras, e também do mesmo grupo do bordado. Enquanto conversávamos, ela fazia
crochê na barra de um pano de prato do qual não levantava a cabeça enquanto respondia a
minhas perguntas. Tem 38 anos, é parda, tem dois filhos (um menino e uma menina), é
solteira, mas vive uma união consensual há 20 anos; estudou até a 5ª série. Ela assume a
responsabilidade de tesoureira no grupo do bordado. Afirma que começou a trabalhar na roça,
desde criança, para ajudar o pai e a mãe e que não sabe viver sem trabalhar.
A idade das mulheres entrevistadas varia entre 24 e 50 anos. Duas têm 50 anos,
Maria Amélia e Maria José. As duas estudaram até a 4ª série primária; mesmo assim,
assumiram cargos em sua comunidade. Maria Amélia é tesoureira da Associação
Comunitária dos Agricultores Familiares de Raso Pintado e Lage da Boa Vista, município de
Fátima. Maria José é da comunidade Baixa do Mocó, presidente da Associação dos
Moradores da Comunidade Beleza, município de Santa Brígida. Maria Amélia, que se diz
ruiva, é uma mulher sofrida, têm oito filhos, o marido era alcoólatra, sofreu violência
doméstica até que, finalmente, separou-se dele. Já Maria José, que afirma ser morena clara, é
uma mulher fisicamente forte, de mãos grossas, casada, teve sete filhas mulheres, trabalha na
roça com hortaliça no quintal produtivo e tem orgulho de ser agricultora.
Das dez mulheres entrevistadas, nove são identificadas, pelo projeto, com a
mesma especificidade de comunidade tradicional de agricultura familiar. Apenas uma
pertence a uma comunidade que se identifica como negra/quilombola, a comunidade Maria
Preta, no município Banzaê. Há quase vinte anos atrás, este município era terra indígena da
etnia Kiriri. A comunidade Maria Preta é de difícil acesso, escondida em um relevo de
baixada e esquecida do poder público, apesar da presença de alguns órgãos executantes de
projetos específicos.
Nossa entrevistada nesta comunidade é Maria das Dores, uma mulher jovem, de
31 anos de idade, que estudou, fez o magistério, é mãe de um filho e recém-separada. Na
ocasião da entrevista, como era a primeira vez em que eu estava naquela comunidade, ainda
não conhecia Maria das Dores. Depois de descermos uma pequena ladeira, chegamos à casa
dos pais dela, ao lado da qual ficava a casinha em que morava: à frente, uma grande árvore
99
onde a família e os vizinhos costumam se reunir para conversar. O pai dela estava deitado em
uma rede e, ao lado, três cadeiras à nossa espera, eu e a técnica que trabalhava com a
comunidade. Logo, a mãe dela apareceu e iniciamos a conversa explicando do que se tratava e
como seria a entrevista. Perguntei a Maria das Dores se a entrevista seria ali com todos juntos
ou se preferia estar sozinha; neste exato momento percebi em seu rosto o alívio e ela me
chamou para irmos até a sua pequena casa, apenas as duas. Maria das Dores é uma mulher
envergonhada que está vivendo uma fase de dor e tristeza pelo fim do seu casamento. Durante
a entrevista, falava da luta da Associação das Famílias Agricultoras Remanescentes do
Quilombo de Maria Preta, onde ela assume a coordenação de gênero e da necessidade de
continuar a organização para melhorar a vida na comunidade.
Com relação à cor da pele, apenas duas delas responderam com firmeza e com
orgulho serem negras; seis delas se definiram como pardas, apesar de ter percebido a dúvida
nesta afirmação; algumas, no início da entrevista, se disseram morenas. Apenas uma disse ser
branca e uma outra afirmou (perguntando-me, porém) ser ruiva.
Maria Esperança é uma das que afirmou ser negra. Ela é uma jovem de 28 anos,
tem dois filhos (um menino e uma menina), é casada, tem o ensino médio completo e está
fazendo o 3º ano do curso técnico em agropecuária. Além de agricultora, trabalha com
apicultura e foi Agente de Desenvolvimento Subterritorial (ADS) na comunidade
Bananeirinha, no município de Jeremoabo, pelo Projeto Gente de Valor. É católica e mora ao
lado da igreja, que ela varre e cuida para as missas e reuniões; sua entrevista foi realizada
dentro da igreja. Ela é falante, responsável e muito compromissada com as atividades da
comunidade.
A única entrevistada que afirmou ser branca foi Maria de Lourdes, 41 anos, que
estudou só a primeira série primária, é solteira, vive uma união consensual de oito anos, tem
seis filhos (cinco meninos e uma menina) e é artesã de fiapo de pano. Ela conta que participar
do grupo do artesanato era difícil, pois não tinha com quem deixar as crianças, o que se
resolveu com a creche do povoado. Relata, ainda, que passou fome e sofreu violência
doméstica e hoje enfrenta sozinha a dificuldade de criar os filhos. O marido trabalha em São
Paulo e vem duas vezes ao ano, segundo ela, fato muito comum na comunidade de Bariri,
município de Ribeira do Amparo, já que não há emprego na região.
Maria da Paz é solteira, parda, tem 32 anos e um filho, sua mãe morreu de câncer
e ela cuida do seu pai. É uma mulher forte, fisicamente, de olhos verdes e um sorriso bonito.
Gosta do trabalho de tesoureira, função que desenvolve na comunidade pela Associação dos
100
Pequenos Produtores Rurais da Fazenda Pedrinhas e de participar de alguns conselhos no
município de Fátima.
Quando perguntei qual a profissão dos pais às entrevistadas, oito delas disseram
que o pai e a mãe eram agricultores; uma respondeu que sua mãe já é falecida. As duas de
origem urbana afirmaram, uma, que o pai é pedreiro e a mãe, doméstica, e a outra, o pai é
vaqueiro e a mãe, lavadeira.
Ao perguntar sobre a profissão delas, percebo dúvidas nas respostas, apesar de
todas elas desenvolverem atividades agrícolas e morarem na zona rural. Dez são mulheres
rurais, mas apenas quatro afirmam ser agricultoras e demonstram prazer em sê-lo. No caso
das mulheres por mim entrevistadas, tanto agricultoras como não agricultoras, o ser mulher e
ser do ambiente rural são importantes fontes de significado da identidade. Porém, quando
perguntamos qual a atual ocupação, para a minha surpresa, apenas duas afirmam ter como
ocupação a agricultura. As outras informaram o seguinte: quatro são artesãs; duas são
professoras; uma é estudante; e a última declarou-se do lar.
A escolaridade é importante para analisar o processo de empoderamento dessas
mulheres. Duas não completaram o Ensino Fundamental I e duas conseguiram concluí-lo.
Outras duas não concluíram o Ensino Fundamental II, quatro concluíram o ensino médio e
uma o ensino superior. Esta última, Maria dos Prazeres, é uma mulher batalhadora, que
passou fome, lutou muito, fez sacrifício para cursar e concluir a faculdade de Pedagogia, do
que se orgulha muito. Ela é uma mulher alta, de cabelos longos e lisos, mãos grandes grossas
e fortes, que fala alto e firme quando está presidindo as reuniões da Associação Comunitária
dos Produtores Rurais de Baixa da Roça, no município de Novo Triunfo. Maria dos Prazeres
tem 32 anos, é parda, tem duas filhas, é solteira, em união consensual há 13 anos com o pai
das meninas, e é católica. O diferencial é que ela participou das Comunidades Eclesiais de
Base61,junto com algumas companheiras que mantêm o trabalho de organização comunitária
na comunidade Baixa da Roça.
O Quadro 2 traz informações sobre as mulheres agricultoras entrevistadas em
2013.
61
São grupos de cristãos leigos, geralmente pobres, que se reúnem, regularmente, nas casas de
famílias ou em centros comunitários, a fim de ouvir e aprofundar a Palavra de Deus, alimentar a
comunhão fraterna e assumir o compromisso cristão no mundo. Nasceram na década de 1960,
ligados principalmente à Igreja Católica, foram incentivados pela Teologia da Libertação após o
Concílio Vaticano II e se espalharam principalmente nos anos 1970 e 80 no Brasil e na América
Latina. Disponível em: <http://comunidade-cebs.blogspot.com.br/p/blog-page_9263.htmlonível>;
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Comunidades_Eclesiais_de_Base>. Acesso em: 30 jan. 2014.
101
NOME
(fictício)
Maria Alice
IDADE (em anos)
Quadro 2 – Informações gerais sobre as mulheres entrevistadas
Estado
Civil
No de
Filhos
Estado Conjugal Cor
Orientação
Sexual
Solt. Cas. SIM NÃO
25
Escolaridade
Profissão/
Ocupação
FI FII
união consensual Parda heterossexual agricultora/artesã
agricultora/
união consensual Parda heterossexual
professora
solteira
Parda heterossexual
agricultora
Maria dos Prazeres 32
2
Maria da Paz
32
1
Maria Amélia
50
8
Maria de Lourdes
41
6
Maria das Dores
31
1
Maria José
50
7
Maria Esperança
28
2
Maria dos Anjos
24
1
união consensual Branca heterossexual agricultora/artesã
agricultora/
separada
Preta heterossexual
professora
casada
Parda heterossexual
agricultora
agricultora/
casada
Preta heterossexual
estudante
união consensual Parda heterossexual agricultora/artesã
Maria do Sossego
38
2
união consensual Parda heterossexual agricultora/artesã
separada
M
C
S
Ribeira do Amparo
Novo Triunfo
I
Fátima
Ruiva heterossexual agricultora/do lar
Fonte: Pesquisa direta da autora realizada entre outubro e dezembro de 2013, como parte desta dissertação
Município
Fátima
I
Ribeira do Amparo
Magistério
Banzaê
Santa Brígida
C – Técnico
Agropecuário
C
I
Jeremoabo
Santa Brígida
Santa Brígida
102
3.3
DADOS QUANTITATIVOS E QUALITATIVOS
Foi beneficiada pelo PGV, uma população de 17.416 mulheres, nas regiões
Nordeste e Sudoeste da Bahia, em um percentual de 48,2% do total atendido. Na região
Nordeste, área da nossa investigação, 13.569 mulheres foram beneficiadas, atendendo a um
percentual de 48,1% do total de mulheres.
Segundo os dados do Estudo de Base realizado em 2009, quanto ao responsável
pelo domicílio, tem-se uma maior participação do gênero masculino, sendo 4.912 homens
(56,4%) e 3.800 mulheres (43,6%). Na área do projeto, de um modo geral, os homens
assumem, em maior proporção, a responsabilidade pela família. Porém, vale ressaltar a
elevada participação de mulheres que se declararam na condição de responsáveis pela família,
o que é característico das camadas mais pobres da população e/ou de comunidades onde está
presente o trabalho sazonal dos homens em outras regiões. O Gráfico 2 apresenta os dados de
responsáveis pelo domicílio segundo o gênero cruzados com a especificidade sociocultural o
que nos permite observar que os domicílios que são localizados nas comunidades Indígenas
(51,1%) e Negras/Quilombolas (48,7%) são os que apresentam maior número de mulheres
responsáveis pelo domicílio.
Gráfico 2 ˗˗ Distribuição percentual dos responsáveis pelo domicílio segundo o gênero,
por especificidade sociocultural – Projeto Gente de Valor, 2009
Fonte: CAR/ASVG, Cadastro de Domicílio, 2009. Relatório do Estudo de Base
Na região total do projeto, há predominância do contingente masculino, que
supera em 6,2% o feminino. Na consideração da distribuição etária, de acordo com as
especificidades socioculturais e sexo, apresentadas no Gráfico 3, quando comparado ao
masculino, verifica-se uma predominância do contingente feminino acima de 25 anos, em três
103
delas: fundo de pasto62 (56,5%); tradicional (54,0%) e negra/quilombola (44,2%). A
consideração adicional do gênero em relação à distribuição etária, apresentada no Gráfico 2,
permite destacar dois pontos principais, ambos na categoria ribeirinhos que, em primeiro
lugar, apresenta uma ausência de mulheres nas faixas de 0 a 7 anos e de 14 a 18 anos, em
relação às demais especificidades socioculturais, padrão que, de modo geral, sugere uma
possível maior emigração de mulheres jovens em direção a áreas urbanas, na faixa de 14 a 18
anos. Em segundo, esta especificidade sociocultural apresenta 40% de mulheres, uma
predominância do contingente feminino na faixa acima de 18 a 25 anos, em relação às demais
categorias.
Gráfico 3 – Distribuição etária dos moradores segundo a especificidade sociocultural e
sexo, Projeto Gente de Valor, 2009
Homens
Mulheres
Fonte: CAR/ASVG, Cadastro de Domicílio, 2009. Relatório do Estudo de Base.
62
“Constitui um sistema de ocupação coletiva de terras por comunidades, em geral com certo grau de
parentesco. Esta ocupação dá-se na forma de sistema Agrosilvopastoril”. COMISSÃO PASTORAL
DA TERRA et al. O Fundo de Pasto que queremos; política fundiária, agrícola e ambiental para os
fundos de pasto baianos. CPT e Centrais de Fundo de Pasto. Salvador, 2004, p. 1.
104
Conforme os dados do Estudo de Base, na região de atuação do PGV há uma
participação da mão de obra familiar de 56,3%. Mostra uma elevada expressão relativa da
força de trabalho familiar em todas as especificidades socioculturais. O mesmo padrão de
quase equivalência entre os gêneros com relação à mão de obra familiar se repete em todos os
municípios integrantes do projeto, sendo sempre o número de mulheres apenas ligeiramente
inferior ao dos homens. Verifica-se, também, um equilíbrio por gênero, neste indicador, uma
vez que as mulheres se aproximam bastante dos homens em números absolutos em todos os
contextos analisados. Este comportamento se amolda ao que seria esperado em comunidades
rurais mais pobres com base econômica na produção familiar (PRAXIS, 2009, p. 47).
Segundo o documento Resumo das Principais Realizações do Projeto Gente de
Valor (2013), várias ações foram realizadas no período de 2007 a 2012, beneficiando um total
de 12.397 famílias. O projeto realizou várias capacitações, consolidadas em três temáticas
Desenvolvimento Social e Organização63, Inclusão Produtiva64 e Recursos Hídricos65, que,
por sua vez agrupam várias temáticas de capacitações realizadas pelos Componentes de
Capital Humano e Social e pelo Componente Produtivo e de Mercado. Segundo os dados do
Projeto, podemos afirmar que a inclusão das mulheres se deu pelas capacitações, ao observar
que, em um total de 55.827 pessoas que participaram das capacitações ao longo destes anos de
intervenção do projeto, 31.345 foram mulheres (56,1%). E podemos notar que um maior
número de mulheres participou, principalmente, das capacitações voltadas para as questões
sociais e organizacionais, nas quais 19.562 mulheres estiveram presentes. Nas capacitações
com a temática inclusão produtiva, as mulheres, mesmo com uma diferença pequena em
relação aos homens, foram as que mais participaram. É o que se observa na Tabela 4.
63
64
65
As temáticas Desenvolvimento Social e Organização agrupam 10 temas de capacitações: Curso de
aproveitamento integral dos alimentos; Curso de associativismo e cooperativismo; Encontro de
sensibilização das comunidades quilombolas; Encontro para sistematização de experiências;
Encontro sobre gestão de equipamentos comunitários; Encontro sobre relações de gênero; Encontro
subterritorial de cultura; Intercâmbio sociocultural; Oficina de organização e mobilização social; e
Seminário de políticas públicas e programas governamentais.
A temática Inclusão Produtiva agrupa 11 temas de capacitações: Curso de corte e costura; Curso de
fruticultura; Curso de horticultura; Curso de manejo alimentar animal; Curso de manejo sanitário
animal; Curso sobre agroecologia; Curso sobre apicultura; Intercâmbio produtivo; Oficina de
beneficiamento de frutas; Oficina de construção de viveiro de produção de mudas; Oficina de
plantio de mudas e espécies frutíferas; e Oficina sobre artesanato.
A temática Recursos Hídricos agrupa 2 temas: Curso para confecção de bombas hidráulicas e
Curso sobre gestão de recursos hídricos.
105
Tabela 4 – Consolidado de capacitações, Projeto Gente de Valor, 2007-2013
TEMAS
Homens
Mulheres
Total
Desenvolvimento Social e Organização
12.925
19.562
32.487
Inclusão Produtiva
7.642
7 .923
15.565
Recursos Hídricos
3 .915
3 .860
7.775
Total
24.482
31.345
55.827
Fonte: Resumo das Principais Realizações 2007–2013 (PGV, 2013)
Os cursos de capacitação promovidos pelo Projeto estavam voltados para técnicas
de produção, melhoria da qualidade de vida da população local, para a administração dos
recursos e organização da comunidade e dos trabalhos coletivos e, por fim, para a cultura ou a
inclusão de mulheres e jovens nas questões comunitárias.
Para responder à pergunta a participação das mulheres nas capacitações
promovidas pelo projeto inicia o processo de empoderamento? partimos da afirmação de
Teresa Kleba Lisboa (2008, p. 5) de que “a participação é um elemento constitutivo das
estratégias de empoderamento”. Ao analisar a intervenção do Projeto Gente de Valor na
perspectiva de gênero, constatamos que se executa uma política de desenvolvimento local na
qual a inclusão das mulheres e de suas organizações acontece através da participação
equitativa nas atividades produtivas tradicionalmente de mulheres e não nas atividades de
domínio masculino como, por exemplo, apicultura e ovinocaprinocultura, ou seja, elas
ficaram centradas em atividades de menor valor econômico e sem reconhecimento político.
Isto pode ser observado, por exemplo, nos quintais produtivos voltados, quase que
exclusivamente, para a segurança alimentar da família: quando as mulheres estão diretamente
envolvidas, não há visibilidade; só sendo visto como uma atividade promissora quando os
homens, geralmente os maridos, estavam à frente direcionando a produção para o mercado
local. Outro exemplo são as atividades de artesanato (incluindo crochê e pintura em tecido),
vistas como “coisa de mulher”, ou mesmo como lazer, poucas vezes como uma possibilidade
produtiva, geradora de renda para a mulher e sua família. Contudo, acredito que a participação
destas mulheres contribuiu para o processo de empoderamento pessoal e coletivo de algumas
delas, independentemente da atividade da qual participou.
Para Lisboa (2008, p. 5), “o empoderamento é indicado como passo inicial de um
processo mais amplo de conquista da cidadania, que deve ser facilitado através da
participação em projetos com vistas a propor demandas de políticas públicas”. Neste sentido,
o PGV promoveu e implementou processos participativos, desde o início de sua intervenção,
assegurando, através de ferramentas metodológicas, a participação de homens e mulheres de
106
comunidades pobres em instâncias de reflexão, definição de demandas e elaboração de planos
de ação. Na medida em que esta ação foi sendo realizada, este processo foi despertando nas
mulheres condições de mudança em sua consciência e em relação aos seus direitos e às suas
capacidades.
Segundo o documento Avaliação de Impactos66 do Projeto Gente de Valor, de
uma maneira geral, logo no início de sua intervenção, as atividades desenvolvidas pelo
Projeto começaram quando foram desenvolvidos os Diagnósticos Rurais Participativos
(DRPs) nos quais as comunidades selecionadas foram convidadas a participar de reuniões de
sensibilização para a proposta do Projeto em que foram feitos mapeamentos da situação das
comunidades e apresentadas as primeiras noções de planejamento, associativismo e outros
conceitos importantes para o seu desenvolvimento. É o que comprovamos com o depoimento
de um dos entrevistados do processo de Avaliação de Impacto, realizado em 2012, sobre as
capacitações:
A mais proveitosa mesmo foi essa que eu falei no início, o DRP, porque foi
uma coisa nova, a gente nunca tinha recebido um projeto assim na nossa
associação e quando às vezes recebia alguma coisa, já vinha pronto. E esse
foi um momento de tá descobrindo [...] a nossa história e construir também
um mapa, visões do que a gente pretendia realizar durante esse processo. E
aí as pessoas nesse tempo ficavam até meio desacreditadas porque era uma
coisa muito nova e, com o passar do tempo, a gente pode perceber que isso
que a gente planejou lá no futuro talvez não fosse bem da forma que a gente
tinha pensado, mas aconteceu de alguma forma, foi realizado, mas
colocando as visões técnicas, alguns ensinamentos a mais. Mas foi
realizado. Então, pra quem participou como eu, acho que foi pra maioria
das pessoas das comunidades, essa foi uma das mais interessantes.
(PRAXIS, 2012, p. 25; Poções – Subterritório Sol Nascente).
A chegada do projeto nas comunidades se deu através de uma metodologia
participativa, ouvindo a comunidade, suas demandas e reivindicações para, juntos, construir
um planejamento, um plano de desenvolvimento, partindo do comunitário para uma
abordagem subterritorial, para, assim, intervir, de uma maneira mais embasada, na realidade
local. Estimulou-se a criação de 282 Comitês de Desenvolvimento Comunitário nos quais
eram discutidos os problemas e suas possíveis soluções. Ao juntar as comunidades com
características semelhantes para discutir e refletir sobre suas demandas, exercitou-se a
abordagem territorial criando 104 Conselhos de Desenvolvimento Subterritoriais que
envolviam representantes de 3 ou 4 comunidades. É importante ressaltar que tanto os comitês
66
Análise dos Resultados das Pesquisas Qualitativas para Avaliação dos Impactos do Projeto Gente
de Valor sobre Comunidades Selecionadas, nov. 2012 (PRAXIS, 2012).
107
como os conselhos criados, tinham, em seus regimentos internos, exigências da presença de
50% de homens e 50% de mulheres em seus cargos. Esta exigência teve que ser cumprida
pelos técnicos e técnicas do Projeto, mesmo alguns não concordando com esta orientação.
Esta opção estratégica e metodológica possibilitou um maior envolvimento das mulheres nos
diversos cursos, oficinas, seminários, intercâmbios e encontros promovidos pelo PGV. Um
depoimento colhido durante a Avaliação de Impactos do PGV, em 2012, mostra um amplo
conhecimento das oportunidades oferecidas para capacitação:
Foi dado o curso de informática, teve curso de manejo alimentar, curso de
apicultura, são alguns, são vários, a gente passou por vários cursos, mas a
gente não lembra tudo agora. O aproveitamento da mandioca também, foi
bem detalhado esse assunto aí. Então, foi muito proveitoso por parte desse
projeto. E eu acho que as pessoas, 26 têm um certo conhecimento agora,
depois desses intercâmbios que a gente foi, e espero que tenha muita coisa
gravada na cabeça de muitos. (PRAXIS, 2012, p. 25-26; Itapicuru –
Subterritório Buscando Desenvolvimento).
Outro depoimento confirma como as várias capacitações foram importantes e
contribuíram para o aprendizado das pessoas:
Tiveram várias outras [capacitações] pras pessoas das comunidades, como a
capacitação pra construção de canteiros, a capacitação de construção de
cisterna, porque os próprios pedreiros foram selecionados de dentro da
comunidade. Eu acho que isso foi prática interessante que ficou aqui a
renda deles e além do mais a experiência também. Alem disso também
tiveram várias outras como combate a pragas ensinando a fazer os
defensivos naturais, isso também foi interessante. (PRAXIS, 2012, p. 28-29,
Poções – Subterritório Sol Nascente).
Segundo a Avaliação de Impacto, a participação das mulheres aumentou com a
intervenção do Projeto, com elas adquirindo mais conhecimentos e experiência. Com o
aprendizado, veio a vontade de participar: tornaram-se mais dinâmicas nas atividades e esta
dinâmica participativa uniu mais as mulheres e, consequentemente, os grupos. (PRAXIS,
2012, p. 38).
3.3.1
Participação e apropriação/construção de conhecimentos
A participação no processo de formação, através dos diversos cursos, oficinas,
eventos, encontros e nos trabalhos desenvolvidos pelo Projeto, possibilitaram às mulheres a
diversificação de atividades para além dos afazeres usuais e a diversificação dos ambientes de
108
trabalho e convívio. Esta estratégia favorece o processo de empoderamento, pois diversos
conhecimentos foram por elas apropriados, atividades e técnicas produtivas foram assimiladas
de modo a ampliar sua atuação e qualificar sua participação nas atividades comunitárias.
Os relatos colhidos durante a Avaliação de Impacto evidenciam uma mudança de
postura das mulheres acerca de seu papel na vida comunitária
Mudou 100% [...] Porque antes do projeto aqui, se formasse uma reunião
aqui só ia os homens, as mulheres diziam 'ah não vou não, porque você já
vai, não precisa eu ir, pra que nós dois? Eu fico fazendo o serviço de casa e
você vai'. Às vezes o pai ia, outra hora o filho ia e a mulher ficava em casa.
Hoje não, a mulher quer participar da reunião porque ela tá interessada em
fazer parte daquele processo [...] através de reunião e palestra, curso. Teve
aquele encontro das mulheres aqui, [...] foi uma coisa muito importante. Só
foram as mulheres, os homens não iam lá, só eram as mulheres. Aquilo foi
uma coisa muito importante pras mulheres, é por isso que incentivou muito
as mulheres na comunidade. Porque antes não tinha esse negócio.
(PRAXIS, 2012, p. 39; Manoel Vitorino – Subterritório Nova Esperança).
Outro depoimento, de uma mulher entrevistada, referindo-se às capacitações,
confirma esta avaliação:
Olhe, acho que todos foram proveitosos, não teve um mais, outro menos. Eu
acredito assim, desde o início, tudo que a gente fez foi em grupo, e foi tudo
importante. Não tenho questão de dizer um foi mais, outro menos. É claro
que a questão, acho que, se a gente fosse citar, por eu ser mulher, por essa
questão de mulheres, o que elas mais gostaram foi essa questão de trabalhar
o gênero, que até então não era discutido [...] Agora essa questão foi
importante. Essa questão de trabalhar os alimentos é interessante, essa
questão de trabalhar pra fazer oficina de cisterna foi importante, porque
várias pessoas aprenderam [...] Então, é uma coisa que vai servir pro resto
da vida, vai servir pra que eles possam ganhar o pão, então tudo isso foi
proveitoso. A gestão de convênios também foi importante, principalmente
pro grupo da diretoria, que aprendeu a trabalhar com a questão do
dinheiro. (PRAXIS, 2012, p. 26; Euclides da Cunha – Subterritório Asa
Branca).
O relatório da Avaliação de Impacto do Projeto mostrou que a atividade mais
citada durante as entrevistas realizadas em 2012 foram os Encontros de Mulheres, também
chamado “Encontro de Gênero”. Estes encontros tinham como características marcantes o
entusiasmo, a alegria e a descontração das mulheres. Vejamos alguns depoimentos:
O encontro de mulher foi um movimento muito bom que até hoje elas pedem
outro e que teve assim uma participação. Elas começaram no começo assim,
elas estavam assim meio tímidas, mas depois todo mundo começou a falar, e
foi uma coisa assim muito importante que as mulheres começaram a
109
participar mais aí, depois desse encontro. (PRAXIS, 2012, p. 33; Jeremoabo
– Subterritório Ribeirinhos).
E também o encontro de relações de gênero foi essa questão de divisão de
tarefas, qual é a tarefa do homem e a da mulher. As pessoas entenderam que
não existe essa divisão de tarefas, qualquer um pode fazer o serviço numa
boa. Não é porque é um serviço mais apropriado pra mulher que o homem
não pode fazer. Tem que um ajudar o outro porque melhora até a
convivência das pessoas no dia a dia. (PRAXIS, 2012, p. 33; Poções –
Subterritório de Nova Esperança).
A intervenção na perspectiva de gênero demandou várias ações afirmativas e o
processo de sensibilização e capacitação sobre as questões de gênero foi uma das estratégias
mais importantes. Através do trabalho específico com as mulheres, estas se prepararam e se
capacitaram para a participação nos processos e espaços sociais representativos com uma
maior consciência de si, de seu papel, ocupando cargos com autonomia. O processo de
sensibilização teve início com os 100 encontros de mulheres, que aconteceram nos
subterritórios e envolveram 4.120 mulheres, e foram momentos-chave para refletir e dar
visibilidade às contribuições das mulheres agricultoras. A metodologia utilizada nos encontros
foi participativa, de modo a proporcionar a interação do grupo, através de relatos de
experiências, com discussões que enfatizaram a importância delas para si mesmas e para a
comunidade como um todo. Como eixo central da proposta de conteúdo dos encontros de
mulheres, trabalhou-se com a dinâmica “Eu, minha Mãe e minha Avó”67, com a finalidade de
estimular o olhar crítico sobre a vida cotidiana das mulheres agricultoras, levá-las a refletir
sobre as semelhanças e diferenças entre as gerações, se e quais mudanças houve do tempo das
avós até hoje.
A proposta de realizar encontros específicos com as mulheres foi uma estratégia
necessária e uma metodologia acertada, porém, não se podia esperar que um encontro apenas
por subterritório fosse suficiente para desencadear mudanças efetivas nas relações sociais de
gênero na vida cotidiana dessas mulheres, pois isto seria ignorar as raízes profundas da cultura
local e a estrutura dominante patriarcal, que está tão presente no meio rural.
A transversalidade do enfoque de gênero é uma estratégia fundamental para
garantir a discussão sobre as relações de gênero no dia a dia do desenvolvimento das ações de
um projeto como o Gente de Valor, na perspectiva de abrir brechas para a entrada das
mulheres agricultoras no espaço público e ir tentando desconstruir a cultura machista, sexista
67
Essa dinâmica consiste em resgatar como era a vida das antepassadas das agricultoras confrontando
com a realidade atual. Perguntamos a elas quais as atitudes que eram feitas por nossas avós e mães
e que repetimos em nossas vidas.
110
e patriarcal, que coloca a mulher no espaço doméstico, mantendo-as oprimidas na família,
como figuras assumidamente subalternas (SAFFIOTI, 1992). No discurso do Projeto e em
algumas ações, tentou-se questionar e desconstruir o poder legitimado do homem sobre as
mulheres.
Determinadas funções e tarefas antes consideradas de responsabilidade exclusiva
feminina passaram a ser divididas com os homens. As mulheres se viram capazes de aprender
e se aprimorar no desempenho de novos trabalhos e funções, tais como o trabalho em
empreendimentos produtivos e a organização coletiva em associações. Os conhecimentos e
experiências nos encontros lhes deram mais segurança e confiança e despertaram nelas maior
interesse pela participação na associação, ao mesmo tempo em que lhes proporcionaram a
valorização. Vejamos o que dizem depoentes da Avaliação de Impacto 2012:
Mas o mais importante que eu achei, que mais modificou mesmo a
comunidade e as pessoas, foi o de associativismo [...] Porque dali pra cá, as
comunidades viram a necessidade de fazer parte de um grupo de
associações, não só de cooperativas e outras entidades. (PRAXIS, 2012, p.
29, Itapicuru – Subterritório Buscando Desenvolvimento).
– Com certeza isso aí foi mais uma valorização que a gente teve durante
todo o processo do projeto [que] vinha colocando a questão da valorização
da mulher, não apenas ser vista como dona de casa e mãe de seus filhos,
mas tem um papel também social. [...] então eu acho que isso aí, é como eu
tinha dito, é uma questão mesmo que eles chegaram com o projeto e
começaram a valorizar, porque a mulher se sentia menosprezada, então às
vezes ficava até receosa de dar suas opiniões em um ambiente que a maioria
era homens e apenas eles debatiam. E com a valorização a gente pode
perceber que o nosso papel não é esse de ficar só observando, mas também
de agir. (PRAXIS, 2012, p. 40; Poções – Subterritório Sol Nascente).
Com a participação, vieram a responsabilidade e o compromisso com o grupo e a
comunidade. Com o aumento de capacidades adquiridas ao longo destes anos, em um
processo participativo, resolveram entrar nas associações e assumir cargos nas organizações
locais. Entre as 104 associações conveniadas com o Projeto, no período de 2009 a 2012, 89
mulheres assumiram cargos diretivos68. Apenas uma entre as dez mulheres que entrevistei não
participa da associação, uma é sócia e as outras oito assumem cargos na diretoria: duas são
presidentes, uma vice-presidente, uma secretaria, três tesoureiras e uma assume outro cargo na
associação quilombola como “coordenadora de gênero”.
68
Sistema de gestión de los resultados y el impacto (RIMS, 2012).
111
3.3.2
O olhar das mulheres pesquisadas e as dificuldades em participar
Existe grande interesse das mulheres em se envolver com as questões
comunitárias, participar de todas as atividades e aprender o máximo possível. A iniciativa e o
desejo de crescer e se aprimorar foram reforçados com as ações do Projeto, em especial, com
as viagens de intercâmbio de experiências e cursos em outras cidades e regiões. A maioria das
mulheres agricultoras familiares tem dificuldade de se deslocar para fora do seu ambiente
costumeiro, por causa dos afazeres junto aos maridos e aos filhos pequenos. É o que
constatamos no depoimento de Maria de Lourdes:
– Minha única dificuldade era quando eu não tinha com quem deixar meus filhos
pra ir, porque mãe não fica com meus filhos pra nada. [...] se eu não tiver com quem deixar,
aí eu deixo com minha sogra o de quatro anos e o de dois anos fica na creche o dia todo. [...]
A minha participação no início era mais difícil por causa das crianças.
Este depoimento nos convida a pensar gênero nas formas pelas quais ele penetra
na vida e na experiência social das pessoas como produto de relações sociais. Nas relações
familiares destas mulheres, observa-se como a ordem de gênero patriarcal ainda impera e é
mantida cotidianamente por homens e mulheres (SAFFIOTI, 1992). A dominação masculina é
uma destas formas que atualmente não assumem uma forma universal, mas que, na área rural
ainda é forte, e é onde se encontram muitas mulheres coagidas por homens e por suas
responsabilidades de manutenção doméstica e de reprodução (gestar, parir e criar os filhos e
filhas). Por sua vez, a reprodução humana – que ocorre no corpo da mulher – exerce
considerável influência na divisão sexual do trabalho e na estruturação dos lugares sociais
ocupados por homens e mulheres. Os homens se voltam tradicionalmente para o provimento
da casa, ou seja, para a mediação entre o mundo privado e o público. As mulheres reproduzem
o patriarcado e se tornam peças importantes na sua replicação e continuidade, por meio,
sobretudo, da educação dos filhos e filhas. A promoção da equidade entre homens e mulheres,
como estratégia para se contrapor à dominação masculina, ainda presente na estrutura do
Projeto e na sua área de abrangência, tenta desconstruir estereótipos e representações e
oportunizar uma maior participação das mulheres, sejam técnicas ou camponesas, através da
inserção delas em espaços públicos, profissionais e produtivos.
Segundo Maria dos Prazeres, os filhos pequenos atrapalham a participação das
mulheres e arranjos familiares precisam ser feitos para driblar esta dificuldade:
– As que têm filhos pequenos, só atrapalha à noite, porque se você for fazer uma
viagem de dois, três dias, quem tem filho pequeno é difícil, então não pode, tem que ir as que
112
não têm filho pequeno. E de dia, não atrapalha não, por enquanto, o trabalho aqui que elas
faz não atrapalha, porque têm a família, têm a mãe, têm as irmãs, então, ajuda bastante.
Neste depoimento, percebe-se a divisão sexual do trabalho nos moldes
tradicionais e como a coincidência entre os ciclos de vida reprodutivo e produtivo sempre cria
problemas para a mulher trabalhadora. Independentemente de ser rural ou urbana, sempre o
desafio é como conciliar responsabilidades domésticas, principalmente o cuidar dos filhos,
com o trabalho fora de casa. Sardenberg (1998), em seu estudo sobre as antigas operárias
baianas, trouxe à luz a intensa rede de ajuda mútua entre mulheres, principalmente entre mães
e filhas. Assim como as operárias, as agricultoras do nosso estudo também tecem uma rede de
ajuda mútua com suas mães, irmãs, sogras, enfim, entre mulheres, que são acionadas para
cuidar das crianças possibilitando às mulheres camponesas conciliar com as atividades
domésticas a participação nos cursos, em eventos, o trabalho nos grupos produtivos e até
viagens, e assim garantir a participação delas nestes diversos espaços públicos.
Para superar a dificuldade dessas mulheres, que são encarregadas do cuidado com
as crianças e de todos os afazeres domésticos, um papel para o qual começam a ser treinadas
desde cedo, ajudando suas mães com os irmãos menores, a estratégia metodológica buscou
assegurar a realização das “Cirandas das Crianças”. Já que, na zona rural, é muito difícil ter
creche, a alternativa foi oportunizar a participação das mulheres de forma integral, tendo uma
pessoa da comunidade que assumia o papel de “cuidadora” das crianças durante os encontros
de mulheres. Apesar da necessidade desta ação afirmativa, percebe-se que a própria
instituição executora aportou poucos recursos, por não achar ser esta uma ação relevante e
necessária, já que é uma necessidade das mulheres.
Ficou evidente que a falta de entendimento dos técnicos e técnicas fez com que
algumas dessas cirandas não funcionassem como o previsto. Alguns alegavam que, na zona
rural, as mulheres não precisavam desta ação, pois tinham as famílias ou alguém com quem
deixar seus filhos e filhas. Mas este alguém é outra mulher! já que na vida das mulheres
camponesas, desde pequenas, lhes é ensinado que cuidar de crianças é tarefa e obrigação
exclusiva da mulher. Assim aprendem e assim reproduzem a ideologia de que há uma
essência masculina e outra feminina, passando-lhes padrões de comportamento de menina e
de menino, de modo a instituir uma subordinação enquanto gênero feminino, algo que se
construiu ao longo de suas vidas. Entendendo que a identidade de gênero é uma variável
cultural, socialmente construída, ela pode, então, ser transformada. Quero acreditar que nos
projetos de desenvolvimento possamos, através de processos educativos e de algumas ações
113
específicas, voltadas principalmente para os estratos masculinos, desencadear processos de
mudanças com vista a uma transformação de sua identidade de gênero.
Assim como Maria de Lourdes, outras mulheres tinham dificuldades de participar
das atividades promovidas pelo Projeto. Foi o que disse Maria dos Prazeres em seu
depoimento: tal é a responsabilidade das mulheres na reprodução que ainda continua
operando em suas vidas, de forma universal, mesmo não sendo esta a única opção para elas, a
de assumirem responsabilidades maternais ou domésticas. Fica evidente que a estrutura e a
ação do pensamento patriarcal e conservador discrimina, dificulta e inviabiliza as lutas e
conquistas profissionais das mulheres. Com o processo de participação, já houve algumas
mudanças nas atitudes das mulheres em relação a sua família e, no grupo, mudaram e se
sentem mais fortalecidas. É o que afirma Maria dos Prazeres:
– Ave Maria! Acho muito fortalecida porque é assim, de primeiro, elas tinha
medo, tinha medo até dos maridos, muitas ainda de nós têm, mas hoje elas já dão o seu grito
“eu vou” e vai. Tem feira, eu já tiro o cavalo da chuva, eu não vou e elas já vão. Se tem um
encontro, quem vai? De dia, eu vou, de noite, não. Então, umas ainda vai de dia, outras fica
até à noite também, mas elas cresceram muito.
Observa-se nos depoimentos mulheres que falam que seus maridos não as
deixavam nem sair de casa e, hoje, quando elas dizem que vão participar, vão mesmo. Sob a
luz da ideia de empoderamento como “libertação do oprimido”, desenvolvida por Paulo Freire
(1992), é visível aí o movimento que está acontecendo no interior destas mulheres e do
próprio grupo, um movimento pela conquista da liberdade delas que estão há muito tempo
subordinadas a uma posição de dependência econômica, física e psicológica.
Participar das capacitações contribuiu para o processo de empoderamento
individual das mulheres nos vários espaços de sociabilidade. Elas estavam em desvantagem
em relação aos homens frente às iniciativas de desenvolvimento local, à troca de
conhecimento e às inovações tecnológicas. O fato de oportunizar a participação das mulheres
nas diversas capacitações (cursos de quintais, horticultura, apicultura, associativismo e outros)
e o de fazer parte de grupos de interesses produtivos e/ou organizativos levaram-nas à
apropriação de conhecimentos diversos, consequentemente, à construção de capacidades
individuais para melhorar a gestão de suas atividades produtivas, econômicas, possibilitando
uma maior consciência de sua capacidade de influenciar outras pessoas e de tomar decisões
sobre o empreendimento, a administração da associação e sobre sua própria vida.
Desencadear processos de trocas de experiências e aprendizagem em diversas
temáticas contribuiu diretamente com a formação pessoal e coletiva das mulheres, levando-as
114
a se sentirem mais seguras e com um maior domínio sobre as atividades de que estavam
participando, consequentemente, colaborando com o processo de empoderamento pessoal e
organizacional destas mulheres. O empoderamento se relaciona com o poder, mudando as
relações de poder em favor daqueles que anteriormente tinham pouca autoridade, no caso das
mulheres do Projeto, sobre suas próprias vidas. Redefinir as normas e as regras de gênero na
família, não é fácil, pois gera conflitos e tensões, porém, já se percebem sinais de mudanças
nas relações de gênero e no exercício dos papéis tradicionais de mulheres envolvidas no PGV,
quando elas superam o medo e falam para os maridos que vão participar de um encontro, de
uma feira, ou quando se sentem capazes de sair sozinhas de casa e viajar ou quando vendem
os doces que produzem e conseguem seus próprios recursos financeiros, como observamos no
depoimento de Maria dos Prazeres:
– Mudou tanto, até no relacionamento da família, marido e mulher, que eles eram
pessoa que não deixava nem sair. Hoje, ela diz “hoje é dia de fazer o doce”; ele, não tem
negócio de dizer “e a comida?” e não sei o quê... Então, elas se sentem muito poderosa, até
em viagem, pra viajar ela diz “eu vou, [ele responde] “não, quem vai sou eu”. Antigamente,
não tinha isso, porque nem elas tinham aquele incentivo das pessoas chamar elas “vamos,
vamos lá, vamos fazer isso, é bom pra você, pra comunidade, você vai ganhar o seu pão de
cada dia”... elas sentia muito medo, medo das pessoas. Hoje não. Eu sinto nelas que elas não
têm medo, não. Se quiser fazer, faz, só é querer, ela faz e não faz uma só não, o grupo chama
todo mundo e vamos fazer assim. Se uma disser “não dá certo, não vamos fazer assim”, que
dê certo [ou] que não dê, a gente vai fazer, assim a gente vai e faz, e dá certo.
Nessa fala, percebe-se as relações em que prevalecem o domínio dos homens
(maridos) sobre as mulheres, um “poder sobre”, que controla, que proíbe, que oprime e que dá
medo. Enquanto isto, contrapondo-se a este poder, percebe-se o poder de soma positiva que
Maria dos Prazeres exerce, enquanto liderança, o “poder de dentro”; com sua consciência
individual e autoconfiança, com seu exemplo e com sua capacidade, enquanto presidente da
associação: o “poder para”. Já o “poder com” (LEÓN, 2001, p. 102) se materializa quando
reivindica em nome do grupo e quando luta junto com as outras mulheres do grupo produtivo
dos doces e da cooperativa do caju, quando aí, juntas, elas se apoiam mutuamente e tecem
uma “rede de relações de empowering” (LISBOA, 2007, p. 642), insistindo no sonho de
alcançar mudanças sociais.
Para Paulo Freire (1992), pessoa, grupo ou instituição empoderada é aquela que
realiza, por si mesma, as mudanças e as ações que a levam a evoluir e se fortalecer. Não se
trata, simplesmente de construção de habilidades e competências que, geralmente, estão
115
relacionadas à escola formal. A educação pelo empoderamento tem seu foco na transformação
cultural e por dar mais ênfase aos grupos do que aos indivíduos. Já Léon (2001) afirma que a
mudança individual nos leva à ação coletiva, o que nos faz crer que o processo pedagógico de
empoderamento trabalha as duas dimensões – individual e coletiva.
Outro aspecto importante do empoderamento se dá nas relações de poder nas
unidades domésticas. As mulheres empoderadas ou em processo de empoderamento crescem
em autoestima, buscam informações, apreendem conhecimento e técnica, acumulam
capacidades e sentem vontade de participar de organizações sociais, como associações ou
grupos produtivos. Isto significa que elas estão, em um processo mútuo, exercitando um poder
social e descentralizando o poder na unidade familiar.
116
4
O OLHAR DE OUTROS ATORES SOBRE O ENTRELAÇAR DO
PROCESSO DE EMPODERAMENTO
4.1
GRUPOS FOCAIS: O QUE PENSAM OS HOMENS SOBRE AS MULHERES?
A metodologia adotada utilizou um instrumento usual da análise das informações
qualitativas, aprofundando as questões de interesse de forma mais dialética, através da
discussão com grupos focais. As discussões nos grupos focais foram gravadas e transcritas,
lidas e organizadas para fundamentar os resultados da atuação do Projeto Gente de Valor
segundo o ponto de vista das comunidades beneficiadas. As informações coletadas nas
discussões com grupos focais nos possibilitaram fundamentar uma análise qualitativa dos
resultados mais relevantes do processo de empoderamento das mulheres que participaram,
especificamente da região Nordeste da Bahia, do Projeto Gente de Valor.
O primeiro grupo focal foi realizado no município de Novo Triunfo, com a
Associação Comunitária dos Produtores Rurais de Baixa da Roça, com a presença de 12
pessoas (cinco homens e sete mulheres). Alguns dos homens ressaltaram a importância das
mulheres e de duas das lideranças, a presidente Maria dos Prazeres e da tesoureira Gildete
(nome fictício) para o avanço do trabalho na associação e na comunidade. A organização
social das comunidades foi o tema selecionado para iniciar as discussões nos dois grupos
focais. O propósito era identificar como o modelo de atuação adotado pelo Projeto Gente de
Valor contribuiu para que as mulheres e os homens avançassem na organização e no trabalho
coletivo. Eles argumentam que as mudanças ocorridas na comunidade são resultados
alcançados a partir do projeto.
O segundo grupo focal foi realizado no município de Ribeira do Amparo, na
comunidade de Bariri, com o grupo de artesanato do fiapo, pertencente à Associação
Comunitária e Cultural do Bariri, Rio Seco, Alto e Rio Quente de Cima, presentes sete
pessoas (três homens e quatro mulheres). Um dos três homens presentes foi o presidente da
associação; os outros dois eram artesãos do grupo do fiapo. As presenças dos homens
deixaram as mulheres mais intimidadas em falar. Percebi que todos, em geral, não tinham a
mesma percepção do outro grupo focal realizado na comunidade Baixa da Roça sobre a
trajetória e avanço das mulheres no processo organizativo e produtivo, em cargos e funções de
direção, administração e gestão de recursos, como executoras de projetos governamentais. Por
outro lado, com relação à organização comunitária, conforme manifestado por alguns,
117
entende-se que existia união entre eles, porém, a perspectiva de uma organização mais
estruturada surge ou se consolida com o trabalho desenvolvido pelo Projeto Gente de Valor.
Com o instrumento metodológico Grupo Focal, foram percebidos alguns
elementos dos três níveis do processo de empoderamento, o individual, o organizacional e o
comunitário, vividos pelas mulheres e seus grupos. Estes níveis não acontecem em separado,
pois o empoderamento é uma composição simultânea dos três níveis, portanto, eles merecem
igual atenção, diz Horochovski (2007) que afirma, ainda, que, no nível de empoderamento
individual, é evidente a participação das mulheres nas organizações da comunidade. Já no
nível organizacional, o empoderamento é gerado na e pela organização e resta claro, neste
nível, o compartilhamento das decisões coletivas e da liderança. No nível comunitário do
processo de empoderamento, a dinâmica organizativa possibilita ações coletivas com o
objetivo de acessar recursos comunitários e governamentais.
No grupo focal da comunidade Baixa da Roça, o depoimento de um senhor
expressa o reconhecimento do grupo da associação pelo trabalho desenvolvido e pela
participação ativa no processo de organização da comunidade das duas mulheres na liderança.
Apesar da fala do depoente atribuir as conquistas da associação como resultado só da luta das
lideranças, é evidente o empoderamento organizacional deste grupo e como a dinâmica
organizativa tem possibilitado ao coletivo o acesso a vários recursos governamentais.
– Antes só tinha a escola, o colégio. Hoje temos água, temos luz, casa de farinha,
cisterna, quintal, fogão, até casa tem, forrageira. A maioria, conseguimos com o Projeto
Gente de Valor, foi o primeiro que chegou, se não fosse, não existia nada. E tudo isso foi
arranjado por mais essa aqui, de Mara [referindo-se a Maria dos Prazeres]. Foi ela que
arranjou tudo pra todo mundo, se não fosse ela ninguém tinha nada. Primeiro lugar, Mara e
Val, que levantou essa comunidade e depois dessa associação, graças a Deus, já temos água,
luz, cisterna, forrageira e mais técnico que tá aí que, de vez em quando vai na roça de um e
de outro, que comparece pra ensinar como faz uma coisa um serviço. Então, eu gostei da
comunidade, eu assisto e, por sinal, dou valor. (José, Grupo Focal da Comunidade Baixa da
Roça, 2013).
No Grupo Focal que foi realizado com alguns representantes na comunidade
Baixa da Roça, na unidade ou minifábrica da Associação Comunitária dos Produtores Rurais,
percebe-se, nas falas, que houve uma valorização da mulher e um reconhecimento de sua
importância na sociedade, tanto na visão dos homens quanto por parte das próprias mulheres.
Disse um dos homens do Grupo Focal sobre o que achava das mulheres da associação:
118
– As mulheres tão lutando, trabalhando para desenvolver cada vez mais, com
força e vontade. Na minha opinião, cada dia que se passa, eu acredito que a comunidade vai
crescer e as mulheres vão chegar lá, porque, pelo jeito que eu estou vendo, é uma força de
vontade de trabalhar e botar as coisas pra frente! Se Deus quiser, vai pra frente mesmo.
Porque elas trabalham, faz doce, puxa as pessoas de fora pra vim trabalhar aqui também, na
mini-fábrica, aqui da castanha, e faz geladinho, as garrafinhas... A Deus querer, o trabalho
tá bem desenvolvido, há visto o que era. Antes não tinha nada. E hoje, elas estão lutando
para conseguir ganhar [ter renda]. (José, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça, 2013)
Já outro homem de certa idade falou:
– Eu acredito nas mulheres, porque eu sempre ando aqui e elas estão ali
trabalhando. Aí, eu gosto de participar, aí sento ali com elas, porque até eu não tenho medo
de mulher [risos], eu fui batizado três vezes, eu tenho respeito. Ali, tenho uma fazendo doce,
outra tá fazendo um tira gosto do doce. No final, eu trouxe um monte de goiaba que estava
perdendo. Então, eu dou valor às mulheres. Eu escuto no espaço de homem: “esse negócio
dessa associação será que você não está bestando?”. Eu tô numa expectativa, no caso de
amanhã e depois, melhorar mais. (Manoel, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça,
2013).
Depois dos Grupos Focais, tal como León (2001, p. 104), ficou o questionamento:
“Que significa o empoderamento das mulheres para os homens?” Segundo a própria León, o
empoderamento das mulheres significaria o desempoderamento dos homens, pois estes
perderiam a posição privilegiada que o patriarcado lhes concedeu. Porém, os homens
agricultores que estavam participando dos dois Grupos Focais não demonstravam exercer o
“poder sobre” as mulheres, o poder subordinador que controla a participação das mulheres no
mundo público. Estes homens demonstravam, apesar da força física, timidez, fragilidade,
insegurança e desinformação com relação à própria associação de que fazem parte e à
cooperativa, à dinâmica organizativa vivida por estas mulheres. Daí que, por outro lado, a
própria León (2001, p. 105) indica, que, de fato, “o empoderamento das mulheres significa o
empoderamento dos homens”.
Durante a conversa no grupo, percebe-se nas mulheres, com o seu acúmulo de
conhecimento ali socializado, demonstrando domínio dos conteúdos por elas aprendidos
durante o processo de capacitação, a consciência coletiva do grupo de mulheres dos doces
quando questionadas sobre as conquistas e os desafios que ainda têm pela frente, a integração
entre elas e também com a comunidade e, principalmente, o reconhecimento do trabalho da
liderança e das “mulheres dos doces” junto à associação. Porém, na esfera privada, na
119
intimidade de suas casas, isto aparece, de forma sutil, através da aceitação e não mais da
proibição da participação da mulher nas atividades do grupo. Duas delas falaram que seus
maridos mudaram seus procedimentos em casa e que, agora, eles já ajudam nas tarefas
domésticas e conversam mais com elas, pois, antes do Projeto, eles eram tímidos.
Concordo com Lisboa (2007, p. 651), quando afirma que “o empoderamento das
mulheres libera e empodera também aos homens no sentido material e psicológico, já que a
mulher passa a ter acesso aos recursos materiais em benefício da família e da comunidade e a
compartilhar responsabilidades”. Portanto, na medida em que as mulheres se relacionam,
trocando ideias e experiências entre si, vão ocorrendo mudanças internas individuais e em
suas atitudes enquanto grupo. As mudanças que ocorrem na vida dessas mulheres, no
processo de empoderamento, “contagiam” também suas relações mais próximas, com seus
pais, seus maridos, seus filhos e filhas e todas as pessoas com quem elas interagem, além de
reverter os resultados do seu acesso aos recursos materiais e financeiros para o benefício de
sua família e da comunidade.
Neste sentido, no Grupo Focal realizado na comunidade Bariri, percebe-se como a
dinâmica da vivência organizativa uniu as pessoas e criou laços entre aquelas envolvidas na
associação e também no grupo do artesanato do fiapo. Há um sentimento de pertencimento. O
grupo demonstra crer em suas lideranças e percebe-se a satisfação entre os membros em fazer
parte deste processo. É o que se evidencia no depoimento de um dos homens participantes que
demonstra, também, a habilidade que o grupo já tem em discutir e analisar os processos
organizativos experimentados e como esta experiência grupal tem sido disseminada na
vizinhança, favorecendo o sentimento de pertença à comunidade, além das famílias isoladas,
como percebemos na fala de Carla:
– Antes, no subterritório do Brar, a gente era muito individual, mas hoje, depois
que a gente passou por esse processo de organização, a gente vê que não mudou cem por
cento, mas mudou uma boa parte. É uma comunidade machista, ainda não mudou cem por
cento, para acabar com o machismo, mas está em evolução. E hoje eu vejo assim, aqui no
Bariri, muitas pessoas que estavam no grupo do artesanato e saíram, hoje tão vendo que está
dando certo. A gente percebe, vem nas casas como mutirões, um estilo que acontece aqui na
unidade de beneficiamento, pessoas de 3, 4 famílias, uma ajuda a outra a produzir a rede.
Um exemplo: hoje ajuda na minha casa, amanhã na outra casa. A gente vê que é um processo
que está dando certo. Que tá saindo da unidade e migrando para outras casas. De forma que
amanhã e depois, pode está chegando algum. Então, o processo de organização que a gente
tá passando tá sendo produtivo pra gente, o pessoal que tá no grupo de interesse do
120
artesanato e para as comunidades vizinhas. É um projeto que está fluindo para as
vizinhanças. Então eu vejo como positivo esse processo de organização. (Grupo Focal da
Comunidade Bariri, 2013).
Para Horochovski (2007, p. 496), “o empoderamento comunitário é o processo
pelo qual os sujeitos – individuais e coletivos – de uma comunidade, por meio de processos
participativos, constroem estratégias e ações para atingir seus objetivos coletivos e
consensualmente traçados”. A este respeito, apesar das estratégias e iniciativas dos dois
grupos – de mulheres, dos doces e do artesanato do fiapo –, de criar ações alternativas de
comercialização dos seus produtos, percebe-se, ainda, pouco acúmulo reflexivo dos dois
grupos sobre como acessar o mercado de forma mais estruturada e com uma frequência
sistemática de venda.
Ao analisar os depoimentos dos dois Grupos Focais com relação à obtenção de
segurança econômica – “geração de renda” através da venda de produtos –, percebe-se grande
satisfação das mulheres em estar, com suas habilidades e seus próprios esforços, gerindo o
empreendimento e gerando renda, mesmo que uma quantia ainda considerada insuficiente, e a
esperança de melhorar ainda mais o retorno econômico desta atividade para elas e suas
famílias. Nos depoimentos seguintes, percebe-se qual a estratégia de venda e quanto elas
conseguem obter no mês com a venda destes produtos, além do reconhecimento da
comunidade:
– Dependo do que a pessoa produzir no mês, no caso das redes, que é mais
difícil, vende a unidade, a gente vende em quantidade, a gente faz aquele total, aí vai ser
dividido quando vender o total todo. Quando faz coisa individual, a gente vai recebendo o
dinheiro, tira a percentagem do grupo e divide. É por produção, geralmente quem tem
dificuldade de fazer almofada... só que é a que mais dá dinheiro. Neném teve mês de receber
quase R$ 500, 00 de almofadas; o Mauá comprou, então, dividiu. Na rede, quando vende
aqui, é uma, porque vocês não vão comprar 100 redes. Então, a rede é melhor vender em
quantidade. Quando vende individual, a gente sabe de quem é a peça, de quem, porque a
gente anota as peças aí; no sábado, a gente faz o pagamento. (Grupo Focal da Comunidade
Bariri, 2013).
– A gente vende nos eventos que a gente participa: seminários, encontros,
reuniões – todos. As vendas ajudam, vamos dizer, não está 100%, porque não tem lugar
certo, né, pra gente entregar, entrega 100 ali, 50 ali... dividir a renda com todas, um
pouquinho, 50 pra um, 50 pra outra, já ajuda muito, 50 pra família. Se tiver reunião no
121
sindicato de dois dias, a gente vende mais. Fica R$ 80,00 reais para cada uma. (Rose, Grupo
Focal Baixa da Roça, 2013).
As mulheres vendem os produtos na própria unidade de beneficiamento, nas feiras
e na sede do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Novo Triunfo, durante as
reuniões e encontros, ficando, permanentemente, expostos na sede, que fica aberta durante
toda a semana. E também no Instituto de Artesanato Visconde de Mauá69. Elas também
oferecem os doces e as castanhas nos mercadinhos locais, nas lanchonetes e na porta do
Banco do Brasil, em Cícero Dantas. Diz um dos homens do Grupo Focal de Baixa da Roça:
“Tô achando que deve ir pra frente que antigamente não tinha nada e hoje tem muita coisa, a
gente tá vendo”; e outro: “Vamos dar valor a ela porque ela foi vender na porta do banco no
sol quente, chega tava vermeia. Eu dou valor a ela mulher do comércio” (José, Grupo Focal
de Baixa da Roça, 2013).
Também é visível o reconhecimento e a valorização dessas mulheres e de seus
grupos pelas pessoas da associação e da comunidade, pelos resultados alcançados ao
desenvolverem essas atividades produtivas. É o que diz o depoimento de um homem da
comunidade Bariri sobre a renda, a valorização do grupo e o sucesso da organização:
– O grupo do artesanato do Brar é formado por agricultores e agricultoras
familiares que viviam basicamente do Bolsa Família, de uma aposentadoria, viam o
artesanato como um complemento de renda e hoje já vê como renda mesmo, geração de
renda. E a gente vê que está melhorando a qualidade de vida dos artesãos. E hoje, a gente,
graças a Deus, nós somos um grupo de 11 pessoas, que hoje, você chega na região, é visto
como referência em organização, em qualidade de produtos, que antes do Projeto, se
produzir uma rede era refém dos atravessadores. E hoje, através dos cursos e das oficinas, a
gente conseguiu diversificar nossos produtos, saímos da rede e estamos produzindo
almofadas, estantes, cortinas, porta-revistas. As almofadas hoje é referência, todo mundo que
vê, se apaixona pelas almofadas. E nós devemos isso a quem? À força de vontade dos
participantes do grupo e do Projeto, que deu essa oportunidade da gente trabalhar. Eu digo
ao pessoal não parar por aí, procurar sempre estar modificando, porque hoje a almofada é
referência, mas amanhã ou depois, um dia ela vai estar ultrapassada. Então, isso nós
devemos basicamente à organização. Porque o segredo do sucesso não [é] o financiamento
69
É uma autarquia da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (SETRE) do Governo do
Estado da Bahia. Foi fundado em 1939 para estimular a produção artesanal. Tem a função de
ministrar o ensino do trabalho artesanal em todo o estado, através dos cursos de capacitação e
núcleos de produção em Salvador e cidades do interior, assegurando a manutenção da produção
regional com o aproveitamento de matérias-primas locais e a comercialização do artesanato baiano.
122
do dinheiro e, sim, o preparo na organização. Que eu acho um sucesso é a organização.
(Pedro, Grupo Focal da Comunidade Bariri, 2013).
A organização dessas mulheres e a interação com outras pessoas, grupos,
comunidades e organizações na busca por canais de comercialização dos produtos têm sido
vistas como uma experiência rica e frutífera. No caso do grupo das mulheres dos doces, o
apoio e a mediação do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Novo Triunfo
promoveram o contato entre o grupo delas com o de outra comunidade e a Prefeitura
Municipal, possibilitando o acesso a uma política pública federal voltada para a agricultura
familiar. Elas conseguiram, junto com a outra comunidade, vender os doces para a Prefeitura,
através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)70, devido à Lei nº 11.94771
promulgada desde 2009, que determina que, pelo menos, 30% dos recursos deste programa
sejam gastos com a compra de alimentos da agricultura familiar. O depoimento abaixo relata
esta experiência e a esperança de continuar acessando a comercialização institucional:
– Já vendemos para a merenda escolar 600 kg junto com outra comunidade, 300
kg para cada uma. Se a prefeitura de Novo Triunfo e [a de] Cícero Dantas comprasse, tudo
ajudasse, era bom demais, a gente partia uma parte pra uma e outra pra outra. (Rose, Grupo
Focal da Comunidade Baixa da Roça, 2013).
– A prefeitura também não tá comprando ainda os produtos da agricultura
familiar. Só que a gente já foi lá com o comitê gestor e a gente junta, da região toda, duas
pessoas de cada região e associação, por causa desse problema da prefeitura não comprar
os produtos. E se eles não comprar das famílias que precisam, tem muita luta em 2014, mas
nós vamos conseguir, com fé em Deus e nossa, com a mulher pra trabalhar, a gente vai
ganhando o pãozinho de cada dia, o pouco que ganha, serve. (Marisa, Grupo Focal da
Comunidade Baixa da Roça, 2013).
As mulheres desse grupo, ao desenvolverem essas atividades coletivas, vão
construindo laços entre si que lhes despertam a consciência de que, enquanto indivíduos, são
partes de um grupo e de uma comunidade. No depoimento, há o reconhecimento de que as
práticas solidárias entre as mulheres e as pessoas da comunidade podem beneficiar tanto a
70
71
Faz-se a distinção entre PNAE (que trata da Lei de 2009 da obrigatoriedade dos 30%) e PAE
(Programa de Alimentação Escolar), o primeiro se refere ao Programa no seu âmbito nacional com
suas normas e regulamentos gerais, e o segundo à sua construção ou adaptação nos diversos locais
(gerenciado pela instância municipal, estadual ou escolar). Ver: TRICHES; SCHNEIDER, 2012.
Lei nº 11.947/2009. Art. 14. Do total dos recursos financeiros repassados pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE), no âmbito do PNAE, no mínimo 30% (trinta por cento)
deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do
empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma
agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas.
123
elas como à comunidade e, a partir de interesses comuns, outras comunidades, que podem se
juntar para acessar projetos, programas ou recursos existentes, como afirmação de
solidariedade entre as comunidades, na perspectiva de alcançar objetivos individuais e
coletivos.
4.1.1
Sinais de mudanças nas relações de gênero
Os projetos orientados para a equidade de gênero demonstram que a mudança na
autoestima dos participantes, homens e mulheres, é o resultado mais destacado, porém outras
mudanças importantes têm desencadeado transformações positivas nas relações de gênero,
familiares e comunitárias. O empoderamento das mulheres permite novas experiências
emocionais para os homens, quando lhes possibilita se libertarem de estereótipos de gênero,
segundo Léon (2001). Conforme um integrante das reuniões de Grupo Focal, houve algum
reconhecimento de que os “direitos são iguais” entre homens e mulheres. Constatou-se,
também, que a conduta dos homens em relação às mulheres vem em um processo de
mudança, que eles estão mais conscientes e apoiam ou cooperam mais com suas
companheiras, porém não todos e nem sempre. Vários trabalhos e atividades passaram a ser
compartilhados e realizados conjuntamente, tanto por homens quanto por mulheres. Podemos
observar isto no depoimento dos dois únicos homens do grupo do artesanato do fiapo, quando
perguntei se eles sofrem discriminação e como se sentem ao fazer parte de um grupo de
artesanato composto, em sua maioria, por mulheres:
– Aqui na comunidade, os homens sempre fizeram a rede, mas não rasgava o
fiapo, que é coisa de mulher. Hoje, você já vê o homem numa ponta e a mulher na outra
rasgando o fiapo. Agora quem dava o acabamento, o punho, era a mulher o homem só fazia o
corpo da rede. O homem é trabalho pesado e o levezinho era coisa de mulher. Eles iam pra
roça trabalhar e a mulher ficava rasgando o fiapo, não é coisa muito fácil, não é coisa de
homem, mas hoje já é tudo igual. (Carla, Grupo Focal da Comunidade Bariri, 2013).
– Eu não ligo pra isso, cada qual leva sua vida como quer, eu não sou contra,
não, quem é do outro lado, jamais eu vou ser [homossexual]. Eu espero que as pessoas abra
a mente, às vezes, as pessoas que nunca saíram pra ver o mundo, pra ver as coisas com outra
visão, aí fala que isso aqui, “eu não vou fazer porque é de mulher fazer”. Antigamente, você
não via uma mulher mandando no país, hoje estamos vendo [presidenta Dilma Roussef],
então, o cara tem que acordar; você não via uma mulher ganhar mais que um homem, hoje
você vê um monte; casal que o homem vem tomar conta das crianças, ela ganha o dobro do
124
que ele ganhava. A gente tem que acompanhar os ritmos, nem todos os ritmos... A gente tem
que dividir as tarefas, vamos dizer que 78%, em casa, mas mulher manda demais. (Pedro,
Grupo Focal da Comunidade Bariri, 2013).
As mulheres do grupo do artesanato do fiapo também falam das relações de
gênero no grupo e em casa:
– Hoje, antes de começar a trabalhar, eles se combinam o que primeiro vai fazer,
se vai limpar o galpão. Homens e mulheres no grupo trabalham igual. Apesar de ter nove
mulheres e dois homens, na hora de varrer, passar pano, não tem isso aqui não, homem tem
que fazer, é pra trabalhar todo mundo. (Regina, Grupo Focal da Comunidade Bariri, 2013).
A outra mulher diz que, em casa, na divisão do trabalho doméstico, as coisas não
mudaram:
– Eu tenho que acordar e deixar tudo prontinho, porque se não, eu chego meio
dia e não tem. Tenho que deixar pronto. É difícil ele fazer, só assim, ele não critica não, eu
vim. Ele me incentiva até eu vim, mas eu tenho que fazer tudo antes. “Você não sabia que ia
sair porque você não fez? Faça antes, porque você sabia que ia sair”. (Penha, Grupo Focal
da Comunidade Bariri, 2013).
Também no Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça, as mulheres e os
homens falam das divisões de tarefas e não parece ter havido mudanças:
– Eu trabalho mais no doce e ele nas coisas mais pesadas do quintal, mas eu
ajudo a ele. No início, ele não acreditava, a gente só levava pra vender 10 olhos de coentro;
aí, ele foi vendo e foi gostando e foi crescendo mais. A gente não cresceu mais por causa da
[falta de] água. (Clara, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça, 2013).
– Quem ajeita os quintais e as galinhas sou eu, a mulher não tem jeito. Ela já tem
as tarefas dela, não é por ruindade, não. Cuida dos meninos e da casa. Eu já cuido da roça,
do quintal e das galinhas também. Ela participa do grupo e faz o doce também. (Marcos,
Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça, 2013).
São evidentes as desvantagens de gênero vivenciadas por essas mulheres, como
também por outras mulheres em todo o mundo, ao considerarmos gênero como uma categoria
na análise de uma série de desigualdades que atravessam a vida de homens e mulheres,
enquanto relações de poder, principalmente quando se cruzam simultaneamente dimensões
como classe, raça/etnia, idade/geração e regionalidade, entendendo-as como eixos fundantes
da vida dos sujeitos sociais, e estas dimensões vão ganhar maior ou menor relevância a
depender das formações histórico-culturais da comunidade em que os sujeitos se inserem. A
esperança de mudanças na vida dessas mulheres e também dos homens parte do
125
reconhecimento de que a identidade de gênero é uma variável cultural e socialmente
construída sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres (SCOTT, 1995).
Apesar de pequenos, já percebemos alguns sinais de desconstrução dos padrões de
comportamentos de menina e de menino estabelecidos ao longo de suas vidas, ao tentar
desconstruir esta relação de dominação masculina que reside dentro da unidade doméstica,
mas, também, em lugares de elaboração e de imposição de princípios de dominação, como a
Escola, o Estado ou a Religião, principalmente ao se conscientizarem que podem transformar
o estado atual da relação de forças material e simbólica entre os sexos. E as crianças e os
jovens (homens e mulheres), na zona rural, são a esperança para a desconstrução dos padrões,
pois o acesso à escola, a algumas tecnologias, à mídia e às informações propicia
questionamentos e esperança de que realmente já há e haverá mudanças, desconstruções e
reconstruções de relações de gênero igualitárias.
Um projeto de desenvolvimento rural como o PGV deve ter o compromisso de
promover ainda mais atividades e ações que discutam as desigualdades, as causas e as
consequências que atingem as crianças pobres da zona rural e, principalmente, as mulheres,
especificamente as negras, índias, pobres e jovens da área rural. No depoimento de Maria das
Dores, percebe-se que participar do Projeto contribuiu para as efetivas mudanças nas relações
de gênero na sua vida e de seu filho:
– Contribuiu, mas eu acredito que a mulher, pra ela conseguir ser casada, ter
filho e estudar, porque eu estudava casada, eu estudava, porque eu queria mesmo. Eu ia
estudar, e ia estudar [como uma teima]. Eu sempre respeito; a gente conversava quando eu
tava casada, a gente conversava, se tivesse reclamação eu batia de frente, eu antenava e até
hoje é o que eu digo: a mulher, a gente é mulher, tem que respeitar sim, mas tem que ter o
respeito da outra parte. Se tem que estudar, o mundo que a gente está hoje, tem que fazer é
ficar mais informada e, hoje, eu ainda quero estudar, quero fazer faculdade ainda. Eu sinto
que o meu filho também me respeita por essa questão: quando eu pego um livro, ele pega
outro, quando eu tô escrevendo, ele quer ler o que eu estou escrevendo, quando eu pego
qualquer coisa, se for um caderno novo ele sempre quer escrever, pega meu caderno, pega
tudo, eu acho que por eu ter estudado e passar pra ele a importância do estudo, eu acredito
que ele vai continuar estudando, que ele sabe que eu gosto de estudar, e pra ele se preparar
pro mundo, eu acho que eu contribuo muito pra isso, dando a minha força. (Maria das Dores,
31 anos).
Em sua luta diária para estudar e aprender, Maria das Dores busca cunhar seu
espaço na sociedade, sair do estado de vulnerabilidade e invisibilidade a que a mulher negra
126
está submetida. Ela vem escrevendo sua história pessoal com muita dificuldade, vem lutando
contra este poder hegemônico da ordem de gênero patriarcal. Sua luta pessoal fortalece sua
participação política e estimula o desafio da luta coletiva na perspectiva de mudanças nas
relações de gênero, raça e de classe, na sua vida e na das mulheres que ainda se encontram em
condições de vulnerabilidade, para que não permaneçam nesta condição como um destino
social natural.
As associações e grupos buscam, com dificuldade, articular ações coletivas,
internamente, na própria organização, e também têm tentado acessar recursos governamentais
e na própria comunidade. Ressalta-se que, neste nível de empoderamento comunitário, estes
sujeitos individuais e coletivos, apesar de demonstrarem relações mais horizontais e de união
entre eles, vivem também disputas de interesses, discussões, tensões e conflitos por causa de
recursos. É o que se observa na fala de Maria Amélia, quando pergunto se mudou algo na vida
das mulheres que participaram das atividades do Projeto.
– Mulher, começaram a costura, mas eu mesma só fui dois dias, além da
distância, não tinha onde colocar as máquinas direito. Aí ficava um pouquinho aqui [na
comunidade] outro pouquinho acolá [na outra comunidade], e para formar um grupo tem que
ser tudo num lugar só. Também, teve umas demandas de umas pessoas e eu me afastei. [...]
as máquinas vieram todas, tem até a máquina de estampa, estão todas aí. Tenho certeza que
ia à frente, é que o caso, é que o grupo se desuniram. [...] a gente está no grupo, uma quer de
um jeito outras querem de outro, não tem aquele acordo. Se nunca tiver um acordo nunca vai
pra frente. [...] Atrapalho foi das pessoas mesmas, que não se entenderam. Falta de
entendimento das pessoas. Ou alguém querendo passar a perna um no outro. É porque
sempre tem um que quer ser mais do que os outros, coisas que quando a gente está num
grupo não pode ser. (Maria Amélia, 50 anos).
Maria Amélia continua falando das dificuldades e mostrando a disputa entre as
mulheres do grupo de corte e costura das comunidades de Raso Pintado e Fazenda Pedrinhas,
pela posse dos equipamentos e onde iriam ficar:
– Eu percebi, além da dificuldade de ir também, outra coisa também, porque
ficaram tudo lá na outra comunidade, nada nessa daqui. Apesar que a gente foi quem
primeiro iniciou a formar a associação, mas ficou tudo prá lá. E a gente dizia: “Gente, pelo
amor de Deus, divide alguma coisa pra cá, porque fica só lá?”. Quando a gente queria trazer
alguma coisa pra cá, os de lá diziam: “Se for lá, eu não vou, se for pra lá, eu não vou”. “Aí a
gente é obrigado a sair de lá e vim pra cá, e vocês não podem ir para lá também, por quê?”.
127
Aí a gente já foi desgostando por causa disso, também. Falta de conscientização das pessoas.
(Maria Amélia, 50 anos).
Vejamos o que diz Maria da Paz, que faz parte do grupo da comunidade Fazenda
Pedrinhas, sobre o grupo de corte e costura:
– As outras, ficou naquela coisa “Eu já aprendi, não quero mais participar do
grupo, não”, algumas falaram por fora. É tanto que, aqui, o aluguel, eu acabei falando um
dia numa palestra que teve aqui ao CRAS se responsabilizou de pagar o aluguel, R$ 40,00
reais o aluguel dessa casa. Só que o cartão de energia, eu acabei brigando com o menino,
brigando é maneira de falar, pagando a energia. E fica tudo aqui e cuida tudo aqui, nada
disso me pertence, isso aqui pertence à associação, eu até falo para o pessoal, nada disso
aqui é da gente, a gente sabe disso, mas se a gente também abandonar a associação, pode
vim uma atuante [e] pode levar para onde quiserem se a gente correu atrás de tudo isso, a
gente tem que trabalhar por isso. (Maria da Paz, 32 anos).
Nos depoimentos a seguir, verificamos as estratégias e ações coletivas de poder
envolvendo os grupos e as associações através da articulação em rede com outras pessoas,
organizações e movimentos sociais; na participação em instituições locais e ou regionais; e
também na representação em conselhos municipais:
– A associação percebeu que o grupo precisa de capital de giro. Eles produziram
50 almofadas no mês, para não ficar esse estoque aí sem movimento, a associação compra, aí
paga o artesão e depois a associação vai vender para tirar o capital. Porque têm vezes que
esse produto fica muito tempo estocado e eles ficam sem circular o dinheiro. Mas a almofada
não, o que fizer vende. Então, eles precisam do capital, a associação e o grupo precisa
organizar os dois para fazer parceria e ter tipo o capital de giro. Como se fosse uma
cooperativa. (Carla, Grupo Focal da Comunidade Bariri, 2013).
– A nossa cozinha é provisória, é uma área de reunião, aí a gente se reuniu para
fechar o quarto que serve para reunião da Pastoral da Criança, da associação, vamos fazer?
Com que dinheiro? Então, fiz um orçamento com as meninas: quanto custa, custa tanto, e
para cada associado é x, tirando o telhado e as paredes do lado, tudo foi os associados.
Essas outras coisas, fogão, o que tem na cozinha, foi os associados. (Clara, Grupo Focal da
Comunidade Baixa da Roça, 2013).
– Eu, como sou diretora [a presidente Maria dos Prazeres], eu participo duas
vezes no mês na sede com a diretoria executiva. A participação na Cooperacaju, eu vou pra
reunião de um ou dois dias em Ribeira de Pombal e aqui na comunidade é uma vez por mês
com os associados. Participo do Território, da Pastoral da Criança [que] tá sempre fazendo
128
reuniões e encontros e se reúnem com outros municípios – Cícero Dantas, Banzaê e Novo
Triunfo – e aproveitamos para vender doce lá. Eu participo do Conselho de Saúde de Novo
Triunfo. E, o ano passado, do Conselho de Ação Social. E participamos da Igreja Católica.
Vendemos doces no tríduo. O padre apoia, compra doces e montou barraquinha para nós
vender na festa da igreja. Também participo do Conselho da igreja todo mês. (Maria dos
Prazeres, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça, 2013).
Os grupos constroem seus caminhos independentes do Projeto Gente de Valor.
Tecem parcerias dentro da comunidade e tentam construir outras na região. O grupo das
mulheres dos doces, que fazem parte da Associação Comunitária dos Produtores Rurais de
Baixa da Roça, constrói redes e parcerias com Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras
Rurais de Novo Triunfo e de Cícero Dantas e tem conseguido acessar programas
governamentais e projetos, como é o caso do Gente de Valor e da Fundação Banco do Brasil,
que financiou a minifábrica de beneficiamento de castanha de caju. O grupo de mulheres dos
doces elaborou um projeto para concorrer ao edital lançado pela Secretaria da Agricultura,
Pecuária, Irrigação, Reforma Agrária, Pesca e Aquicultura (SEAGRI) em parceria com a
Superintendência de Políticas para as Mulheres (SPM) e a Secretaria do Trabalho Emprego
Renda e Esporte (SETRE). O projeto foi contemplado, conforme publicado no Diário Oficial
do Estado, porém, até a data da realização do Grupo Focal, os recursos ainda não tinham sido
depositados na conta da associação. Esse projeto visa a compra de rótulos, saquinhos plásticos
e embalagens para os doces. Apesar de os recursos não terem chegado, as mulheres não
ficaram esperando, pois não podiam perder a safra das frutas, continuaram o trabalho de
beneficiamento e fabricação dos doces e conseguiram comprar os rótulos e as embalagens
com o apoio do Projeto Gente de Valor, que contribuiu com uma parte destes recursos, mas a
maior parte foi proveniente da solidariedade, mobilização e articulação delas com a
associação e a comunidade. Nos depoimentos abaixo, observamos a construção da teia de
articulações e parcerias:
– Tivemos projetos da Fundação Banco do Brasil, Gente de Valor e agora
estamos aguardando o da SPM. O povo já tava querendo desistir dessa associação porque
não saía nem projeto. Aí foi que chegou o Gente de Valor com gosto de gás pra trabalhar
com as famílias, aí é que nós juntemos e conseguimos o que queremos. E ainda tem mais, não
para aqui, não. E com esse projeto das mulheres do beneficiamento dos doces estamos
esperando também recurso da Seagri que não saiu ainda. O pessoal da agricultura vem
fazendo reunião. Na comunidade, não existe um transporte para carregar as pessoas. A
unidade de castanha não tem esse transporte para trazer o material do produtor, tem que
129
trazer a jegue, a cavalo, então, nós tamos vendo isso aí. Até um trator para carregar e fazer
algumas atividades que ele possa fazer sem prejudicar o solo. Porque aqui, nós tamos na
areia e qualquer carro fica atolado e o trator não fica. Estamos lutando pra ver se a gente
consegue, estamos lutando porque não é assim, não. Não é fácil conseguir, estamos lutando
pra vê se consegue. (Maria dos Prazeres, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça).
– Com a Fundação Banco do Brasil, conseguimos a unidade, que não sabia para
onde ela ia [não tinham definido onde colocar a unidade] e, junto com o sindicato,
conseguimos trazer para a comunidade. E agora, tamos aí. Funcionamos ainda pouco porque
as famílias precisam ainda de um estudo. Porque eles têm o conhecimento de associativismo
e não cooperativismo. É um pouquinho diferente, é quase igual, mas não é igual, tem uma
coisa diferente. Então, eles não tão ainda aprendendo o que é esse negócio de
cooperativismo, mas nós tamos conseguindo com a Fundação e o SEBRAE, que vai fazer um
trabalho, que não fez ainda por estar fazendo por unidade, primeiro em Banzaê, este ano, e
em 2014, aqui. Também se o SEBRAE não ajudar, que ele tem muito conhecimento, se ele
não ajudar sobre cooperativismo, a gente vai ficar assim... a gente trabalha uma semana por
mês, aí é pouco. (Maria dos Prazeres, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça).
4.2
OUVINDO OS FACILITADORES NO PROCESSO DE EMPODERAMENTO
Diferentemente das depoentes agricultoras, no caso dos técnicos, foi acordado
com eles manter os seus próprios nomes. É muito importante, em projetos de
desenvolvimento rural sustentável que incorporam o enfoque de gênero, a participação de
profissionais, como agentes públicos, com sensibilidade para a temática das relações de
gênero. Na perspectiva de poder reconstruir o olhar dos técnicos e da técnica do PGV, em
relação à intervenção de gênero, fui ouvi-los através de entrevistas semiestruturadas.
O primeiro, Geraldo Gomes Varjão, é engenheiro agrônomo, 48 anos,
heterossexual, casado, duas filhas, se autodeclara negro, é natural do município de Macururé
(BA) e assume o cargo de chefe do escritório de Cícero Dantas. O segundo técnico, Adailton
Conceição Carneiro, é formado em pedagogia, 40 anos, heterossexual, casado, dois filhos (um
menino e uma menina), se autodeclara de descendência indígena, natural do município de
Ichu (BA) e assume o cargo de chefe do escritório de Jeremoabo. A única técnica
entrevistada, Rejane Magalhães Borges Maia, 41 anos, heterossexual, casada, duas filhas e
três enteados, se autodeclara como negra, apesar de, na certidão de nascimento, constar cor
130
parda e as pessoas falarem que ela é de ascendência indígena; nasceu no município de Cruz
das Almas (BA); assume a chefia do escritório de Ribeira do Pombal.
Dentre as mudanças observadas na vida das mulheres agricultoras, confirmadas
pelos grupos focais e pelos técnicos e técnica, destacam-se o aumento dos níveis de
escolarização e a participação nas atividades produtivas geradoras de renda. Nas últimas
décadas, observam-se mudanças mais amplas, como a diminuição do número de filhos,
transformações de ordem demográfica e em aspectos relacionados à subjetividade das
mulheres bem traduzidos pelo ideário em torno da “emancipação feminina”. Por outro lado,
persiste uma divisão tradicional do trabalho doméstico que perpetua a sobrecarga das
mulheres agricultoras, particularmente, em um momento em que cresce bastante a
participação
delas
na
produção
agrícola
como
trabalhadoras
remuneradas
e,
consequentemente, como provedoras das famílias.
Vale lembrar que feministas no mundo inteiro passaram a lançar um olhar crítico
sobre esta forma de inclusão das mulheres nos projetos de desenvolvimento e a apresentar a
noção pela qual o desenvolvimento só garante democracia de gênero se houver uma inclusão
das mulheres como protagonistas destes projetos além de uma decisão conscientemente
tomada de transformar as desigualdades existentes no acesso aos recursos, à tomada de
decisão e ao controle sobre os resultados das ações previstas nos projetos de desenvolvimento
com mecanismos claros para atingir este objetivo.
Mesmo em um universo relativamente pequeno de entrevistadas, há muitas
histórias, diferentes trajetórias e possibilidades de viver a experiência de ser mulher,
agricultora, mãe, artesã, professora, gestora, nos tempos de hoje. Este é um grande desafio
para essas mulheres agricultoras, nordestinas, de baixa renda, de pouca escolaridade,
formadas culturalmente para serem do lar, subordinadas aos seus pais e maridos.
A proposta de intervenção do Projeto Gente de Valor era uma proposta de
desenvolvimento rural que incluía um conjunto de melhorias econômicas, culturais,
ambientais, sociais e políticas, para o campo, das quais as populações envolvidas seriam
protagonistas e teriam o apoio dos agentes de Extensão Rural (técnicos e técnicas). O enfoque
de gênero está no objetivo geral: “melhorar as condições sociais e econômicas das
comunidades rurais pobres, através do desenvolvimento social e econômico, ambientalmente
sustentável, com equidade de gênero” (MOP72, 2008, p. 17). O “ambientalmente sustentável”
estava diretamente relacionado a promover a construção do desenvolvimento rural com base
72
Manual de Operações Projeto Gente de Valor, maio 2008.
131
nos princípios da Agroecologia. Esta escolha demandava um maior conhecimento teórico
sobre vários conceitos e práticas metodológicas diferentes das realizadas na Extensão Rural
tradicional (difusionista)73, que cumpria o papel de difundir tecnologias intensivas e
preconizava uma agricultura baseada na monocultura, na exportação e no consumo de
“pacotes” da Revolução Verde que vinha sendo executada pelo Estado.
Portanto, executar essa proposta dentro da estrutura do Estado era e é um grande
desafio, por exigir mudanças, também, nas ações de Assistência Técnica e Extensão Rural,
por seu caráter social com forte conteúdo de mobilização e organização, por usar
metodologias participativas, valorizar os saberes dos agricultores e agricultoras, trabalhar com
enfoque de gênero, respeitar as diferenças culturais, buscar a inclusão das mulheres e o
fortalecimento da agricultura familiar.
A dimensão social que foi trabalhada no Projeto abrange as dimensões produtiva e
econômica e a forma como se organiza esta produção. Entendo, como Emma Siliprandi, que
os processos de organização social são fundamentais para a extensão rural agroecológica no
seu fazer produtivo, que valoriza a forma como se organizam os grupos sociais e a sua vida
comunitária, e no qual
[...] o social não se restringe ao ‘assistencial’; aquele outro ‘social’ (saúde,
educação, lazer, cultura etc.), que de certa forma sempre foi enfocado nas
ações concretas da extensão, se for colocado em uma perspectiva estratégica
de construção de sujeitos sociais autônomos, e livre do difusionismo em
todos os seus matizes, passa a ser uma dimensão fundamental para uma
proposta de Extensão Rural Agroecológica (2002, p. 40).
Essa proposta de Extensão Rural Agroecológica exigia dos profissionais de campo
não só concordância com o discurso do Projeto, mas o rompimento com uma antiga prática e
postura, uma vez que estes trazem consigo valores e visões de mundo marcadas pela ideia do
difusionismo e da transmissão unilateral de conhecimentos, o que demanda dos profissionais
contratados maior conhecimento, qualificação e compromisso para desenvolver o Projeto no
campo.
Vejamos, agora, alguns depoimentos de técnicos sobre a questão da proposta de
extensão rural agroecológica:
– [...] eu sinto que foi uma limitação minha e o projeto acaba tendo essa
limitação por estar com profissionais que não tinham tanta qualificação nessa formação. [...]
73
O modelo de extensão rural oficial no Brasil cumpriu com o propósito de difundir tecnologias
intensivas em capital e constituir-se em importante aporte a um modelo de desenvolvimento
baseado na Revolução Verde.
132
Então, eu acho, para estar no Projeto Gente de Valor, um projeto com esse perfil, a gente
precisa ter experiências em todas essas temáticas que o projeto traz inclusive o da
agroecologia, que eu acho fundamental porque a gente está acompanhando todos os grupos
de produção. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
– [...] eu vim do MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores] e dentro a gente
tinha o plano camponês, que o MPA, a linha dele é dentro dessa questão da agroecologia e
não somente do adubo, do veneno, não, tudo que envolve aquele mundo ali dos agricultores e
das agricultoras nas comunidades. E quando eu entrei no MPA, também, a formação de
agrônomo lá em Cruz das Almas não te dá essa visão; pra mim foi importante a ida pro
MPA, por isso abriu minha mente para um outro lado, para um lado crítico do sistema que a
gente aprende dentro da faculdade. Eu lembro que, no MPA, a gente teve oportunidade de
estar conhecendo e fazendo algumas práticas também na linha agroecológica, de trabalhar
essas questões de gênero, do uso da não agressão à natureza, enfim, tudo que é relações
homem – planta – mulher, tudo. (Geraldo, Cícero Dantas, 2013).
Essa proposta exige a mudança do modelo em que esses profissionais foram
formados, de agentes de uma concepção desenvolvimentista que quer impor à repetição, aos
agricultores e agricultoras, um conhecimento e uma técnica prontos e tidos como únicos e
melhores, para um novo modelo, o de “agente de desenvolvimento”, que deve passar a ser o
facilitador de um processo de organização centrado na autonomia das comunidades.
Antes de expor outros depoimentos dos técnicos e da técnica, torna-se necessário
apresentar um perfil destes profissionais, assim, para um maior conhecimento dos agentes
facilitadores entrevistados, o Quadro 3 apresenta algumas informações gerais sobre essa
equipe.
Os técnicos e a técnica do Projeto Gente de Valor têm um papel importante no
processo de empoderamento, em especial, aqueles que vieram de uma militância dentro das
organizações da sociedade civil. Enquanto agentes externos, funcionam como simples
catalisadores iniciais no processo, já que a responsabilidade maior cabe aos sujeitos (as
próprias mulheres). Sobre isto, afirma Romano:
Não é algo que pode ser feito a alguém por uma outra pessoa. Os agentes de
mudança externos podem ser necessários como catalizadores iniciais, mas o
impulso do processo se explica pela extensão e a rapidez com que as pessoas
e suas organizações se mudam a si mesmas. (2002, p. 6).
133
NOME
(fictício)
Adailton
Conceição
Carneiro
Geraldo Gomes
Vargão
Sexo
Idade ( anos)
Quadro 3 – Perfil dos técnicos e da técnica do Projeto Gente de Valor da Região Nordeste da Bahia
Cor
Orientação
Sexual
Estado No
Origem/
Religião Profissão Cargo no PGV/Responsável
Civil Filhos Município
M 40 Branco Heterossexual
Rural
casado
2
M 48 Negro Heterossexual
Rejane Magalhães F 41 Negra Heterossexual
Borges Maia
casado
casada
Fonte: Pesquisa de campo – outubro a dezembro de 2013.
2
2
Católico Pedagogo Chefe do Escritório de Jeremoabo
Técnico do Componente Capital
Humano e Social
Rural / Católico Engenheiro Chefe do Escritório de Cícero Dantas
Macururé
Agrônomo Técnico do Componente Produtivo e
de Mercado
Urbana / Espírita Engenheira Chefe do Escritório de Ribeira do
Cruz das
Agrônoma Pombal
Almas
Técnica do Componente Produtivo e
de Mercado
Escolaridade
Superior
Superior
Mestra Água e
Solos (UFBA)
134
Os profissionais com formação interdisciplinar devem atuar como catalisadores,
facilitadores do processo de empoderamento das mulheres camponesas, incentivando sua
participação em atividades que lhes proporcionam condições de mudanças em relação a sua
consciência individual e coletiva e a conhecer seus direitos e capacidades. Desta forma, as
pessoas e suas organizações podem construir sua própria autonomia e sua inclusão nas
políticas sociais, tornando-se parte decisiva deste processo. Para os técnicos e a técnica
assumirem este papel, era preciso entender a proposta de intervenção com enfoque de gênero
do Projeto Gente de Valor. Na contratação dos profissionais que iriam trabalhar no projeto,
havia como recomendação conhecer e já ter trabalhado com gênero. À pergunta se já haviam
trabalhado antes com o enfoque de gênero, os dois técnicos e a técnica entrevistados, assim
responderam:
– No MPA, essa questão de gênero, também, eu acho que é muito parecido com o
projeto, você via muito falar disso, gênero, você tem que ter homens e mulheres. As próprias
pessoas dentro do movimento também não tinham essa discussão, não sabiam. Ah, tem um
projeto do MDA, e tem que vê essa questão de homem, mas era quantidade, eu via muito
quantidade. Tanto é que a equipe tinha que ter a mulher, ah, tem que ter, mas não é coisas
profundas. Como até hoje eu acho que também não é dentro do projeto [o PGV]. Tem muito
além disso aí, mas assim mesmo, você, como era também da equipe técnica e tinha aquele
item ali gênero, aí você despertava para entender e ler. (Geraldo, Cícero Dantas, 2013).
– Nunca trabalhei com gênero. Na verdade, eu nem sabia o que era gênero. Eu
vim para esse projeto e quando eu entrei aqui eu via muito falar “precisamos falar nas
relações de gênero”... Meu Deus, o que é isso? Gênero, a gente aprendia homem, mulher, na
escola – meu Deus – homem, mulher, tá. Eu entrei no projeto sem entender nada, não tinha
ouvido falar de gênero, eu, na verdade, eu era uma mulher que reproduzia os papéis,
reproduzia essa questão muito forte do que é ser homem e o que é ser mulher, o que é pra
homem fazer, o que é pra mulher fazer. Eu tinha isso muito concreto na minha cabeça de
como era e, pra mim, para eu chegar aqui, foi um processo para eu desconstruir e entender
que eu também, enquanto mulher, eu podia. Eu cheguei aqui, eu era técnica também do
projeto e eu ficava, e tive muito conflito aqui no projeto, eu tive muita vontade de ir embora
várias vezes. Eu não entendia, eu não fui uma pessoa que veio de movimentos, de militância,
então, não tinha essa compreensão, eu não tinha essa visão crítica muito do mundo, eu vivia
muito no meu “mundo de Alice” e naquela vida que não era tão tranquila, mas que eu já
tinha aceitado que era pra mim, que era aquilo ali mesmo, que eu tinha que viver daquele
135
jeito mesmo e eu não tinha nenhuma visão do que era gênero quando eu cheguei aqui no
projeto, nenhuma. (Rejane, Ribeira do Pombal, 2013).
– Com a minha experiência posso dizer que não; eu tinha uma reflexão muito
superficial, muito vaga. Acho que aprendi um pouco, queria que tivesse espaço para
aprofundar mais. Acho, assim, o pouco que dialoguei contigo, em algumas atividades e
materiais que foram socializados, acho que isso me ajudou, porque tento assim entender um
pouco mais. Não estou dizendo que hoje eu tenho uma formação à altura que o projeto
esperava em relação ao enfoque de gênero, acho que preciso muito, porque não tive uma
formação específica. Eu ganhei muito com o projeto, até dialogando contigo pessoalmente,
você contribuiu muito comigo até no nosso bate-papo, nas conversas de bastidores com
outras pessoas também... detalhes que está tão impregnado que a gente já traz desde a nossa
infância, da nossa criação. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
Pelos relatos, pode se perceber que um dos primeiros desafios para concretizar a
proposta de equidade de gênero do Projeto é ter profissionais com sensibilidade,
conhecimento e compreensão sobre o que é gênero e como trabalhar este enfoque no universo
de desenvolvimento rural. Nos depoimentos, observa-se, depois desses anos da execução do
projeto, o que eles entendem por gênero:
– Eu entendo que gênero, acima de tudo, além de ser essa igualdade de
oportunidades pra ambos os sexos, eu entendo que, além disso, já fundamentado em alguns
matérias que eu cheguei a ler, eu entendo que é a capacidade, principalmente das mulheres,
de questionar o modelo que está aí, fazer as intervenções na sua estrutura, nos espaços
sociais, políticos, questionar esse modelo dentro do próprio espaço doméstico, debater mais,
dialogar [sobre] a relação com o esposo, com os filhos. Acho que, hoje, essa questão do
preconceito, a questão do machismo, a gente percebe que não é um, a questão só do homem –
entendeu? –, a gente sabe que a mulher sempre foi vítima do processo, mas tá muito forte a
mulher com essa carga e formação que ela recebe e acaba disseminando, eu diria, essa
formação machista nas meninas e nos meninos, a gente já cresce com essa cultura enraizada
do machismo, isso é muito forte. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
– Hoje eu tenho uma visão de gênero muito baseada pelo o que eu li, mais no
NEIM74, que também me ajudou muito; na verdade, eu já fazia o trabalho, mas, na verdade,
eu ainda não tinha trazido pra dentro de mim, não percebia, como hoje eu percebo, quanto
74
O NEIM tem realizado, na modalidade de educação a distancia (EAD) cursos para o público
externo à UFBA, dentre estes, o curso de Especialização em Gestão de Políticas Públicas em
Gênero e Raça (GPP-GER) do qual a técnica Rejane chegou a participar do primeiro módulo.
136
que as mulheres sempre foram massacradas e fragilizadas; hoje eu percebo, muito
claramente, hoje eu tenho uma visão muito crítica. [...] Então, hoje, a gente está num país
que a gente tem uma mulher presidenta, mas, assim eu tenho o cuidado do olhar de gênero
sem ser muito feminista, porque também ela é uma mulher que está ali no poder, ela vai ser
criticada, ela é a melhor... não é isso, hoje eu entendo sobre gênero e relações, são
oportunidades iguais para homens e mulheres, sem limitações. [...] Eu ainda tenho, eu
trabalho muito em não colocar muito o feminismo, porque às vezes eu acho que fica muito
forte, eu não tenho nada contra as feministas, não, mas eu tenho muito esse cuidado de
não ficar no extremo. [...] Eu vivenciei essa coisa, eu aprendi como a sociedade prega, e
para eu desconstruir me deu um trabalho, imagina essas mulheres que ficaram anos naquele
massacre, pra você tentar desconstruir é problemático, mas hoje, as relações de gênero, eu
vejo muito assim gênero em relações de oportunidades pra homens e mulheres. Quando eu
cheguei no projeto, eu via muita oportunidade de acesso, de ter que ter uma mulher ali
dentro, hoje eu já tenho outro olhar, de ter uma mulher, mas que ela também tenha poderes,
que ela saiba tomar decisões, que ela tenha aquele olhar que ela também pode e também
percebo muito ainda, muitas limitações, maridos que se acham donos das mulheres, vejo
muitas coisas ainda que eu fico às vezes triste, poxa como é difícil desconstruir e como vai
ser difícil fazer com que essas mulheres, as filhas, não reproduzam os mesmos papéis, está
muito na reprodução... Então, eu acho que tem que trabalhar muito com a juventude, muito
com a educação, pra ir tentando desconstruir, porque, pra mim foi a educação que veio me
trazendo essa desconstrução, essa leitura, essa oportunidade de aprendizado, foi quem me
trouxe esse olhar de tentar desconstruir. (Rejane, Ribeira do Pombal, 2013).
– Gênero, pra definir assim em palavras eu não sei se conseguiria. Eu vou dar
um exemplo que eu tento construir com minha companheira também, de um respeito mesmo,
de uma relação entre seres, não de homem e de mulher e definir porque de homem e de
mulher, mas de seres que tem que se respeitar o outro, assim em termo de vontade do que
quer fazer, de não passar por cima do outro, de diálogo mesmo, de conversar, assim, como
eu tento também fazer... Eu tenho duas filhas também, eu fico preocupado também com vai
ser elas numa sociedade que eu conheci e que não mudou. Como será tentar que elas tenham
uma mentalidade futura, quando tiver um companheiro, um homem ou uma mulher, que seja
o que elas escolherem como companheiro? Que tenham isso, que procure o respeito de
dialogar, que tenha o direito de pensar, de discutir com o outro, de não necessariamente ser
uma imposição. Sem você impor o que você pensa sobre o outro, entendeu, você definir assim
137
pra mim, se resume nisso, no respeito, na questão de você não querer se impor sobre o outro.
(Geraldo, Cícero Dantas, 2013).
Os depoimentos mostram que as perspectivas de gênero e seus atores se
entrecruzam. Percebe-se como é difícil para esses técnicos e técnica trabalhar a questão de
gênero no cotidiano, sem primeiro desconstruir dentro de cada um deles e dela as questões
culturais, familiares, religiosas e outras aprendidas ao longo de suas vidas. A equipe não
conseguia pensar gênero dentro de uma lógica de relações em que tudo vai acontecendo de
forma interconectada entre sexo, classe, raça, etnia, idade, geração, origem e orientação
sexual. Esses agentes não conseguiam compreender a interseccionalidade dessas relações
plurais e como sexo e gênero operam na realidade e aí se imbricam.
Percebe-se, materializado nas palavras de Rejane, a técnica, um conceito de
gênero na perspectiva de desenvolvimento puramente analítico, dissociado da política do
feminismo. Por isto, apesar de Rejane estar em um processo de desconstrução de seus valores
e crenças culturais, a sua abordagem de gênero, na prática, ainda enfatiza as divisões sexuais e
a imposição de papéis masculinos e femininos e não desafia e questiona as relações de poder
entre os sexos nem os modelos dominantes de desenvolvimento que fortalecem os privilégios
masculinos e mantêm o surgimento destes papéis. Acredito que o “medo” que esta técnica e
outros técnicos têm do “feminismo” é, justamente, por este colocar em debate a separação
entre o público e o privado, afirmando, ao longo de sua trajetória de luta, que “o pessoal é
político” e, principalmente, pelo fato de contestar, social e politicamente, aspectos
considerados incontestáveis: a sexualidade, a família, a divisão sexual do trabalho doméstico,
entre outros (BUARQUE, 2003).
Apesar das dificuldades enfrentadas por esses agentes públicos para desenvolver o
Projeto, eles afirmam ser importante trabalhar a perspectiva de gênero em um projeto de
desenvolvimento rural sustentável:
– Sem dúvida, mais do que importante é fundamental. Eu acho que o Gente de
Valor serve, não é um modelo perfeito, mas serve como uma referência para um outro
projeto. Eu fico pensando: “rapaz, que maravilha foi o Projeto Gente de Valor, no meio
desse sertão nosso, nessa região semiárida, tão forte essa cultura machista, a concentração
de poder, de poderes autoritários na própria comunidade, na associação, enfim no espaço
familiar!”. Eu estava observando a oportunidade que o Gente de Valor deu, esse critério de
equidade na participação. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
– Olha, antes, quando eu entrei, eu não tinha nenhuma visão dessa aí. Hoje, meu
Deus, eu acho que é fundamental. Eu acho que o Gente de Valor, ele foi um projeto que
138
trouxe mudanças significativas para minha vida enquanto mulher, trouxe mudanças assim
fantásticas tanto na minha mente, quanto no meu comportamento e, assim, chegou muito no
final, foi que eu vim mais compreender isso aí, e hoje esse projeto, eu nunca vi um projeto
com uma roupagem dessa, eu acho que até o Gavião que falam, eu acho que ele não trouxe,
ele quis trabalhar, mas não fez muita coisa o Gavião... O Gente de Valor, ele já trouxe essa
visão e tentou fazer essa desconstrução, mas ainda não foi total, ela ainda não conseguiu, é
preciso ainda muitos anos, muito tempo, aquela coisa muito da mulher. Tive também com
comunidades quilombolas e as comunidades normais de agricultoras familiares, eu tive muita
dificuldade, porque eu não entendia o que era pra eu fazer, então, a gente se limitou muito
naquele início [a] colocar só a participação, tem que ter mulher aqui, se a gente formasse um
conselho, tem que ter mulher, não trazia aquele olhar por que tinha que ter uma mulher ali.
Eu mesma, nos que a gente participou, aqui, que no início tinha a chefe de escritório, e eu a
equipe, era duas mulheres, eu não trouxe esse elemento porque que era a mulher, eu vim
entender já muito quase já no final, e agora que vim trazer esse olhar de gênero. (Rejane,
Ribeira do Pombal, 2013).
– Se for pra discutir, só pra colocar “tem que ter gênero”, como eu vinha falando
antes, eu acho que é até melhor você não mexer, pra ser sincero. Porque, primeiro, eu não
acho pra tratar dessa questão de gênero, ainda mais numa região semiárida como é a gente,
com essa criação das questões dos coronéis, os papéis definidos muito mais das mulheres pra
dentro de casa, você só chegar a gênero e você reunir o grupo de mulheres ali e não sair
mais nada do que aquilo, dar umas máquinas de costura e dizer que está fazendo gênero, uns
kits beneficiamento de frutas, “ah, tem gênero”, porque nós estamos atendendo às mulheres –
entendeu –, convidar para umas reuniões e chega lá você nem considera também a opinião
da mulher, mas a mulher está lá, então, é importante, porque estamos fazendo gênero...
Então, nesse termo aí, tinha que ser revisto, porque, outra crítica também, que eu tenho, não
deveria ser esse tal do transversal, teria que ser uma coisa obrigatório, ter pessoas ali
capacitadas mesmo para estar trabalhando de uma forma mais centrada, mais focada, um
momento ali, outro aqui, pra isso pra quilo ali... Se tiver que fazer, fazer mesmo, porque, pra
mim, isso é uma questão de justiça com as mulheres, pela história delas e, pra mim, é uma
questão de política pública do país. (Geraldo, Cícero Dantas, 2013).
Os depoimentos desses profissionais mostram que, no início, o entendimento
deles sobre “equidade de gênero” era apenas aumentar o número de mulheres que
participavam das atividades. Depois, passou a ser importante que os grupos de mulheres se
transformassem em grupos produtivos – quintais, artesanato, beneficiamento de mandioca e
139
de frutas na busca de uma complementação da renda familiar. Os relatos mostram que,
especificamente com relação à forma de tratar homens e mulheres, ainda se carrega uma
tradição de trabalho no campo em que há uma segmentação baseada na divisão sexual do
trabalho dominante, produtivo que, geralmente, está ligado aos homens e o reprodutivo às
mulheres.
Dentro do Projeto, as principais transformações que se verificaram nesse modelo
foram, por um lado, uma preocupação em inserir as mulheres em todas as atividades
produtivas e organizativas, porém, ainda reforçando a presença das mulheres nas atividades
consideradas femininas como quintais, artesanato, beneficiamento de mandioca (beiju e
biscoitos) e de frutas. Tradicionalmente, nas comunidades rurais, essas atividades ou tarefas
ainda estão muito centradas no espaço doméstico e familiar, facilitando, assim, a participação
das mulheres e se constituindo em uma atividade geradora de renda para elas. As mulheres
não conseguiram ser maioria em atividades consideradas masculinas, como criação de
caprino, ovino e de abelhas que, no semiárido, são consideradas atividades rentáveis, sendo
um dos motivos principais para a concentração de homens nesta atividade.
Segundo Lisboa (2007, p. 647), “o papel do educador [...] deve ser o de desvelar a
realidade, juntamente com os sujeitos sociais, despertando a consciência e estimulando o
desenvolvimento de lideranças muitas vezes ocultas”. Os entrevistados, em seus depoimentos,
enquanto agentes facilitadores no processo de empoderamento, cumprem este papel quando
falam das mulheres enquanto sujeitos sociais ao participarem das capacitações e de diversas
atividades, trocarem informações, experimentarem sair do universo doméstico e conhecer
outras dinâmicas de organização com contato com outras mulheres e homens e se perceberem
como lideranças, levando-as a mudar, a querer continuar crescendo em conhecimentos e
experiências. Assim, comentam sobre as mudanças:
– Percebo, acho que ainda falta muito porque desconstruir não é fácil, mas eu
percebo muitas mudanças em mulheres que tomaram decisões. Eu tive ADS [Agente de
Desenvolvimento Subterritorial] que deixou a família e foi embora porque vivia na violência,
marido batia nela e ela teve coragem de deixar tudo, ela já era uma menina meio militante,
mas o projeto deu muita força a ela, porque veio toda essa questão quando a gente ia pra o
IRPAA75, que tinha aquela formação que trazia o “Vida Maria”76 num encontro... Eu
participei de alguns, eu não era do social, a gente tinha o social ainda nessa época e aquilo
75
76
Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada.
É um filme de animação do diretor Márcio Ramos. O filme retrata a realidade da personagem
Maria José, da infância até a idade adulta, no sertão nordestino, uma repetição do passado da vida
de sua mãe e avó.
140
ali traz muita coisa forte que mexe, e assim eu acho que os resultados vêm quando você pega
aquilo ali, traz pra você não só assistir – e eu tive mulheres dentro de grupos que trabalham
que mudaram, tiveram coragem de dar uma guinada porque a coragem não é pra todas, não.
Não é todas que têm coragem, o agricultor me falou “todas são dependentes do marido”, e a
gente trazer essa autonomia, trazer essa questão: “você deve estar aqui dentro do
empreendimento também”. Hoje eu tenho empreendimento de mulheres indígenas que elas é
que lideram e elas que vão tomar conta, não são homens, vão ser elas que vão administrar
aquilo ali, é um desafio muito grande pra elas, que só ficava ali dentro de casa. Eu sinto
nelas ainda um receio, querer se apegar no marido – “como é aqui, a gente precisa!” [...] E
a nossa resposta: “não, vocês podem, vai tomar a decisão no lugar deles!”. E é difícil pra
elas tomarem a decisão, elas romperem os padrões culturais, também da indígena. Eu vejo
avanços não é, não vou dizer que todas estão libertadas, que hoje está tudo maravilha, que
hoje já se divide tarefas em casa, até porque eu mesma ainda não consegui trazer isso pra
mim, divisão de tarefas, na minha casa, eu chego, eu é que lavo os pratos, eu é que vou pra
cozinha, meu marido, ele acha que trabalhou lá no comércio, que ele saiu 5 horas da manhã,
que ele está cansado; ele chega, e tem que deitar, e eu venho tentando desconstruir isso com
ele “meu filho, venha me ajudar, me ajuda fazer isso aqui”; ele já está indo fazer uma
coisinha, ele pelo menos já vai, porque não ia. (Rejane, Ribeira do Pombal, 2013).
– Na própria fala de homens e de mulheres eu já sinto, assim, que as coisas já
começam a mudar, as pessoas já não são as mesmas, que mudou qualquer coisa ali, no
comportamento, na visão; aqui, acolá, eu percebo numa reflexão. Já fico pensando que é
efeito do processo, não do meu trabalho em si, mas do nosso trabalho enquanto equipe. E
como educador que eu sou, também, eu percebo que o que a gente está fazendo é algo que
fica e os frutos... é como árvores que a gente planta e ela germina, tem todo um processo até
que ela possa dar frutos, então, assim, eu acho que a gente tem algumas plantas que estão
germinando e algumas precisam desse cuidado para que esse processo não se atrofie – temo
muito por isso. Um projeto como esse é uma passagem na vida dessas pessoas, então, essa
formação não garante que ela seja continuada, esse processo que se iniciou, então, as
comunidades vão continuar fazendo seus processos, suas dinâmicas de organização de
movimento, então, eu não tenho dúvidas que a gente vai colher muitos frutos do trabalho que
nós temos feito, eu não digo só o que a gente trabalhou... Mas a gente percebe alguns sinais,
por exemplo, eu fico muito feliz em ver alguém chegar e dizer que conseguiu sensibilizar um
pai para algumas práticas [agroecológica] lá no campo, alguém trazer exemplo da relação
em casa, reflexão sobre o trabalho doméstico compartilhado. Então quando eu percebo isso,
141
sinto que já é efeito do que nós fizemos e trabalhamos na comunidade, quando eu percebo
que as mulheres estão se encorajando e indo nos eventos fora, eu percebo que uma diretora
da associação em geral... há muita timidez, mas não é só da mulher, o homem também...
Aqui, hoje, tem uma predominância muito grande de homens, mas quando você vai para
tesouraria tem uma predominância enorme das mulheres, elas geralmente são as secretárias,
as tesoureiras e uma boa parte delas presidente também. Não há uma politização ainda,
aquela coisa de entender que ali é um espaço de poder, não há disputa ainda nas
comunidades [só com relação aos cargos de diretoria na associação], não tem bate chapa é
uma coisa muito assim de disponibilidade. Agora, no geral, a mulher sempre teve dificuldade
em sair, sempre foi mais reprimida, então, elas ainda assumem menos os cargos
considerados maior, mas eu percebo que os homens têm uma grande necessidade de contar
com a presença da mulher. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
– Sem dúvida, todas, não, algumas, a gente vê muito isso, também a ter mais
iniciativa em resolver as coisas, de ficar mais à frente, de opinar na hora da reunião, de
confrontar a gente do escritório, elas confrontam também, de não concordar, mas sempre
geralmente uma, mas muitas mais em volta, mas você já sente que aquela que está ali pelo
menos ela tem um poder ali, e como na maioria era elas também, elas enxergaram isso e se
apoderaram também. Eu não sei como seria se a gente tivesse a participação balanceada
com homens e mulheres. Se a gente tinha conseguido que essa mulher se sobressaísse como
algumas por aí. Por isso que eu digo, se tivesse mais mesclado homens e mulheres, tivesse
realmente, e comparar, se a gente for analisar, a gente conseguiu: a maioria é mulher, mas
foi mais pelas atividades que as mulheres chegaram mais, e como era mais e tinha homem
ali, mas lógico que elas conseguiram o domínio. Pra mim não é um domínio completo, é
meio, não existia os confrontos mesmo, eu queria ver se elas teriam coragem de confrontar o
homem que estava ali, dizer se tivesse um número maior. Eu acho que foi mais por isso, pelas
atividades, então, os homens se afastaram um pouco, as mulheres vinham mais. (Geraldo,
Cícero Dantas, 2013).
Nos três depoimentos, pode-se perceber a concordância em relação às mudanças
internas ocorridas com as mulheres, algumas já se expressam falando no grupo sobre suas
opiniões e já demonstram capacidade de fazer suas próprias escolhas. Também concordam
que não são todas as mulheres que estão nesse processo de mudanças, porém, a questão
trazida no depoimento do Geraldo aborda, a partir da experiência do seu contexto de atuação,
o fato de que as mulheres tiveram um maior domínio dentro das atividades do Projeto.
Segundo ele, porque elas eram a maioria e porque os homens não tinham interesse nas
142
atividades propostas pelo Projeto. Realmente, o escritório de Cícero Dantas desenvolveu
atividades como quintais e beneficiamento de frutas, atividades de interesse e de presença
maior de mulheres. Estas atividades possibilitaram às mulheres a vivência do processo de
empoderamento intrapessoal na medida em que elas se sentiram valorizadas e perceberam que
tinham mais oportunidades e recursos para agir sem ter constrangimentos e limitações.
Acredito que a participação dos homens, na área de atuação do escritório de Cícero Dantas,
fosse maior se o Projeto tivesse aportado recursos para atividades de criação de animais
(gado, ovelha, cabra) e também apicultura, aí sim, teria mais conflitos e disputas entre os
homens e também entre as mulheres e os homens, pelos recursos e pela condução das
atividades, já que são atividades mais rentáveis. Porém, não se pode afirmar que as mulheres
se empoderariam mais ou menos, se houvesse um número maior de homens, dentro do grupo
ou da associação, disputando pelo poder decisório, já que o empoderamento intrapessoal é
uma variável dependente de fatores externos e do comportamento individual. Talvez alguma
mulher tenha deixado de participar, diante das dificuldades, por estar ainda em um grau de
empoderamento pessoal menor que outras e por não ter consciência de sua própria habilidade
e quais seus reais interesses dentro do grupo.
No PGV, em alguns momentos do processo, os agentes públicos (os técnicos e a
técnica) agiram para o desempoderamento das mulheres agricultoras, mesmo que
inconscientemente, quando não ouviram suas demandas e suas reais preocupações, ou quando
as incentivaram a participar de atividades e processos de “fachada”, apenas para constar a
presença das mulheres (ex.: curso de pedreiras, atividades de ovinocaprinocultura, de
apicultura), nos quais as definições e decisões já estavam previamente tomadas e as ações
efetivas das mulheres não iriam mudá-las nem influenciá-las.
Horochovski (2006, p. 8) afirma que “os agentes públicos jogam um papel no
processo, agindo mesmo que inconscientemente, para o desempoderamento, quando não dão
créditos às preocupações dos cidadãos [...]”. Alguns dos profissionais do Projeto, agentes
públicos,
agiram,
alguns
conscientemente
e
outros
inconscientemente,
para
o
desempoderamento das mulheres e de suas organizações, uns por falta de competência ou por
não acreditarem na proposta do Projeto ou por questões ideológicas. Os agentes que
assumiram seu papel com compromisso e consciência perceberam sementes de
empoderamento porque, apesar dos problemas, as mulheres estão dando respostas, estão se
unindo nos grupos e construindo estratégias de ação coletiva na perspectiva de continuidade.
Nos depoimentos, pode-se constatar que esse processo de empoderamento é dialético,
continua quando elas querem definir sobre suas vidas, querem decidir sobre os
143
empreendimentos e pensar pela sua própria cabeça. Vejamos o que dizem os agentes
facilitadores, quando questionados se as mulheres estariam preparadas para exercer sua
capacidade de escolha com seu próprio pensar:
– Ainda não é tanto, não, porque quando chegam em casa têm as questões dos
companheiros que trava ainda, que bloqueia... Eu já percebo que elas têm vontade, eu já
percebo nelas muita vontade de ir, mas têm as pedrinhas [que] estão lá, que elas ainda não
conseguem tirar e não conseguem trabalhar a pedra – “eu não consigo tirar as pedras que eu
tenho, mas eu estou tentando intemperisar”. Isso precisa de anos, que talvez eu nem consiga
nessa encarnação. Eu não vejo elas assim totalmente, mas eu vejo algumas, empoderadas,
que eu sei que se entende enquanto mulher, essas últimas aí dos focos... Mesmo que eu fique
mais, eu já estava entendendo mais o processo, eu mexo mais um pouquinho. (Rejane, Ribeira
do Pombal, 2013).
– Sim, em alguns casos, sim. [...] Percebo habilidades para determinadas funções
na comunidade Canabrava. Por exemplo, eu admiro muito a tesoureira, lá, uma pessoa ativa,
sempre ali presente, sabe, ela consegue dar conta do recado como tesoureira da associação.
Hoje ela consegue desenvolver a função dela, hoje, com uma certa desenvoltura que eu
percebo, que isso, o projeto contribuiu muito nesse processo aí de formação. [...] Eu acho
que ainda, o processo é muito lento, eu já espero alguma coisa delas e percebo também
agora, acho ainda muito pouco tempo pra elas chegar neste ponto de só tomar grandes
decisões. Por exemplo: esses dias, em uma visita que fiz a um subterritório, aí, as mulheres
levantaram uma demanda que a gente já vê, mas por conta da estiagem tem que dar um
tempo, foi a questão da negociação aqui das mulheres de Jeremoabo, aqui, dos quintais
produtivos e que fazem parte das comissões gestoras dos kits feiras das barracas. Então, as
mulheres de Ribeirinhos levantaram, e a gente mobilizou também outros subterritórios e elas
vieram pra cá fizeram uma reunião entre elas para definir a demanda, e já tiveram uma nova
audiência com a prefeitura, eu só acompanhei, elas que deram o recado delas e negociaram
os espaços para guarda dos equipamentos aqui na cidade. Elas falaram para a prefeitura que
não tinham condições de todo dia trazer e voltar para a comunidade, ficava muito caro,
muito trabalhoso, e conseguiram, tem um lugar aí provisório que está aí guardando, começou
a semana passada, sábado passado. E conseguiram um local, um espaço na feira, só
padronizada e financiadas pelo Gente de Valor, para atender todas as nossas comunidades.
[...] É muito tímida ainda, falar em empoderamento, eu acho ainda muito tímido, apesar que
eu percebo avanços do tempo que eu estou aqui. Já percebo algumas mulheres que, a partir
do nosso espaço de reuniões de encontros, em algumas falas, eu já percebo que elas estão se
144
despertando mais para essa questão de seu valor próprio enquanto mulher e enquanto
comunidade. Eu já percebo mulheres se levantando mais, usando mais a voz, argumentando
mais, eu já percebo isso. E eu acho as mulheres mais danadas, eu acho que elas participam
mais, estão mais presentes, elas correspondem mais, e acho que quando a gente sensibiliza,
qualquer processo de sensibilização, elas respondem. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
– A desvantagem que eu te falei de não ter tanto homem presente nos grupos de
interesse, agora, pra mim, é a grande vantagem, porque elas, de alguma forma, se
empoderaram, em alguns casos, não digo todas, elas não vão deixar de perder esse
empoderamento que elas tiveram e, pelo o que a gente vê aí, alguns grupos, não todos, se a
gente enquanto equipe incentiva elas [a] procurarem outras alternativas, elas se
identificaram, elas têm expectativas, não em termo financeiro, de mudar tanto, mas elas
estavam lá no corte e costura, no beneficiamento de frutas, porque, antes, elas ficavam em
casa, então, e hoje, eu estou aqui, eu converso com minhas colegas, a gente está produzindo,
a gente está tentando vender. A gente já sente esse lado social que tirou a mulher daquele
esquema de dentro de casa para um espaço onde discute as coisas. Eu estava observando
aquele grupo que você foi visitar e elas estavam lá, que elas pegaram a encomenda de um
suco e eu fiquei um pouco mais e vi que quando elas estavam trabalhando, elas estavam lá
discutindo, até que surgiu aquele problema da condução escolar e elas estavam discutindo
isso da forma delas, mesmo sem saber o como fazer, com os medos. Uma senhora estava com
medo da reação do marido se soubesse do problema que estava ocorrendo lá. A outra, cuidar
da filha pra filha não dar um sorriso para uma determinada pessoa que estava causando um
problema, mas ainda não tinha essa iniciativa de ir lá e resolver, mas, estavam discutindo
trabalhando numa atividade e, ao mesmo tempo, discutindo uma coisa delas e discutindo e
tentando da forma delas resolverem seus problemas. (Geraldo, Cícero Dantas, 2013).
Por tudo que foi discutido, percebe-se que o processo de empoderamento das
mulheres agricultoras e também dos homens agricultores é uma semente plantada. E, diante
das conquistas obtidas por algumas destas mulheres, sente-se que esta semente germinou e
vem crescendo, através da busca por seus direitos, com consciência de seu pertencimento ao
grupo e à comunidade, com uma representação ativa e qualificada de algumas destas mulheres
nos conselhos municipais, mesmo não tendo passado por nenhum processo de preparação ou
capacitação. Percebo este crescimento quando conseguem elaborar projetos em busca de
recursos governamentais existentes para viabilizar seus empreendimentos produtivos, quando
conseguem se articular em redes com outras comunidades, organizações e movimentos
sociais.
145
Pretende-se, nos próximos capítulos, dar voz a algumas destas mulheres, ouvir
suas histórias de vida e, a partir de suas trajetórias e experiências, perceber com mais detalhes,
em uma perspectiva do sujeito, o processo de empoderamento, observar os níveis de
empoderamento individual, organizacional e de comunidade e perceber a sua articulação
enquanto uma variável dependente das singularidades de cada contexto.
146
5
TRAJETÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DAS MULHERES AGRICULTORAS
Antes da discussão sobre as trajetórias e experiências das dez mulheres
agricultoras entrevistadas, do Projeto Gente de Valor, faz-se necessário retomar algumas
categorias de análise, que considero importantes e mesmo fundamentais para um melhor
entendimento da reflexão que pretendo desenvolver neste capítulo.
A categoria “gênero” é uma delas, importante para entender as relações sociais, de
modo geral e, em especial, as relações de poder entre os homens e mulheres, entre homens e
homens e entre mulheres e mulheres. Assim como gênero, reconheço “classe social”,
“raça/etnia” e “idade/geração” como categorias relacionais de análises que contribuem para a
compreensão das questões atinentes a esta temática e a sua interseccionalidade com gênero e
outras categorias. Geração e idade são dimensões fundantes da vida social, além de gênero,
classe, e raça/etnia, o que implica em reconhecer a necessidade de pensar estas dimensões de
forma articulada e relacional nas trajetórias e experiências dos sujeitos, individual e
coletivamente, estudados.
Pretende-se dar voz às mulheres, apresentar suas histórias de vida e, a partir de
suas trajetórias da vida cotidiana e das experiências por elas vividas ao exercerem as
atividades domésticas, organizativas e produtivas em suas comunidades, perceber como se
deu ou não o processo de empoderamento. No confronto de elementos teóricos com a
experiência concreta dessas mulheres agricultoras, pretende-se enriquecer o debate sobre
como a questão de gênero interfere na organização social dos espaços público e privado e
levar a pensar nos valores e contravalores que estão associados a cada uma das designações
atribuídas aos homens e às mulheres na sociedade contemporânea.
5.1
GÊNERO E A INTERSECCIONALIDADE COM OUTRAS CATEGORIAS
Os relatos das mulheres entrevistadas trazem elementos relevantes para a
discussão das dinâmicas das relações de gênero, classe, raça e geração: a infância na zona
rural, a dificuldade para iniciar os estudos, a condição econômica e social, a discriminação
racial, a relação com os pais e maridos, a participação em grupos produtivos e na associação.
As histórias de vida são ricas de intersecções destas categorias que permitem analisar uma
infinidade de intercruzamentos e esta articulação e sua dinâmica nos possibilitam
compreender a vida social dessas mulheres agricultoras, permitem a identificação das relações
de dominação que estruturam o contexto sócio-histórico como um sistema que interconecta as
147
opressões de raça, classe e gênero, mas, inicialmente, precisam ser analisadas no seu entrelace
e na sua potencialidade de se interceptarem, como expressa Crenshaw em sua discussão sobre
o conceito de interseccionalidade:
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar
as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais
eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o
racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições
relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a
interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram
opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos
ou ativos do desempoderamento. (2002, p. 177).
Esse conceito é importante como uma ferramenta analítica para nos ajudar a
compreender as formas de interação dessas múltiplas discriminações que marcaram as
trajetórias e as experiências de vida das mulheres agricultoras pesquisadas. A noção de
interseccionalidade possibilita entender como estas opressões operam e se estruturam dentro
de uma “matriz de dominação”, na medida em que esclarece as maneiras como estas
opressões interseccionais de gênero, classe, raça, etnias, geração, regionalidade e outras,
ocorrem nas instituições sociais, como, por exemplo, na família e na associação comunitária,
pensando no caso das mulheres agricultoras.
Scott (1995) define gênero como categoria analítica usada para designar as
relações sociais entre os sexos e identificar as igualdades, as desigualdades e as diferenças
existentes entre eles, o que nos ajuda no conhecimento das dimensões plurais e fundamentais
da vida das mulheres agricultoras pesquisadas. O estudo de gênero possibilita uma releitura
das explicações correntes, que atribuem a homens e mulheres lugares diferenciados no
mundo, diferenças estas atravessadas e constituídas por relações de poder que irão conferir,
historicamente, uma posição dominante ao homem. Também nos possibilita observar as
mudanças na organização nas relações sociais ocorridas entre os homens e as mulheres, nas
famílias e nas associações parceiras do PGV. Baseando-se nas diferenças percebidas entre os
sexos, mostra como os sujeitos sociais estão sendo constituídos, cotidianamente, por um
conjunto de significados impregnados de símbolos culturais, conceitos normativos,
institucionalidades e a identidade subjetiva (SCOTT, 1995, p. 86).
A despeito da importância da categoria ontológica gênero para o entendimento da
realidade desses grupos e contextos sociais, como é o das mulheres agricultoras, outras
categorias relacionais, além de gênero, têm igual importância e, entre estas, destaca-se a de
148
classe social, como uma categoria sobre-determinante. Analiticamente, a dimensão de classe é
valiosa para entender o funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa e
imprescindível para que possamos entender como a vida dos sujeitos é marcada pela sua
relação objetiva com o mundo da produção. Pensar na desigualdade de classe implica em
pensar na desigualdade de gênero, uma vez que ambas se imbricam.
A exploração das mulheres, na atualidade, se dá dentro de uma estrutura de classe
marcada por severas desigualdades entre as mulheres, entre os homens e entre mulheres e
homens. Além de gênero e classe social, outra categoria relacional importante para nossa
análise, na trajetória de algumas destas mulheres agricultoras, é raça/etnia, importante para
entender a interação entre desigualdades raciais, econômicas, sociais e as relacionadas a
gênero. São dimensões fundamentais para evidenciar a importância do reconhecimento das
diversidades de raça que diferenciam as mulheres e se intersectam com outras identidades e
como essas intersecções contribuem para a vulnerabilidade alimentar, trabalhista,
educacional, habitacional e da vida privada das mulheres agricultoras e de seu grupo familiar.
Este contexto nos reporta à discussão levantada por Crenshaw (2002, p. 176)
sobre “a discriminação interseccional difícil de ser identificada em contextos onde forças
econômicas, culturais e sociais moldam o pano de fundo de forma a colocar as mulheres em
uma posição onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de subordinação”. As mulheres
agricultoras foram e continuam sendo vítimas de uma sociedade desigual, não só por serem
mulheres. Também por serem, em muitos casos, pobres, negras, rurais são colocadas em um
lugar de inferioridade social no qual são mantidas, como se sua condição e posição fossem o
resultado imutável ou natural da vida e não tivesse por detrás todo um aparato social
hegemônico e opressor, muitas vezes invisível. É evidente que as características de raça e
sexo das nossas entrevistadas trazem consigo sua origem, modos de agir, pensar e sentir
específicos, que se manifestam em traços físicos marcantes de seu grupo racial e indicativos
de seu lugar social.
Na trajetória das mulheres entrevistadas apresentadas a seguir, fica evidente que a
estrutura e a ação do pensamento patriarcal e conservador, discrimina, dificulta e inviabiliza
as lutas e conquistas profissionais das mulheres. Muitas como elas também enfrentam o
racismo imbricado com o sexismo. Colette Guillaumin (1994) diz que o reconhecido
parentesco entre racismo e sexismo repousa, em primeira análise, em analogias evidentes
entre eles. O desprezo com que são considerados as raças não brancas e o sexo fêmea, – a
inferioridade social em que uma e outro são mantidos pela divisão social do trabalho vigente,
a precariedade econômica que decorre disto, a segregação espacial e temporal são fatos na
149
vida das mulheres agricultoras e também das mulheres de suas famílias. Luiza Bairros sinaliza
que apesar de as mulheres passarem pela mesma opressão sexista, racista e de classe, elas
experimentam e vivenciam a opressão de maneira diferente, dependendo da posição que elas
ocupam na matriz de dominação:
A experiência de opressão sexista é dada pela posição que ocupamos numa
matriz de dominação onde raça, gênero e classe social interceptam-se em
diferentes pontos. Assim, uma mulher negra trabalhadora não é triplamente
oprimida ou mais oprimida que uma mulher branca na mesma classe social,
mas experimenta a opressão a partir de um lugar, que proporciona um ponto
de vista diferente sobre o que é ser mulher numa sociedade desigual, racista
e sexista (1995, p. 459).
Essa reflexão nos leva a entender que os pertencimentos dos sujeitos podem ser
reconfigurados a depender da combinação de gênero, classe, raça, de idade e geração ou de
outros diferentes sistemas de opressão.
Como as outras categorias sociais referidas acima, a categoria idade/geração
também se expressa no marco das relações de poder. Em articulação intricada com gênero,
raça, classe e outras dimensões fundantes de relações sociais, percebe-se que a categoria
idade/geração tem uma grande complexidade analítica e se projeta, ao mesmo tempo, natural
e socialmente. As idades constituem importante fator de análise da vida social, já que as ações
do Estado definem a inclusão e exclusão do indivíduo segundo sua condição etária, através do
aparato jurídico e das políticas sociais. Portanto, as idades são institucionalizadas, política e
juridicamente, e usadas como mecanismo de classificação e separação dos indivíduos, como
podemos observar nos dados apresentados na pesquisa. Idade e geração são, pois, importantes
fatores de organização social com posições e situações definidas.
O sentido de geração empregado por Alda Britto da Motta e por outros
pesquisadores se baseia nas teorias de Karl Mannheim77: que “designa um coletivo de
indivíduos que vivem em determinada época ou tempo social, têm aproximadamente a mesma
idade e compartilha alguma forma de experiência ou vivência” (2004, p. 350). Nos relatos das
histórias de vida, as mulheres agricultoras revelaram uma ampla gama de experiências e
vivências geracionais, quando foram entrevistadas e estimuladas a fazer um exercício de
memória, lembrar fatos de sua vida e de suas experiências individuais geracionais,
compartilhando um momento histórico de suas vidas ou de suas antepassadas.
77
Karl Mannheim, filosófo e sociólogo judeu nascido na Hungria (Budapeste) apresentou e
desenvolveu a “sociologia do conhecimento” como uma disciplina acadêmica, através da crítica do
conceito de ideologia de Karl Marx.
150
Ao compreender as gerações como “coletivos de indivíduos” que, inicialmente,
pensam sua experiência na sociedade de forma individualizada, percebo que este processo se
materializou nos encontros realizados com elas e nos grupos focais. O pertencimento
geracional é um processo que se revela construído dentro do grupo, na medida em que as
mulheres foram “puxando pela memória” considerando a transmissão geracional de valores,
as etapas do ciclo de vida reprodutivo e produtivo. A princípio, cada uma trazia as suas
lembranças do passado as quais foram se constituindo, no progredir dos relatos, não mais
como de indivíduos, mas de um coletivo. Elas foram se percebendo naquela geração retratada
não só por terem idades aproximadas, mas, também, por terem vivido fatos semelhantes ou
por estarem sendo identificadas no discurso, nos eventos lembrados pelo grupo ou, ainda, por
outro fato que elas testemunharam ou de que participaram pessoalmente acerca de algumas
temáticas em que mulheres e homens estão envolvidos, e isto favorece o entendimento de uma
série de mudanças e permanências em suas vidas ao longo de suas trajetórias.
A noção de “trajetória” é entendida por Pierre Bourdieu (1996, p. 292) como
“uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou mesmo grupo de
agentes, em espaços sucessivos”. Esta abordagem nos permite, a partir do sujeito, situar
acontecimentos biográficos individuais e coletivos e seus deslocamentos no espaço social.
Trabalhar trajetória de vida traz a possibilidade concreta de reconstrução do passado (a
infância, a adolescência, a migração, por exemplo, para São Paulo, o emprego de doméstica e
a experiência das mulheres no PGV), das fases da vida a partir dos relatos das mulheres,
levando em consideração a descontinuidade e as rupturas ocorridas tanto na vida individual
como coletiva. Através do trabalho sobre estas trajetórias e suas vivências, pretendo analisar a
mobilidade social, os processos de empoderamento das mulheres agricultoras; observar os
níveis de empoderamento individual, organizacional e de comunidade e perceber se e como
eles se articulam, focando nas situações familiar, escolar e profissional (no grupo produtivo e
na associação) e se se identificam a um grupo social do qual são elementos constitutivos;
resgatar o caminho e o percurso da vida dessas mulheres antes e durante o Projeto Gente de
Valor; e, também analisar as mudanças sociais, de situação econômica, nas atividades
profissionais por elas desenvolvidas, nas relações de gênero, de classe, de raça e de geração,
pois remetem sempre a uma relação mais coletiva em torno de pertencimentos sociais
partilhados por vias institucionalizadas, na associação ou na família.
Ao reconstruir, na investigação, as trajetórias individuais das dez mulheres
agricultoras, trabalho com a ideia de “curso de vida” (life course), pois, segundo Elizabete
Bilac (1991, p. 83), “o indivíduo é a unidade básica de análise, buscando-se alcançar a família
151
pela interseção das trajetórias individuais”. Procura-se, assim, entender, através dos relatos
biográficos (mais subjetivos), os comportamentos individuais para compreender os períodos
da vida dos sujeitos, em uma visão mais complexa e elaborada, articulados à reconstrução dos
percursos mais institucionais (estruturas objetivas), assim como na dinâmica e interação
familiar. Ao refletir sobre as relações sociais que se materializam no cotidiano e na história de
vida dessas mulheres, no âmbito do Projeto Gente de Valor, identifico matizes de gênero,
classe social, raça e geração na constituição de identidades e sociabilidades. Observa-se que
gênero, raça, geração e classe social, como categorias relacionais ou da experiência
concretamente vivida, contribuem para explicar melhor as diversas trajetórias de vida
percorridas socialmente por diferentes homens e mulheres.
Como são relações de poder, este aspecto não pode escapar à análise. Mulheres
agricultoras com experiências e trajetórias diversas tiveram de se organizar e se articular para
lutar pelos seus direitos e interesses comuns, pelo reconhecimento de seu trabalho e pela
afirmação de sua identidade de mulheres e de mulheres agricultoras. Este foi, e continua
sendo, o modo que encontraram para superar as dominações de toda ordem e viverem com
maior plenitude a vida. O “paradigma do curso da vida” (SIMÕES, 2004, p. 1) precisa ser
analisado sob uma perspectiva dinâmica, pois existe uma fluidez entre as fases que nos ajuda
a entender as inter-relações entre a trajetória pessoal e a estruturação histórica e cultural
experimentada por essas mulheres no passado, no presente e nas suas expectativas futuras.
Por fim, a noção de “experiência”, que é fundamental na investigação do processo
de empoderamento das mulheres agricultoras entrevistadas. Na pesquisa, utilizei a definição
desenvolvida por Joan Scott (1999, p. 28), segundo quem “não são os indivíduos que têm
experiência, mas os sujeitos é que são constituídos através da experiência”. O conceito ajuda a
pensar as semelhanças e diferenças de vivências das mulheres agricultoras no interior das
categorias sociais como gênero, classe, raça, geração e outras. Seguindo este caminho,
percebe-se que o conceito articula a vida social dos sujeitos (individual e coletivo), a
experiência vivida e sentida por elas com o conjunto de práticas e representações simbólicas
em torno do “mundo real” em determinadas circunstâncias históricas. Portanto, é fundamental
historicizar as experiências das mulheres agricultoras, observar os níveis de empoderamento
individual, organizacional e de comunidade, dando mais atenção aos acontecimentos que se
cruzam e se repetem, perceber se e como eles se articulam no processo de empoderamento
destas mulheres, dependendo das singularidades de cada contexto.
152
5.2
AS
MULHERES
AGRICULTORAS:
HISTÓRIAS
DE
VIDA
E
EMPODERAMENTO
Apresenta-se um olhar situado sobre as trajetórias individuais e as experiências
vividas pelas mulheres agricultoras investigadas. Toma-se como eixos de análise quatro
aspectos fundamentais nas histórias de vida, em suas trajetórias e experiências pessoais
passadas e presentes: 1) infância: o processo de socialização/família de origem; 2)
adolescência e juventude: a trajetória afetivo-sexual e reprodutiva/experiência de
conjugalidade; e 3) a vida adulta: a inserção no Projeto Gente de Valor. Observa-se em seus
relatos os aspectos estruturais como as condições de vida do grupo familiar de origem
(pai/mãe), escolarização, o nível socioeconômico, a experiência de trabalho na infância e na
juventude e a situação conjugal ao participarem desse projeto de desenvolvimento rural.
Na construção do perfil, a atenção se volta para as determinações sociais,
principalmente as que decorrem de gênero, classe, raça/etnia e idade/geração, como também
observa-se se essas mulheres mudaram a si mesmas e às suas vidas.
Instigam-nos as continuidades e descontinuidades nas representações de gênero
em diferentes gerações de famílias das mulheres agricultoras investigadas. Ao comparar as
suas trajetórias, independentemente de suas idades e gerações, observo como se assemelham
em várias temáticas das quais abordarei aquelas relacionadas aos papéis produtivos e
reprodutivos, à divisão sexual do trabalho, educação, violência e sexualidade, partindo sempre
de seus relatos.
5.2.1
Infância
De um modo geral, a infância das mulheres agricultoras entrevistadas apresenta
mais semelhanças do que diferenças, independentemente de sua idade e geração. Todas as dez
mulheres falam, em seus relatos, das dificuldades enfrentadas por suas famílias quando ainda
eram crianças, do sofrimento causado pela pobreza, da fome, do relacionamento com os pais,
das obrigações de cuidar dos irmãos e das irmãs e ainda da casa, do trabalho na roça e da
migração.
Apresenta-se uma breve descrição da trajetória particular da infância de cada uma
delas: Maria José (parda, 50 anos, casada); Maria Amélia (branca, 50 anos, separada); Maria
de Lourdes (branca, 41 anos, em união consensual); Maria do Sossego (parda, 38 anos, em
união consensual); Maria dos Prazeres (parda, 32 anos, em união consensual); Maria da Paz
153
(parda, 32 anos, solteira); Maria das Dores (preta, 31 anos, separada); Maria Esperança (preta,
28 anos, casada); Maria Alice (parda, 25 anos, em união consensual); e de Maria dos Anjos
(parda, 24 anos, em união consensual). Trata-se, portanto, de encontrar possíveis
convergências e divergências nas histórias de vida dos sujeitos, resgatar como suas vidas,
quando crianças foram construídas e modeladas dentro de padrões culturais e sociais,
impondo-lhes formas de agir e pensar. Este resgate nos ajuda a analisar as circunstâncias
sociais e as oportunidades determinadas pelo contexto social e também por escolhas e
decisões possíveis neste contexto.
Maria José é filha de agricultores alagoanos, que vieram em 1983 para o interior
da Bahia, onde compraram um pedaço de terra na comunidade Baixa do Mocó, município de
Santa Brígida. Seu pai morou em um rancho de palha, por muitos anos, e só conseguiu
construir uma casa de taipa, um pouco antes de Maria José se casar. A família era muito pobre
e sua mãe teve 15 filhos, dos quais sobreviveram dez: sete homens e três mulheres. Seu pai
trabalhava como vaqueiro nas fazendas de gado e, com sete anos de idade, ela e seus irmãos e
irmãs também foram cuidar de gado. Lembra-se que seu pai não os deixava estudar: era tanto
trabalho que não tinham tempo de estudar. Mesmo assim, teimava em ir para a escola e
conseguiu concluir a 4ª série primária (hoje, Ensino Fundamental I), mas seus irmãos e irmãs
são analfabetos. A situação econômica dos seus pais era muito difícil, pois, o que ganhavam
no gado e na roça mal dava para sobreviver. Conta ainda que saía para a roça com apenas um
cafezinho e, por vezes, desmaiava de fome, pois o que ganhavam no trabalho dava apenas
para comer, ao meio dia, “um feijão puro com farinha”.
Maria Amélia conta que, desde criança foi muito sofredora e passou muitas
necessidades. Nasceu na comunidade Raso Pintado, município de Fátima, na Bahia. Quando
pequena, foi criada pela avó, pois sua mãe era muito jovem quando ela nasceu e seu pai não
assumiu as responsabilidades de marido e pai. Sua avó era analfabeta e sua mãe sabe apenas
assinar o próprio nome. Assim como suas ancestrais, ela teve dificuldades para estudar
quando criança, porque sua família não tinha condições econômicas para pagar a escola e
comprar os materiais escolares. Conseguiu concluir a 4ª série primária (Ensino Fundamental
I) estudando com os livros emprestados de uma colega. Sua família era pobre, não tinha
acesso a terra e, durante toda a sua infância, sua mãe trabalhava no serviço que aparecesse:
como doméstica, lavadeira e vendendo dia de trabalho na roça de outras pessoas. Sua mãe
arrumou um marido e teve oito filhos desta relação e foi então que ela passou a morar com a
mãe. Maria Amélia diz que, antes de completar dez anos de idade, já cuidava dos irmãos e
irmãs, porém, foi quando completou seus dez anos que assumiu a responsabilidade de criar e
154
cuidar deles como mãe. Ela lembra que brincava de roda com os irmãos e irmãs na casa de
farinha...
A infância de Maria de Lourdes foi triste e também muito sofrida: fome e
violência doméstica estiveram presentes nesta fase de sua vida. Seus pais eram muito pobres,
não tinham terra para trabalhar. Seu pai bebia muita cachaça, ficava violento com sua mãe e
ameaçava matá-la com uma arma. Muitas vezes tiveram que fugir do pai alcoolizado, à noite,
com a mãe, e dormir debaixo de uma árvore na roça dos vizinhos. Ela, os irmãos e as irmãs
nasceram e se criaram na comunidade de Bariri, no município de Ribeira do Amparo, na
Bahia, sempre com o pai bebendo: a morte dele, há cerca de quatro anos, foi consequência do
excesso de bebida alcoólica. Seus pais não tinham terra para plantar, só tinham o lugar da casa
onde moravam. Quando seu pai não estava bêbado, trabalhava na olaria batendo tijolo, porém,
na maioria das vezes, colocava os filhos mais velhos, com idades entre nove e dez anos, para
trabalhar no lugar dele. Sua mãe era quem trabalhava e tinha que tecer cinco redes de fiapo
por semana para vender na feira e desta forma ganhava um dinheiro para comprar comida e
sustentar seus oito filhos. Ela conta que passou fome e que tinham que procurar na caatinga
“olho de macambira”78 para comer. Quando a mãe ganhava algum dinheiro, ela comprava
cabeça de gado ou de porco para cozinhar e passar a semana, mas, geralmente, só tinham para
comer feijão e farinha. Maria de Lourdes estudou só a 1ª série primária (Ensino Fundamental
I) e, na infância, brincava de casinha feita com pauzinhos e com bonequinhas de barro junto
com os irmãos, irmãs e os primos e primas.
Maria do Sossego conta que seus avôs e avós vieram do Estado de Alagoas, mas
seus pais, assim como ela, já nasceram na comunidade Tanque de Cima, município de Santa
Brígida, na Bahia. Diz que seus pais sempre trabalharam na roça como agricultores e que eles
têm um pequeno pedaço de terra onde plantam feijão e milho para subsistência da família.
Maria do Sossego lembra que sua mãe teve sete filhos, dois homens e cinco mulheres dos
quais seis nasceram em casa, com parteira, e apenas sua irmã caçula nasceu no hospital. Sua
mãe fala que ela é tão “avexada” e “agoniada” que quando a parteira chegou, ela já tinha
nascido... Desde quando eram bem pequenos e ainda não sabiam nem pegar na enxada, sua
mãe ensinou a ela e a seus irmãos e irmãs a trabalhar na roça ajudando seu pai, pois eram
muito pobres. As meninas com seis, sete anos de idade já estavam acostumadas a fazer todas
as tarefas domésticas da casa, além de ter que ir para a roça com a mãe. Reclama que não teve
78
Macambira (Bromelia Laciniosa), planta da família das Bromeliáceas, é uma vegetação espinhosa,
típica da Caatinga do Nordeste brasileiro, muito resistente à seca, cujo rizoma serve de alimento,
por ocasião das secas, tanto para as pessoas como para os animais.
155
muito tempo para estudar, fez até a 5ª série (hoje 1ª do Ensino Fundamental II). Maria do
Sossego fala que foi bom ter sido acostumada a trabalhar desde criança, pois estava tão
acostumada que nem achou ruim quando, aos nove anos de idade, teve que ir morar com a
irmã em Salvador para cuidar dos dois sobrinhos e das tarefas domésticas. Ela conta que,
quando criança, além de trabalhar também brincava “de roda”, “esconde e esconde” e de
“chicotinho queimado”. Lembra que brincava de boneca de pano que sua mãe mesmo fazia,
porém seu pai, não permitia que ela e suas irmãs brincassem “de bola” com os irmãos, por
achar que era brincadeira de homem e não de mulher.
Maria dos Prazeres nasceu na comunidade de Baixa do Mocó, município de
Novo Triunfo, na Bahia, e enfrentou, desde criança, muitas dificuldades junto com sua
família. Seu pai não tinha terra, trabalhava na roça de outras pessoas e só quando ela já tinha
dez para onze anos de idade ele conseguiu comprar 50 tarefas 79 de terra. A família passou
muita necessidade financeira, pois seu pai já tinha outra família quando foi morar com sua
mãe e, por este motivo, sua mãe viveu muitos conflitos com os filhos do primeiro casamento
do seu pai. Ela contava que abortara o primeiro filho, o único filho homem que teria durante a
vida, depois de uma briga com o filho mais velho do marido. Sua mãe teve sete filhas
mulheres e todas começaram a ir para a roça com sete anos de idade, pois seu pai tinha uma
enxadinha com cabo curto para elas começarem a limpar mandioca, feijão, capim e plantar
fumo. Para sobreviverem, às vezes, toda a família ia trabalhar “de empreita” 80. As sete irmãs
pegavam na enxada, enxadeco, foice e machado. A situação era de muita pobreza, tinha dias
que só comiam metade de um ovo e iam trabalhar e, quando voltavam da roça, sua mãe
colocava todas as filhas para irem à escola. Muitas vezes elas não queriam ir para a escola,
porque a fome era grande e não conseguiam acompanhar e aprender o que era ensinado na
escola. Seu pai e sua mãe não estudaram, são analfabetos.
Maria dos Prazeres lembra que seu pai não era carinhoso com as filhas, era um
homem muito bruto e ruim que brigava muito com sua mãe e não queria deixar suas filhas
estudarem. Dizia ele que estudo era para filho de rico, filho de pobre não é para estudar é para
trabalhar na enxada; aí, a briga com sua mãe começava e ela sempre dizia: “pobre também é
gente”. Segundo ela, seu pai não acreditava em nada, o negócio dele era a roça: acordava duas
79
80
Uma tarefa baiana corresponde a 4.356m², 50 tarefas a 217.800m² e correspondem a 21,78
hectares.
“Empreita”, o mesmo que “empreitada”: “(1) obra por conta de outrem, mediante retribuição
estipulada antecipadamente; tarefa; (2) trabalho ajustado para pagamento global, e não parcelado”
(DICIONÁRIO HOUAISS, 2009).
156
horas da manhã para catar facheiro81, que vendia e com este dinheiro comprava comida e,
uma vez no ano, uma roupa, uma sandália. No tempo da safra do caju, as sete irmãs passavam
três meses catando castanha para a vizinha, que era sua tia. O pagamento pelo serviço era
feito como um “agrado”: caderno, lápis, sandália e, às vezes, até um corte de tecido para fazer
roupas. Lembra que brincava com as irmãs e os primos e primas só no final de semana, de
“pular corda”, de “cai no poço”, de “esconde-esconde” e de montar em jegue. Ela fala com
orgulho e com muita gratidão de sua mãe e irmã, por ter conseguido, com a ajuda delas,
concluir o Ensino Superior e estar fazendo uma pós-graduação.
Maria da Paz nasceu e se criou na roça, na comunidade Fazenda Pedrinhas, no
município de Fátima, na Bahia. É filha de pai agricultor e sua mãe, já falecida, também era
agricultora. Conta que, durante a infância, sempre viveu na roça e em casa e nunca saía para
lugar nenhum. Apesar de seus pais não terem terra, possuem só um pequeno terreno onde está
construída a casa e, atualmente, as cisternas e os dois canteiros da horta, ela não falou em ter
passado fome na infância, só dificuldades. É a única filha e a mais velha do casal, que teve um
total de quatro filhos, três homens e ela. Sua mãe era analfabeta e seu pai não teve
oportunidade de estudar muito: sabe escrever seu nome, faz algumas contas e consegue ler
com dificuldade. Ela acha que o problema do seu pai é não ter estimulado nem colocado ela e
seus irmãos na escola. Lembra que foi à escola pela primeira vez, aos 11 anos, com os irmãos,
por conta própria. Eles correram atrás da professora quando ela passava na frente da casa
deles e pediram para estudar e foi assim que começaram. Lembra que iam para a escola e
também para o campo de futebol jogar bola. Conta que ficaram alegres quando, na 4ª série
primária (Ensino Fundamental I), foram estudar na sede do município de Fátima. Lá estudou
até a 7ª série do Ensino Fundamental II, quando parou os estudos para trabalhar como
doméstica. Lembra que seu pai nunca bateu nela e em nenhum dos filhos, porém, não os
deixava sair para brincar, então, ela brincava em casa com os irmãos.
Maria das Dores lembra que, quando criança, conheceu seus ancestrais – bisavôs
e bisavós, avôs e avós –, que foi a primeira família a morar no quilombo. Seus avôs eram
cortadores de cana de açúcar na região do município de Cipó, na Bahia. Sua mãe e suas tias
nasceram e se criaram, assim como ela, na comunidade Maria Preta, no município de Banzaê,
também na Bahia. Sua infância foi difícil, pois começou a trabalhar com seis anos de idade,
na roça e em casa ajudando sua mãe: pegava água na fonte, lenha na roça, lavava os pratos e
varria a casa. Desde nova, trabalhando na roça, não tinha tempo nem liberdade para brincar
81
Facheiro (Pilosocereus pachycladus) é uma planta da família das cactáceas, endêmica da Caatinga
da Região Nordeste do Brasil.
157
quando era criança nem tinha roupa para passear e nem mesmo para onde ir. Seu pai e sua
mãe sempre trabalharam na roça plantando culturas de subsistência como feijão, milho,
mandioca, andu, e também cuidavam das fruteiras do quintal da casa. Sua mãe teve cinco
filhos, três mulheres e dois homens. Seus pais não eram de bater nem de castigar os filhos e
filhas, como “o povo de antigamente”, mas, quando na infância faziam alguma coisa errada,
seu pai só precisava passar os olhos meio atravessados que eles paravam imediatamente o que
estavam fazendo, pois tinham muito respeito pelo pai. Seus antepassados mais velhos não
tiveram condição de estudar, pois, antigamente a escola era particular e eles não tinham como
pagar, assim, a maioria é analfabeta. A sua mãe conseguiu romper com esta série ininterrupta
de analfabetos, apesar de não ter tido oportunidade de estudar muito, mas aprendeu a ler e
escrever um pouco. Maria das Dores fala com orgulho do fato de ter estudado, concluído o
Ensino Médio e, principalmente, por ser o Curso de Magistério, pois sonha em ser professora
na comunidade. Segundo ela, durante sua infância, as brincadeiras foram poucas: recorda que
fazia sua boneca de milho e enrolava em um paninho. Quando já estava um pouco maior,
brincava de “cai no poço” para dar um beijo no namoradinho. Na brincadeira de roda
costumavam cantar: “O pião entrou na roda ou pião, bombeia ou pião bombeia ou pião”.
Maria Esperança conta que seus pais sempre trabalharam na roça e que, desde os
sete anos de idade, colhia tomate com seus pais e irmãos e irmã, para ajudar na renda da
família. Seu pai e sua mãe, agricultores, assim como ela, nasceram na comunidade Canabrava,
no município de Jeremoabo, na Bahia; só depois do casamento vieram morar na comunidade
vizinha, Bananeirinha, onde nasceram Maria Esperança e seus cinco irmãos, uma mulher e
quatro homens. Ela fala que seus pais não conseguiram estudar, pois sua mãe, quando criança,
tinha que ajudar a criar os irmãos mais novos para sua avó trabalhar na roça. Só depois de
adulta, aos 50 anos de idade, sua mãe foi estudar, cursando até a 2ª série primária (Ensino
Fundamental I), quando aprendeu a assinar o nome e ler com dificuldade. Maria Esperança é
o orgulho da família, por ser a que mais estudou, concluindo o Ensino Médio.
Ela recorda, ainda, da dificuldade de estudar quando era criança, pois não tinha
escola na comunidade e tinha que andar muito para outra comunidade, então, sua mãe,
preocupada com esta situação, resolveu ceder o espaço do bar que ela tinha para servir de
escola. Lembra que as pessoas da comunidade providenciaram as cadeiras e sua mãe fazia
merenda escolar no fogão a lenha, pelo que “não ganhava nenhuma paga”: o pagamento era
ver as crianças da comunidade estudando ali mesmo. Só depois de muitos anos, a prefeitura
construiu uma escola na comunidade de Bananeirinha, mas o ensino era fraco, segundo
informa, e até hoje sente dificuldade em matemática e português. A grande lembrança de sua
158
infância é de as famílias se juntarem para fazer piquenique na beira do rio, pescar e nadar,
momentos raros de lazer. Antigamente, não existia energia elétrica na comunidade e seus pais
tinham uma televisão a bateria, que era a única na comunidade, então, as pessoas iam assistir
as novelas e, enquanto isso, as crianças se juntavam para brincar de “bandeira” e de “pé de
mela”.
Maria Alice teve uma infância diferente das outras mulheres entrevistadas. Ela é
de origem urbana, morou na cidade de São Paulo até os 16 anos de idade. Nascida na
comunidade de Bariri, município de Ribeira do Amparo, na Bahia, com apenas dois meses de
vida foi com sua mãe que voltava para São Paulo onde morava. Ela lembra que passou
dificuldades, mas não do tipo que sua bisavó baiana contava, que, nos tempos dela, as pessoas
não tinham o que comer, passavam fome, a situação era tão ruim que comiam até “sopa de
pedra”...
A mãe de Maria Alice ainda sofreu com esses tempos difíceis de pobreza, tanto
que, quando casou, foi morar em São Paulo na perspectiva de ter uma vida melhor. Lá, seu
pai, que saiu de sua terra natal, no estado de Pernambuco, com 18 anos de idade e, assim
como sua mãe, não teve condição de estudar, trabalha como pedreiro. Nossa entrevistada
estudou em São Paulo até o segundo ano do Ensino Médio e, na Bahia, conseguiu concluí-lo.
Ela conta que não conhece a família de seu pai em Pernambuco, pois ele nunca mais voltou
para visitar seus parentes. A sua mãe teve seis filhos, quatro com o pai dela, sendo ela a mais
velha; os dois irmãos mais velhos por parte de mãe são do primeiro casamento e quem cria é a
avó materna. Ela fala com tristeza e mágoa de sua mãe, por ter sido viciada em jogo de bingo,
quando Maria Alice era criança, culpando o vício da mãe pelo fato de o pai não ter tido
dinheiro para visitar a família dele em Pernambuco, pelas dificuldades econômicas
enfrentadas por seu pai para criar os filhos, pela sobrecarga de tarefas e responsabilidades
assumidas por ela dos 7 aos 14 anos de idade e, por fim, pela separação do casal.
Para ela, seu pai é o melhor homem do mundo, um herói, porque, além de
trabalhar para sustentar a família, cuidava da filha e dos filhos enquanto sua mãe saía para
jogar bingo e só voltava depois de um ou dois dias. Ele costumava dividir com Maria Alice as
tarefas domésticas de lavar pratos, cozinhar, lavar roupas, dar banho nos meninos e se
preocupava quando tinha que ir trabalhar deixando sob a responsabilidade dela o cuidado com
os irmãos menores. Ela recorda, ainda, que brincava de jogar bola, empinar pipa e de ABC,
com seus irmãos e suas colegas em São Paulo, e que, no final de cada ano, vinha com sua mãe
e irmãos para a casa da avó, na Bahia, onde brincavam de pedrinha, porém, o que mais
gostava era de encontrar a bisavó e o bisavô dos quais muito gostava.
159
Maria dos Anjos também tem origem urbana, nasceu na cidade de Santa Brígida,
na Bahia, e sua infância teve muitos momentos difíceis e tristes, principalmente por não ter
sido criada nem por seu pai nem por sua mãe. Por outro lado, ela coloca que sua infância foi
boa, pois seu tio materno junto com sua esposa teve a iniciativa de acolhê-la e criá-la, mesmo
sendo pobres e tendo oito filhos para sustentar. Eles eram muito pobres, havia dias que não
tinham o que comer. Eram também muito trabalhadores: ele cuidava de animais nas fazendas
da região e ela era lavadeira, lavava muita roupa para que todos os filhos e filhas pudessem
estudar. As filhas maiores tinham de ajudar nas tarefas domésticas e no cuidado com os
irmãos menores. Maria dos Anjos afirma que deve muito ao tio, que a ensinou a perseverar e
sempre ir em frente, e à esposa dele, a pessoa que ela é hoje e por ter estudado e conseguido
concluir o ensino médio. Ela fala com alegria e com orgulho que seu tio e sua tia, apesar de
não terem tido a oportunidade de estudar, se sacrificaram para que todos os filhos e filhas e a
sobrinha estudassem e concluíssem o Ensino Médio.
Nos relatos das 10 mulheres, quando perguntadas sobre as lembranças que tinham
da infância, aparece, inicialmente, a pobreza, sendo a fome abordada por oito delas, de
maneira muito forte e dolorosa por algumas. Ao abordar a pobreza a partir de uma perspectiva
de gênero e como um fenômeno multidimensional, entende-se pobreza como Angelita Toledo
e Teresa Lisboa (2011, p. 2), como algo que “não se restringe unicamente à esfera material
e/ou econômica (salário, alimentação), mas extrapola para as dimensões subjetivas que vêm
ao encontro das necessidades básicas das pessoas, tais como carências de proteção, de
segurança, de lazer entre outras”. As entrevistadas, primeiro, falam da fome de alimentos e da
carência do recurso econômico, porém, no desenrolar dos depoimentos, vamos observando as
dimensões subjetivas desta fome, que se materializa ao longo da trajetória de vida delas. Os
depoimentos de Maria de Lourdes, de Maria José e o de Maria dos Prazeres evidenciam a
marca da pobreza vivida por essas mulheres:
– A minha infância sofrida, lembro que minha mãe se acabava de trabalhar, tecer
rede para dar de comer à gente, que meu pai só bebia. Ela fazia cinco redes na semana, rede
batida, tudo pra dar de comer à gente. Ela sai pra feira [às] 03 h da manhã com a rede na
cabeça pra vender, não tinha o que comer, a gente ia caçar olho de macambira pra comer,
era, fomos criada desse jeito. Hoje em dia tem mordomia, nosso tempo não tinha mordomia,
nós não sabia o que era comer um quilo de carne, que a mãe não podia. Ela comprava
cabeça de porco, cabeça de gado para gente passar a semana e era só o feijão e a farinha.
(Maria de Lourdes, branca, 41 anos).
160
– Porque no tempo de eu pequena nós não mora que nem hoje em dia. Era um
tempo difícil. Meu pai, coitado, trabalhava lá no gado pra criar a gente. Depois de 7 anos
pra frente nós trabalhava no gado direto mais ele. Nós não tinha tempo nem de estudar. Eu
estudei até a quarta série porque eu teimava de ir e ia pra escola. Mas se não fosse isso eu
não tinha aprendido nada. Essa dali não aprendeu assinar o nome, os meninos também
nunca aprenderam. Meu pai trabalhava lá no gado e nós também pra sobreviver. E não era
pra ser bem, minha filha. Tem hora que eu digo a essas meninas: hoje em dia agradeço a
Deus, que eu me sinto uma pessoa rica. Porque antigamente nós não tinha [...] as casinhas
eram de taipa, cada buraco desse tamanho [risos]. Nós não tinha boa vida. Hoje em dia a
gente cria os filhos, eu criei seis filhos, graças a Deus nenhuma nunca foi pra roça.
Amanhece o dia pra tomar café, cafezinho com pão e ainda acha ruim se for pão [...] ainda
acha ruim se for cuscuz com leite, não quer, se for não sei o quê não quer e antigamente nós
amanhecia o dia e tomava um cafezinho, ia pra roça pra voltar meio dia. Tinha vezes que até
desmaiar na roça a gente desmaiava de fome, por que nós não tinha condições. Meu pai era
pobrezinho. O que nós trabalhava só dava pra comer de meio dia. E não tinha esse negócio
de comer feijãozinho com arroz, carne, macarrão, tinha não essas coisas, não. Era o
feijãozinho puro com farinha, às vezes nem carne tinha. Aí eu digo: hoje em dia o tempo tá
bom demais. Todo mundo tá rico, graças a Deus. Eu agradeço a Deus né. (Maria José, parda,
50 anos).
Nos depoimentos de Maria de Lourdes e Maria José, ficam evidentes que suas
famílias eram muito pobres e não tiveram acesso aos meios para melhorar as suas condições
de vida e de seus irmãos e irmãs. John Friedmann (1996, p. 50) diz que “não são os
indivíduos, mas as unidades domésticas que são ‘pobres’, a própria pobreza deve ser
redefinida como um estado de desempoderamento”. Os estudos da ONU afirmam que 70%
dos pobres do mundo são mulheres e que um grande número delas mora no meio rural.
Reconhecendo que a pobreza afeta, de maneira diferente, homens e mulheres, concordo com
Friedmann quando afirma que a pobreza constitui um desempoderamento das mulheres
agricultoras pelas desigualdades de oportunidades entre homens e mulheres.
Seguindo essa mesma visão, Marcela Lagarde fala da “pobreza de gênero” e
afirma que ela é produto da dominação e opressão de gênero:
O gênero feminino é aquele que mais trabalha; recebe menor retribuição
pessoal por seu trabalho; enfrenta mais impedimentos e limitações para
alcançar riqueza social; possui mais carências, enfrenta mais privações e
satisfaz em menor medida suas necessidades vitais. (1996, p. 170).
161
As carências e necessidades não afetam indistintamente as pessoas. Se existem
fatores de discriminação entre as pessoas, conforme a sua condição de gênero, de classe, de
raça, etnia e origem, então o fato de serem pobres, mulheres, negras, em sua maioria, e
moradoras do campo faz com que estas mulheres agricultoras estejam mais propensas do que
outras a figurar entre os pobres. E, portanto, enfrentam mais limitações e impedimentos, têm
mais chances de sofrer a condição de pobreza que é uma das principais causas da dificuldade
de acesso aos alimentos – embora não seja a única. O predomínio de mulheres entre os pobres
é consequência do desigual acesso feminino às oportunidades econômicas e sociais. Esta
condição de pobreza está relacionada com o acesso ao trabalho, à renda, à propriedade e à
escolaridade. É o que se observa no depoimento de Maria dos Prazeres:
– A minha infância foi difícil, porque antigamente não tinha a oportunidade que
hoje tem de Bolsa Família, esse negócio aí não tinha, então nós trabalhava as sete irmãs na
roça [de] enxada, enxadeco, machado, foice, pra sobreviver. Tinha dia de comer a banda de
um ovo, então a minha mãe botava a gente pra trabalhar, porque tal hora vocês vão pra
escola, meio período. A gente trabalhava meio período, a gente estudava, tinha vezes que a
gente dizia: “Mãe, não adianta a gente ir pra escola que a gente não tá aprendendo”. Aí
Deus ajudou que veio uma tia da gente morar aqui na comunidade, e no dia de sábado e
domingo ela dizia: “Comadre, manda as meninas pra casa”. Aí nós ia, uma rama braba de
menino. Ela também tinha um filho, aí ajudou bastante. Minha irmã mais velha já estava
mais crescida um pouquinho, aprendeu mais rápido, aí foi que ajudou nós a ler, porque
quando você não sabe ler, não sabe nada. Você sabendo ler um pouquinho desenvolve mais.
Foi difícil a infância, era difícil. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Todas as dez mulheres pesquisadas falam que começaram a trabalhar ainda
crianças, entre seis e sete anos de idade. É necessário dizer que, embora o trabalho no campo
seja pesado, a ocorrência da “ajuda” infantil continua presente na estrutura de trabalho da
agricultura familiar, também como um processo de aprendizagem, assumindo um papel de
socialização e identidade. Nos relatos, é visível a dificuldade das mulheres quando crianças,
estudarem e a quase ausência de outras atividades na vida delas, como brincadeiras e lazer.
Entre as entrevistadas, apenas uma mulher jovem, Maria Esperança, fala em seu depoimento
dos momentos de lazer na beira do rio com a família, como lembrança da infância:
– De piquenique, as pessoas fazia muito piquenique, juntava as famílias, levava
as crianças pro rio, pescando, fazia pirão, só vinha embora de noite. Isso é assim uma grande
lembrança que ficou em minha memória, era um momento de lazer muito bom pra gente,
tanto para as crianças como para os adultos. (Maria Esperança, preta, 28 anos).
162
Apesar de as crianças na zona rural executarem várias tarefas e atividades, elas
são consideradas sem experiência, são controladas pelos pais e, muitas vezes, pelos irmãos
mais velhos, e assim aprendem e, consequentemente, reproduzem, principalmente as meninas,
desde a infância o cuidado com os irmãos e irmãs. Deste modo, aprendem desde muito cedo
como cuidar dos seus futuros filhos e filhas, netos e netas. Este aprendizado se dá através de
mecanismos racionais, emocionais e da linguagem, que favorecem a identificação da criança
com o outro, a percepção e a assimilação de papéis e atitudes de outros (mãe e avós) como
seus. É importante compreender que a socialização das normas e valores não transcorre de
forma linear, que o processo de internalização ocorre no curso de vida (SIQUEIRA,
SARDENBERG, 2014, p. 37). As meninas começam ajudando nos afazeres domésticos,
cuidando dos irmãos e irmãs menores e trabalhando na roça com os pais: foi o que disseram
Maria das Dores e Maria do Sossego:
– A minha infância não foi fácil, né. Eu nasci aqui, me criei aqui, e com as
dificuldades, que desde nova que a gente já trabalha na roça, a gente não tem uma liberdade
de brincar, mas é na roça, ajudando mãe em casa e às vezes nem no final de semana. A gente
na minha infância não tinha assim pra onde ir, os outros povoados, a gente às vezes não
tinha nem a roupa pra ir passear. No trabalho, nuns seis anos acho que foi por aí, lavando os
pratos, varrer casa, ir pra fonte na Barroca, pegar lenha da roça mesmo. (Maria das Dores,
preta, 31 anos).
– Olhe minha mãe sempre dizia, sempre falava isso, e eu fui vendo que o que ela
falava com nós antigamente não foi ruim, porque quando eu fui cuidar desses dois sobrinhos
e da casa eu não estranhei, nós já trabalhava, nós trabalhava de roça, nós pequenininho na
roça da minha mãe mesmo. Antes de saber pegar na enxada todo mundo ia para roça
trabalhar. Agora uns trabalhava satisfeito, outro trabalhava brigando, que sempre existe
isso, mas ia, pessoa fraco tinha que trabalhar. (Maria do Sossego, parda, 38 anos).
A identidade de gênero na vida dessas mulheres agricultoras foi sendo construída
desde a infância, no seio de suas famílias. Por serem meninas pobres, sentiram na pele como a
divisão sexual do trabalho marca a classe social e tiveram que assumir os trabalhos
domésticos e as tarefas ditas femininas ainda bem crianças, assim como sua mãe e suas avós.
Isto se evidencia como um processo que foi sendo produzido e reproduzido por força da
ideologia de gênero, que confere ao homem a responsabilidade pelas atividades ditas
“produtivas”, geradoras de renda monetária, e, às mulheres, as tarefas ditas “domésticas”,
reforçando deste modo a constituição da identidade de gênero. Esta identidade, masculina ou
feminina, se materializa através de imagens, gestos e símbolos que são alimentados pelos
163
aspectos normativos, e se institucionaliza na família, na educação, na religião, na vida
doméstica, na associação comunitária, nas relações políticas assim como nas demais relações
sociais que interagem no cotidiano da vida destas mulheres agricultoras.
Para essas mulheres quando crianças, estudar foi um grande desafio, tinham
muitas dificuldades no aprendizado, por assumirem uma sobrecarga de tarefas domésticas e
também produtivas, no nível de exigência de sua execução e na responsabilidade no
desempenho de cumprir com as obrigações por elas assumidas. Maria Alice, apesar de ser
uma das mais jovens e de origem urbana diz:
Lembro assim da minha infância, brincando com minhas colegas e cuidando dos
meus irmãos, tinha uns 07 até os 14 anos (Maria Alice, parda, 25 anos).
Já o depoimento de Maria do Sossego nos revela que ela, além de assumir
obrigações com os sobrinhos, ela migra para a cidade de Salvador para também cuidar de
tarefas domésticas, com apenas nove anos de idade.
– Na verdade eu saí daqui com 12 anos, não, 09 anos, eu fui cuidar do meu
sobrinho em Salvador. Eu tenho duas irmãs que moram em Salvador. Eu fui cuidar desses
dois sobrinhos, e cuidava da casa e ainda estudava. Eu tinha obrigações. (Maria do Sossego,
parda, 38 anos).
Ela também nos conta que ensina a filha, dezessete anos de idade, a fazer as
tarefas domésticas, reforçando a ideologia de uma essência feminina, ensinando para a filha
padrões de comportamento de menina que aprendeu com sua mãe e com sua avó. Maria do
Sossego e as outras mulheres entrevistadas ainda não percebem que, ao reproduzirem e
naturalizarem as diferenças nas relações de gênero entre homens e mulheres por intermédio da
cultura, das tradições, da divisão sexual do trabalho doméstico, continuam a instituir sua
subordinação enquanto gênero feminino. Ela diz:
– Eu tenho uma menina que tem 7 anos, ela varre a casa, ela passa pano: “Clara,
eu estou aperreada, vem lavar aqui esses pratos”. Ela lava do jeito dela, nem que eu tenha,
depois, quando ela sai, dou uma saidinha vou e lavo direito, mas eu deixo ela fazer, porque
eu acho assim que a pessoa não pode explorar os filhos, mas tem que ensinar, fazer alguma
coisa pra quando chegar ao ponto que eu cheguei a trabalhar, o que for, não ignora, não
sofre. Porque ali já tem costume, a minha mãe acostuma de cedo fazer. (Maria do Sossego,
parda, 38 anos).
Nas relações familiares destas mulheres, observo como a ordem de gênero
patriarcal ainda impera e é mantida cotidianamente por homens e mulheres, porém percebo
como as mulheres agricultoras são peças importantes na reprodução e continuidade do
164
patriarcado, por meio, sobretudo, da educação dos filhos e filhas. A família é uma instituição
que desempenha um papel muito importante no processo de socialização dos indivíduos e na
transmissão da herança simbólica cuja hierarquia de lugares sociais, aliada à autoridade da
experiência e dos saberes das gerações mais velhas, se constitui como referência para a função
socializadora.
Neste contexto, a família assume seu papel mediador entre o indivíduo, a
sociedade e o Estado permeando as fronteiras entre as esferas pública e privada. É necessário
tentar visibilizar a relação entre a família e a sociedade, suas mútuas influências e entender a
complexidade desta relação que se expressa em descontinuidades e permanências.
[A família] é uma trama de relações sociais as mais básicas, corporificadas
em indivíduos que constroem sua identidade de gênero como homens ou
como mulheres, de variados grupos de idade que se constituem (ou podem
ser vistos) como gerações, e se identificam como crianças, jovens, adultos
plenos ou velhos. (BRITTO DA MOTTA, 1998, p. 69).
Nos depoimentos das mulheres a seguir, percebo a trama de relações sociais
vividas por elas, na família, independentemente de sua idade e geração. O relacionamento
familiar com os pais, com as avós, com os irmãos e irmãs e com os maridos nos mostra a
família como lugar social do amparo, dos afetos, dos desafetos, dos sentimentos, dos amores,
e também como espaço de conflito, às vezes de violência, de embates entre os sexos/gêneros e
gerações. É necessário dizer que a família é espaço hierárquico e de disputa de poder. As
relações de gerações e de gênero, ou melhor, de poder vividas no entrelace entre as gerações
contíguas (pais e filhos e filhas; avós e filhos e filhas) e intrageracionais (os irmãos e as
irmãs) nos mostram que o conflito é maior nas gerações que estão mais próximas da geração
em que se está vivendo. Vejamos o que falam as mulheres pesquisadas Maria dos Anjos,
Maria Amélia, Maria da Paz e Maria Alice sobre a relação familiar na infância:
– A minha infância, certo momento, foi boa, em outro não, porque eu não convivi
nem com pai nem com mãe na infância, mas fui criada pelo tio e a esposa dele, e nesse meio,
nessa parte, prá mim foi bom. Porque foi uma pessoa que me acolheu, já tinha oito filhos,
comigo mais, nove, e soube me criar. O que eu hoje sou eu devo muito a ele, esse tio. (Maria
dos Anjos, parda, 24 anos).
– Não são muito boas não. Porque a minha infância, para te dizer a verdade, fui
criada com a avó, gostei muito dela, foi minha segunda mãe. Fui muito sofredora na vida,
passei muitas necessidades. Depois a minha mãe arrumou um marido e então produziu mais
oito filhos, posso dizer que foi eu que criei os oito filhos dela. Com 19 anos de idade me casei
165
e foi mais oito filhos para criar. Com 26 anos de casada, separei, acabei de criar meus filhos
só mais Deus. (Maria Amélia, branca, 50 anos).
– Minha infância é assim a gente nasceu e viveu sempre na roça. Não saía para
lugar nenhum, era sempre em casa. Eu fui estudar, tinha 11 anos, quando eu fui à escola a
primeira vez. Eu mesma, a professora foi passando na estrada, eu pedi à professora que eu
queria estudar. Aí não era muito atuante, não, a escola. A gente ia para a escola e ia para o
campo de futebol. (Maria da Paz, parda, 32 anos).
– Eu morava em São Paulo, minha mãe tinha seis filhos. Só que do meu pai, são
quatro, eu sou a mais velha. Meu pai ficava com a gente e ela ia pro bingo, eu tinha raiva,
minha mãe era viciada em bingo. [...] Minha mãe separou do meu pai. Veio para cá e eu vim
com ela. (Maria Alice, parda, 25 anos).
5.2.2
Adolescência e juventude
As mulheres e os homens na fase da adolescência82 estão, biologicamente, em um
estado de transformação química e, sociologicamente, entrando em um mundo em que os
hábitos, os costumes e os valores ainda estão sendo formados e adquiridos. Para Mannheim
(1961), a mocidade tem a qualidade de ser um agente revitalizante, um recurso que permanece
escondido e que, se mobilizado e integrado, contribui com a sociedade na construção de novas
saídas, principalmente na adolescência, por, nesta fase de desenvolvimento humano, o
indivíduo não estar ainda emaranhado no status quo, na ordem social vigente e, também, por
ainda não possuir interesses adquiridos seja de ordem econômica ou espiritual. Nesta fase,
começam a cortar a dependência em relação aos seus familiares de quando eram crianças,
experimentando o desprender-se do seio da família, interagindo com a vizinhança, com a
comunidade e com certo setor da vida pública (MANNHEIM, 1961). Foi esta a experiência
dessas mulheres agricultoras que, quando jovens, começaram a sair para outros lugares para
trabalhar, viver o despertar da sexualidade, namorar, casar, ter filhos e filhas, em suas buscas
por qualquer oportunidade que aparecesse para conseguir um trabalho que gerasse renda para
ela e sua família.
A adolescência e juventude de Maria José, assim como sua infância, foram
marcadas por muitas dificuldades sociais e econômicas. O trabalho na roça era uma constante
82
Aqui considero como referência o período da adolescência estabelecido no Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) que compreende a faixa de 12 a 18 anos incompletos, e juventude, o período
estabelecido de acordo com a Proposta de Emenda à Constituição 138/03, chamada PEC da
Juventude, que compreende a idade entre 15 e 29 anos.
166
em sua vida desde criança. Na adolescência não foi diferente, só aumentou o volume de
trabalho. Segundo ela, “nós era o barro da roça”, e isto quer dizer que ela e seus irmãos e
irmãs tinham que fazer de tudo no trabalho agrícola, desde arrancar mato com enxadeco,
plantar, até bater de cacete o feijão colhido. Lembra que, naquela época, o povo da região
também sofria com a escassez de água e, assim, quando chegava da roça ainda tinha que
buscar água longe, a mais ou menos uma légua, e carregar o pote d’água na cabeça. Hoje, aos
50 anos, ela reclama de dores na coluna como consequência do trabalho pesado e de tanto
carregar sacos de feijão. Ela conta que teve que sair do convívio da família para ir trabalhar
como empregada doméstica, quando tinha 13 anos de idade, para ajudar na renda familiar, e
que sofreu muito com a saudade que sentia de sua mãe. Recorda que, desde criança, teve
dificuldade em estudar e que na adolescência ainda foi pior, porque seu pai não queria que ela
e suas irmãs estudassem e, rindo, diz “para não namorar e emprenhar”. Ainda rindo, conta que
começou a namorar escondido, com 13 anos de idade, mas afirma que antigamente o namoro
era “besta, só conversa”. Diz que começou a fazer sexo com 18 anos, conheceu seu marido
aos 20 e com 22 anos se casou. Casou pensando em sair do domínio do seu pai e que não
precisaria mais trabalhar tanto, porém, depois que casou, foi trabalhar ainda mais. Ela afirma
que a mulher tem que casar mesmo, então, foi bom ter casado porque ficou amparada e o
marido nunca a tratou mal, porém, o casamento é para trabalhar. Por outro lado, diz que hoje
pensa que devia ter ficado solteira trabalhando sossegada.
Maria Amélia conta que, durante sua adolescência e juventude, sua mãe foi
muito rígida na sua criação e não a deixava sair de casa para lugar nenhum e que piorou muito
quando, aos 13 anos de idade, menstruou pela primeira vez: seu sofrimento continuava,
sempre assumindo a responsabilidade de cuidar dos irmãos. Sentia-se uma prisioneira, por
não poder sair de casa, mas que sua mãe permitia ter algumas amigas apesar de não poder
sair. Acredita que o fato de ter suportado ser “prisioneira” durante sua juventude fez com que
ela aprendesse a ser a mulher que ela é hoje. Maria Amélia diz que namorou muito pouco,
começou sua vida sexual aos 18 anos de idade e logo com o segundo namorado, aos 19 anos,
se casou. Diz que no início do casamento foi bom, porém, não era apaixonada pelo marido,
tinha pena dele. Lembra que, com o passar dos anos, a relação foi ficando ruim. Ele bebia
todos os dias, ficava violento e ela e os oito filhos tinham que correr para não morrer. Cuidou
dele por 26 anos até que se separou.
Maria de Lourdes relata que, em sua adolescência, continuou sofrendo violência
doméstica de seu pai alcoólatra e bastante violento. Ela e seus irmãos tiveram que sair de
casa. Ela foi para Salvador e São Paulo, na juventude, em busca de emprego, e trabalhou
167
como doméstica. Conta que fez sexo pela primeira vez aos 15 anos de idade e não gostou. Diz
que fez besteira, referindo-se ao ato sexual, por causa da forma que seus pais a tratavam e aos
seus irmãos, sempre com agressividade e com palavrões. Como ela era “muito desaforada”,
depois de a mãe tê-la xingado de algo que ela não era, disse para a mãe: “já que a senhora me
chamou disso, a pois, eu vou dar é hoje”. Diz que “fez sexo” com o primeiro rapaz que
apareceu e ficou namorando com ele por um tempo e que, no início da relação, até gostava
dele, mas, depois, ele começou a beber como o pai dela, então, resolveu deixá-lo e foi embora
para Salvador. Foi quando conheceu o pai da sua filha mais velha, que está com19 anos, já é
casada e tem um filho. Não tem nenhum contato com o pai da sua filha, desde quando esta
tinha uns cinco anos de idade. Maria de Lourdes tem, no total, seis filhos, de quatro pais
diferentes. Os filhos homens mais velhos, de 16 e 14 anos de idade, têm o pai morando na
comunidade e contam com a atenção dele e uma contribuição financeira mensal. O quarto
filho tem nove anos, o pai foi para São Paulo e não contribui com nada para mantê-lo. Com o
atual marido, ela tem dois filhos pequenos, de 4 e de 2 anos de idade, porém, ele passa o ano
todo trabalhando em São Paulo e manda mensalmente uma quantia para ajudar no sustento da
família.
A juventude de Maria do Sossego foi como sua infância, de muito trabalho e
responsabilidade. Recorda que, com 17 anos de idade, voltou da casa de sua irmã em
Salvador, onde trabalhava fazendo o serviço doméstico e cuidando dos sobrinhos, para morar
com os pais no interior do município de Santa Brígida. Ela diz que nunca teve oportunidade
de namorar e acha que foi por isto que se empolgou com o primeiro rapaz que conheceu.
Segundo ela, isto acontece com quem é criada presa, sem oportunidade de sair, de se divertir,
de curtir a vida. Conta que a irmã, em Salvador, não gostava e nem deixava que ela fosse a
festas. E complementa que jamais deixaria as obrigações e responsabilidades para ir a uma
festa. Então, quando voltou para sua comunidade, logo conheceu, se apaixonou e começou a
namorar o pai dos seus filhos, com quem foi morar aos 18 anos e com quem vive até hoje.
Com vergonha e timidez, diz que foi quando começou sua vida sexual. Teve seu primeiro
filho aos 19 anos de idade.
Maria dos Prazeres lembra que, na juventude, a situação da família melhorou um
pouco, pois ela e as irmãs começaram a ganhar uma pequena remuneração trabalhando na cata
de castanha de caju e na colheita de fumo e que, quando jovem, costumava guardar um pouco
daquele dinheirinho para quando fosse casar, pois já pensava em se casar. Segundo ela, seu
pai não deixava que ela e as irmãs fossem a festas nem ao campo de futebol, nem à feira elas
podiam ir sem a mãe. Lembra que sua juventude foi boa, apesar de não ter energia elétrica
168
para assistir televisão. Elas se divertiam brincando entre si mesmas e com os primos e primas.
Sua juventude foi de muito trabalho na roça e com o machado cortando lenha e ao chegar em
casa ainda ter que dividir as tarefas domésticas com as irmãs: varrer casa e terreiro e buscar
água nos tanques. Amigas, só tinha as da escola, porque seu pai não a deixava ir para a casa
dos vizinhos. Ela lembra que sofreu discriminação por ser tão pobre que não tinha dinheiro
para comprar merenda na escola e ainda não existia a obrigatoriedade de dar merenda na
escola pública. Maria dos Prazeres conta que demorou a menstruar, tinha 15 anos, e que, por
causa disto, sofreu muita gozação das primas que diziam que ela era macho-fêmea. Com risos
soltos, ela recorda que, com 15 anos, começou a namorar; uns seis meses, apenas de olhar, de
conversar e que uma única vez eles se abraçaram, porque ele ia embora para São Paulo. Ele
era um menino bom e trabalhador, mas seu pai era racista e não aceitava o namoro deles por
ele ser da cor preta. Já o segundo namorado foi com 17 anos e ela se casou com ele, porque
além de trabalhador havia dito que a deixaria continuar estudando; com 21 anos teve sua
primeira filha.
Maria da Paz trabalhou como empregada doméstica quando era adolescente e só
parou de trabalhar em casa de família aos 20 anos de idade, porque estava grávida e sua mãe
estava doente, lutando contra um câncer. Ela afirma ser uma pessoa tímida e que, desde sua
adolescência, nunca gostou de festa e de sair de casa e que nunca foi namoradeira. Com
vergonha, fala que era adolescente com 13 anos de idade, quando menstruou pela primeira
vez, e que só começou a namorar de 17 para 18 anos de idade e sua primeira experiência
sexual foi com seu namorado com quem se relacionou por pouco tempo. Diz, rindo, que “não
é vassoura para ficar varrendo por aí”, por isto, se orgulha de só ter dito relação sexual com
dois homens, por não gostar de ficar mudando muito de namorado. Com 20 anos de idade,
teve seu filho, conviveu com o pai dele por alguns anos, porém, por ser “uma pessoa difícil de
aceitar certas coisas”, acabou se separando. Diz que, para ela, “palavra dói mais do que tapa,
então a palavra mal dita já magoa, é melhor você dá um tapa de que certas palavras”, por isto,
cada um seguiu seu caminho: ela foi para um lado e o namorado para outro.
Maria das Dores é uma mulher adulta, que se orgulha da sua cor e de ser uma
negra que nasceu na comunidade Maria Preta. Fala que, antigamente, quando ela era
adolescente, passou por muita discriminação e preconceito por ser pobre, pelo lugar de origem
e pela cor de sua pele. Conta que, quando adolescente, foi para São Paulo trabalhar como
empregada doméstica: tinha apenas 12 anos de idade. Voltou para a comunidade Maria Preta
com 15 anos de idade e logo começou a namorar iniciando sua vida sexual com 16 anos. Diz
que, quando jovem, não pensava muito e logo quando começou a fazer sexo não achou que
169
foi bom, pois acha que se deve pensar mais antes de ter uma relação sexual, porque o casal
precisa ter uma conversa sobre como vai ser o respeito de um com o outro depois de ter feito
sexo. Ela conta que se casou aos 18 anos de idade e que, durante o tempo que ficou casada, a
relação teve muitos altos e baixos: lembra que só fazia sexo quando seu marido queria, porque
não havia mais carinho e respeito entre eles. Aos 23 anos de idade, teve o prazer de ser mãe.
Maria Esperança é uma jovem negra de 28 anos, que começou a namorar na
adolescência, com 13 anos, e relata que, nesta época, namorou alguns garotos de sua
comunidade Bananeirinha e da comunidade vizinha. Casou, a primeira vez, aos 18 anos, e não
engravidou no início da sua relação conjugal, primeiro, porque tomava anticoncepcional e
segundo, por sofrer violência doméstica. Seu marido era um homem jovem de 24 anos, muito
agressivo, mulherengo e dependente do álcool. Ela conta, com tristeza, que sua primeira
gravidez foi muito complicada, pois vivia um relacionamento muito tumultuado e bastante
violento com seu marido e que foi depois de uma briga em que ele a empurrou e ela, grávida,
caiu por cima da barriga, que resolveu deixá-lo, ao perceber que estava prejudicando não
somente a ela, mas também ao seu filho que nem havia nascido. Foi morar na casa dos seus
pais e lá teve seu filho, que nasceu com alguns problemas de saúde. Lembra que, quando
ficou grávida, estava com 20 anos de idade e cursando o segundo ano do Ensino Médio,
apesar de todo o conflito vivido com seu marido para que ela não estudasse. Recorda que sua
mãe foi determinante, quando ameaçou ir para a justiça caso ele não permitisse que ela
continuasse estudando. Terminou o Ensino Médio graças ao apoio de sua mãe, que ficava
com seu filho para que estudasse. Com um sorriso envergonhado, conta que casou a segunda
vez aos 21 anos de idade, quando seu filho estava com quatro meses de vida, pois sua mãe
disse que para namorar conversando podia ser na casa dela, mas depois de ter relação sexual
não a queria mais em sua casa. Com muita alegria e gratidão, Maria da Esperança fala que seu
segundo marido é um homem bom, que registrou seu filho e o trata com o mesmo carinho e
consideração com que trata a filha que tem com ela. Segundo disse, o único problema é o fato
de ele trabalhar em outro estado, Pernambuco, só vindo uma vez por mês em casa.
Assim como a infância, a adolescência de Maria Alice foi marcada por problemas
decorrentes do vício da mãe em jogo de bingo. Recorda que, nessa época, ficava com raiva do
seu pai por não deixá-la sair com as amigas, para que tomasse conta de seus irmãos menores,
por causa da mãe ausente. Hoje, ela entende que ele precisava trabalhar. Conta que sofreu na
adolescência com a separação de seus pais, mas o seu maior sofrimento foi quando tinha 15
anos de idade e se apaixonou, durante as férias na casa de sua avó na Bahia, e não quis mais
voltar para São Paulo, o que fez seu pai ficar sem falar com ela por dois anos, muito magoado
170
por ela ter ficado na Bahia e por ter começado a namorar. Ele costumava falar “não suje meu
nome”, porque as duas coisas mais importantes que as pessoas pobres têm são o estudo e o
nome. Maria Alice começa a rir envergonhada, quando fala que, nesta época, começou a ter
relações sexuais com um amigo que se tornou sua grande paixão até hoje. Nesse período,
estava cursando o segundo ano do Ensino Médio, em uma escola pública, e suas colegas
contavam que, mesmo sendo virgens, namoravam deitadas. Ela diz que quando se deitou pela
primeira vez com seu namorado se sentiu estranha, mas continuou até o fim. Já tem dez anos
de casada e toma anticoncepcional para evitar filhos, e diz que, às vezes, pensa em tê-los, mas
não ainda.
Maria dos Anjos conta que sua infância e juventude foram marcadas pela
rejeição e pelo abandono de seus pais biológicos. O fato de nunca ter convivido com seu pai e
ter passado pouco tempo com sua mãe marcou sua vida. Quando criança, foi morar com sua
avó materna que queria cuidar dela, contudo, sua avó morreu, e ela foi criada pelo tio, filho
desta avó. Conta que, na adolescência, seu tio não a deixava sair para as festas com os amigos
e amigas da escola, mas que, mesmo assim, começou a namorar aos 16 anos de idade. Como a
situação financeira era muito difícil e para ajudar seu irmão mais velho, foi trabalhar na casa
dele como empregada doméstica, aos 17 anos de idade. Antes de começar a namorar com seu
marido, foi amiga dele e, só depois, quando estava com 18 anos, começaram a namorar e
resolveram se juntar e morar na comunidade de Canabrava, interior de Santa Brígida. Aos 20
anos, engravidou, por opção, de sua única filha, hoje com quatro anos de idade.
5.2.3
O trabalho como empregada doméstica
Das dez mulheres agricultoras entrevistadas, sete vivenciaram a experiência de
trabalhar como empregada doméstica, algumas iniciando ainda quando criança e continuando
quando jovens. Três delas – Maria dos Anjos, Maria do Sossego e Maria das Dores –
realizaram este trabalho em Santa Brígida, em Salvador e em São Paulo, respectivamente. Em
termos de relações de trabalho, cada uma delas prestou serviço para pessoas das suas famílias,
da mesma classe social, pois foram trabalhar em casas de parentes – irmão, irmã e tio. Dentro
da família, constata-se que o trabalho doméstico está quase exclusivamente vinculado ao sexo
feminino, a crianças e adolescentes que são responsáveis pelo preparo de alimentos, pela
limpeza da casa e pelo cuidado com as crianças menores. Todas trabalharam como doméstica
para “ajudar” a família. Maria do Sossego, com apenas 9 anos de idade, foi cuidar dos
sobrinhos em Salvador. Maria das Dores, aos 12 anos de idade, foi para São Paulo cuidar das
171
primas menores. Maria dos Anjos, com 17 anos, trabalhou como doméstica na casa de seu
irmão mais velho. A realização deste trabalho em âmbito privado se dava de modo gratuito ˗˗
recebendo “agrados”, roupas, cadernos, sandálias, alimentação etc. ˗˗ ou mal remunerado.
Observa-se, pelos seus depoimentos que elas não recebiam salário e que Maria das Dores
,quando trabalhava na casa dos parentes em São Paulo, não estudava:
– Assim, com 12 anos, eu fui pra São Paulo cuidar de minhas primas lá, com
quinze, voltei. Aí, dos seis aos doze foi aqui ajudando mãe; fui pra lá, não fui ganhar nada em
São Paulo, voltei, quando chegou aqui comecei namorar, casei. [...] eu só ganhava roupa. Eu
morava na casa do meu tio. Só era roupa e comida, lá mesmo era só isso. [...] fiquei três anos
sem estudar lá. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
– [...] nove anos eu fui cuidar do meu sobrinho em Salvador. Eu tenho duas irmãs
que moram em Salvador, eu fui cuidar desses dois sobrinhos, e cuidava da casa e ainda
estudava. [...] ganhava, ela, assim, me dava roupa, essas coisas, ela me dava tudo que
precisava e ainda me dava dinheiro [agrado] por fora. Eu não comprava o que eu imaginava,
na verdade nem tudo a pessoa faz o que a pessoa quer, ou come o que quer. (Maria do
Sossego, parda, 38 anos).
Em termos de relações de trabalho, quatro delas prestaram serviços a terceiros,
fora do grupo doméstico, para indivíduos de classes sociais diferentes da sua, em uma relação
de patrões e empregadas domésticas e seus serviços eram pagos sob a forma de moeda,
insumos e bens de uso. Uma delas é Maria José:
˗˗ Eu trabalhava direto. Às vezes, quando era moça, trabalhava de empregada
doméstica pra poder ganhar um dinheirinho pra poder comprar uma roupinha pra gente.
Roupa boa ninguém usava, calçado bom ninguém usava.
Ela conta que começou a trabalhar na cidade de Maceió, no estado de Alagoas, em
casa de família, ainda adolescente, quando tinha 13 anos de idade, para ganhar dinheiro e
contribuir com a renda da família. Afirma que nunca ganhou salário e que ganhava tão pouco
que nem sabe quanto era:
– Menina! Oxê! Era um pouquinho e ainda dava um pouquinho pra mãe, pra
ajudar, que tinha quinze filhos, coitada. [...] depois que a gente começou trabalhar assim de
empregada doméstica, a gente ganhava um dinheirinho, dava para comprar uma roupinha,
um perfumezinho, ajudava minha mãe, coitadinha, era pior do que eu. (Maria José, parda, 50
anos).
172
Já Maria dos Anjos se lembra do valor que recebia pelos seus serviços domésticos
e que ganhou seu primeiro dinheiro aos 17 anos de idade, para ajudar na renda de sua família
que era muito pobre:
– Nossa, eu trabalhava e nessa época era R$ 80,00 reais por mês, era pouco, mas
assim, o que você pensa primeiro é ajudar em casa no que puder, como a gente era muito
necessitado. Hoje em dia todo mundo trabalha, tem o seu, mas era uma parte necessitada.
Então, eu procurava ajudar aos irmãos que eu tinha, comprar alguma coisa. Em pouco
tempo eles também começaram a trabalhar, aí foi quando foi melhorando a vida. (Maria dos
Anjos, parda, 24 anos).
Maria José, no relato a seguir, faz um discurso ambíguo quando diz não ter
sofrido discriminação nem violência quando trabalhava como empregada doméstica, mesmo
passando por uma série de inseguranças: alimentar, habitacional e de renda. Em suas palavras:
– Graças a Deus, nas casas que eu trabalhei, a primeira vez que eu fui trabalhar
com 13 anos, era uma casa de uma senhora e um senhor de idade. A segunda vez, eu fui
trabalhar também na casa de umas senhoras, mas essas senhoras eram muito ruins. Era
fome, eu quase que morri de fome, passei três dias... eu digo “eu vou embora na quarta”,
quando foi no sábado... mas não davam comida a eu... era duas, eu passava uma fome tão
grande... “eu vou embora”... antes d’eu ir tinha uma mulher, [...] que o nome dela era
Magareth, ela era professora, aí antes d’eu ir embora, tinha uma menina que disse que tinha
uma mulher que queria uma menina para trabalhar, essa era beleza comigo. Depois eu fui
trabalhar em Maceió também, eu trabalhei na casa de outra mulher que trabalhava na Caixa
Econômica. Ali era boa também, era melhor que minha mãe. Ela me dava de tudo, ela me
pagava e me dava de um tudo, roupa, calçado, de tudo, ela me dava. (Maria José, parda, 50
anos).
No depoimento, fica evidente a vulnerabilidade de Maria José, seu sofrimento
físico por passar fome, e psicológico, por sentir insegurança, dependência, medo, sobretudo
do controle das patroas sobre ela, sobre sua vida. É evidente a presença do patriarcalismo
materializado em toda forma de opressão a ela e às outras mulheres, independentemente da
sua idade, geração e raça. Neste contexto do emprego doméstico, a subordinação feminina
fica visível, embora com nuances menos ou mais incisivas, menos ou mais declaradas.
As práticas que se constituíram em torno do trabalho doméstico expressam a
dominação e subordinação na relação patroa-empregada, sendo o espaço doméstico o cenário
da intensa e viva dinâmica das relações sociais de gênero como relações de poder. Portanto,
tanto trabalhando na casa dos parentes como na casa dos patrões, estabelecem-se relações de
173
obrigação que representam formas de subordinação e opressão destas mulheres. Mesmo no
caso do trabalho na casa de alguém da família suavizar com o discurso da obrigação de ser
uma ajuda, um prazer em servir, ocorrem conflitos desta natureza (BRITTO DA MOTTA,
1992, p. 2).
Tradicionalmente, na Região Nordeste do Brasil, a migração para outras regiões e
estados do país, de homens e de mulheres pobres e de pouca escolaridade, decorre da
necessidade de se inserir no mercado de trabalho para obter renda, da perspectiva de exercer
alguma atividade remunerada. Em grande parte, os homens nordestinos migram para o corte
da cana-de-açúcar e para as grandes cidades, para exercer atividades na construção civil como
pedreiros ou serventes, mas, também, atividades como as de garçon e cobrador de ônibus; as
mulheres nordestinas migram para executar o serviço doméstico. Esta ocupação é a que
contribui
com
maior
peso
na
composição
da
população
feminina
considerada
economicamente ativa (PEA). Nas falas das mulheres agricultoras que migraram para cidades
vizinhas e/ou capitais para trabalhar em casa de família, estão presentes, de forma mais ou
menos sutil, os conflitos. É o caso de Maria da Paz:
– [...] depois que eu estava na 7ª série acabei saindo para trabalhar fora,
trabalhar como doméstica, fui para Ribeira do Pombal. Depois, peguei a transferência para
estudar lá. Quando eu levei a transferência, mudei pra Salvador. Aí, fiquei indo e voltando.
Aí, depois de Salvador, passei um tempinho em Aracaju, voltei para Cícero Dantas, aí voltei
pra cá. Aí, foi quando veio esses projetos aí, eu não quero trabalhar de doméstica mais não.
Resolvi ficar aqui. Às vezes, eu penso em sair, mas não tem muito “regue” [reggae], não, pra
sair pra fora. (Maria da Paz, parda, 32 anos).
Também é o caso de Maria de Lourdes que, quando jovem, para fugir da violência
que sofria em casa, resolveu sair, como seus irmãos, para outros lugares:
– Depois a maioria viajou pra fora, eu morei uns tempos em Salvador, depois eu
vim embora, arrumei o pai do meu filho mais velho. Fui pra São Paulo, morei três anos, não
deu certo, eu vim embora de vez. Trabalhava de doméstica, sofri também nas casas dos
outros. Porque, naquele tempo, a gente não sabia fazer quase nada e para aprender sofremos
até quando aprendemos. (Maria de Lourdes, branca, 41 anos).
Essa mudança constante de lugar em função de questões pessoais dos patrões e de
seus interesses, inviabilizando a continuidade dos estudos e também (na fala de Maria de
Lourdes) o sofrimento para aprender a trabalhar como doméstica e se enquadrar dentro dos
padrões estabelecidos de subordinação e obediência, característicos desta função, reforçam
nelas o sentimento de baixa estima e de inferioridade. Percebe-se, também, como, no espaço
174
privado ou doméstico, se exerce a dominação masculina, a relação de forças materiais e
simbólicas entre os sexos. É principalmente neste lugar privado que vai sendo construída,
aprendida e perpetuada a lógica da dominação que se expressa nos valores, nas opiniões, nas
crenças e se reforçam na maneira de pensar, agir e falar, tanto pelo dominante quanto pelo
dominado. Bourdieu (2007) chama de violência simbólica esta dominação e a forma como é
imposta e vivenciada, invisível às suas próprias vítimas.
5.2.4
O despertar da sexualidade, namoro e casamento
Na trajetória das dez mulheres pesquisadas, ao pensar as relações entre as
gerações de mulheres agricultoras e suas representações sobre a sexualidade, usei o marcador
social “geração” como categoria analítica nos dois sentidos em que Andréa Alves emprega o
termo. O primeiro sentido é “como posição no interior da estrutura de parentesco, alinhada à
organização social do ciclo de vida” (2009, p. 15). Usei-o na perspectiva de tornar mais
explicita a conexão entre sexualidade e reprodução, através das relações de parentesco destas
mulheres agricultoras e de seus lugares na organização social dos ciclos de suas vidas. O
modelo que predomina na sociedade em que estas mulheres agricultoras estão inseridas é o
modelo normativo, dominante, de família patriarcal, heterossexual, de casamento
monogâmico, com padrões de divisão de gênero e de idade. São padrões construídos
socialmente que relacionam linearmente sexualidade, geração e reprodução.
Observa-se que a sexualidade é um tema difícil entre as gerações de mulheres da
zona rural, a maioria começando a ter uma vida sexual ativa na adolescência atrelada a um
compromisso de casamento. As dez mulheres pesquisadas iniciaram sua vida sexual entre os
15 e os 18 anos de idade, e sete delas afirmam só ter feito sexo com um único homem, seu
marido. Destas, as três adultas mais velhas – Maria José (50 anos), Maria Amélia (50 anos) e
Maria de Lourdes (41 anos) – têm o maior número de filhos – sete, oito e seis,
respectivamente. Elas fazem parte de uma geração que ainda tinha dificuldade de acesso à
informação, além da resistência em utilizar os métodos contraceptivos. Já a geração das
quatro adultas mais novas – Maria do Sossego (38 anos), Maria dos Prazeres (32 anos), Maria
das Dores (31 anos) e Maria da Paz (32 anos) –, e as jovens – Maria Esperança (28 anos) e
Maria dos Anjos (24 anos) –, disseram fazer uso do método anticoncepcional para evitar ter
muitos filhos, por este motivo, elas têm entre um e dois filhos. Maria Alice (25 anos) não tem
filho por opção.
175
Maria de Lourdes (41 anos), dentre as mulheres agricultoras pesquisadas, é a
exceção de sua geração. Apesar de pertencer a uma geração muito conservadora e castradora
da sexualidade feminina, já teve quatro relacionamentos conjugais. Com seu traço individual,
seu comportamento e sua prática cotidiana, “quebra” ou resiste ao habitus83 de gênero de toda
uma história coletiva da sua família e das mulheres agricultoras aqui pesquisadas. Com
relação às outras mulheres da pesquisa, tem-se a percepção que há uma reprodução de vida
cotidiana trazida pelas avós e mães, nem sempre percebida, principalmente em relação ao fato
de as mulheres assumirem os filhos, a casa e o trabalho na roça. O mesmo se pode dizer da
ausência de diálogo entre mães e filhas sobre assuntos como orientação sexual e sobre o
corpo. Maria José fala do comportamento e das tradições de “antigamente” com relação à
sexualidade feminina e ao namoro impostos pelos seus pais:
– Era assim, os velhos de antigamente. Hoje em dia não é assim, não. E
antigamente, era assim: se, Deus o livre, a gente desse um erro dentro de casa, os pais não
queria a gente. [...] [Namorava] escondido com 13 anos [risos], namorar, não, conversar,
porque antigamente a gente não namorava feito hoje em dia. Antigamente tinha que levar a
namorada em casa. Nós namorava escondidinho pra papai nem saber. Depois de 22 anos em
diante, assim de 20 anos, esse mesmo foi o único namorado que eu levei em casa e ainda
assim foi em casa pra pedir pra casar, que foi Manoel. Por que a gente tinha o maior medo
de papai... Ave Maria! Quem quisesse que fosse. Ele dizia: “se namorarem e engravidarem a
gente vai ver!”. (Maria José, parda, 50 anos).
Pode-se observar também no depoimento de Maria dos Prazeres como a
identidade de gênero vai sendo construída socialmente através da cultura, do comportamento
dito de mulheres, dos símbolos que se materializam e são alimentados pela
heteronormatividade e se institucionalizam e interagem entre si na família, no parentesco, no
meio doméstico, no Estado, na educação e na religião. Maria dos Prazeres afirma que fez sexo
só depois que casou, quando tinha 17 anos de idade, e conta um fato que elucida como se
reproduz e reforça a identidade feminina tradicional:
– [...] Com 15 anos eu menstruei, nasceu um caroço em mim, aí meus irmãos da
outra família me levou pra Salvador. Aí fez uma cirurgia [...] eu cheguei num dia me internei
pra fazer a cirurgia no outro dia. [...] Quando foi de noite a enfermeira, chegou – ainda hoje
83
Compreendendo o conceito de habitus como: “[...] um sistema de disposições duráveis e
transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma
matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas
infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...]” (BOURDIEU,
1983, p. 65).
176
manga de mim: “Ei dona, você tem que tirar [depilar]”, eu fiz uma briga com ela, que não
deixava, eu era moça. [Ela:] “o que é que tem a ver com moça? Nada, não”. [Respondi:]
“Não deixo, não, que pai disse que para tirar esse negócio só era mulher casada, eu não sou
casada”, fiz uma confusão, minha fia, ela botou no prontuário. Aí o médico chegou, no outro
dia, ficou conversando de onde eu era, ficou perguntando coisa e deu risada, mas ela botou
no prontuário que se acontecesse qualquer coisa, era minha responsabilidade. Ah, quem
disse que eu ia deixar raspar, se meu pai dizia: “moça não se raspa, quem se raspar é puta
ou mulher casada. Tinha esse negócio, puta ou mulher casada, hoje a gente não usa isso,
cada qual faz a sua vida, cada qual faz o que quer, mas foi difícil, me casei, tô aqui [risos].
(Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
No depoimento de Maria José e de Maria dos Prazeres fica evidente como elas se
enquadravam, acatavam e respeitavam as regras e as determinações de seus pais. Diferente de
Maria de Lourdes, uma jovem tentando se contrapor às normas e regras estabelecidas para as
relações de gênero na sua época de adolescente no meio rural. O confronto desta jovem
“rebelde” é com sua mãe, com a forma como ela a tratava ao exigir comportamentos
adequados para uma moça, exigindo sempre cuidados para não perder a virgindade, porém, de
uma forma sempre agressiva, levando Maria de Lourdes a romper com os padrões:
– [A primeira relação sexual] acho que eu tinha uns quinze pra dezesseis. Não
gostei muito, não. Quer dizer que, naquele tempo, a gente fez mais besteira por causa dos
nossos pais que xingava muito a gente com aqueles palavrões feios. Xingava o que a gente
não era. Aí como eu sempre fui desaforada, que até hoje só, eu disse à mãe: [...] “Já que a
senhora me chamou disso, a pois, eu vou dar é hoje, ainda fui de saia branca pra ter prova.
Eu disse: “eu posso apanhar mas eu vou dar é hoje” (Maria de Lourdes, branca, 41 anos).
Já Maria do Sossego conta que, aos 18 anos de idade, iniciou sua vida sexual com
seu primeiro namorado e foi morar com ele desde esta época, há 20 anos atrás. Ela fala com
timidez sobre seu sentimento de prazer com relação ao ato sexual: “Foi assim, foi e tá sendo,
na verdade, ninguém pode negar”. Para Maria das Dores, que, atualmente, está separada há
apenas dois meses depois de 12 anos de convivência com seu único parceiro, a experiência
sexual na adolescência, aos 16 anos de idade, aconteceu sem refletir, sem pensar nas
consequências desta atitude, e agora, na idade adulta, com a experiência acumulada com este
parceiro, pensaria mais nas questões desencadeadas após o ato sexual:
– [A primeira relação sexual] acho que foi com uns 16 anos. Não sei por que, eu
acho que a gente quando não tem assim uma experiência, a gente vai assim, no ato, não é
assim com amor. Porque hoje, se fosse pra mim começar uma relação, eu ia pensar mais
177
antes de fazer o sexo, tem que ter uma conversa de relação, como vai ser, porque tem que ter
o respeito. E não é assim quando a gente começa, quando é jovem a gente não vai pensando
no respeito, como vai ser depois da relação. Vai namorar, tem a relação de namorar, e
depois quer continuar naquela vida, só tendo relação sem respeito. Não foi bom, não. (Maria
das Dores, 31 anos).
Maria das Dores continua falando sobre sua relação conjugal e como a dominação
masculina oprime os desejos e os quereres das mulheres agricultoras que, em suas relações de
gênero no cotidiano, ainda não conseguem confrontar a ordem de gênero patriarcal, então,
aceitam e assumem o lugar de mulher dominada. Fala que só tinha relações sexuais quando o
marido queria e sem o carinho de antes:
– Só quando ele queria porque depois que a vida da gente fica mais ou menos
descontrolada, não tem aquela conversa mais, não tem aquele carinho, faltando carinho,
faltando o respeito, aí vai levando. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
A sexualidade dessas mulheres está diretamente relacionada ao casamento e à
reprodução. O casamento no meio rural ainda se apresenta como uma imposição, um preceito
na vida destas mulheres agricultoras heterossexuais e, segundo elas, a falta de oportunidade
era, e ainda é, o grande vilão para um casamento tão precoce. Na fala de Maria José, o
casamento era a única alternativa para sair do domínio do pai, da situação de pobreza e da
exploração do trabalho familiar. Não passava por sua cabeça não cumprir com esta obrigação
moral imposta pela família e pela sociedade e por ela naturalizada e incorporada. Maria dos
Prazeres também via o casamento como um preceito: na adolescência, sonhava e juntava
dinheiro para um possível casamento, que iria acontecer um dia. Quando seu pretendente
apareceu, ela tinha uma condição para aceitar o casamento e poder continuar estudando. Esta
condição não era nem cogitada na geração de Maria José. É o que elas dizem sobre o
casamento:
– Tem hora que eu digo, assim, que acharia, porque é assim, às vezes a gente diz
vamos casar, se a gente mora de baixo dos pais, para sair de trabalho. E quando casei fui
trabalhar mais ainda, então, achei bom que casei, me amparei, graças a Deus, ele nunca me
tratou mal, mas é pra trabalhar. Eu devia ter ficado solteira mesmo, trabalhando sossegada,
mas é coisa da vida. A gente tem que casar mesmo, não pode ficar. (Maria José, parda, 50
anos).
– E a gente foi e ficou assim, namoremos e se casemos. Esse já foi namoro mesmo
[risos]. [...] Foi, graças a Deus. No início foi ruim, mas depois a gente vai vivendo a vida, vai
estudando. Eu casei e fui estudar o 2º grau, era uma turma já madura. Eu disse que casava só
178
se me deixasse estudar. Ele disse que podia estudar, podia ir pra onde quisesse, então é com
esse que eu vou me casar [risos altos]: “Mãe, eu vou me casar”; [a mãe:] “Menina!”. Logo
eu ajudava demais em casa. Eu acordava era quatro e meia da manhã junto com pai, ia tirar
o leite, eu ia também. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
As mulheres agricultoras são alfabetizadas, porém, as adultas mais velhas,
nascidas nas décadas de 1960 e meados da década de 1970, mal terminaram a 4ª série
primária, hoje Ensino Fundamental I. Apesar de as mais jovens terem mais escolaridade,
chegando a concluir o Ensino Médio, elas continuam vendo o casamento como a única
alternativa na vida delas, diferentemente dos homens, que priorizam o trabalho rural ou
migram para São Paulo em busca de trabalho. Diz a jovem Maria Alice, referindo-se aos
homens jovens da comunidade Bariri, do município Ribeira do Amparo:
˗˗ Como os jovens de hoje pensam, 90 % dos jovens daqui da comunidade acha
que o futuro é esse e nem faz nada aqui, não completa 18 anos e quer ir para São Paulo, não
faz nada aqui, não quer saber do estudo porque diz que o estudo aqui não é igual ao de lá.
Os jovens, filhos de agricultores, deixam a escola muito cedo, querem começar a
trabalhar, porque isto significa entrar no mundo dos adultos; ter ido a São Paulo, ter dinheiro,
é muito importante para se afirmar em relação aos colegas e em relação às meninas. “Ser
reconhecido e se reconhecer como homem”, diria Bourdieu (1983, p. 115).
Ainda hoje, na região semiárida, observa-se pouca perspectiva quanto à geração
de renda para as mulheres agricultoras, mesmo quando elas concluem o ensino médio. Elas
sofrem do que Crenshaw (2002) chama “discriminação interseccional”: estão em uma posição
social, econômica e cultural que contribui para a sua vulnerabilidade a outros sistemas de
subordinação, colocando as mulheres rurais, pobres e, principalmente as negras, mais
vulneráveis, quando eles se intersectam. É o caso, por exemplo, de Maria das Dores, negra,
recém-separada, um filho, formada em Magistério, que não consegue exercer este ofício no
município de Banzaê nem na sua própria comunidade, tendo que fazer várias atividades para
se manter e ao filho:
– Na verdade eu me mantenho hoje, estando separada, é como eu me mantinha
junto, com Bolsa Família, trabalhando, trabalho no artesanato quando vende é uma rendinha
a mais e às vezes eu trabalho em Banzaê, ganho por dia [faz faxina]. Eu me mantenho assim.
Não tenho vontade também de ir pra São Paulo, que sei que lá a realidade não é fácil. (Maria
das Dores, preta, 31 anos).
Maria das Dores enfrenta a discriminação de gênero, de classe social, de sua
origem rural, por estar separada, mas, principalmente a racial, que também atinge sua família
179
e as pessoas da comunidade Maria Preta. No seu depoimento, percebo que não é mais
oprimida que as outras mulheres da pesquisa, que são da mesma classe social, sejam elas
brancas, pardas, ou mesmo a outra mulher negra, mas ela experimenta as múltiplas opressões
a partir de seu lugar, de sua trajetória de vida e de sua vivência de mulher camponesa negra e
pobre, o que traz marcas profundas e um sentimento de revolta e tristeza, além de um ponto
de vista sobre a opressão racial presente na sociedade racista e sexista, de quem vivencia a
discriminação e o preconceito racial fora e dentro da própria comunidade:
– Aqui, fora, assim quando a gente chega num lugar, as pessoas não veem a
gente, é como se não tivesse chegado ninguém, aí a gente já sente aquela coisa por dentro,
por ser da Maria Preta, por não ter um cabelo liso, por não gostar muito de falar, por não
gostar de se mostrar, a pessoa não liga pra gente, não tem aquela atenção que a gente vê que
têm com outras pessoas das outras comunidades. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
Em outro depoimento, ela afirma que o estudo ajuda a enfrentar a discriminação
racial, apesar das questões políticas:
– Ajuda, não é muito, porque a escola aqui, eu fiz o Magistério, tenho
autorização de estar em sala de aula, mas como tem a questão política e tem a questão que é
Maria Preta... o professor da comunidade, mas sempre que precisa de uma mobilização na
escola. Ela já sabe que eu tenho estudo, já me procura. No início do ano letivo a diretora já
vem, faz reunião com as mães e aí já diz qual o professor que vai ser, logo esclarece que
havendo falha do professor a gente tem direito de reclamar, e eu, Maria das Dores, que tem o
Magistério, que tá por dentro mais da escola, também ajuda. Aí eu acho que sim [que o
estudo ajuda]. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
O estudo não só ajuda a enfrentar o racismo, como se apresenta como um
elemento fundamental para o empoderamento das mulheres agricultoras. Dentre as mulheres
pesquisadas, Maria dos Prazeres é uma exceção, pois conseguiu concluir o ensino superior e
está cursando uma pós-graduação, com muito sacrifício e colaboração de sua família,
principalmente de sua mãe e de sua irmã, que ajudaram a pagar as mensalidades da faculdade
e assumem os cuidados com suas duas filhas, para que ela possa continuar estudando.
180
6
PROJETO
GENTE
DE
VALOR:
EMPODERAMENTO
E/OU
DESEMPODERAMENTO DAS MULHERES AGRICULTORAS?
A perspectiva, ao investigar a trajetória de inserção das dez mulheres agricultoras
pesquisadas nos espaços organizativos e produtivos, nas diversas ações desenvolvidas pelo
Projeto Gente de Valor, no período de 2009 a 2012, foi de aferir se elas obtêm crescimento
pessoal, social e político, de analisar se se empoderaram no espaço público e no espaço
privado.
Na história de vida de cada uma dessas mulheres, observo as formas como se
inseriram no Projeto, nos grupos produtivos e nos grupos organizativos e identifico os
obstáculos por elas enfrentados, de forma a visibilizar nos depoimentos se e como o processo
de empoderamento se concretizou, nos diferentes níveis, seja individual, organizacional e
comunitário. É importante ressaltar que se, na trajetória e experiência vivida por essas
mulheres no PGV, conforme os relatos, estes níveis se misturam, aqui se buscou separá-los
para uma melhor visualização dos seus indicadores.
6.1
EMPODERAMENTO PSICOLÓGICO OU INDIVIDUAL
Participar do Projeto Gente de Valor não foi o primeiro desafio enfrentado pelas
mulheres agricultoras. Para participar das atividades promovidas pelo PGV, elas tiveram que
enfrentar as situações de dominação, submissão e violência sofridas na família,
principalmente por parte dos pais ou maridos. No início, elas conseguiram participar apenas
com a presença silenciosa. Depois, com o passar do tempo, esta presença ganhou voz e ação.
Durante o processo de encontros, reuniões, cursos, intercâmbios, as mulheres foram se
abrindo, trocando, com as outras mulheres, informações, expectativas, sonhos e desejos,
construindo laços de amizade e confiança mútua entre elas. Com o crescimento enquanto
lideranças, passaram a respeitar mais os outros e adquiriram o respeito deles. Permanecem os
desafios de aceitar críticas e de enfrentar os conflitos na família e no grupo. Um resultado
neste processo de empoderamento é a autoaceitação e o sentimento de autovalorização dessas
mulheres.
No relato de Maria de Lourdes, percebe-se os obstáculos que teve que superar
desde o início dentro de sua própria família para conseguir participar. “Eu estou desde o
início, até a minha mãe, ela dizia: “Besta, já vão pensar que vão arrumar alguma coisa”,
referindo-se à participação dela nas reuniões da associação e do grupo de artesanato do fiapo.
181
Ao insistir, no início, em participar das atividades, apesar da falta de apoio de sua mãe, que
não ficava com suas crianças pequenas, ela diz: “Minha única dificuldade era quando eu não
tinha com quem deixar meus filhos pra ir, porque mãe não fica com meus filhos pra nada”.
Maria de Lourdes teve que buscar alternativas para não desistir: “Se eu não tiver com quem
deixar, aí eu deixo com minha sogra o de quatro anos e o de dois anos fica na creche o dia
todo [...] A minha participação no início era mais difícil por causa das crianças”. Superada
esta dificuldade e com uma maior presença e dedicação nas reuniões e nas oficinas de
formação, percebo mudança na autoestima de Maria de Lourdes e também uma maior
integração na comunidade.
Ela ainda busca o reconhecimento junto à sua mãe, quando diz: “Hoje em dia não
comenta mais, não. Eu digo: tá vendo aí, mãe, que a gente conseguiu o que a gente queria,
apois, mais besta foi a senhora que saiu”. E continua buscando também o reconhecimento
junto à comunidade, uma vez que o grupo de artesanato do fiapo já construiu uma dinâmica
de trabalho coletivo e de cooperação entre seus membros. Ela afirma que houve mudança na
comunidade com o trabalho desenvolvido pelo grupo de artesanato do fiapo: “Mudou, porque
antigamente cada um trabalhava em suas casas, cada quem por si, e hoje em dia tem o dia da
gente se reunir, fazer o grupo para trabalhar. Aí eu acho que mudou muita coisa e quem não
se interessou, hoje em dia está arrependido”.
Para Maria Alice, que assume a liderança do grupo de artesanato do fiapo e
também é secretária da Associação Comunitária e Cultural do Bariri, Rio Seco, Alto e Rio
Quente de Cima, a dificuldade, dela e de outras mulheres, de participar, no início da
implantação do PGV, diferentemente de Maria de Lourdes, não tinha relação com a família,
marido ou filhos, e sim porque não existia relação entre as pessoas vizinhas que moravam
naquele lugar, muito menos integração. Segundo ela, tinham dificuldade em participar das
reuniões, mas acabaram superando:
– [...] não só eu, como todas aqui, era uma comunidade que ninguém se reunia.
Eu passava por minha vizinha, nem se cumprimentava, era assim. A comunidade era
desunida. O Projeto uniu a gente, hoje, se mexer com um coitado, mexeu com a comunidade
toda. Hoje, a gente está bem unida, principalmente o grupo que mantém, é como se fosse a
mesma família, e é uma família. É como eu falo, é um casamento, tem briga tem tudo, igual
um casamento. (Maria Alice, parda, 25 anos).
Maria Alice conta que começou a participar desde o início e que era de seu
conhecimento que outros projetos semelhantes já tinham existido e desaparecido em
comunidades vizinhas:
182
– Do Projeto, desde o começo, desde a primeira reunião eu já estava. Foi assim,
eu trabalhava na prefeitura, eu peguei uns papéis para ler e tinha lá “Terra de Valor”, e
tinha o nome da nossa comunidade, ninguém sabia ainda, e eu cheguei em casa falando: “Eu
vi um projeto que vai ter aí eu vi o nome das comunidades, aqui tudo”. Então falou: “Traga o
papel para a gente vê”. Só que a gente não imaginava que ia ser tudo isso porque já tinha o
Projeto Tucano, tinha feito um arrasto por aí e sumido. Não na nossa comunidade, mas nas
comunidades vizinhas, já tinha experiência, não muito boa, com projetos. Até a nossa, depois,
nós participamos de dois projetos juntos [Ater e o Gente de Valor], mas o que venceu, o que
mudou, foi o Gente de Valor, eu acho, porque, desde o começo, eu participava. Quando
perguntava qual são os anseios de vocês? O que vocês querem para a comunidade? Desde
desse tempo, a gente participava. (Maria Alice, parda, 25 anos).
Maria Alice, em relação a Maria de Lourdes, é mais jovem, mais escolarizada,
viveu, até os 16 anos, na cidade de São Paulo e não tem filho por “decisão” sua de não
engravidar. Ela se encontra em um grau de empoderamento maior tanto individual como
organizacional, pois sua participação é qualificada através da apropriação de conhecimentos
sobre a estrutura interna e gestão da associação e do grupo de artesanato, por conseguir
discutir e analisar criticamente a intervenção desenvolvida pelo PGV. No depoimento, fala do
grupo produtivo de artesanato e, de forma sutil, dá sua opinião sobre a condução dada no
PGV:
– A gente utiliza algumas coisas do regimento, porque nem sempre o regimento
tem como ser atendido. A gente se organiza assim, a gente trabalha todo sábado, aí faz sua
peça, a gente anota, vende, tira o do grupo e dá o da pessoa, e está dando certo. A gente fala
e o pessoal não acredita, mas a gente não está dando conta, dia de sábado só, não dá mais.
Porque esse mês a gente vendeu mais de 100 almofadas, já esse mês, dia de sábado só, não
dá tempo e a gente não faz só almofada, tem outras coisas que a gente faz. Eu agora também
vou falar uma coisa que eu sempre falo, eu acho, assim, que essa questão do artesanato foi
visto pelo Projeto tarde demais. Eu sempre falo isso porque nosso foco mesmo é o artesanato,
mas o Projeto... sempre as outras coisas serviram, viveiro, os quintais produtivos... pra mim,
o que mais serviram foram os quintais produtivos, acredito, para as mulheres. As
capacitações, também, que os encontros de mulheres foi muito bom, abriu muita coisas para
as mulheres, e dos maridos, que a gente ia enjoar eles de noite contando as coisas... E os
quintais produtivos e o artesanato, que é onde mais a mulher fica. Aí eu sempre falava pra
Rejane [a técnica], eu acho que foi visto tarde demais, deixou a gente na mão, porque eu acho
183
que dava para ajudar bastante, mas como a gente não estava como foco [produtivo] (Maria
Alice, parda, 25 anos).
Maria do Sossego começou a ensinar as mulheres vizinhas a fazer crochê, antes
do PGV iniciar a sua intervenção na comunidade. Participou das reuniões do Projeto desde o
início. É fundadora e tesoureira do grupo de artesanato do bordado (costura, pintura e crochê)
da comunidade de Canabrava, formado por 30 mulheres. Ela diz perceber diferença nela
mesma:
– Na verdade, chega pelo conhecimento das máquinas, que fala nos nomes das
máquinas, nós pensava que era uma coisa de sete cabeça as máquinas. Na verdade, hoje em
dia, a gente sabe manusear as máquinas, pra mim eu acho que já foi um conhecimento bom.
Que nós não tinha nem o conhecimento de máquina galoneira – “Que máquina galoneira é
essa? –, overloque não tinha bem conhecimento... Hoje em dia, eu já sinto outra pessoa, é
motivo de muita emoção” (Maria do Sossego, parda, 38 anos).
Já para Maria dos Anjos, que também participa do grupo de artesanato do
bordado da comunidade de Canabrava, o que a levou a participar do grupo foi seu interesse
em aprender a fazer crochê, mas que foi além:
˗˗ Eu acredito que eu aprendi muito. Eu aprendi de início a lidar com muita
gente, a me misturar com muita gente. Aí eu fui aprendendo, muitas vezes não é só o crochê,
é a conversa o que há de bom no meio do grupo.
Ela fala sobre a vivência com as colegas e sobre o que conversam ˗˗ “A gente
divide problemas, têm as pessoas que desabafa em certos momentos. Quando a gente chega
com um problema, a gente gosta de desabafar, é até muitas vezes uma forma de aprender a
lidar umas com as outras, assim, a se conhecer” ˗˗ e do objetivo de aprender a fazer crochê ˗˗
“Era pra ter renda, para ocupar o tempo. Porque, na verdade, eu não trabalho, só quem
trabalha é meu esposo. Ocupar o tempo e ter uma rendinha. Ganhar alguma coisa”. Merece
aqui ser observado que ela não considera “trabalho” aquele que não obtém renda, como é o
caso do trabalho de dona de casa.
Maria José foi presidente da Associação dos Moradores da Comunidade de
Beleza até o final do ano de 2012, término da intervenção do Projeto Gente de Valor. Ela
relembra que começou a participar no início do Projeto quando quase ninguém queria
participar, pois as pessoas tinham medo. O pessoal só acreditou no Projeto depois, quando
começou a implementação, as primeiras ações, as cisternas de produção e os quintais
produtivos: “[aí é] Que foram atrás do CNPJ da associação, aqui [comunidade Baixa do
Mocó] estava com problema, aí corre prá lá [para a associação de Beleza]”. Ela, até aquele
184
momento, não tinha experiência de participar de grupos ou de associação, mas queria
participar: “Aí quando chegamos lá foi preciso a gente se associar, foi tempo que o presidente
de lá venceu os tempos dele, também não tinha quem quisesse, então colocaram eu como
presidente, passemos lá dois anos nessa presidência lá”.
Ela conta que, por ter assumido esse cargo que ninguém queria, teve que ouvir
críticas de algumas pessoas “dizendo que a gente queria tomar a associação deles”, e
enfrentar conflitos dentro da associação: “Que nós quando pegava as coisas, só vinha pra
gente, e não vinha pra eles”. [Eu respondi:] “Não, mulher, a gente não tomou suas coisas, a
gente não vai tomar sua associação, nós estamos aqui porque vocês não quiseram ser
presidente da associação”.
Esse problema surgiu porque o PGV, em sua metodologia de intervenção,
estimulou a formação do subterritório, juntando três a quatro comunidades próximas que
tivessem características e identidades culturais semelhantes. Porém, para a operacionalização
dos recursos vindos do Projeto, não se criou nenhuma organização que envolvesse todas as
comunidades. Para acelerar o processo, foram utilizadas as associações comunitárias que já
estavam formadas e legalmente registradas nas comunidades que faziam parte do
subterritório.
Algumas dessas associações, muitas vezes, tinham documentação e registro,
porém não tinham uma dinâmica associativa latente, pois foram criadas por cabos eleitorais
de determinado grupo político ligado a um vereador. Foi o caso da Associação de Beleza;
como não existia uma vivência associativa dos sócios, as pessoas que moravam na
comunidade não quiseram assumir os cargos da diretoria da associação e, como as mulheres
da comunidade vizinha, Baixa do Mocó, queriam os benefícios do Projeto, mesmo sem
experiência na gestão de uma associação, resolveram enfrentar as dificuldades e assumiram a
diretoria. Maria José lembra que as brigas internas na associação atrapalharam: “[...] as
pessoas são desunidas, as pessoas não querem, né. Eu acharia assim, se as pessoas fossem
tudo organizadinho, unidozinho, eu acho que a gente ia buscar mais coisas”. Recorda e
lamenta que pelas outras atividades oferecidas pelo Projeto, como artesanato e corte e costura,
as mulheres não se interessaram: “Hoje em dia a gente tem que trabalhar em alguma coisa –
a gente vai viver só no cabo da enxada todo dia? Não, é ruim! Se a gente tivesse mais uma
rendinha, uma coisa mais fácil, não, era melhor, mas ninguém quis; fazer o que?”. Mas
afirma que gostou de ter participado:
– Eu achei bom demais, homem [risos]. Aí tem hora, que eu digo às meninas:
“Olha, quando a gente participava do projeto, a gente ia para as reuniões – eu digo – a gente
185
se divertia, era bom demais!”. Naqueles tempos eu não ficava estressada, [porque] a gente
conversa, conversa com uma pessoa, conversa com outra, naquele tempo eu achava bom
demais, eu comecei sem querer, mas depois eu acostumei, minha filha, pense que eu achava
bom! Tem reunião eu estou lá. [risos] (Maria José, parda, 50 anos).
Dentre os cursos de capacitação promovidos pelo PGV, o que ela mais gostou
entre todos dos quais participou, foi: “As plantas! Meu quintalzinho, eu gostei”. Ela se refere
aos quintais produtivos e com alegria e orgulho de ter uma boa produção, apesar do período
de estiagem, de não ter usado veneno nas plantas e, principalmente, de ter aprendido os
ensinamentos agroecológicos: “Eu aprendi [risos]. Ainda hoje, eu planto, eu gosto de plantar,
se eu tivesse água, eu plantaria direto, porque eu gosto. Não tem muito, porque o sol está
muito quente e a água é pouca”. Com muita alegria, ela afirma: “Tenho coentro, pimentão,
pimentinha, cebola, tenho tudo ali. [risos]. Tudo agro ecológico, tomate, graças a Deus, tanto
comi quanto dei pro povo aos montes. Eu não uso veneno, até hoje, graças a Deus, nunca
usei”. Maria José fala com prazer desta prática e afirma que continua plantando verduras e
hortaliças sem usar veneno: “Aprendi com o Projeto. Foi, porque a gente come tudo com
veneno, já não é muito sadia, e tudo que for comer, com veneno, aí o bicho pega, não é?”.
Ela revela ter um maior domínio do manejo agroecológico e ter incorporado essa
prática independentemente da presença do Projeto. Ainda falta, porém, em seu discurso,
maior conscientização política sobre o que representa esta proposta em relação ao modelo
tradicional da agricultura. Apesar de ter deixado a Associação de Beleza e não mais assumir
cargo de diretoria na outra associação da qual hoje é sócia, Maria José diz que valeu a pena ter
participado da associação e aponta os benefícios alcançados: “Valeu demais. Porque veio as
coisas pra gente, veio esses quintais produtivos, veio máquina forrageira, cisternas, prá mim,
não, que eu já tinha, mas veio para as outras pessoas e foi bom demais. Aí depois veio essa
rede de água, graças a Deus”. Ela continua falando porque valeu: “Essa outra [água] é pra
gente gastar, pra gente não estar todo dia pedindo numa prefeitura ou então ir para longe
buscar”.
As
mulheres
agricultoras
que
participam
efetivamente
das
dinâmicas
organizativas e de atividades produtivas, de capacitações temáticas, das associações
comunitárias, exercendo um cargo de direção, como presidente, tesoureira, secretária ou
mesmo como sócias ativas de sua organização, essas mulheres experimentam o poder. Já
Maria José experimentou o poder enquanto presidente da associação, no período em que
estava vivenciando a dinâmica organizativa participativa e um intenso processo de
capacitação promovido pelos técnicos durante a execução do PGV. E como o empoderamento
186
das mulheres era visto dentro do Projeto como um instrumento para o desenvolvimento e
combate à pobreza, suas ações estavam focadas nas “necessidades práticas de gênero”, através
das tecnologias produtivas e geradoras de alimento e renda monetária.
O Projeto criou as condições para que as mulheres participassem das associações,
porém, o controle sobre os recursos e informações continuou sob a tutoria dos técnicos, não
possibilitando a construção do exercício pleno da autonomia das mulheres diretoras da
associação. Todavia, estas ações não levaram Maria José nem as outras mulheres desta
associação a refletir sobre suas situações de subordinadas aos homens e a questionar a
ideologia patriarcal nem a desvelar as desigualdades sociais e a discriminação de gênero, por
elas sofridas e naturalizadas.
Como o empoderamento é um processo e este processo não é linear, parece-me
que Maria José não se empoderou, de fato, ou o grau de seu empoderamento foi baixo, já que
o ambiente que a circunda não lhe proporcionou um entendimento crítico sobre a sua
realidade, ter autonomia e capacidade de fazer suas próprias escolhas. Ao comparar a Maria
José, presidente da Associação em 2011, com ela mesma, em final de 2013, relembro que era
atuante na comunidade e fazia as tarefas relativas ao seu cargo, porém com a ajuda dos outros
e sob o comando dos técnicos e não por si mesma. Maria José, em 2011, estava em um
processo de empoderamento individual construindo capacidades em manejo agroecológico e
na prática cotidiana do associativismo comunitário, contudo, em 2013, saiu da vivência
associativa e voltou ao seu universo doméstico e agrícola: desempoderou-se. Não foi
convencida nem se convenceu da importância de estar à frente da associação como presidente,
um direito seu e das outras mulheres, como estratégia para lutar por seus interesses enquanto
grupo e servir como referência para as outras mulheres da comunidade, uma vez que era a
primeira mulher, agricultora, com pouca escolaridade assumindo a execução de um Projeto
enquanto presidente da Associação Comunitária de Beleza.
Maria Esperança, assim como Maria José, participou ativamente do grupo de
quintais e incorporou a prática e a proposta agroecológica, também acompanhada pelos
técnicos do escritório de Jeremoabo. Ela assumiu como vice-presidente da Associação
Comunitária Bananeirinha e Adriana, no município de Jeremoabo, e foi Agente de
Desenvolvimento Subterritorial (ADS) do PGV e, por este motivo, passou por um processo de
formação sistemático e mais aprofundado. É importante frisar que se trata de uma jovem de
28 anos, que tem o Ensino Médio completo e que estava cursando o penúltimo ano do Curso
de Técnica Agrícola. Para ela, participar trouxe o compromisso de compartilhar com os outros
o conhecimento adquirido. Percebe-se ainda, em seu relato, a integração na comunidade e o
187
seu sentimento de pertencimento. Em suas palavras: “Participar é tá presente, é ouvir e falar
e depois não ficar pra gente o conhecimento, passar para as pessoas que não puderam está lá
presente, passar para as pessoas do subterritório, não só da comunidade”. Ela continua
falando sobre seu sentimento: “Porque quando eu ia para uma reunião eu me sentia da
Bananeirinha, eu falava sempre: Meu território é Ribeirinhos e eu estou aqui para
representar as três comunidades. Se for pra vim três coisa, uma em cada comunidade”. Ela
afirma que representar as comunidades: “[...] minha opinião é essa, não só ficar pra mim,
participar de uma reunião e ficar com o conhecimento pra gente, tem que expandir para que
as pessoas possam ter conhecimento”.
No discurso e nas ações de Maria Esperança, percebe-se que o seu
empoderamento não é ilusório, como o de Maria José, porque ela tem consciência do seu
compromisso com a comunidade, põe o conhecimento aprendido a serviço do grupo e
experimenta o “poder com” ao expandir e compartilhar, com as pessoas da associação e da
comunidade, seu aprendizado e questionamentos, motivando-os a refletir sobre as estruturas
do modelo de desenvolvimento tradicional da agricultura que domina sua região e que coloca
a mulher agricultora num lugar secundário, subordinada ao domínio masculino. Ela fala sobre
sua participação no Projeto dizendo: “Hoje, sendo coisa honesta, eu topo qualquer parada,
em questão de trabalho, em questão de viajar, em questão de estudar”. Relembra que, no
início do Projeto, tinha dificuldade de falar em reunião: “Antigamente, eu participava de uma
reunião, meu Deus do céu, eu jamais, eu falaria, mas hoje, não, se é uma coisa que está me
incomodando, que vai é prejudicar alguém, eu não fico calada, não”. Ao dar a sua opinião,
ela inicia dizendo que as pessoas precisam estar sempre atuando para ter condições,
conhecimentos e ficar sempre informadas e que, para isto, precisam participar das reuniões
para poderem ouvir e serem ouvidas. Maria Esperança diz que percebeu mudanças em outras
mulheres que antes não tinham coragem de falar:
– Eu percebo tanto aqui na comunidade Bananeirinha, no subterritório em geral,
as pessoas que mal falavam o nome, que hoje já está participando de reunião, se
comunicando, não tem mais aquela vergonha de antes e, como ADS, eu percebi que tinha
pessoas que até para falar o nome tremia e, no decorrer do projeto, parecia, não, é outra
pessoa, que perguntava, que se comunicava, que questionava... Meu Deus, vai ser mesmo pro
resto da vida, o que a gente aprendeu foi um presente de Deus. A gente não tinha esse direito
de participar de reunião, quando eles queriam, traziam os projetos feito, quando chegava na
comunidade, e esse não, a gente teve o direito de dizer o que precisava e de participar de
reuniões para saber o que estava acontecendo. (Maria Esperança, preta, 28 anos).
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Maria Esperança nos leva a refletir que um projeto de desenvolvimento rural que
tem como estratégia de intervenção a equidade de gênero e o empoderamento de mulheres
deve ter como “obrigação” metodológica a participação equitativa de homens e de mulheres
desde o início, no diagnóstico rural participativo (DRP), para que todas as pessoas possam
colocar suas demandas individuais e coletivas, influenciando e contribuindo para a construção
da proposta do projeto a ser executado.
Maria Amélia participou do PGV desde o início de sua intervenção no campo,
quando os técnicos estavam aplicando o DRP na sua comunidade, Raso Pintado, município de
Fátima e se tornou liderança importante do processo. Ela conta:
– [Participo] da organização da comunidade já vem uns 20 anos, eu sempre
organizava a comunidade. [...] Depois, a partir desses projetos do Gente de Valor, que a
gente começou a fazer as coisas mais diferentes, vê as coisas do outro mundo. [...] Aí foi
quando a gente formou a associação, fizemos a comissão, aí fiquei sendo a tesoureira, até
hoje continuo, não sei até quando” (Maria Amélia, branca, 50 anos).
Maria Amélia se refere às tecnologias que foram implantadas na comunidade
durante a realização das atividades produtivas do Projeto: “Fui contemplada com cisternas,
banheiro, cisterna de pote”. Isto significa que ela participava do grupo dos quintais
produtivos:
– Para te dizer a verdade, eu não plantei no meu quintal ainda. Porque, às vezes,
de vez plantar no quintal, eu preferi plantar mais por fora, que eu achava que era mais
rápido. Porque o quintal tem mais, assim, coisa para planejar. Eu mesma já acostumada já
na lavoura, eu achei melhor plantar fora do canteiro. Eu plantei como a gente plantava as
verduras – couve, tomate, um bocado de coisa, cenoura... a gente já plantou tudo, isso assim
dá, na terra da gente. (Maria Amélia, parda, 50 anos).
Maria Amélia confessa não ter seguido as orientações da técnica para fazer os dois
canteiros econômicos com lona plástica e com o cano que ficariam enterrados nos canteiros, e
que teriam que receber adubação orgânica. Resolveu continuar fazendo do seu jeito, com as
leiras e o plantio direto no solo. Quando se pergunta se ela plantou fora do canteiro, ela diz:
– Isso, porque aquele precisava de muito adubo e eu não tinha como botar. Aí
tinha que ser, e precisava daquela lajezinha que eles fazem com o plástico. Assim eu pelejei,
sabe, de uma... acho que, assim é melhor, a gente aguar melhor, não é que conserve, porque
o plástico ajuda mais a conservar a molha, mas eu sei, é o costume da gente. E do meu jeito
deu, com certeza. (Maria Amélia, branca, 50 anos).
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Demonstra ter conhecimento sobre a proposta e realmente ter participado das
oficinas de capacitação dos quintais produtivos, porém teve resistência a incorporar a forma
que estava sendo experimentada pelo grupo. Ela afirma que não achou erro na proposta dos
técnicos: “Não, não foi erro não. Foi coisa da minha cabeça mesmo. Todo mundo plantou e
todo mundo se deu bem. Agora eu é que plantei por fora”. Atitude de independência, com
certeza, mas precisaria conferir qual método deu mais certo e qual a reação do grupo à sua
atitude ou a repercussão no processo do grupo.
Maria Amélia conta que não participa ativamente do cotidiano do processo
associativo e que não assume como deveria as funções de tesoureira; apenas assina os cheques
que o presidente da associação já preencheu e traz para ela assinar. Ela diz:
– Mulher, pra ser tesoureira da associação eu posso dizer assim, que eu não sinto
peso de nada pra fazer, porque o presidente resolve tudo, apenas ele chega aqui, que é uma
coisa que eu acho que seja errado, apenas ele chega aqui com o cheque já assinado [por ele],
aí manda que eu assine. Até eu já reclamei isso pra ele, meu serviço não era só chegar e
assinar e deixar ele resolver o restante, mas depois eu vou deixando pela vontade... (Maria
Amélia, branca, 50 anos).
Sabe-se que esse procedimento na associação não é correto e que as atribuições da
tesoureira exigem dela uma maior presença, um controle administrativo-financeiro da conta
bancária da associação, responsabilidade sua diante dos associados e da comunidade. Ela
afirma saber que é perigoso, mas que confia no presidente: “Ele chega: “Assine aqui!”; eu
assino, apesar que eu confio nele. Ele é uma pessoa que pode até errar, mas até o momento
eu dou esse voto de confiança nele”. Maria Amélia não assume que esta situação é cômoda
para ela e que deixa, sobre as costas do presidente e dos outros sócios, as responsabilidades,
que, a princípio, seriam do cargo de tesoureira que, legalmente, ela representa.
Quando pergunto se ele apresenta as contas nas reuniões da associação, ela diz
assim: “Ele [o presidente] apresenta as contas, quanto entrou, quanto saiu, tudo ele explica.
Só que a gente também, não vou dizer que ele faz tudo certo e direito, porque a gente também
não dá muita importância pra ajudar ele fazer as coisas”. Ela afirma não acompanhar nem se
envolver na prestação de contas da associação: “Não, eu não vejo, não, falar verdade, eu não
vejo, não”. Ela não parece ter um entendimento crítico sobre sua postura dentro deste
processo organizativo e o que isto significa para os outros associados. Ao perguntar sobre os
grupos dos quintais produtivos, se esta atividade lhe trouxe algum benefício e para as outras
mulheres, ela responde: “Eu acho, minha filha, quase ninguém, os quintais foi pouca
produção. Pouca gente plantou”. Mas, se todas as cisternas de produção para os quintais
190
foram construídas, como ela afirma, qual foi o problema? Ela responde: “Agora eu não sei,
isso foi coisa de cada um”. E se refere às barracas que seriam para o grupo comercializar as
hortaliças agroecológicas na feira da comunidade e na sede do município: “Nas reuniões,
quando veio as barracas, era pra gente juntar de três quatro pessoas para vender as coisas
do plantio mesmo da horta. [...] Depois não carregava as barracas, era um descontrole: tá
bom, eu tô caindo fora”.
Maria Amélia tem dificuldade de viver as relações de grupo, os conflitos, o jogo
de interesses pessoais que, muitas vezes, se sobrepõe ao interesse coletivo. Observo que ela
tem dificuldade de viver essa dinâmica organizativa comunitária que exige o
compartilhamento das tarefas, das responsabilidades e do poder decisório da liderança. Ela
não acredita no grupo e a disputa entre familiares é grande nesta associação. No final da
conversa, pergunto o que achou do PGV e Maria Amélia comenta:
– Pra dizer a verdade, desse projeto nada foi pra frente, de produção, não.
Porque a única produção era os quintais, doce e a costura, nenhum desses foram pra frente.
Ninguém assumiu. Espero em Deus agora, depois que a gente conversemos mais o Antônio [o
presidente da associação], se depois que arrumar a sede e colocar as coisas lá dentro, vamos
vê se a gente vai fazer alguma coisa pra vê se vai à frente. Vê se a gente dá continuidade, se
arruma um grupo que tenha consciência do que está fazendo. (Maria Amélia, 50 anos).
Ela não faz uma crítica à intervenção do Projeto ou à sua proposta, contudo, ao
longo de sua fala, vai deixando evidente que a comunidade recebeu as benfeitorias para a
implantação dos quintais produtivos, os equipamentos para o beneficiamento de frutas, as
máquinas de costuras, mas os grupos não assumiram as atividades propostas e a associação
vem tentando continuar a condução deste processo. Ao dialogar com Foucault (1984, p. 277)
me pergunto se esta atitude de Maria Amélia é uma forma de resistência ao saber técnico
dominante que, geralmente, vem sendo imposto de cima para baixo, que se impõe como um
saber mais competente e qualificado e que, usualmente, não valoriza a cultura e os costumes
dos agricultores e agricultoras aprendidos com seus ancestrais nem valoriza a prática
cotidiana, o saber da experiência da agricultora, que vive e tira seu sustento da terra durante
toda sua trajetória de vida. Ela demonstra ter conhecimento sobre a proposta e que realmente
participou das oficinas de capacitação dos quintais produtivos, no entanto, não quis incorporar
esta técnica que estava sendo experimentada pelo grupo nem esta forma de fazer os canteiros.
Ela não confia no que aprendeu.
Maria Amélia demonstrou ter autonomia ao decidir não fazer do modelo e do jeito
que estava sendo feito pelo Projeto e ao resolver continuar plantando as hortaliças nas leiras
191
mesmo contra a vontade e orientação dos técnicos e técnicas. Por outro lado, não participou,
de fato, do cotidiano da associação, ficou na superfície do processo, não mergulhou nas
capacitações nem se apropriou dos seus conteúdos, não assumiu, com consciência de si e de
seu papel, a liderança na comunidade. Ela não tinha controle sobre as situações específicas
que narrou em seu depoimento sobre os problemas enfrentados no cotidiano da associação
nem demonstrou habilidades para envolver e animar as outras mulheres a continuarem
mobilizadas nos grupos produtivos, levando-as, com o seu exemplo desmotivado e de total
desconfiança, a desistir das atividades. Fica a questão de como esperar um maior
envolvimento das pessoas da comunidade se uma das lideranças não assume seu papel
enquanto tesoureira ou como animadora das atividades organizativas e produtivas.
A quilombola Maria das Dores conta que começou a participar do PGV logo no
início, que era uma participação tímida, calada, que só ouvia os assuntos tratados nas
reuniões, mas, com o passar do tempo, foi aprendendo, crescendo e se desenvolvendo no
processo participativo. Ela relembra:
– Antes de 2009, eu participava mais ou menos; eu era secretaria da associação e
fiquei dois anos. Aí, em 2009, foi quando o Projeto Gente de Valor chegou, aí, eu não parei
mais, participava das reuniões, não era muito de participar falando, porque eu sempre fui
assim quieta, mas aí, com o passar do tempo, eu fui me desenvolvendo mais nas reuniões e eu
acho bom e foi com o Projeto, através das reuniões, das oficinas, encontros, que eu fui
pegando o gosto mesmo de participar, de tá em grupo, e hoje não consigo sair até agora.
(Maria das Dores, preta, 31 anos).
Ela relata que participou de vários cursos e encontros, que foi gostando de
trabalhar em grupo e que, dentre todas as oficinas de que teve a oportunidade de participar a
que mais gostou foi a de Sensibilização para o Reconhecimento Quilombola. Assim, diz:
– O que mais me motivou foi quando teve as oficinas que falava sobre a nossa
raça, isso foi o que mais pegou. No início, teve a pergunta, bem no início do Projeto: vocês se
identificam como quilombola? Nós dissemos que não. Aí, com o decorrer, com as
explicações, aí veio as oficinas mesmo falando sobre a questão quilombola que, aí, pra mim,
foi muito importante, porque eu aprendi e hoje eu passo nas reuniões, eu faço leitura do livro
que a gente tem explicando o que é ser quilombola, a importância da gente, pra gente
valorizar nossa raça e como se comportar diante das pessoas que nos discrimina. Porque é
muita discriminação e a gente já estando preparado, é menos, se sente menos desvalorizado.
(Maria das Dores, preta, 31 anos).
192
Maria das Dores lembra que não assumia sua identidade negra nem que era de
uma comunidade quilombola e, na medida em que as oficinas de sensibilização foram sendo
realizadas, as pessoas da comunidade foram se apercebendo e descobrindo a importância de
assumir e valorizar sua origem. Percebe-se que houve aumento da autoestima, da
autoconfiança, do sentimento de pertença e do autorreconhecimento de um ponto de vista
ético-cultural. Ao relembrar as ações do Projeto, cita, no seu entender, a mais importante, que
ficou marcada na sua vida:
– Foi na questão da organização, porque o projeto trabalhou na questão de
organização, da valorização da mulher, que algumas das atitudes da minha vida eu tomei por
conta dos esclarecimentos que eu ouvi e sobre a gente ter em mente o que é se valorizar, já
muda muita coisa na vida da gente e da comunidade também. (Maria das Dores, preta, 31
anos).
Foi durante o processo organizativo da comunidade que ela começou a entender
sua realidade social enquanto negra, mulher e pobre, a conhecer o contexto sociopolítico e ter
um olhar crítico sobre ele. Diz ela:
– [...] o Projeto focar mais na questão da organização, da importância do povo
está unido, tá buscando. Porque, numa comunidade dessa como Maria Preta, se não for o
povo unido como o Projeto sempre falava, se o povo não for unido, não chegava a canto
nenhum. Porque a gente luta tudo por um objetivo, a questão da saúde, da educação, então,
tem que ser o povo junto. Eles participam por isso eles vão pra reunião, dão sugestões,
sugere que a gente vá buscar quando falta água... a questão da água aqui é muito grande, a
falta, e aí, quando está faltando água, vamos lá, manda ofício, quando demora vim, conserta
a bomba, vamos lá que é pro carro vim trazer água. E antigamente não, nós ficava três
meses, quatro meses com sede só pegando água no barreiro, e hoje o povo, não, que nem fica
três dias, demorou três dias, é hora, o povo já vem. Eu mesmo já fico mais relaxada, eu vou
esperar pra vê se alguém diz, e aí a diferença é essa, o povo já sabe cobrar, já quer ajuda,
procura o presidente, me procura, procura até a secretaria também e aí já querem de
imediato. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
Maria das Dores fala da sua vivência associativa com orgulho, com satisfação
entre seus membros, com consciência de pertencimento da comunidade; tem confiança e
crença nas pessoas da associação. No depoimento acima, comenta sobre a união do grupo e a
luta coletiva na busca de efetivar ações por direitos antes negados como o acesso à água.
Ressalta a participação dos membros da associação nas reuniões, sugerindo, dando opinião e
193
experimentando um processo de decisões mais compartilhado, de forma mais coletiva e
horizontal.
Maria das Dores é uma mulher que tem consciência das mudanças que ocorreram
em si mesma, durante a sua participação na comunidade e na associação. Percebe, ainda, que
houve mudança na sua autoestima. Sua vivência fez com que tivesse outra visão de mundo e
se sente outra pessoa depois desta experiência organizativa. A sua forte integração na
comunidade é revelada através do seu reconhecimento junto ao grupo do qual participa na
associação. Ela diz como vê a sua caminhada: “A minha mente hoje é outra, as pessoas me
veem diferente, não com uma pessoa diferente, mas o que eu faço de diferente que eles
procuram minha ajuda, eu ajudo e aí eles me ajudam e aí a gente vai andando junto”.
Maria dos Prazeres, diferentemente das outras mulheres pesquisadas, desde que
começou a participar da dinâmica da comunidade Baixa da Roça, ainda garota de 12 para 13
anos de idade, cantando na celebração da missa, relata que “foi através de Deus
primeiramente e o pessoal da igreja que me fortaleceu, me jogou assim em viver em
comunidade, em associação, em cooperativa”. Ela se refere à Igreja Católica, pois participou
das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e conta que nesta igreja não ia só rezar: “Não
rezava, ia pros encontros, fazia negócio de catequese, chamava os jovens pra participar”.
Conta, ainda, que começou a participar do Sindicato dos Trabalhadores Rurais: “Foi através
da igreja, o pessoal da igreja vieram pra escola e aí mãe disse: ‘Tem um negócio na escola
hoje’, disse que era pra ir, aí nós ia, uma ruma braba de menino”. Diz também que “quando
chegou lá cantava musiquinha, a gente achava bonito, cantava... Aí o pessoal da igreja foi
vindo mais vezes, e trouxe já o sindicato. O sindicato foi vindo e aí foi assim que eu comecei a
caminhar”.
No início, para participar das reuniões e para viajar com o sindicato, contava com
o apoio de sua mãe que, muitas vezes, teve que mentir para que o pai de Maria dos Prazeres
não ficasse sabendo que ela estava participando do sindicato, pois ele não a queria envolvida
com o pessoal do sindicato. Já seu marido a conheceu participando do movimento sindical.
Ela fala: “Quando eu me casei já vivia assim em movimento do sindicato, eles me levavam
dois, três dias, ia para Paulo Afonso, Cícero Dantas, não sei pra onde”. Conta, ainda, que “o
pessoal do sindicato dos trabalhadores rural me chamava: “[Fulana], vamos”; pai era bruto
demais, mãe tinha que mentir. Dizia que tava fazendo alguma coisa, dizia que foi mais vó, tá
na casa de vó. Mas não tava; tava com o povo do sindicato”.
Maria dos Prazeres, em seu depoimento, lembra como foi o processo da
construção participativa do DRP realizado na comunidade e que seria executado pela
194
associação. No relato, fica evidente que a associação foi fortalecida com o aporte de recursos
vindos do PGV para que as atividades planejadas nos planos de desenvolvimento fossem
executadas pelas associações parceiras. Ela diz:
– Aí veio o Projeto, aí aprontou o projeto. Aí, graças a Deus em primeiro lugar, o
Projeto ajudou demais, demais, a associação. Porque tinha a associação e tinha pessoas que
já estava desacreditando, não vinha projeto nenhum e não tinha nada, aí o Gente de Valor
chegou na hora certa. Tem a sua hora, aí foi chegando o Gente de Valor e foi trazendo os
projetos, conseguimos kit de informática, conseguimos pessoal, sete pessoas pra fazer o
curso, já foi pra desenvolver, fazer uma ata digitada, um recibo, um negócio pra ajudar a
associação mesmo já e eles aprender. E aí foi chegando o kit forrageira, foi chegando a
cisterna, e aí foi chegando cisterna de quintal, que é essa das hortas, e tudo, e viveiro e mais
coisa, e aí foi que chegou também o incentivo das mulher, porque elas, tadinha, trabalhava,
trabalhava, reunião, reunião e nada de ganhar o pão. Aí veio um curso, a primeira vez, seu
Florisvaldo já trabalhava, aí disse assim: “Vamos fazer um curso do aproveitamento do
caju”. No início, nós dizia: “Oxe, oxe, oxe, Valei-me, Nossa Senhora, aproveitar o caju
agora!”. Já aproveitava a castanha, e a castanha era dos atravessador, vendia pro Ceará,
pra Aracaju, aí conseguiu essa unidade na luta da associação com a comunidade. (Maria dos
Prazeres, parda, 32 anos).
Ela se sente preparada para desempenhar sua função como presidente e coordenar
a minifábrica e afirma ter confiança na força da comunidade e do apoio que ela tem da
associação:
– Em primeiro lugar, Deus dá capacidade à gente, a gente pega essa capacidade
com força e confiança das pessoas da comunidade que confia, que dá todo apoio. E se tiver
qualquer coisa a gente já grita a eles: “Olha, pessoal, tem isso, como vamos fazer?”.
[Alguém responde:] “Vamos, você faz isso, você entre dentro, você vá buscar, você corra
atrás, você e outras, não sou eu, então vamos fazer!”. Primeiro lugar, a confiança do pessoal
da comunidade. Então, eu me sinto capaz. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Com autoconfiança e se sentindo capaz para desenvolver seu trabalho na
comunidade, Maria dos Prazeres diz que só não se sente preparada para entrar na política
partidária, porque não acredita nela, acha que faz mais estando na comunidade:
– Só não da questão política, porque o político não faz nada, eles diz que faz e
não faz. E se, pra mim entrar na política, eu ter o poder de tá lá, ver a comunidade sofrendo,
precisando e não fazer nada, é melhor não entrar. Nem entre na política porque não cumpre
tudo que diz, então é melhor ser uma pessoa de comunidade, faz muito mais coisas do que o
195
político. Muito mais coisas, muito mais coisas nós conseguimos, do que o prefeito que passou
seis anos no município, não fez nada, nem uma estrada passou, nem uma máquina passou na
estrada. Nós conseguimos muito mais. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres fala com orgulho das conquistas dela e da comunidade e conta
como vem se sentindo empoderada: “Eu me sinto uma mulher poderosa e eu acho que as
meninas que ficam com a gente da associação, têm muitas, poucas, que ainda não se sente,
mas 80% delas já são ‘empoderosas’ já, se dá um grito de luta, tá na luta”. Compara-se à
Presidente Dilma Rousseff:
– Eu sinto hoje, não assim como só, não sei, não, Deus que sabe. Não sei dizer
com palavras bonitas, mas sei dizer assim: a gente se considera assim, eu, nós, a gente, as
meninas, Dilma [presidenta do Brasil], porque Dilma tem dinheiro, mas nós temos muito mais
poder do que ela, muito mais vontade, o que nós qué fazer, nós consegue, e às vezes Dilma
diz uns negócios lá na televisão bonitinho, tá, tá, tá, só no papel [risos fortes e altos]. (Maria
dos Prazeres, 32 anos).
Ela tem outro diferencial, em relação às outras pesquisadas, que possibilita seu
maior empoderamento: além de ter começado, ainda adolescente, a militância em movimentos
de igreja e logo depois no movimento sindical, também conseguiu estudar e concluir o ensino
superior. Para tal, contou com o apoio de sua mãe e irmã para pagar a faculdade em Cícero
Dantas e cursar Pedagogia. Em suas palavras:
– Eita, que do Estado é difícil. A faculdade a gente precisava e aí, de vez em
quando, o pessoal me chamava, uma, duas, três semanas... [Eu:] “vá ficar no meu lugar”. Aí
eles pagavam, aí eu disse: “Eu vou estudar mais”. Aí o marido disse: “Eu não posso, não,
mas eu ajudo”. Aí ajudou. Minha mãe já era aposentada, minha irmã é professora, aí [ela]
disse: “Você vai estudar comigo”. Aí eu disse: “Eu não vou, não, porque eu não tenho
condições”. Aí ela disse: “Vai”. Na verdade foi minha mãe e minha irmã que me ajudou eu
concluir, porque, tinha vez que eu chorava e dizia: “Não vou mais, perdi todo meu dinheiro e
eu não tenho mais dinheiro pra pagar”. Aí elas iam e pagava, mãe dividia a metade e as duas
pagavam. [...] Pra ir não tinha dinheiro pra pagar passagem [até Cícero Dantas]. Ela
comprou uma motinha [motocicleta], tirou a carteira e foi nós duas, ia e vinha nós duas.
Agora os trabalhos, eu fazia e dava pronto no papel, e aí nós, aí foi quando Deus ajudou e
chegou o computador [da associação], aí digitava. [...] Já tava participando da associação. A
gente foi e estudou, mas foi ajuda de Deus e de minha família, minha mãe e minha irmã,
porque senão eu não tinha estudado, não. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
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Maria dos Prazeres sabe que o conhecimento lhe dá poder e que, em sua trajetória
de vida, sempre teve muita luta, trabalho e sacrifício. Ela continua estudando e está fazendo
uma pós-graduação na área de educação, porém, não deixa suas origens de agricultora e
continua plantando “Na roça, trabalhava meio período como antes, teve muita ajuda, porque
eu já plantava mandioca, feijão”. Ela conta que a terra não é sua nem do seu marido, mas do
sogro.
Maria da Paz comenta que começou a participar das reuniões do PGV logo no
começo, contudo, teve dificuldade em continuar: “No começo das reuniões, minha mãe
estava doente, ela tinha câncer, eu estava grávida. Aí eu acabei desistindo, depois eu voltei
tudo de novo, quando a criança nasceu, minha mãe tinha falecido e tô até aqui. E não
pretendo desistir, não”. Ela é a tesoureira da Associação dos Pequenos Produtores Rurais da
Fazenda Pedrinhas. Depois que voltou a participar do Projeto, logo entrou no comitê84 e
conselho85 formados na comunidade. Tem um forte engajamento na organização da
comunidade, sempre está à frente das atividades desenvolvidas e, por seu compromisso com
as questões da associação, recebe o apoio das pessoas da comunidade. Em suas palavras:
– No começo, eu não participava da associação, não. Essa associação, é desde
2000 que ela é atuante, só que a gente aqui não era sócio da associação. A gente veio atuar
mais agora depois do projeto. Só que, quando começou vim o primeiro pessoal, aí foi
formado os conselhos e comitê, aí já me botaram já lá direto no conselho, no começo. Aí já
fui atuando, isso foi em 2009, 2010, quando começou as primeiras visitas, por aí... Aí acabou,
veio a eleição, o pessoal não queria se candidatar [...] aí queriam me botar como presidente;
eu não sabia nada de associação, aí eu não vou não, ainda vou como tesoureira [risos], que
também não era boa função, né. Mas eu já tô aí, é bom que eu também vejo o que está
acontecendo, o que não está acontecendo, o que a gente está comprando e o que não está
comprando. A gente tem a fiscalização, que fiscaliza a gente, pelo menos, eu sou tesoureira,
mas eu tô me fiscalizando, e fiscalizando para onde está saindo o cheque, eu mesmo assino,
assim, eu sei para onde vai cada cheque pago. (Maria da Paz parda, 32 anos).
Ela relata que, dentre as muitas capacitações promovidas pelo Projeto, a que mais
gostou foi a primeira, sobre Gestão de Convênio, na qual aprendeu a fazer prestação de
contas, preencher um cheque, calcular e preencher guia de imposto, fazer cotação de preço e
até licitação. Segundo ela, quando foram preencher as primeiras guias de imposto, não se
84
85
Era como a comunidade se organizava para debater os problemas e soluções referentes ao PGV.
Os conselhos subterritoriais eram formados com os representantes dos comitês de cada comunidade
que fazia parte do subterritório (reuniam de três a quatro comunidades próximas).
197
sentiam seguras e nem confiavam se realmente tinham aprendido certo: “[No começo:] Olha,
ajuda aqui, que a gente está meio com medo de fazer [...] Mas hoje a gente já não tem mais
medo de preencher, mas as primeiras a gente tinha”. Ela garante ter aprendido e diz: “A
gente nunca aprende tudo num dia, dois dias, mas uma experiência fica e se a gente atua,
acaba aprendendo o restante”. É visível que tem habilidade e domínio na gestão
administrativa e financeira da associação. No entanto, ela conta que, geralmente, não é ela que
preenche o cheque, mas a presidente. Quando lhe perguntei se já assinou algum cheque em
branco, ela me respondeu um pouco brava: “Não, não. É porque eu fazia as cotações, era
tudo eu, então, eu ia lá e fazia as cotações, chegava lá, dizia o menor preço é esse aqui, a loja
é essa aqui, você vai preencher com esse aqui. Aí, ela preenchia e eu assinava”. Ela fala que
a responsabilidade é grande, então, eu lhe perguntei se deu medo assumir o cargo de
tesoureira, ao que responde: “No começo você fica sozinha, como é que eu faço isso? Mas
você acaba se juntando com o pessoal. Eu nunca fazia nada sozinha quando queria fazer
alguma coisa, Geraldo (chefe do escritório de Cícero Dantas) mesmo, coitado, eu acabava
ligando, nunca assinava nada”. Ela continua contando que perguntava: “Como é que faz isso
aqui?, pra não dá muita coisa errada. Mas a nota fiscal mesmo, a gente nunca teve problema
com nota fiscal”. A autoestima e o sentimento de autovalorização estão presentes na fala e na
postura de Maria da Paz quando trata da sua participação e o quanto se sente capaz com o
conhecimento aprendido para exercer seu cargo na associação:
– Me sinto [capaz], porque antes eu não sabia nada, se alguém me mandasse
fazer qualquer coisa dessa, eu não sabia nada, fazer uma cotação. As questões das cotações
servem até para minha vida pessoal, que tudo que eu vou fazer, eu faço cotações. Eu já sei
qual a loja que custa mais barato, pelo menos, dentro da minha cidade, eu já sei. Por mais
que eu já sei que não seja tão barato, mas eu já sei que custa menos que as outras, aí eu já
vou direto pra ela. Serviu pra vida pessoal, além do serviço. E eu me sinto bem fazendo
alguma coisa útil, mesmo sem ganhar dinheiro, mas para mim é a melhor coisa que eu faço
(Maria da Paz, parda, 32 anos).
O reconhecimento das pessoas e do grupo faz com que Maria da Paz se sinta
valorizada e útil: “Me sinto, graças a Deus, isso faz com que eu me sinta melhor ainda, mais
valorizada, porque antes eu não tinha muito o que fazer, era em casa, chegava o inverno, ia
arrancar um feijãozinho, era o trabalho que o pessoal tinha”. Maria da Paz gosta do trabalho
na comunidade, sente-se mais sociável e percebe mudança nela mesma: “Ah, eu sinto isso,
porque, antes, pra falar, abrir a boca, era difícil, pra falar palavra, hoje eu já consigo falar,
atender o pessoal, consigo ligar para o pessoal”. Ela comenta que a mudança dela e das
198
outras pessoas foi grande e recorda que, no início, era insegura, tinha vergonha de ligar e
pedir ajuda que até quando o celular tocava, ficava assustada: “O celular tocou: ‘É João?’. A
gente já ficava assustada. Hoje, não, a gente já está tudo calmo, já sabe por onde a gente
começa, por onde vai terminar. Antes, a gente não sabia ligar para o pessoal ajudar no que a
gente está precisando”.
Maria da Paz demonstra que se sente bem em participar e atuar na comunidade. E
sente orgulho do que vem fazendo na associação e por ser valorizada pelas instituições, que
sempre a convidam para participar das reuniões. Ela fala como vê sua atuação:
– Eu me acho até um pouquinho importante, porque o pessoal me conta, me liga:
“Tem uma reunião aqui, quero que você participe”. Vai ter alguma coisa [dizem:] “Eu quero
que você participe”. Tudo que vai acontecer... O sindicato me liga, a secretaria me liga, o
Departamento de Agricultura me liga, a Secretaria de Educação me liga. Que antes eu não
tinha nenhum contato com esse pessoal, o pessoal do CRAS me liga, eu não tinha nenhum
contato antigamente com esse pessoal. Aí faz a pessoa se sentir um pouco melhor dentro de
uma comunidade, [você] só conhece o pessoal da comunidade e depois você está sendo
procurada por todas essas pessoas, para participar de reuniões e capacitações. (Maria da
Paz, parda, 32 anos).
Quando ela começa a falar das ações que o PGV desenvolveu em sua
comunidade, recorda a atividade que achou mais importante e aproveita para fazer um alerta
ou uma crítica, de forma sutil, sobre a compra das máquinas de costura:
– É o corte e costura, eu ter aprendido a costura. Foi, mas a questão é que as
máquinas tão dando um pouco de trabalho e eu planejo comprar uma. Porque, na questão
das máquinas, tá aí, quando tiverem em outro projeto, vão vê a qualidade das máquinas... As
que a gente tem, a qualidade não é boa. Você troca de tecido, o ponto folga, aí a gente tem
tudo com o ponto folgado. Aí eu estou vendo o rapaz, para poder vim aqui, para está
ajeitando os pontos delas. (Maria da Paz, parda, 32 anos).
São perceptíveis o empoderamento individual de Maria da Paz, seu crescimento
pessoal e social e o reconhecimento do seu trabalho, sempre à frente das ações coletivas na
comunidade, e de sua participação ativa em vários conselhos municipais. Mas, enquanto
liderança, assume ou centraliza nela todas as ações, não conseguindo tecer com outras pessoas
uma estrutura organizativa que crie uma dinâmica interna na associação, que leve a um
processo organizativo mais estruturado, com compartilhamento de tarefas e de poder de
decisão, mais comprometido não só com as questões individuais, mas, também, com as
questões coletivas. A interação entre os membros da associação é insuficiente para criar laços
199
fortes de confiança, credibilidade e de continuidade das atividades e ações desenvolvidas na
comunidade. Nos conselhos municipais, há o risco de ela ser cooptada pela prefeitura, através
de seus agentes públicos, já que a associação que representa não tem internamente uma
dinâmica constante de reuniões, de debates, de reflexões coletivas. Ela representa a associação
“sozinha”, sem ter com quem refletir sobre os diversos assuntos e informações que são
discutidos nestes conselhos; a organização não contribui efetivamente dando-lhe o respaldo
para estar neste lugar e exercer com segurança e mais domínio sua participação cidadã
representativa. Infelizmente, a organização ainda não está empoderada para perceber a
importância estratégica de estar neste espaço, tendo sua representante com a oportunidade de
tomar decisões políticas.
Em alguns dos depoimentos de Maria de Lourdes, apesar de ela experimentar a
vivência organizativa e produtiva no grupo de artesanato do fiapo e na comunidade, que lhe
possibilitou ter esta experiência no espaço público e ter uma nova oportunidade de gerar renda
que ajuda no sustento dos seus filhos, percebo que esta não foi suficiente para romper e
redefinir as normas e as regras de gênero apreendidas e vividas por ela nas relações
familiares. É o que fica evidente em seu relato sobre o que faz com o dinheiro que recebe do
seu trabalho com artesanato:
– O que eu faço com dinheiro [é] comprar comida pra meus filhos, pra melhorar
de vida um pouquinho, às vezes tem que comprar coisas pra ir pro colégio, tem que pagar
alguma coisa, aí já dá uma ajuda que antigamente a gente não tinha, aí, sofria. Ah, pra mim
é mais difícil quando eu penso em comprar uma sandália, aí um diz: “Mãe, minha sandália
quebrou”. Em primeiro lugar, meus filhos, depois é eu. Pra minha casa, eu comprei um fogão
e um DVD. Era meu sonho ter um DVD. É meu, foi com meu suor, é meu, aí eu posso falar
assim: “Aqui só mexe se eu quiser, porque é meu, comprei com meu dinheiro”. A gente vai
juntando, aí quando chega aquele total de comprar a coisa, a gente compra. (Maria de
Lourdes, branca, 41 anos).
Ela está em um processo de desconstrução das normas de gênero, quando já
começa a se permitir gastar seu dinheiro não só com os filhos e a casa, mas, também, para
realizar seu sonho de ter um DVD, ou quando começa a questionar e a querer trocar de lugar
com o marido, que mora em São Paulo durante todo o ano e só vem nas férias, deixando para
ela todo o trabalho e as responsabilidades com os filhos, mesmo afirmando que já se
acostumou com esta situação: “Eu já me acostumei, brigo até por telefone. Eu digo que:
“Sabe de uma, vamos trocar, eu viajo e você fica com os meninos e todo mês eu mando
[dinheiro]”. Mas os homens não quer assim, só querem viajar, e as mulheres que fique em
200
casa. Maria de Lourdes também afirma que o marido, quando está em casa, a apoia,
assumindo os cuidados com os filhos e algumas tarefas da casa, para que ela possa participar
do grupo:
– [...] quando ele tá aqui, quando eu venho trabalhar ele fica com os meninos. E
ele, tando dentro de casa, ele me ajuda bastante, só não faz lavar roupa, ele cozinha, lava
louça, limpa a casa melhor do que eu. Todo mundo pode vê, ele não tem vergonha do que ele
faz. Roupa ele não lava, que é trabalho de mulher, ele não lava, de jeito nenhum. Agora,
coisa de casa ele faz tudo. Quando eu vou pra feira, quando ele tá em casa, eu já demoro pra
achar tudo limpo, quando eu chego tá tudo limpinho. (Maria de Lourdes, branca, 41 anos).
Maria de Lourdes, dentre as pesquisadas, é a que teve mais relacionamentos
conjugais (quatro), mas esta aparente liberação sexual não lhe impede de continuar reforçando
relações de gênero patriarcais. Mesmo tendo autonomia de fazer suas escolhas com relação à
sua participação no Projeto e na sua vida pessoal, de estar participando ativamente do grupo
de artesanato do fiapo na busca da sua independência econômica, mesmo questionando a
divisão sexual do trabalho em seu espaço doméstico, ainda não tomou consciência das
injustiças que padece por ser pobre, mulher e agricultora ao ponto de romper e mudar as
normas e regras de gênero.
Maria do Sossego e Maria dos Anjos afirmam que os maridos não as proíbem
nem interferem nas suas participações, todavia, fica evidente em seus depoimentos, que o
espaço doméstico continua sendo obrigação exclusiva delas e para que participem das
atividades do grupo de bordado, precisam deixar tudo pronto em casa. Observemos o relato de
Maria do Sossego:
– [O marido] não fala, não. Não, ele não reclama, não. Onde, até mesmo, assim,
eu sou uma pessoa que não deixo minha obrigação de casa, sempre eu cuido em fazer, não é
tudo, não é que eu vou dizer que eu faço tudo direitinho, eu estou[estaria] mentindo. Trabalho
aqui, saiu daqui, uma hora, aí quando eu chego em casa, tenho a unidade [galpão multiuso].
Lá, eu acordo cedinho, muitas vezes. Apois, até mesmo... eu saio daqui uma hora e quando eu
chego lá, as meninas – está de doze, onze horas – já estão no salão. Aí, o que é que eu faço?
Acordo cedo, cuido, faço o café, já faço almoço, deixo pronto, quando chegar lá, almoço e
vou para a unidade. E quando eu venho da unidade, dependendo o serviço, é quatro horas,
quatro e meia. Aí, eu vou cuidar da janta e vou adiantar o almoço para o outro dia. É assim,
eu nunca gasto, e, muitas vezes, encho meus potes de noite com a lanterna. Eu sei que nesses
dias que a gente está fazendo fardamento, eu encho meus potes de noite com a lanterna, o
balde na mão e a lanterna de outro, por causa das cobras, dos sapos, mas eu nunca deixo
201
minhas obrigações de casa por eu estar no artesanato; eu sempre tento fazer o básico. Na
verdade, eu não vou dizer que eu faço de um tudo, se for assim, eu tô mentindo. (Maria do
Sossego, parda, 38 anos).
Maria do Sossego e Maria dos Anjos integrantes do grupo do artesanato do
bordado, em relação a Maria Alice, estariam desempoderadas. Apesar de todas terem
participado de reuniões, dos processos de formação e das capacitações específicas de corte e
costura, pintura e outras, estas não foram suficientes nem tinham o objetivo de criar condições
para desencadear um processo de conscientização autorreflexivo que levasse estas mulheres a
se empoderarem e a quererem mudanças no exercício dos papéis tradicionais impostos ao
sexo feminino no espaço doméstico. Realmente, o empoderamento não é uma técnica que se
aprende em um curso, mas o conhecimento vivencial aprendido, a troca de experiência entre
as mulheres criando laços de amizade e uma dinâmica organizacional é que podem
impulsionar um processo de empoderamento das pessoas envolvidas e do próprio grupo
levando-as a que mudem a si mesmas. O que diferencia Maria Alice das demais, levando-a ao
empoderamento é a sua vivência de grupo, no artesanato do fiapo e na associação, e porque
seu marido também está diretamente envolvido, é uma das lideranças, além da sua
personalidade e trajetória próprias.
Maria Esperança, uma jovem que foi ADS do Projeto Gente de Valor, apresenta
outra dificuldade que enfrentou, enquanto mulher e mãe, para participar dos encontros de
formação promovidos pelo Projeto. Diz ela: “Quando foi pra ir pra Salvador, meu Deus,
deixar meu filho e ter que passar uma semana sem ver meu filho... Eu não vou conseguir,
não, e foi assim, um evento muito bom em Salvador. Eu senti muito em Salvador, mas valeu a
pena”. O processo de empoderamento traz sofrimento, mexe profundamente nas pessoas, em
seus valores, conceitos, cultura, hábitos, regras e normas de gênero. Na medida em que este
processo vai avançando, a pessoa sente que está crescendo, que sua presença é relevante e se
conscientiza das oportunidades que tem e dos recursos e instrumentos adquiridos durante o
processo. Ela fala: “Porque eu tive coragem de começar a viajar e deixar meu filho, eu
pensava: ‘meu Deus, eu não estou deixando meu filho para fazer coisa errada, eu tô deixando
meu filho a trabalho, e esse trabalho vai me ajuda no meu crescimento e no crescimento dele
também’”. Em seu processo, estava sempre buscando argumentos para se convencer da sua
decisão e de que o caminho escolhido lhe trouxe mais oportunidades e recursos:
– Tanto na parte de aprendizagem de vários cursos, porque, assim, nós ADS
passamos por cursos que jamais teria condição de pagar, as semanas que a gente passou em
202
Juazeiro, de preparação [sobre] como trabalhar, como incentivar as pessoas no campo, meu
Deus, foi coisa, foi muito bom, muito importante. (Maria Esperança, preta, 28 anos).
Observa-se que a capacitação de ADS foi determinante para desencadear seus
questionamentos e aprendizados, contribuindo para prepará-la enquanto liderança
comunitária. A grande dificuldade encontrada foi ter que viajar para passar dias fora de casa,
longe dos filhos, além de ter que convencer o marido e o pai:
– Até no meu casamento mudou tudo pra meu marido ter que aceitar eu passar
uma semana fora, três dias, tá viajando, às vezes chegava o pessoal do projeto, de carro,
homens que não conhecia: “Você é que é a ADS?”. [Eu:] “Sou”. [Eles:] “Você pode me levar
na comunidade?” [Eu:] “Posso”. Então teve aquela dificuldade, mas, graças a Deus, isso foi
superado. Teve crítica: “Como é que uma mulher casada passa três dias fora de casa, deixa
o filho com a mãe, o marido viajando, isso é um absurdo.” Eu disse: “Olhe, o que eu faço
quando você não tá, eu faço quando você tá, isso você pode ter certeza; se você chegar em
Salvador sem eu saber, porque minha proposta é participar da reunião, é aprender para
minha vida e para as pessoas que eu tô representando”. Então, o que o projeto mudou na
minha vida vai ser pro resto da minha vida. (Maria Esperança, preta, 28 anos).
No depoimento de Maria Esperança, fica muito evidente que um processo de
empoderamento teve origem dentro dela, levando-a a refletir sobre suas relações de gênero e
sobre a sua situação cotidiana vivida dentro da relação familiar. O PGV, através de seus
técnicos e técnica, serviu como catalisador inicial, mas a extensão e o ritmo do processo de
empoderamento dependem exclusivamente das pessoas e suas organizações, se elas mudam a
si mesmas (ROMANO, 2002, p. 6). Assim, ela mostra a capacidade de discutir e analisar
sobre sua participação no Projeto e as mudanças ocorridas consigo mesma:
– A Maria Esperança de 2009, quando iniciou o projeto, e a Maria Esperança de
2013, eu acho que ela só tem de Maria Esperança só o nome, porque mudou muito, porque
antes eu tinha trabalhado, mas, assim, ensinando a jovem e adulto na própria comunidade e
era fácil, saía de casa e tava em casa pertinho. Mas a maior dificuldade foi pra sair de casa e
a gente, depois que é mãe, tem que aprender uma coisa, que o melhor pra vida da gente e
pros filhos, tem que está apta para sair de casa e passar a semana fora, porque a gente sabe
que está fazendo o melhor pra gente e pros filhos também. E assim, hoje, eu não gostava de
reunião, chega me dava dor de cabeça quando falava de reunião. E hoje meu marido diz que
eu já me pareço com uma reunião, só falo em reunião. Meu filho, cada reunião que eu
aprendo um pouquinho e quando ajunta aquele pouquinho, se torna uma grande coisa.
(Maria Esperança, preta, 28 anos).
203
Além de participar da associação e dos quintais produtivos ela faz parte do grupo
de apicultura cuja maioria é de homens. Ela conta que, antes do Projeto, achava que tinha
atividades só para homens, só que não pensa mais assim. Quando pergunto se apicultura é
uma atividade só para homens, ela responde:
– Não. Eu acho que a atividade de apicultura é uma coisa pra todos os gêneros,
mulher e homem. Mas, antes do projeto, eu via algumas atividades só pra homem, mas,
depois do projeto, com a orientação sua, Beth... O projeto sempre tava nas reuniões
incentivando, falando que as pessoas tinham que aprender, que antigamente mulher, homem
trabalhava e mulher ajudava... Depois do projeto eu sentei pra pensar: “Meu Deus, tanto que
mulher trabalha. Homem trabalha e mulher ajuda – isso é um absurdo, pelo amor de Deus”.
Eu comecei a conversar com meu marido: “Você trabalha, eu também trabalho, meu filho.
Eu tô estudando, eu tô trabalhando, quando a gente chegar em casa você vai ter que me
ajudar, porque você tá trabalhando lá, você faz uma coisa só na roça, eu tô trabalhando em
três comunidades, aí eu chego em casa, tem menino chorando, querendo minha atenção,
querendo comida, querendo que eu fique com ele no braço, tem janta pra fazer pra você e
você fica assistindo televisão, não dá, não.” Aí, nós começamos a conversar e mudamos
nossa visão. E, assim, depois das reuniões que as mulheres participaram com você, Beth, e
Carla e outras pessoas que vieram do projeto, mudou uns 80% nas mulheres, porque elas
começam a participar das reuniões, porque antigamente ia poucas mulheres, ia mais homens.
E, na apicultura, quando começou, só era eu de mulher. E depois eu fui conversando com as
meninas, incentivando e já têm umas mulheres no grupo, estão bem animadas. (Maria
Esperança, preta, 28 anos).
Maria Esperança não só levou a discussão da divisão sexual do trabalho para
dentro da sua relação conjugal como também começou a influenciar outras mulheres a
participarem junto com ela de uma atividade de grande interesse dos homens da comunidade
– a apicultura –, por ser rentável e, por este motivo, quase de total domínio masculino. Ela
começa a perceber o que tem por trás desta construção: manter as mulheres subordinadas aos
homens e delimitadas ao espaço doméstico, longe de atividades que lhes proporcionem maior
retorno econômico e as leve para o espaço público seja como cooperada ou integrada na
comercialização do produto. Ela se sente comprometida não só em integrar as mulheres nas
atividades produtivas rentáveis, mas também quer mudanças sociais que não incidam de
maneira diferente em homens e em mulheres reiterando assimetrias e dominações.
Neste sentido, Maria Esperança sinaliza na direção de um modelo novo de
desenvolvimento rural baseado na agroecologia, que modifique aquelas relações de poder
204
baseadas na subordinação das mulheres e que perpetuam a opressão e a exploração
principalmente das mulheres pobres e negras como ela. É o que se pode presumir do seu
relato no qual afirma a transição para uma agricultura orgânica, que pode ser passo de uma
transição agroecológica, algo que reflete o aprendizado no curso técnico que está fazendo e
que busca socializar com as pessoas da comunidade:
– Na questão do meu curso que eu estou fazendo – Técnico em Agropecuária –,
eu agradeço ao projeto, eu era, não, eu sou agricultora e sempre fui, só que eu não tinha,
assim, essa vontade de tá no campo, de poder ensinar tecnologia, de poder mostrar pra eles
que coisas orgânicas, coisas simples com adubo de gado, podem fazer a diferença. Eu não
tinha essa vontade porque eu não tinha esse conhecimento e depois de várias coisas que eu
participei, elas mostraram que tinha, sim, como ter a nossa alimentação orgânica. Mudou
meu modo de pensar, meu modo de vida. Eu incentivo, já ajudei algumas pessoas. (Maria
Esperança, preta, 28 anos).
Apesar de a intervenção estar voltada para as questões técnicas, a condução feita
por alguns técnicos e técnicas conseguiu despertar algumas pessoas para a construção de uma
consciência crítica sobre a ideologia que mantém a dominação masculina, que discrimina a
mulher e a mantém na posição de subordinação em relação aos homens. Maria Esperança
comenta que algumas ações e atividades desenvolvidas pelo PGV a ajudaram a desconstruir
os papéis tradicionais de gênero:
– Ajudam e muito a se sentir útil cada vez mais, porque na minha mente,
antigamente, apicultura, meu Deus, era coisa só de homem, mas hoje não. Hoje mesmo,
quando meu marido não está em casa, eu vou lá no apiário, coloco meu API – EPI
[equipamento de proteção individual] direitinho, vou ver como é que está, o que está
precisando. Ajeito minhas abelhas, meu pai vai me ajudar quando eu preciso, e pra mim,
hoje, não existe essa de trabalho de homem, existe trabalho de mulher e de homem,
independente do que ele seja. Todo trabalho não é que é pesado, é mais pra homem, faz
devagarzinho, mas consegue. A maior dificuldade que eu sinto é a questão dos ninhos da
abelha que é pesado, mas só que a gente consegue com paciência. (Maria Esperança, preta,
28 anos).
Maria Esperança, em seu processo de empoderamento, vem percebendo que é
preciso mudar a posição das mulheres na sociedade e que, para tal, é necessário tentar mudar
as relações patriarcais presentes e reproduzidas no interior de sua família. Um passo
importante é se sentir dona do próprio corpo, no caso, a decisão de engravidar ou não, ter ou
não mais filhos: “Eu não pretendo ter mais filho, porque, hoje em dia, é muito complicado ter
205
filho, não só pela questão da alimentação e educação, porque a gente dá uma educação em
casa e o mundo dá outra”. No contexto social, as dificuldades para educar os filhos nesta
sociedade são motivos para ela não mais ter filhos. Apesar de o corpo ser dela e de conseguir
convencer o marido sobre isto, ela reconhece a desigualdade existente na sua relação
conjugal, pois o marido deixa sob sua responsabilidade o controle para evitar uma possível
gravidez. Ela conta dos embates com o marido quanto aos métodos para não engravidar:
– Sim, quando minha filha nasceu, como foi um parto cesário, era pra mim ter
ligado, mas eu não estava preparada para fazer uma ligação e não aceitei. Aí, então, durante
um ano, eu usei o preservativo, que é a camisinha, só que depois meu marido não quer mais
usar o preservativo, mesmo sendo o melhor método de se evitar uma gravidez e vários
problemas como doenças sexualmente transmitidas e até de outras formas também, mas, para
evitar problema, eu tô usando um anticoncepcional. (Maria Esperança, preta, 28 anos).
Nessa disputa, nessa relação de poder cotidiana, ela ainda se encontra em
desvantagem, pois, mesmo não concordando em ter que tomar anticoncepcional e preferindo
usar camisinha, continua fazendo as vontades do marido. Não acha justo ter que tomar
remédio já que ele fica em casa poucos dias:
– Eu acho desumano, converso com ele que não é justo ter que tomar remédio
durante um mês pra ele ficar em casa, quando ele passa três mês [em Recife/PE,
trabalhando]. Ele tem direito de 15 dias, passa 15 dias em casa ou não, quando ele passa 15
dias, ele tem direito durante um mês, se ele quiser vim em casa, ele pode, por conta própria.
Eu tenho que tomar remédio durante um mês pra ele passar dois dias em casa, eu não acho
justo. (Maria Esperança, preta, 28 anos).
Maria Esperança vive um rico processo de empoderamento individual e um
dinâmico e comprometido processo organizacional, mas ainda continua travando batalhas
para ser ouvida, para que sua vontade seja respeitada por seu marido.
Maria das Dores também relata as relações de gênero dentro da família e nos
conta que um dos motivos da sua separação do marido e de sua emancipação, foi o
envolvimento dela no trabalho da comunidade:
– Foi um dos motivos, mas não atrapalhou. Foi um dos motivos, assim, na
questão da valorização que eu não tinha em casa, eu mulher, porque assim, tem coisas que a
gente ouve do marido e a gente fica louquinha dentro de casa, e era do jeito que eu estava
ficando, o meu psicológico tava zero. Eu pensava assim: “Eu estudei, eu preciso trabalhar,
eu preciso criar meu filho e do jeito que tá não dá”. E eu acho, com a minha participação
desde o início do Projeto, só contribuiu pra eu ser uma mulher, assim, com a mente mais
206
aberta, não ficar assim nesse mundinho só, na Maria Preta só, sem conhecer um computador,
sem conhecer livros, sem conhecer lugares, só pra isso, mas na questão do relacionamento
não atrapalhou, não, só me ajudou. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
Maria das Dores viveu doze anos casada sob o domínio e controle de seu marido,
e agora, que está separada, começa a experimentar o poder de decidir sobre sua própria vida:
– É diferente. Assim, que tá recente, eu ainda me sinto um pouquinho presa, pra
mim ir a algum lugar, eu tinha que pedir e agora não, eu tenho que pensar, se tiver, por
exemplo, uma reunião ou ir à igreja, eu vou levar meu filho, só eu e ele agora, então eu vou,
eu me arrumo, arrumo meu filho e a gente chega e pronto. A gente chega, se deita, não tem
discussão, não vou ouvir o que eu ouvi antes, e pra mim tá muito bom, não sei daqui pra
frente como é que vai ser. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
Ela continua falando sobre seus sentimentos, que agora é dona de si e por isto tem
esse sentimento de liberdade:
– É uma liberdade bem diferente, porque assim, eu sempre fui uma pessoa que
tinha dono, quando eu estava em casa era: “Pai!”... pedia mil e uma vez pra ir num lugar e
depois ele não deixava. Depois saí de casa e fui direto pro marido. Ele sempre, pra onde eu
saía, pra igreja ou pra reunião, e agora não, eu posso ir pra onde eu quiser. Sendo que pra
onde eu quiser eu posso levar o meu filho, ou se for importante, eu deixo mais mãe, é só essa
questão, mas a minha liberdade de ir ou de tá agora, pra mim tá muito bom. (Maria das
Dores, preta, 31 anos).
Maria das Dores está experimentando mudar as relações de gênero dentro da
família, ao deixar de ser subjugada pela dominação masculina, exercida, primeiro, pelo pai e,
depois, pelo marido. Para isto, ela aproveitou a oportunidade de participar na organização
comunitária, exercer cargos dentro da associação, sentir o privilégio do reconhecimento junto
à comunidade pelo seu compromisso e desempenho no desenvolvimento das suas atribuições.
Começou a sentir que, ao participar da vida da comunidade e das capacitações, não só
aprendia os conteúdos específicos, mas tomava consciência da sua realidade de mulher negra
e pobre subordinada ao marido e da sua situação de desigualdade de poder na relação
conjugal. Ao entender o que lhe oprimia, mesmo com medo e insegurança, resolveu
experimentar o poder de decidir ela mesma sobre sua vida.
O trabalho que ela vem desenvolvendo na associação e no grupo de artesanato do
bordado tem contribuído para uma maior integração na comunidade e para o seu
reconhecimento junto aos membros do grupo: “Eu participo da reunião com eles, quando
precisa ir para reunião fora, eu vou, trago informação para a comunidade, eu mobilizo a
207
comunidade. [...] Aí o povo todo se junta, eu acho que é por isso”. Ela demonstra ter um forte
sentimento de identidade e de pertencimento à comunidade.
Em seu depoimento, ressalta, ainda, a preocupação em melhorar a situação social
e econômica dela e da comunidade e acredita que esse processo de organização vivido na
comunidade com o Projeto e, agora, com o reconhecimento da comunidade como quilombola,
traga melhorias para a comunidade: “[...] o que a gente espera de ter esse reconhecimento
como quilombola, a gente espera muita mudança, que tenha uma educação melhor, que
chegue algum projeto que gere renda pra gente, pra gente trabalhar”. Maria das Dores está
lutando, junto com a associação e com a comunidade, por seus direitos e acredita que o
reconhecimento da comunidade como quilombola possibilite o acesso a outras políticas
públicas: “Acesso a algumas políticas, sim, pelo que eu leio, pelo que eu ouço, pelas reuniões
que eu participo, [...] mas se a gente buscar também, porque se ficar aqui esperando nada
acontece”.
Maria das Dores tem habilidade de discutir e de avaliar a intervenção do PGV,
demonstra crer nos membros da associação e da comunidade e, quando pergunto se com o
término do Projeto a comunidade não vai mais lutar, ela responde com muita segurança e
firmeza:
– Vai, vai mesmo, o Projeto acabando, porque a mente das pessoas ficou bem
trabalhada. A participação do povo nas reuniões agora aumentou e pelo que a gente ouve
nas reuniões, nos encontros, não só nas reuniões, ter a gente morando junto, aqui sempre se
encontra, nas conversas o povo diz o que tá precisando, o que deve buscar. Eu acho, assim, o
projeto trabalhou bem as mentes das pessoas. Precisa de uma estrada, o professor está
faltando: “Vamos lá, o que nós vamos fazer, o que aqui nós faz?” Aí, a gente conversa. Aí, eu
acho, como o projeto tá encerrando, assim, a liderança, que não é só eu que tô assim na
frente, com a liderança, tando com a mente bem focada no que a comunidade precisa, não é
só o que eu preciso, é o que a comunidade precisa, aí eu acho que dá pra levar adiante e tá
buscando. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
Para ela, os agentes públicos cumpriram seu papel de facilitadores do processo de
empoderamento das pessoas, das mulheres, quando possibilitaram um espaço de discussão e
reflexão coletiva em sua comunidade sobre a realidade histórica vivida pelo povo negro na
sociedade. Porém, para os técnicos e técnicas do Projeto, o objetivo maior é o
desenvolvimento rural, é erradicar a pobreza e, para tal, o caminho é inserir as mulheres nos
espaços organizativos e, principalmente, nos produtivos seja no beneficiamento de frutas, nos
quintais produtivos e até no artesanato.
208
Durante essa dinâmica de participação em diferentes atividades produtivas e
organizativas de interesse coletivo surgem outros elementos que fogem ao controle ou às
previsões dos planejamentos técnicos, construídos através da interação entre as mulheres,
entre os grupos, entre os técnicos, as técnicas e as mulheres. Todas essas vivências e
experiências possibilitam a algumas mulheres o processo de empoderamento, visto que estão
exercitando sua capacidade de escolher com suas próprias ideias, com suas vontades, seus
desejos e, finalmente, decidindo sobre suas vidas.
Maria dos Prazeres fala sobre as mudanças internas ocorridas na sua vida e das
companheiras do grupo de beneficiamento de frutas e de castanha de caju. Estas mulheres são
pobres, na maioria, pardas, com pouca escolaridade e com seu universo mais restrito à família
e ao espaço doméstico. O fato de terem a oportunidade de participar da associação
comunitária, das capacitações, do grupo de produção de doces lhes possibilitou uma vivência
associativa, a troca de experiências dentro e fora do grupo, a construção de capacidades para
produção, gestão administrativa e comercialização levando-as a experimentar e sentir o poder
de dentro, este poder que levanta a autoestima, que constrói autoconfiança. Porém, este
processo de empoderamento pessoal mexe com os valores culturais, com costumes aprendidos
e reproduzidos na família. Maria dos Prazeres conta o que mudou:
– Mudou tanto, até no relacionamento da família, marido e mulher, que eles eram
pessoa que não deixava nem sair, hoje ela diz: “Hoje é dia de fazer o doce”. Ele não tem
negócio de dizer: “E a comida e o não sei o que?”. Eles faz, então, elas se sentem muito
poderosa. Até em viagem, pra viajar, ela diz: “Eu vou”. “Não, quem vai sou eu.”
Antigamente não tinha isso porque nem elas tinham aquele incentivo das pessoas chamar
elas: “Vamos, vamos lá, vamos fazer isso, é bom pra você, pra comunidade, você vai ganhar
o seu pão de cada dia”. Elas sentia muito medo, medo das pessoas, hoje não. Eu sinto nelas
que elas não têm medo não. Se quiser fazer faz, só é querer, ela faz e não faz uma só não, o
grupo chama todo mundo e: “Vamos fazer assim”. Se uma disser: “Não dá certo, não vamos
fazer assim”, que dê certo, que não dê, a gente vai fazer assim, a gente vai e faz e dá certo.
(Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Observa-se que algo começou a mudar nessas mulheres, reconhecendo seu próprio
valor, perdendo o medo de pensar suas próprias ideias, criando uma identidade de grupo,
decidindo juntas sobre as atividades, sobre o empreendimento e sobre suas relações
familiares. Um sinal desta mudança se materializa nas viagens, ao saírem de casa para passar
dias fora, em encontros e feiras, independentemente de os maridos permitirem ou não. Elas
começaram a tentar desconstruir as ideologias de gênero aprendidas e reproduzidas por elas
209
ao tentarem mudar a posição que têm em suas famílias. Acredito que este processo é resultado
da ação coletiva deste grupo de mulheres, deste suporte emocional, pois, juntas, estão
diminuindo o sentimento de impotência, de dependência e, muitas vezes, até de solidão.
Conclui-se que todas as mulheres investigadas se empoderaram, no nível
psicológico ou individual, em graus diferentes. Elas se empoderaram ao participar das
atividades produtivas e organizativas, contribuindo para as discussões, apropriando-se dos
conhecimentos, tecnologias e processos organizativos.
Nesse processo, conquistaram autoestima, autoconfiança, autovalorização e o
reconhecimento das pessoas das comunidades. No caso específico das mulheres agricultoras
aqui estudadas, estas experimentaram muitos sentimentos diferentes no percurso, desde
insegurança, incertezas, o prazer de estar com as outras mulheres, conflitos e disputas em casa
e na associação. Conclui-se, também, que, apesar da integração na comunidade e do
reconhecimento junto ao grupo, a maioria destas mulheres ainda não se empoderou ao ponto
de redefinirem as normas e as regras de gênero, principalmente no âmbito doméstico-familiar.
210
7
O CURSO DO EMPODERAMENTO ORGANIZACIONAL
Este processo se refere ao fortalecimento das organizações sociais (comunitária,
grupo de interesses, associações) como um todo. Nele, desencadeia-se, entre os membros do
grupo, respeito recíproco, apoio mútuo, ambientes de troca de informações e recursos,
distribuições de papéis e responsabilidades de acordo com a capacidade que geram processos
de liderança compartilhada e tomada de decisões. Todo este processo estabelece uma
dinâmica associativa entre os membros da organização construindo um sentimento de
pertencimento, de confiança e de comunidade.
O Projeto Gente de Valor enquanto um projeto de desenvolvimento rural em uma
perspectiva sustentável dialoga com essa ideia de empoderamento, na medida em que elabora
a sua intervenção com enfoque de gênero, estimulando a participação de mulheres
agricultoras na produção agrícola e no associativismo comunitário onde passam a exercer
cargos e funções de direção, administração e gestão de recursos como executoras de projetos
governamentais.
Maria de Lourdes reconhece que participar do grupo de artesanato do fiapo
desde o início, apesar das dificuldades, tem sido bom para ela que está aprendendo a se
organizar, a produzir, a gerar renda e a dividir o dinheiro, além de deixar uma quantia
administrativa para o grupo: “Pra mim tá sendo ótimo, graças a Deus, nós faz nossas
coisinhas, nós vende, ai dá um pouco de lucro, a gente divide pra deixar no caixa pra
comprar material e outro a gente fica pra gente”. Ela tem esperanças: “Eu não vejo a hora
de meu marido um dia se interessar de ficar aqui também. Porque o quintal dele é São Paulo
viajando, minha filha, é nesse batido dos homens daqui, é irmão, é cunhado, é tudo pelo
mundo, é sobrinho...”. Há aí esperança, talvez exagerada, de que o grupo de artesanato possa
ser uma atividade produtiva organizada e bem estruturada que possa gerar ganhos econômicos
para o grupo e ainda crescer para envolver outras pessoas e familiares, para que não precisem
sair da comunidade, deslocar-se para as grandes cidades em busca de trabalho.
Para Maria Alice, as mulheres conseguiram muitas coisas com o PGV, como
trabalhar em grupo, ter práticas solidárias entre elas, ter satisfação por estar fazendo parte
deste grupo de artesanato e por lutar por seus direitos e não só por estrutura física:
– Eu acredito que o Projeto mudou muito o pensamento das mulheres, que
realmente as mulheres daqui é todo ano um filho... Tanto que tem uma [Maria de Lourdes],
[...] a vida dela era todo um ano um filho, o marido passava um ano em São Paulo e quando
chegava só sabia fazer um filho, voltava, mas ela nunca perdeu uma reunião, participava,
211
porque ela sabia que valia a pena. Tanto que ela era muito criticada, que a família dela
falava que ela estava subindo e descendo e não vai arrumar nada. A gente escutava muito
isso quando a gente passava o grupo, ia andando. As outras famílias que faziam parte
também ficavam trabalhando em suas casas. A gente falava: “A gente também tem o que
fazer em casa, mas a gente vai buscar melhoria pra gente”, a gente não pode ficar parada em
casa só naquilo. Hoje, eles querem voltar, mas a gente também vamos pensar direitinho como
que é que eles vão voltar [...]. Aí, eu acredito que ajudou muito nessa questão, sabe, de
melhorar assim, mulher não só pensar em parir todo ano, ficar em casa lavando, cozinhando
para o marido quando o marido tá aí. E quando ele não está, é como se ele estivesse, a
mulher não pode sair ali no portão porque o marido não deixa ou que ela não pode sair pro
povo não falar, mudou muito o Projeto. Hoje nós mulheres já sabemos cobrar nossos
direitos, o Projeto ajudou muito a gente nisso. (Maria Alice, parda, 25 anos).
O grupo de artesanato do fiapo é composto de 15 pessoas, dois homens e 13
mulheres, que já têm uma dinâmica organizativa interna em que refletem, planejam e decidem
em conjunto. Maria Alice é uma das lideranças do grupo e, na conversa com ela, e, depois, ao
analisar seu depoimento comparando com os dos homens e das outras mulheres artesãs do
grupo, percebo seu maior grau de apropriação de novos conhecimentos, seu maior
envolvimento com as tarefas e a mobilização do grupo e também o desenvolvimento da
consciência crítica. Ela fala como se sente, ao assumir seu cargo de secretária na associação:
– Eu me sinto mais responsável, né. Assim não é fácil, trabalhar com gente não é
fácil, imagina aí os meus vizinhos. Mas eu gosto, é o que me anima, é o artesanato e
trabalhar, eu adoro reunião, porque eu gosto de falar, viu. É o que me anima, fazer parte,
sempre, quando tem uma reunião, se eu não falar, eu, prá mim, eu não ]tive na reunião. Às
vezes, eu não gosto de falar muito porque pensam que é assim que só eu quero falar. [Aí
dizem:] ”Deixa Maria Alice falar”. Mas eu quero escutar eles também, o projeto ajudou
nisso, teve gente até hoje é difícil de falar, mas já melhorou. Nas reuniões do projeto vinham
e ficavam tudo quieto, hoje não, tem que falar o que a gente quer, o que a gente sente, desde
o começo eu ensinava. (Maria Alice, parda, 25 anos).
É evidente o processo de empoderamento que vem sendo vivido por Maria Alice,
levando-a a reconhecer estruturas de poder presentes em sua vida e, também, na vida das
pessoas do grupo, porém, ainda é bem pequena a mobilização para, juntas, alterarem as
estruturas sociais existentes na família e no próprio grupo. No entanto, reconheço a
importância do empoderamento individual de Maria Alice para o processo de mudança do
grupo e também do seu próprio marido, já que o empoderamento das mulheres significa
212
também o empoderamento dos homens (LEÓN, 2001). No caso de Maria Alice, esta
afirmação tem mão dupla: é um empoderamento de soma positiva, tanto do lado dela como do
lado de Antônio, o presidente da associação. Ela explica que seu marido também mudou e ela
não sabe se foi por causa do Projeto:
– Não, eu não sei se foi por causa do Projeto, porque ele mudou demais depois do
Projeto, ele não abria a boca, não. Ele era tímido demais, hoje eu tenho até medo que ele fala
tanto. Eu acho que era melhor ele quietinho na dele... Com certeza, ajudou. Assim, tanto que
o Projeto ajudou, que ele trabalhou como ADS no Projeto, durante quatro anos ele
trabalhou, que tem cinco do Projeto. Quem sabe, se não fosse o Projeto, porque os amigos,
porque aqui só eu das mulheres casadas pode dizer que o marido não está viajando, porque
aqui as outras passam o ano todo sozinha e o marido em São Paulo. E, quando eles chegam,
falam: “Vamos, vamos pra lá; o que estão fazendo aqui?”. Vai, se ele não estivesse no
Projeto, ele teria ido. Era pouco, mas ajudava muito, durante os quatro anos foi nossa renda.
(Maria Alice, parda, 25 anos).
Situações criadas pelo Projeto também serviram para revelar mulheres
desempoderadas, como Maria do Sossego e Maria dos Anjos que, mesmo tendo participado
de várias atividades de capacitação, de demonstrarem apropriação de conhecimento específico
(crochê e pintura), de ter assumido o cargo de tesoureira, de grande responsabilidade, no caso
de Maria do Sossego, seus depoimentos revelam fragilidade organizativa, pouca habilidade de
gestão administrativa e financeira, dificuldade de articular com outras pessoas e organizações
na perspectiva de buscar parcerias para comercializar os produtos do grupo e fornecer o
serviço de costura. Maria dos Anjos fala que acredita que o processo organizativo pode
ajudar: “Primeiro, é mais reuniões, mais entendimento porque, muitas coisas veio e a gente
não tinha entendimento, na verdade, do que era que estava vindo para gente, então, eu acho
que faltou mais entendimento do grupo para poder comercializar lá fora”. (Maria dos Anjos,
24 anos).
Maria Esperança, por sua vez, sabe que assumir um cargo de diretoria na
associação exige dela maior dedicação, compromisso, responsabilidade e capacidade para
fazer algo em prol da comunidade. Tem boa integração na associação e também conta com o
reconhecimento e o apoio da comunidade:
– Da associação, antes eu era só sócia, depois do projeto, eu passei a ser vicepresidente e continuo sendo vice-presidente só; eu não quis assumir a presidência, porque eu
estou estudando e, para ser presidente, exige muito, têm várias reuniões que a gente precisa
participar para poder ajudar a comunidade. E se eu fosse ser a presidente poderia prejudicar
213
a comunidade, por não estar participando diariamente. Passa três dias de reunião, quando a
gente perde uma reunião dessa, prejudica a comunidade, não é isso que eu quero, quero que
a comunidade cresça, que a comunidade se desenvolva e jamais que prejudique. (Maria
Esperança, 28 anos).
Afirma gostar de fazer parte da diretoria da associação: “Eu gosto porque é muito
importante a gente estar ajudando a comunidade”. Na comunidade, existem pessoas que
criticam e as que apoiam e precisam da associação. Maria Esperança exerce um poder que
afirma seu compromisso com as pessoas mais pobres e oprimidas da comunidade, um “poder
para” que a capacita, fortalece e a motiva para o trabalho na perspectiva de um “poder com”
como fonte de luta e conquistas coletivas em prol da comunidade. É evidente, em sua
conversa, o sentimento de solidariedade e o prazer que tem em participar das atividades
coletivas, momentos em que ela pode compartilhar com as outras pessoas o seu conhecimento
acumulado. Alegra-se em lembrar que, com o PGV, veio a tecnologia dos quintais produtivos
que proporcionou às pessoas da comunidade a oportunidade de terem uma renda a mais:
– Como a questão do Projeto Gente de Valor, trouxe esses quintais produtivos
pra o subterritório, aí foi nove, foi dividido nas três comunidades. Por eles não terem
conhecimento direito como ia ser, eles ficaram com medo e também porque eles não
acreditava muito, porque já tinha vindo muitas pessoas falando, só que nunca acontecia. O
que me deixou mais feliz nos quintais produtivos foi uma família, uma mulher jovem que tinha
seis filhos, não tinha renda nenhuma, a única renda que ela tinha era do Bolsa Família, e
quando o esposo trabalhava, quando ela começou a plantar as hortinhas dela, ela gostou
tanto que ela começou a plantar mais e vender. Quando eu chegava lá, ela falava: “Maria
Esperança, eu fiz vinte reais, deu pra comprar um negócio pra Isa, uma sandália”. E eu via a
felicidade dessa pessoa: me deixou muito feliz. (Maria Esperança, 28 anos).
Maria Esperança, que também participa do grupo de apicultura, fala sobre a
construção de parceria com a Cooperativa de Apicultores de Jeremoabo que está em
construção com a colaboração do Projeto. O grupo de apicultura está articulado com a
Associação Regional de Convivência Apropriada ao Semiárido (ARCAS), uma Organização
Não Governamental que atua na região e que está executando o ATER86, no município de
86
É um serviço público de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) que a ARCAS, por meio de
chamada pública está executando. Faz parte do Plano Brasil Sem Miséria, que tem como uma das
metas o incentivo de assistência técnica continuada e individualizada aos agricultores, direcionado
a famílias em situação de vulnerabilidade social, como famílias do semiárido, povos e comunidades
tradicionais, como quilombolas, indígenas e ribeirinhos, entre outros, em conformidade com a
Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma
214
Jeremoabo, onde vem prestando o serviço de assessoria e apoio técnico ao grupo e à
comunidade de Bananeirinha:
– No momento nós ainda tamos tendo o técnico aqui, ainda tá tendo reuniões
sobre apicultura. E o grupo permanece unido, algumas reuniões faltam algumas pessoas,
mas cada um tem seu motivo, só [que], como o projeto formou uma parceria com a
cooperativa que tem em Jeremoabo, foi comprado alguns materiais e foi colocado lá e as
pessoas pensam em se cooperar e continuar um grupo formado, um grupo unido, e também
nós tamos tendo um técnico da ARCAS, que vai ser renovado o ATER. Esse técnico ajuda a
gente e muito com qualquer coisa que a gente precisar. Esse projeto tem agrônomo,
veterinário e um técnico agrícola. Já ajudou muito nas coisas que já existia, vai incentivando
e fazendo visita nas comunidades. Ele trouxe projeto de criação de cabras, que tá pra
acontecer, de casa popular para as pessoas que não têm e a associação, depois do incentivo
do projeto na comunidade, tá sempre em reunião. (Maria Esperança, preta, 28 anos).
Essa articulação da Associação Comunitária de Bananeirinha e Adriana com a
ARCAS fez com que essas comunidades fossem incluídas como público beneficiário de
outros projetos (criação de cabras) e do Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR) que
faz parte do Programa Minha Casa Minha Vida do Governo Federal executados pela ARCAS.
Maria das Dores traz a Igreja Católica como parceira da Associação, que conta
com o apoio do padre cuja participação nas reuniões na comunidade e no município, quando
solicitado, é importante, assim como quando ele cede o espaço da igreja para que os grupos
possam se reunir, realizar encontros e cursos:
– O padre, desde o início que ele simpatizou pela Maria Preta. Aqui nem tinha
igreja e foi o padre que ajudou a construir, e aí a gente tem o apoio dele. Quando a gente
precisa que ele esteja participando da reunião, ele participa, ele vem. Ele vai, se a gente
marcar uma reunião em Banzaê e a gente pedir que ele participe também. Só da gente ter a
presença dele dando força é importante. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
Para uma comunidade discriminada como a Maria Preta ter o apoio e a simpatia
de uma instituição como a Igreja Católica, na pessoa do padre, é estratégico já que a igreja é
uma instituição de um forte poder local, sendo fundamental o seu apoio político para o avanço
da luta da comunidade quilombola.
Maria das Dores fala que a associação pensa em buscar parcerias para realizar
cursos profissionalizantes para os jovens, na comunidade, para não precisarem sair ou para se
Agrária (PNATER), uma parceria do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS) e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
215
capacitarem para sair com mais chances de trabalho e cita alguns exemplos de cursos que
poderiam ser realizados em Maria Preta para as mulheres jovens:
– Curso de computação, curso de pintura, curso de manicure, eu acho que curso
de cabeleireira, porque a vaidade hoje, né, esse tipo de curso. Eu acho que esses cursos
prepara elas, os jovens, para o mundo, porque hoje as pessoas não querem sair mais da
comunidade pra ir trabalhar em casa de família, então, elas tendo curso, já se preparando
aqui para elas saírem, até pra trabalhar aqui mesmo, já ajudaria, principalmente se for pro
mercado fora, com a quantidade de curso que elas tivessem aqui, apresentar nas cidades
locais aqui mesmo – Banzaê, Ribeira do Pombal – porque aqui a maioria das jovens não
fizeram nenhum tipo de curso. É por questão de dinheiro, que não tem recurso pra fazer
nenhum curso em Banzaê, em Pombal, só na cidade. E através... se a associação puder trazer
esse tipo de curso pra comunidade seria mais fácil pra elas. (Maria das Dores, preta, 31
anos).
Ao assumir, na Associação, o cargo de coordenadora de gênero, Maria das Dores
vem tentando desenvolver, entre as mulheres jovens, um sentimento de confiança entre elas e
de valorização da cultura local, através do resgate do samba de roda e da capoeira, criando
laços de pertencimento e de identidade racial. Uma preocupação dela e dos membros da
Associação é evitar a migração destas jovens para trabalhar como domésticas nas grandes
cidades. A Associação está buscando alternativas e parcerias com o município de Banzaê para
promover alguns cursos profissionalizantes para qualificar estas jovens. A ideia é criar
possibilidade na comunidade e na região, desestimulando, assim, o fluxo para São Paulo. A
estratégia por eles pensada é acessar políticas, programas e projetos específicos para
comunidades quilombolas na perspectiva de melhorar a vida na comunidade Maria Preta.
Foi difícil para Maria dos Prazeres participar e chegar a ser a presidente da
Associação Comunitária dos Produtores Rurais de Baixa da Roça, mesmo com o apoio de
pessoas que queriam que ela assumisse a presidência. Conta que a Associação era dominada
por homens que a usavam para fins eleitoreiros e não cumpriam com sua função, não tinham
reuniões ordinárias, não faziam a prestação de contas e ainda mentiam para os associados:
– Primeiro foi constituída, eu fui a presidente que o pessoal quiseram, foi difícil
entrar como presidente. A associação era de homem, os homens ficavam aí, não fazia a coisa
certa, fazia reunião em ano em ano, pegava o dinheiro do povo todo mês, embolsava, mentia,
dizia que vinha trator sem vim, eles comendo dinheiro... Aí o povo foi se revoltando, e eu já
estava estudando e tinha a agente de saúde que era Marilda. Aí ela disse: “Mulher, vamos
216
formar uma associação”. [Eu:] “Deus me livre, quero nada, ôxe, quero não, é muita coisa, o
povo chama a gente de ladrão”. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres tinha consciência do desafio de assumir uma associação em
que os diretores anteriores não eram honestos porque ela não queria ser comparada a essas
pessoas. Mesmo assim, foi convencida pela agente de saúde da comunidade a, junto com ela,
formar a chapa para concorrer à eleição:
– Aí ela disse: “Mulher, se a gente não se organizar vai ser pior prá nós”. [Eu:]
“Então vamos, sozinha eu não consigo, não, porque eu não tenho experiência tanta assim,
não sei como é as coisas. Ela dizia: “Eu ajudo.” Aí nós foi, chamemos a comunidade, onde
todos queriam, aí eu fui presidente e ela como tesoureira. Foi difícil reunir, porque era muito
sócio, mas como veio o presidente que era enrolado na conversa, não fazia nada pra
comunidade, não era da comunidade, era de outra comunidade e só queria ganhar interesse,
aí nós lutemos, umas pessoas desistiram, porque quando a gente foi ser presidente, ele dizia
que ia denunciar de nós que invadiu a associação dele, que não sei o que, essa coisa toda.
Não, nós não invadimos, o povo quis e nós construímos a nossa. E, desde quando começou, é
mais mulher do que homem. Depois que eles viram que tava vindo as coisas, e que nós lutava
e fazia as coisas certinha, reunião todo mês, mensalidade eles pagavam, a gente dava o
papelzinho pra eles como eles estavam pagando a mensalidade, e eles viam as coisas
diferente. Via a prestação de 3 em 3 mês, de 6 em 6 mês, fazendo a prestação do que gastou,
de viagem que foi, de imposto que você sabe que tem que por, e eles vendo isso, gostaram, a
maioria é mulher e já temos homens na diretoria, mas o início foi difícil. (Maria dos Prazeres,
parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres e as outras mulheres que assumiram cargos na associação,
após terem passado as eleições e a perseguição do presidente anterior, mostraram que
exerciam o poder na associação de outra forma: realizando as reuniões sistemáticas, com
transparência na prestação de contas, socializando as informações para todos os membros e
cumprindo as exigências legais determinadas pelos órgãos responsáveis para a formação e
operação de uma associação comunitária de produtores rurais. Apesar de a diretoria estar
desenvolvendo um trabalho sério na Associação, alguns associados ainda desconfiavam dela
enquanto presidente. A todo momento, tinha de estar provando sua honestidade, e quando a
Associação foi administrar o recurso do Projeto Gente de Valor, novas desconfianças
surgiram, mas a eficiência e, sobretudo, a transparência da gestão levou a que ela fosse
reconduzida várias vezes à presidência:
217
– Aí, teve um momento que um chegou e disse que eu tava roubando, que eu era
isso. Aí eu disse: “Roubando o que? Agora você tem que ter prova”. Foi logo no início do
Projeto Gente de Valor, quando o Projeto Gente de Valor chegou, aí ele disse que a gente
estava roubando, aí a gente chamou ele pra fazer a prestação de contas, mostremos: “Qual é
o roubo? Onde tá o roubo?”. Aí, ele ficou com conversa besteira, aí saiu da associação, os
outros que tavam ficou e, graças a Deus, eu era presidente. Aí com dois anos, eles quiseram
de novo eu, aí, fiquei mais dois anos. Aí eu saí e ficou outra, a minha vizinha, eles quiseram,
aí, era um pouco parada, tava ficando assim que nem o outro presidente anterior. Só que a
gente ajudando demais, fazendo prestação de conta, viajando, pras viajem ela não tava
querendo ir, aí, com dois anos, eles tiraram ela de novo. Colocaram eu de novo, aí, fiquei por
mais dois anos, aí reelegeu de novo, ficou Marilda, que eles aceitaram, a comunidade
aceitou, aí, depois, volta pra mim de novo, aonde em 2014 é que vai ter a eleição, é de dois
em dois anos que vai ter eleição. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres tem uma longa trajetória à frente da associação, já é a quinta
vez que ela assume a presidência por mais dois anos. Ela reclama que as pessoas não querem
assumir a diretoria, principalmente os homens, o que se torna a maior dificuldade por ela
enfrentada: “É os homens querer tá junto com as mulher, de fazer, de ajudar. Muitos homens
não querem se envolver, eles não querem ser presidente, eles não querem ser tesoureiro, eles
só querem ser fiscal”. Ela continua explicando porque os homens não querem estar à frente da
associação: “Eu acho que eles não querem, além de ser um pouco preguiçoso, que não
querem trabalhar pra todo mundo, também não tem dinheiro. Então eles se recusam, então
deixa as mulher, porque acha que a mulher não tem o que fazer”.
Apesar de as mulheres assumirem nas comunidades responsabilidades ditas
“produtivas” e “reprodutivas”, dando uma contribuição muito importante e participando
ativamente no processo de desenvolvimento, geralmente não têm o reconhecimento e a
valorização de seu papel no desenvolvimento econômico, social e ambiental. E esta é uma
área prioritária para promover a equidade nas relações de gênero nestas comunidades o que se
relaciona diretamente com a divisão do trabalho e a distribuição do poder. Os homens desta
associação não têm interesse de assumir a diretoria porque não querem assumir
responsabilidades por atividades e projetos que não são de interesse deles, já que as atividades
produtivas desenvolvidas são consideradas de interesse e domínio das mulheres, além de não
serem, na visão deles, atividades tão rentáveis. Os quintais e o beneficiamento de frutas são
atividades vistas como extensão do espaço doméstico, assim, mesmo as mulheres estando no
espaço público ele se confunde com o doméstico. Os homens destas comunidades
218
demonstram um certo mau humor porque as mulheres estão exercendo o poder e por acharem
que o PGV priorizou as mulheres, ao aportar recursos econômicos em suas demandas
específicas. As propostas apresentadas pelo PGV não agradaram aos homens por não aportar
recursos econômicos em compra de trator, animais (gado, cabra e ovelha) nem em grandes
empreendimentos e muito menos em equipamentos e implementos agrícolas.
Maria dos Prazeres tem enfrentado, desde criança, muito preconceito, no cotidiano
das suas relações de gênero, na sua família, no trabalho da Associação e da cooperativa, no
sindicato e na sociedade de um modo geral e tem percebido, ao longo desta trajetória e
experiência, que o pessoal é político. Tem questionado e lutado, agora com mais consciência,
para mudar essas relações desiguais de poder nestes espaços privados e públicos. Neste
sentido, as ações do PGV propiciaram as condições para que ela e as outras mulheres do
grupo se empoderassem durante o processo o que foi sendo percebido, na medida em que ela,
na organização comunitária e no exercício do poder na associação, começou a desestabilizar a
ordem patriarcal vigente. Ela conseguiu tirar as mulheres do confinamento do espaço
doméstico e envolvê-las em uma atividade coletiva na unidade de beneficiamento, levando-as
a se sentirem incluídas no espaço público como cidadãs, a terem demandas atendidas e seus
sonhos realizados através de um projeto elaborado pelas mulheres.
Os homens ainda não perceberam o potencial da minifábrica – unidade de
beneficiamento de frutas e de castanha do caju – como um empreendimento que pode gerar
renda para toda a família, como um lugar de poderes, de saberes, de luta, de resistência e de
conquista de direitos, enfim, eles não despertaram o seu olhar para este espaço público, razão
pela qual ainda não houve disputa de poder entre mulheres e homens. Maria dos Prazeres fala
que os homens só querem trabalhar na unidade de beneficiamento se pagar salário e que as
pessoas que não participam da associação estão vendo o trabalho delas na unidade:
– Uns já estão vindo pra unidade, já estão vindo, já estão fazendo corte. As
dificuldades deles, eles diz assim não ganha um salário [...]. Dentro da cooperativa, ainda
não tem como pagar salário, não é empresa, não é governo federal, não é prefeitura. Tem
que ter produção, ou até diária, tem que ter um regimento porque se não, não tem como.
Muitos dizem, e outros, que é muita melança, se mela demais, se queimo todo no azeite da
castanha. Ele diz que se queima demais, que se mela demais, que as unhas fica cheia de
ferida e os outros... Nós só temos um [homem], Deus o livre desse um adoecer, a gente fica
sem nada. Os outros é merreca, vem, corta um, dois quilo, vai embora. (Maria dos Prazeres,
parda, 32 anos,).
219
A associação está articulada em rede com a Cooperativa da Cajucultura do
Nordeste da Bahia (COOPERACAJU) e a unidade de beneficiamento de amêndoas de
castanha de caju, chamada de minifábrica, faz parte do patrimônio da cooperativa. Maria dos
Prazeres é cooperada e coordena as atividades na minifábrica de Cícero Dantas, que fica
localizada na comunidade Baixa da Roça, sob a responsabilidade da Associação Comunitária
dos Produtores de Baixa da Roça. Ela fala que a unidade de beneficiamento já está tendo
algum rendimento:
– Ainda não sai muito porque não vendemos ainda pra mercado, que eles acham
que é caro. Esse ano foi um período de seca, as coisas foi muito difícil, então a gente vende
no mercado, na feira, na comunidade tem pessoas que chegam: “Tem castanha?”.
[Responde-se:] “Tem?”. Aí a dificuldade é essa, mas porque também nós não temos ajuda de
prefeitura. Se a prefeitura comprasse para merenda escolar, aí era mais fácil. Aí os homens
agora ia chegar. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos,).
Maria dos Prazeres tem esperança de fazer parceria com a Prefeitura de Cícero
Dantas e fornecer para a alimentação escolar, através do Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE), o que atrairia os homens. A associação também elaborou um projeto para a
Fundação Banco do Brasil para a compra de uma máquina: “Aprovando nossos projetos, as
coisas vai melhorar, temos um projeto pedido pela Fundação (BB) para comprar uma
máquina que ela corte sozinha, é agora ou nunca, você vai vê, mulher bandida é agora”. A
máquina vem do Rio Grande do Norte e custa cerca de R$ 40 mil reais. Maria dos Prazeres
fala com entusiasmo da possibilidade de não mais precisarem da força física dos homens da
comunidade para o trabalho de corte da amêndoa da castanha de caju:
– Porque nós não vamos gritar: “Chegue homem!”. Se quiser vim, venha, se não
quiser, não venha. Porque não vai precisar, vai precisar de um homem só para botar na
máquina, ela corta, ela faz tudo, ela estufa e as mulheres se viram aí pra fazer película pra
fritar e empacotar. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
A associação continua contando com a parceria do Sindicato dos Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais de Cícero Dantas que cede um espaço para expor os produtos para
serem comercializados: “A gente bota a castanha lá, leva amêndoa, e o pessoal vem e
compra”. A associação ainda não construiu uma estratégia de comercialização, ainda não
levantou nem estruturou os possíveis canais de comercialização na região e no Estado da
Bahia. O grupo ainda está vendendo de maneira informal e por um valor baixo em real: “Um
quilo, é de 28, natural, de frita, é 30. Tem de meio quilo, de 250 e aí vai, de 50...”. As
pessoas, na comunidade e na cidade, compram, mas para o poder aquisitivo deles o valor é
220
alto “Compram, muitão assim, não. Tem semana que vende 2, 3 quilos, outra semana não
vende”. Com o doce, é diferente: “As meninas do doce, faz doce, agora o doce já vende
bastante, a gente já conseguiu vender pra a merenda escolar de Cícero Dantas 300 quilos, as
feiras também a gente acompanha”. Com a venda para a merenda escolar, cada uma das
mulheres doceiras recebeu R$ 180,00.
7.1
O EMPODERAMENTO NO NÍVEL DE COMUNIDADE
Este é um nível mais complexo, pois resulta dos níveis individual e
organizacional. Neste nível, reconhece-se a possibilidade de indivíduos coletivos
desenvolverem competências para atuar, na comunidade, desde as unidades domésticas,
discutindo sobre questões de seu interesse, considerando as lutas globais (nível macro). No
empoderamento comunitário, estão presentes estruturas de mediação em que os membros
compartilham conhecimentos e ampliam a sua consciência crítica e, por fim, a participação
social na perspectiva da cidadania.
No Projeto Gente de Valor, o governo do estado da Bahia é ator essencial, assim
como os governos locais e o nacional, para a geração de estruturas favoráveis e para o
desenvolvimento de estratégias de empoderamento, na medida em que aportam recursos e
serviços para as comunidades que estão dentro de sua área de responsabilidade pública. São
recursos que apoiaram, no início da intervenção do PGV, a criação de conselhos
subterritoriais formados com a participação equitativa de 50% de homens e 50% de mulheres,
com o objetivo de promover a organização das comunidades através de reuniões sistemáticas
onde eram discutidos os problemas das comunidades e planejadas as estratégias para enfrentálos e solucioná-los. Elaborou-se um plano de desenvolvimento subterritorial em que constam
questões sociais, culturais, econômicas, políticas e ambientais. A partir daí, cada
subterritório87 elaborou seu projeto de desenvolvimento que envolvia três ou quatro
comunidades que apresentavam características semelhantes e com uma forte identidade entre
elas.
87
Baseado no conceito de territorialidade, envolve três a quatro comunidades da área rural com
características e identidades semelhantes. Para o governo, o território representaria a
descentralização e a desconcentração das políticas públicas. O Desenvolvimento Territorial
concebido desde a perspectiva do reconhecimento e valorização dos espaços construídos –
territórios como construção social –, resultaria numa conformação que traz para o primeiro plano
os atores sociais e a espacialidade. (MIRANDA, TIBURCIO, 2010, p. 18).
221
Neste nível de empoderamento, percebo dificuldade em separar os três níveis, pois
eles se misturam e se somam para os objetivos serem atingidos. Porém, quando observo o
sentimento de autovalorização de Maria de Lourdes, ao tecer uma peça de artesanato de fiapo,
transformando-a em almofadas, redes, tapetes e outros ou mesmo nas atividades coletivas do
grupo, ao produzirem juntas, todos os sábados, as peças para vender nas feiras ou para as
entregas de encomendas, vejo, como Maria de Lourdes e Maria Alice, a atividade como uma
alternativa produtiva que valoriza a cultura, que fortalece os laços entre as pessoas envolvidas,
possibilita a geração de mais uma renda, além da agrícola, e amplia os sonhos destas
mulheres, não só de um bem material, como o DVD, mas de ter nesta atividade a
possibilidade de um empreendimento que envolva toda a família, na perspectiva de obtenção
segura da renda familiar. Para Maria de Lourdes, é grande o prazer de fazer seu artesanato e
com ele ganhar o seu dinheiro:
– Alegria maior que a gente sente é quando termina de fazer e vem um pessoal
comprar o que a gente manda pra fora. E não é o que, pelo que eu já passei na vida, é
maravilhoso. Foi uma benção de Deus, nós ter conseguido. Fico muito satisfeita. E a gente
pretende andar mais pra frente pra conseguir mais coisas. Se a gente conseguisse exportar
peças para fora do Brasil e ganhar mais ainda... Daqui uns dois, três anos, pros maridos não
querer viajar, pra ficar aqui e aprender fazer também. O meu marido sabe fazer rede, só que
ele tem preguiça. Eu ensinei, ele sabe, só que ele tem preguiça. Ele diz que rede é trabalho de
mulher. (Maria de Lourdes, branca, 41 anos).
O desafio de Maria de Lourdes e do grupo do artesanato é desconstruir e efetivar
mudanças no exercício dos papéis tradicionais de gênero, ainda muito presentes na cultura a
que pertencem. Já Maria Alice, em seu depoimento a seguir, fala como os homens e, em
especial, o seu marido veem o avanço delas no grupo produtivo e sinaliza pequenas iniciativas
nessas desconstruções de papéis.
– Então, eu acho que eles veem a nossa mudança. A gente esperava pelo dinheiro
deles, antes, agora a gente tem o nosso, a gente pode fazer o que quiser com nosso dinheiro,
comprar as nossas coisinhas. Até ajudar dentro de casa. Até uma roupa, um calçado, era
dependente dele, do homem. Hoje, se a gente quiser botar comida dentro de casa, a gente
coloca. Demais. Que nem eu falo para as mulheres, a gente não depende de homem pra viver,
não. Porque a gente pensava se separar do marido: “Não tenho o que fazer aqui, o que nós
vai fazer aqui vai morrer de fome, tem que ter o marido pra dar comida”. Hoje não, se a
gente se separar, não vai fazer falta, nessa parte, né. Hoje, a gente se sustenta sossegado com
222
o quintalzinho, aqui fazendo, né [referindo-se ao artesanato de fiapo]. (Maria Alice, parda, 25
anos).
Maria Alice fala que, na região, não tem a matéria prima: “Vem de fora, é uma
linha de algodão. Vem de fora, a gente compra em outro município”. Diz que, para o grupo
do artesanato diminuir os custos de produção e aumentar o lucro, estão tentando se articular
em redes com outros grupos, associações e com a cooperativa do município de Cipó: “Aí,
junto com essa cooperativa em Cipó tem outras associações, a gente estava pensando, vamos
ver, vai dar certo. Agora, através da cooperativa, o caminhão ir buscar em São Paulo, que
vem de São Paulo e vem de Pernambuco”. Neste mesmo sentido, o grupo do artesanato deu
os primeiros passos na busca de parcerias com as instituições locais e regionais na perspectiva
de estruturar a atividade de produção artesanal do fiapo e construir os canais de
comercialização dos produtos através do Instituto Mauá (Salvador), das Prefeituras de Ribeira
do Amparo e Cipó e, também, através da formação de uma Cooperativa. Para Maria Alice, o
apoio e as orientações da técnica ajudaram o grupo nesse processo.
– Ela [Rejane, técnica do PGV] ajudou muito a gente a cobrar, ensinou a gente ir
lá buscar. Hoje a gente sabe ir sozinha, sabemos, já fomos atrás de muita coisa, atrás de
parcerias. A gente tem parceria com o Instituto Mauá, a gente está com parceria com o
município Cipó, que está querendo fundar uma cooperativa que a gente vai fazer parte, tudo
através do Projeto. Tudo através dos ensinamentos. A gente está atrás de prefeitura de tudo,
vamos cobrar, ave, é muita coisa. É porque antes a gente tinha parado, porque vinha um
vereador e “é nam”, “nam” assim. (Maria Alice, parda, 25 anos).
Depois dessa experiência vivida, as coisas começaram a mudar, pois o processo
de formação contribuiu para o acúmulo de conhecimento individual e coletivo, para despertar
a consciência de pertencimento da comunidade e facilitou a construção das relações tecidas
durante o processo de organização da associação e da comunidade. Quanto ao nível de
empoderamento do grupo, a comunidade deixa de só esperar dos vereadores politiqueiros as
resoluções de seus problemas e formula estratégias e ações e se mobiliza para influenciar nas
decisões que são de seu interesse. As capacitações promovidas pelo Projeto ajudaram o grupo
a lutar por seus direitos, conforme Maria Alice:
– [...] Umas vezes a gente foi daqui para a Câmara Municipal e paramos a
sessão. Só dava a gente, os vereadores se olhando e a gente cobrando nossas reivindicações.
Vamos ajudar e olhar nossa comunidade, Bariri está sem água. E aí, graças a Deus, fomos
atendidos. Muitas cobranças a gente fizemos lá, na Câmara. A gente já sabia, vamos lá falar
de boca, vamos lá: ”Oi prefeito, arruma ai uma água prá nós, tá sem água lá”. [Prefeito:]
223
“Tá bom!”. Aí, esquece. Hoje, a gente sabe que tem que chegar lá e protocolar um ofício, a
gente teve capacitação. As capacitações do projeto ajudaram muito a gente. Nos encontros de
mulheres, nossa, todos, pra mim mesmo, eu não perdi nenhum, participei de todos. Pra me
ajudar, todos, eu saí com uma nova experiência. (Maria Alice, parda, 25 anos).
Para Maria Esperança, a ação do Projeto ajudou a mudar algumas coisas na
realidade da comunidade. As pessoas que dele participaram se apropriaram de informações e
acumularam conhecimentos gerais e específicos. Através dos técnicos do PGV, foi iniciada
uma articulação com a Secretaria da Agricultura do município de Jeremoabo para que os
associados possam vender e fornecer para a alimentação escolar.
– Mudou muito, antes, a gente não tinha conhecimento de nada, de reunião que
tinha na Secretaria da Agricultura, nós não sabia nada do que estava acontecendo em
Jeremoabo e, hoje, por causa do Projeto Gente de Valor, que o chefe de escritório tem, assim,
ajudado muito, incentivado e falado muito sobre as comunidades. Gente de Valor, que tem
ainda essa Secretaria, tem sempre procurado a associação para participar das reuniões que
falam sobre a agricultura, sobre a apicultura, sobre tudo e depois também do Projeto tá
previsto para a associação comprar alimentos na comunidade para distribuir nas
comunidades carentes [PAA ˗˗ Programa de Aquisição de Alimentos] que não têm e também
para vender pra merenda escolar [PAE]. Então, isso tudo foi um grande avanço para nossa
comunidade, que não tem praticamente renda nenhuma ou, de ano a ano, quando chovia, o
feijão e o milho, e vive de horta. Outra alternativa não tinha. E esse ano foi assim, depois que
choveu, quase todos os apicultores tiraram mel e estão muito feliz. Disse que jamais
pensaram em ter uma renda a mais e a tendência é aumentar cada vez mais a apicultura. Eu
já tirei o consumo e estou incentivando meus filhos e minha família a consumir também, que
era uma coisa assim que a gente não dava importância para o mel e hoje, não, depois do
conhecimento que a gente tem da importância do mel na alimentação da família, todo mundo
consome o mel. E também já me ajudou, já vendi mel esse ano. (Maria Esperança, preta, 28
anos).
Percebe-se que essa articulação e as parcerias estão ainda em um processo inicial,
mas o caminho está sendo construído, com a participação mais ou menos direta dos membros
da Associação, nas decisões estratégicas e na operacionalização desta proposta. Esta
articulação, mesmo que ainda frágil para acessar políticas públicas e recursos governamentais,
224
através do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA)88 e do
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)89, fornecendo mel e hortaliças para
comunidades carentes ou para a merenda escolar do município de Jeremoabo, leva a
organização e a comunidade a se empoderar.
Maria da Paz fala com orgulho de representar a associação nos Conselhos
Municipais de Educação (CME) e da Criança e do Adolescente (CMDCA). Na realidade, ela
está aprendendo a participar destes espaços de representação política, destas instâncias
públicas e coletivas e, pelos muitos convites que tem recebido, deve estar se saindo bem em
seus posicionamentos nestes conselhos. Sobre isto, diz:
– O pessoal já aprenderam a me achar, já me botaram em conselho da merenda
escolar, já parei por lá. Da criança e do adolescente, já parei neste conselho, da divisão da
semente do governo. Todo mundo tem uma reunião, vamos ligar para Maria da Paz, é
atuante. Aí, acabam me ligando, aí, até eu disse pra eles: “Ninguém me ligue mais, não, que
eu não quero participar de conselho nenhum mais, não, porque você não ganha, mas todo
mês você tem aquela responsabilidade de estar todo mês na reunião. Teve a reunião você tem
que se responsabilizar de estar lá”. (Maria da Paz, parda, 32 anos).
Maria da Paz sabe que participar desses conselhos lhe dá credibilidade dentro da
comunidade e a torna conhecida entre os órgãos públicos e organizações da sociedade civil
(OSC) que participam também do conselho. Também acumula conhecimento e tem acesso a
informações sobre projetos, programas e políticas públicas desenvolvidas pelo município de
Fátima. Ela fala o que acha de participar desses conselhos:
– Eu ganho a experiência, eu vou ganhando a confiança de cada um. Na merenda
escola, eu estou lá, quem vai vender para merenda escolar não pode participar de conselho.
Eu falei pra a moça lá, que é responsável, e agora que a gente tem um equipamento
[beneficiamento de frutas] para trabalhar para vender para merenda escolar: “Se vocês me
botaram no conselho como vendo para merenda escolar?” (Maria da Paz, parda, 32 anos).
88
89
Foi instituído pela Lei 10.696, de 2 de julho de 2003, como uma ação estrutural do Programa Fome
Zero. Seu principal objetivo é garantir a comercialização dos produtos da agricultura familiar,
através do estabelecimento de preços mínimos a serem praticados com a garantia de compra, ao
mesmo tempo em que articula esta produção com os mercados institucionais ou para formação de
estoques, atendendo aos princípios da segurança alimentar. (MÜLLER, SILVA, SCHNEIDER,
2012).
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem como objetivo ofertar uma alimentação
adequada e saudável a fim de fornecer segurança alimentar e nutricional. Também tem o objetivo
de fortalecimento da agricultura familiar, pois eles são considerados os fornecedores organizados
em grupos formais (cooperativas e associações) e ou informais.
225
Ter as informações antes das outras pessoas e das outras organizações dá a Maria
da Paz e à associação que ela representa no Conselho vantagens e poder de se articular e se
preparar antes das outras associações. Ela se preocupou, ao ficar sabendo que as pessoas que
participam do Conselho da Merenda Escolar, não vão poder vender seus produtos.
Tranquilizou-se, quando foi informada que a Associação de que é tesoureira pode participar:
– Exatamente, foi o que ela me respondeu, que pode vender no nome de outra
pessoa. Porque, no dia da reunião, foi chamada a sociedade civil, no caso são a gente, aí,
acabaram votando. Eu tava brigando com o menino da outra associação, eu não queria ser
titular, ele também não, a gente decidiu que ele é titular e eu sou suplente. Quando chegou no
outro dia lá, a coisa foi diferente, aí mudou tudo, tem votação. Aí o pessoal já me conhecia
começou a votar: ”Não vote nele, que ela é atuante”. Aí acabei ficando como titular. Aí eu
acabei dizendo, eu quero trabalhar com a merenda escolar, mas aí ela passou pra gente que
poderia vender para outra pessoa. Pelo menos eu já vou tendo conhecimento, o pessoal vai
me conhecendo e quando a gente precisar ir atrás deles, eles já vai conhecer e saber que a
gente tá lá trabalhando e fazendo alguma coisa. (Maria da Paz, parda, 32 anos).
A presença nos conselhos já trouxe para a comunidade o “Projeto Minha Sopa”
cujo recurso vem da Prefeitura de Fátima e a sopa é feita por Maria da Paz e outras mulheres
na casa da Associação. Diz:
– Aqui a gente distribui a sopa, o projeto “minha sopa”. Eles deram o aluguel,
mas depois, eles disseram: vamos procurar Maria da Paz, lá tem a casa da associação, ela
pode ceder, aí, segunda e sexta, a gente cozinha a sopa e distribui para a comunidade aqui.
Aí, eu estou na frente de tudo: “ligue para Maria da Paz, fale com Maria da Paz” (Maria da
Paz, parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres, assim como Maria da Paz, ressalta que, dentre as
capacitações que o PGV realizou com aquelas que exerciam cargos de direção na Associação,
a mais importante foi o curso de gestão de convênio, que possibilitou a apropriação de
conhecimentos técnicos e práticos de gestão administrativo-financeira levando-as a se
sentirem mais seguras e com um domínio maior para gerir o convênio do projeto.
– Nós era da associação, mas tinha que aprender muita coisa. Então, o curso de
gestão, faltava uma perninha, com o curso de gestão ele me ajudou bastante. Precisou mais
assim no Projeto a gente aprender mais de como fazer um projeto. Se a gente for fazer, hoje a
gente faz. Conseguimos fazer o projeto das mulher com ajuda de uma técnica que é mulher
também, mas quem escreveu foi nós da comunidade. Então, ela só foi que ela é técnica, nós
não somos técnica, cada caso é um caso. A gente colocou as necessidades que estava beleza,
226
então, a gente enviou, colocou os dados dela também. Tinha que ter um técnico lá, viu que
essa menina trabalhou aqui também, aí foi. Foi o curso de gestão, como fazer um cheque, via
o povo fazendo cheque, e eu sabia lá como preenchia um cheque? Eu sabia lá que o cheque
tinha que ter fundo, que tinha que ter não sei o que, se era cruzado, se era sem cruzar? Todos
foi importante, pra minha pessoa, foi o curso de gestão. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Essa experiência mudou a vida de Maria dos Prazeres na medida em que
promoveu e concretizou seu empoderamento, ela não só aprendeu a assinar cheque e a realizar
processos administrativos e de gestão, mas, principalmente, a pensar, refletir e decidir com o
grupo de beneficiamento e com a associação o que eles querem, como e com quem. Ela e o
grupo estavam se sentindo preparados, após terem gerido o convênio com o PGV, a buscar
novos recursos, sensibilizados a elaborar projetos para dar continuidade ao trabalho,
principalmente com as mulheres do beneficiamento de frutas. Ela conta que isto mudou a sua
vida:
– Mudou, vige Maria! Mudou tudo, porque se nós quiser preencher um cheque
hoje, nós preenche, pra que, o que vai fazer com esse cheque, o que vai comprar, nós já
sabemos. E mudou tudo na nossa vida. Fazer um projeto... “Vamos fazer um projeto?”.
“Vamos!” “Vamos sentar a comunidade, primeiro sentar a comissão, eu presidente,
tesoureira, secretaria, algumas pessoas assim...”. Hoje, eu não tenho medo, não mais, porque
é assim, de primeiro a gente tinha, de vim pessoas diferentes e querer invadir, hoje não, se
você veio diferente, a gente não gostou da sua fala, a gente não vai aceitar o que você quer,
nós vamos aceitar o que nós precisa, o que necessita; hoje, eu não tenho medo. Minha mãe
diz assim: “Menina intromedida, tu não se intromete em tanta coisa!”. A gente está vendo
que precisa na comunidade, se o povo quer, então vamos correr atrás. (Maria dos Prazeres,
parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres adquiriu compromisso e responsabilidade com a organização e
com a comunidade. Apesar de já ser uma liderança há muito tempo e sempre estar à frente das
ações, ela exerce uma liderança compartilhada, escuta as opiniões das outras pessoas, informa
e esclarece as dúvidas e os procedimentos para que, na hora de definir e tomar a decisão, seja
com a participação consciente de todos os membros da Associação. Segundo Maria dos
Prazeres, a Associação conta com 70% de mulheres e este foi um dos motivos pelos quais
elaboraram um projeto das mulheres do beneficiamento de frutas para a Secretaria da
Agricultura, Pecuária, Irrigação, Reforma Agrária, Pesca e Aquicultura (SEAGRI) do
Governo do Estado:
227
– Um projeto de mulher. Você mesmo chegou aqui na comunidade pra mostrar o
trabalho que tinha feito com a gente com a sistematização, aí foi e disse... como a gente tem a
dificuldade, que a gente não tem internet, mora na roça, não tem internet, ainda aí tem essa
dificuldade muito, muito... Você chegou mandada de Deus e disse: ”Meninas tem um edital lá
de projeto de Seagri, vão lá tem até tanto x de valor”. Disseram: “A Beth disse que tem
aquele projeto, vamos vê o que é. Você vá vê e passa pra nós!” Aí eu fui lá vi [que] é um
projeto bom, não devolve o dinheiro, expliquei tudo direitinho: “Agora precisa isso, precisa
aquilo, tal, nós consegue aí, todas consegue, vamos fazer!”. Nós nos sentemos uma semana,
isso tinha poucos dias de prazo... Eita, meu Jesus, e agora? E liguei pra Josefa, que
trabalhava com assistência técnica da EFA (Escola Família Agrícola), aí eu disse: “Josefa,
nós precisa de ajuda”. Ela disse: “Pois não, venha pra cá e traga toda papelada da
associação”. Eu já tinha feito num papel, no caderno, o que tinha e a relação que tinha de
pedido. Aí eu já tinha feito algumas coisas, aí passemos lá sentemos um dia de manhã e
enviemos o projeto. E logo foi aprovado, a ainda hoje eu lembro desse dia, foi maravilhoso
em cima do mundo conquistado por nós mulher e não precisou de tanta pessoa de botar gosto
ruim. Teve algum gosto ruim... (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Conta que também compartilhou a informação para as mulheres do Sindicato de
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Cícero Dantas, para que também elaborassem um
projeto: “Eu chamei o sindicato: ‘Meninas vamos fazer um projeto, mulher, vocês tem o corte
e costura, vamos fazer!’. [Responderam:] ‘Ah, o tempo é pouco’. Botou dificuldade”. Diz que
as dificuldades colocadas pelas mulheres do sindicato a estimularam ainda mais a continuar
com o projeto delas. Ela continua contando que, após terem elaborado o projeto, tiveram que
correr para providenciar a documentação da Associação exigida no edital e postar no correio.
Foi uma verdadeira saga conseguirem, pela primeira vez, vencer, em tempo exíguo, todos os
obstáculos burocráticos que existem para uma associação se tornar apta a pleitear
financiamento público. Nisto, contaram com ajuda do pessoal técnico da CAR, do PGV.
Lideradas por Maria dos Prazeres, as mulheres da Associação demonstraram maturidade,
objetividade e determinação ao buscarem recursos para potencializar e continuar o trabalho
das doceiras. Maria dos Prazeres não desistiu, mesmo diante de tanta correria e imprevistos
para aprontar todas as documentações e conseguir enviar o projeto dentro do prazo. Depois
desta maratona, tiveram a recompensa de ter o projeto aprovado para a unidade de
beneficiamento de frutas, no valor de R$ 30 mil.
O grupo de mulheres ainda continua aguardando ansioso o recurso ser depositado
na conta da Associação. Estão felizes de terem elaborado este projeto praticamente sozinhas,
228
sentindo-se independentes dos agentes públicos tradicionais e dos políticos locais.
Anteriormente, em 2005, elas e o Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de
Cícero Dantas já lutavam, junto à Prefeitura de Cícero Dantas, para que fosse construída na
comunidade uma unidade de beneficiamento da castanha de caju. Em 2011, a unidade foi
entregue à Associação e, nesta época, o PGV já estava sendo executado na comunidade,
propiciando os intercâmbios e os cursos de capacitação para o trabalho na unidade de
beneficiamento.
Apesar de o PGV ter planejado e realizado um segundo momento do curso de
aproveitamento do caju, Maria dos Prazeres percebeu que não tinha sido suficiente para que
as mulheres aprendessem e, por conta da Associação, foi providenciar fazer novamente o
curso de aproveitamento do caju: “Seu Florisvaldo, a gente precisa de um curso desse”.
[Ele:] ‘Maria dos Prazeres, você quer fazer, então vamos fazer’”. Maria dos Prazeres ficou
muito estimulada porque neste curso participaram muitas mulheres da Associação, que
aprenderam a utilizar o caju em uma grande diversidade de doces e formas diferentes: “Ah,
minha fia, aprendemos a fazer o doce alisado, o doce de barra, o doce de comer de colher, a
geleia, o negócio do quibe, o negócio de fazer com arroz o caju, carne de caju, de tudo do
caju”. Maria dos Prazeres conta que as mulheres gostaram de tudo que aprenderam, que
fizeram durante o curso e que continuam fazendo. Afirma que, agora, as mulheres realmente
aprenderam a fazer o aproveitamento do caju: “Tanto aprenderam que estão fazendo, tão
vendendo”, e já estão criando outros produtos com o caju: “Elas já estão criando até com o
doce que elas têm, até fazendo docinho de festa de aniversário, fizeram pra vê como era”.
Maria dos Prazeres, em nome da Associação, busca acessar todos os projetos que
vêm para a região. Ultimamente, está em uma correria grande, fazendo o levantamento das
famílias da sua comunidade que não têm casa para serem contempladas com o projeto Minha
Casa Minha Vida.
O empoderameno de Maria dos Prazeres não é uma ilusão, pois ela não ignora o
histórico e o político, está conectada com o contexto local e se relaciona com as lutas e as
ações coletivas da comunidade, do sindicato, da cooperativa e da região, dentro de um
processo político. Reconhece as estruturas de poder e a existência desta desigualdade no seu
cotidiano, presente em sua própria vida e no grupo de mulheres, e isto a incomoda e a
impulsiona e, também, ao grupo, a querer mudar as estruturas sociais existentes na própria
vida e na das outras mulheres. Só assim, Maria dos Prazeres e suas companheiras vão se
empoderar, de fato, quando, juntas, conseguirem mudar e acabar com a dominação dos
homens sobre as mulheres e outras dominações, enfim, adquirir autonomia para decidir sobre
229
suas vidas. Não basta só ter mulher presente, participando: ela tem que ser ouvida e ter ações
direcionadas para elas que possibilitem o seu processo de empoderamento.
A dinâmica organizativa vivida por essas mulheres, ao assumirem alguma
responsabilidade na associação comunitária, tendo ou não cargo na diretoria, viabilizou um
rico processo de vivência, uma troca de conhecimentos e de experiências de vida que
favoreceu o crescimento individual e coletivo destas mulheres agricultoras. Nos casos
investigados, constatamos ambiguidades nos depoimentos das mulheres, ora demonstrando
empoderamento, ora desempoderamento. Todas as mulheres investigadas se empoderaram,
em graus diferentes, principalmente, no nível psicológico ou individual.
Quatro mulheres não se empoderaram no nível organizacional, ou melhor, o grau
de seu empoderamento foi baixo em relação às outras e ao que poderia ser. E seis dessas
mulheres demonstraram empoderamento organizacional, no grupo produtivo e na Associação,
revelaram ter sentimento de pertencimento ao grupo, realizar práticas solidárias entre elas,
mostraram respeito recíproco e apoio mútuo entre os membros do grupo. Porém, dentre as dez
mulheres agricultoras estudadas, apenas uma, Maria dos Prazeres, demonstra estar no nível de
empoderamento comunitário. Todas essas vivências e experiências possibilitaram a algumas
mulheres um processo de empoderamento efetivo.
230
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma preocupação pessoal, enquanto feminista e militante de movimentos sociais
que ora cumpre função de assessora de gênero em projeto público, inspirou-me a esta
pesquisa: o que se pode fazer dentro de uma estrutura do Estado, como a CAR, que seja
coerente com uma trajetória como a minha, que é a de muitos que foram parar no interior do
Estado?
No passado, fui muito crítica dessa intervenção do Estado junto às comunidades
rurais, associações e cooperativas, em região próxima e muito semelhante a esta, do Nordeste
do Estado da Bahia, na qual se desenvolveu o Projeto Gente de Valor. Historicamente, esta
empresa pública, criada em 1983, se tornou instrumento de difusão do pacote tecnológico da
chamada “Revolução Verde”, no contexto da modernização conservadora. Sem romper com a
tradição clientelista, focava, principalmente, em infraestrutura (barragens, poços tubulares,
unidades de beneficiamentos, banheiros e, mais recentemente, cisternas de água de chuva para
consumo humano e produção) e distribuição de tratores e implementos agrícolas. As ações
passaram a ser direcionadas não mais a indivíduos, mas a coletividades, através de convênios
com as associações comunitárias de produtores rurais, quase sempre criadas para esta
finalidade, sem existir, de fato, uma dinâmica organizativa na comunidade com práticas
associativas enraizadas. Associações meramente cartoriais e sob o domínio de um cabo
eleitoral.
A CAR é de grande interesse político e, para controlá-la, há disputas, conflitos e
relações de força dentro do governo estadual nas sucessivas gestões. Este tipo de intervenção
ia de encontro às minhas concepções e práticas profissionais, enquanto extensionista e
agroecologista. Com as mudanças na conjuntura política do Brasil e o advento de coalizões
entre o Governo Federal e o Estadual, controlada por partidos de “esquerda” ˗˗ o Partido dos
Trabalhadores à frente, partido pelo qual militei, pois julguei, assim como outros
profissionais, encontrar espaço mais favorável dentro do Estado para colaborar no avanço das
causas pelas quais tenho lutado ˗˗, acabei aceitando a função de Assessora de Gênero do
Projeto Gente de Valor, no âmbito da CAR.
Propunha-se operacionalizar, dentro da estrutura do Estado, especificamente no
PGV, as estratégias de incorporação do enfoque de gênero que foram aprovadas na Quarta
Conferência Internacional da Mulher, em 1995, em Beijing, na China. Assinando a
Plataforma de Ação desta conferência, o Brasil assumiu a responsabilidade de integrar as
perspectivas de gênero nas políticas públicas, programas e projetos. Especificamente, era esta
231
uma recomendação do FIDA para o PGV. Um desafio para todos do projeto e um
compromisso pessoal meu.
Nesse contexto, apresenta-se a presente dissertação com o seguinte percurso: a
caracterização do objeto e a sua abordagem; a discussão teórica do conceito de
empoderamento; e os níveis individuais e grupais de empoderamento.
O desafio foi dobrado, não só pelo envolvimento pessoal, mas, também, por
discutir um tema bastante contemporâneo e pouco estudado em uma perspectiva feminista: o
processo de empoderamento de mulheres agricultoras em projetos de desenvolvimento rural
patrocinados pelo Estado, no caso, o Projeto Gente de Valor, implementado pela CAR.
Esse Projeto tinha em seu desenho, conforme os ditames atuais hegemônicos, a
meta de reduzir, significativamente, os níveis de pobreza e a pobreza extrema das
comunidades rurais do semiárido baiano. Para tanto, visava melhorar as condições
socioeconômicas das comunidades rurais pobres, por meio de um desenvolvimento social e
econômico, ambientalmente sustentável, com equidade de gênero.
Nesta perspectiva, sua proposta de intervenção incorporava discursos e conceitos
em evidência, como agroecologia, convivência com o semiárido, segurança alimentar e
enfoque de gênero. A CAR, porém, ou melhor, o Projeto Gente de Valor, com sua equipe
técnica, não estava suficientemente preparada para atuar com todas essas diversidades de
temáticas e suas respectivas concepções e implicações. Na realidade, a instituição continuava
a mesma e seu quadro de técnicos e técnicas também, apesar da incorporação teórica destas
temáticas em seus projetos. A entrada, no corpo técnico da CAR, de pessoas com trajetórias
de “esquerda”, comprometidos com as lutas por direitos sociais, com alguma experiência
nestes temas, não significou mudanças, de fato, em sua estrutura interna e na ação externa,
capazes de facilitar a operacionalização plena da proposta originária nos marcos
desenvolvimentistas. As atitudes de desqualificar os projetos voltados para o empoderamento
de mulheres continuaram presentes, tal como manifestadas no Projeto Pró-Gavião (1998),
ainda que de forma velada.
Em 2008, quando entrei no PGV como assessora de gênero, tinha a ilusão da
possibilidade de uma real incorporação da perspectiva de gênero nas ações governamentais,
pelo cenário político favorável e pela presença, na diretoria da instituição, de profissionais
oriundos dos movimentos sociais. Aparentemente, conseguiríamos fazer algo diferente, no
intuito de garantir a inclusão da perspectiva de gênero no Projeto. Porém, o cenário criado
pela inserção destes profissionais estabeleceu internamente a convivência, nem sempre
pacífica, entre duas racionalidades. Na prática, independentemente de quem governa, a
232
instituição incorporava, de forma verticalizada, a transversalidade da perspectiva de gênero,
para só assim garanti-la nos dois componentes do PGV (o de Desenvolvimento Produtivo e de
Mercado e de Desenvolvimento do Capital Humano e Social), mas o gênero é visto como algo
secundário e complementar, não valorizado, efetivamente, pelo executor, apenas mais um
tema transversal aceito, em função das diretrizes do FIDA e das políticas sociais do Governo
Federal.
Dessa forma, a inclusão das mulheres agricultoras no Projeto se deu de cima para
baixo, com uma visão de desenvolvimento rural ainda pautada em valores de uma ordem
patriarcal vigente, em uma perspectiva assistencialista que, facilmente, tendia a aprofundar
desigualdades sociais entre homens e mulheres. Na CAR e, consequentemente, no PGV, no
que concerne ao enfoque de gênero, a sua incorporação nos discursos e ações ainda não
possibilitou a desconstrução da percepção das identidades feminina e masculina de forma
determinista˗˗essencialista e do masculino como referência.
Na prática de intervenção do Projeto, as desigualdades de gênero não são
entendidas como um problema que existe e que precisa ser mudado. Estas desigualdades são,
em geral, produzidas e reproduzidas durante a implementação das ações do PGV nas
comunidades, nas decisões da coordenação e nos escritórios, pelos agentes técnicos e técnicas.
Isto ocorre, por identificarem as mulheres agricultoras apenas com a reprodução e por não
reconhecerem o papel decisivo realizado pelas mulheres no âmbito da produção.
O Projeto Gente de Valor estimulou a participação das mulheres agricultoras nas
atividades que promovia, mais preocupado com a quantidade, como se bastasse ter mulheres
presentes nas atividades para a incorporação da perspectiva de gênero e para efetivar a
equidade de gênero. Acreditava-se, assim, estar, no desenvolvimento do Projeto, dando
oportunidades para as mulheres. No entanto, não conseguiu ir além e criar condições para que
as mulheres adentrassem áreas de domínio masculino como a caprinocultura, a ovinocultura, a
apicultura, que continuaram com pouca presença das mulheres. A promoção dessas mulheres
agricultoras a agentes ativas de um processo de desenvolvimento centrado na sua integração
social, nas estratégias do desenvolvimento convencional, permitiu, minimamente, a aceitação
das estruturas sociais existentes que perpetuam as desigualdades de gênero. Tal integração, na
prática de campo, é promovida sem questionamento no que diz respeito à divisão de gênero
dominante e às suas implicações para o modelo de desenvolvimento.
233
O Projeto tende a se centrar nos aspectos produtivos do trabalho das mulheres,
ignorando o peso das suas funções sociais e reprodutivas que, no cotidiano, interferem
diretamente no seu desempenho no trabalho produtivo. O Projeto criou as condições para que
as mulheres participassem das associações, porém, o controle sobre os recursos e informações
continuou sob a tutoria dos técnicos e técnicas e, em algumas comunidades, não possibilitou o
exercício pleno da autonomia das mulheres, enquanto diretoras das associações. Não havia o
interesse de refletir sobre a situação subordinada das mulheres e de questionar a ideologia
patriarcal, nem de desvelar as desigualdades sociais e a discriminação de gênero por elas
sofridas e naturalizadas.
Batliwala (1994) afirma, acertadamente, que o empoderamento é um processo e,
com certeza, este processo não é linear. Pode-se constatar que o processo de empoderamento
tende a ser espiral. Algumas das mulheres não se empoderaram, de fato, ou melhor, o grau de
seu empoderamento foi baixo em relação a outras e ao que poderia ser. Em alguns casos, isto
se deveu à pouca escolaridade, à idade e ao ambiente que as circunda. Os agentes
facilitadores, em geral, não favoreceram o entendimento crítico destas mulheres sobre sua
realidade, autonomia e capacidade de fazerem suas próprias escolhas.
No entanto, durante a dinâmica de participação criada pelo PGV, em diferentes
atividades produtivas e organizativas de interesse coletivo, surgiram outros elementos
subjetivos à margem do controle ou das previsões dos planejamentos técnicos, construídos
através da interação entre as mulheres, entre os grupos, entre os técnicos, as técnicas e as
mulheres. Todas essas vivências e experiências possibilitaram a algumas mulheres um
processo de real empoderamento, pois propiciaram a sua conscientização e a possibilidade de
exercitar sua capacidade de fazer escolhas as quais, muitas vezes, passam pela decisão de
romper relações conjugais, de permanecer sozinhas com os filhos, de não querer ter filhos ou
não querer ter mais filhos. Ter a liberdade de pensar com as próprias ideias, com suas
vontades, seus desejos e, finalmente, decidir sobre suas vidas.
Este estudo levou à conclusão de que há empoderamento das agricultoras na
perspectiva do desenvolvimento, a partir da intervenção do Estado. O PGV foi veículo para o
empoderamento das mulheres agricultoras, apesar da sua abordagem ter sido oriunda da
mesma matriz das agências de cooperação internacionais e organizações financeiras
multilaterais, que enfatizam sua dimensão instrumental e metodológica e não sua dimensão
política. Mesmo assim, o Estado, através do PGV, foi um facilitador do empoderamento,
ainda que dentro de uma perspectiva de desenvolvimento regida pelos marcos do
neoliberalismo dominante nos quais prevalece uma lógica predominantemente economicista.
234
Como instrumento para o desenvolvimento e combate à pobreza, suas ações estavam focadas
nas “necessidades práticas de gênero”, tais como saúde da mulher, direitos à documentação e
às tecnologias produtivas e geradoras de alimento e renda.
Na prática, as mulheres agricultoras passaram a demonstrar que era seguro
investir nos seus empreendimentos e em suas capacidades de lideranças enquanto mulheres
pobres, que são vistas como aquelas que mais trabalham, que são mais fáceis de mobilizar,
que representam menor risco para o crédito e que são mais preocupadas e comprometidas com
a família e com a comunidade. Estes argumentos, que antes eram vias para a exploração das
mulheres, passam a ser comprovações de eficiência no discurso das políticas neoliberais,
tirando proveito das qualidades das mulheres que lutam pela sobrevivência econômica,
cultural e política, ao revés de um comprometimento com a continuidade da luta no sentido do
seu empoderamento. (BATLIWALA, 2013).
Nos casos investigados, constata-se ambiguidades nos depoimentos das mulheres
agricultoras, ora demonstrando empoderamento, ora desempoderamento. No entanto, afirmo
que todas as mulheres investigadas se empoderaram, em graus diferentes, principalmente no
nível psicológico ou individual. Empoderaram-se, ao participar das atividades produtivas e
organizativas, contribuindo com as discussões, apropriando-se dos conhecimentos,
tecnologias e processos organizativos. É notório o aumento da autonomia, da autoestima, da
autoconfiança e o sentimento de autovalorização destas mulheres. Duas delas afirmam que foi
durante o processo organizativo da comunidade que começaram a entender sua realidade
social enquanto mulher, negra e pobre, a conhecer o contexto sociopolítico no qual vivem e a
ter um olhar crítico sobre o mesmo. Foi na vivência do Projeto que descobriram o sentimento
de pertença e autorreconhecimento étnico-cultural.
Conclui-se, também, que, apesar da integração na comunidade e do
reconhecimento junto ao grupo, a maioria dessas mulheres ainda não se empoderou ao ponto
de redefinir as normas e as regras de gênero, principalmente no espaço doméstico. Já no nível
organizacional, seis delas demonstram empoderamento, no grupo produtivo e na associação,
revelando a existência de respeito recíproco e apoio mútuo entre os membros do grupo.
Constatei o sentimento de pertencimento ao grupo e a existência de práticas solidárias entre
elas. No grupo, elas demonstram ter habilidades para discutir e analisar os problemas e as
soluções, através da organização e da ação coletiva, conhecimento da gestão administrativofinanceira da organização e compreendem a importância do trabalho em grupo, seja na
associação e/ou no grupo produtivo, para lutar coletivamente por direitos. Contudo, no caso
de Maria Amélia (tesoureira), Maria José (presidente) e Maria do Sossego (tesoureira), o mero
235
fato de assumirem estes cargos de diretoria na Associação isto não lhes dá autoridade, de fato,
não significa que tenham poder efetivo. O associativismo, não obstante, pode ser um dos
caminhos do processo de empoderamento das mulheres, apesar de historicamente cooptado
como estrutura de controle social.
Ainda assim, a dinâmica organizativa vivida por essas mulheres, ao assumirem
alguma responsabilidade na associação comunitária, tendo ou não cargo na diretoria,
viabilizou um rico processo de vivência e troca de experiências de vida, que favoreceu o
crescimento individual e coletivo destas pessoas, independentemente do sexo. No caso
específico das mulheres agricultoras estudadas, experimentaram muitos sentimentos
diferentes no trajeto, desde insegurança, incertezas, conflitos e disputas em casa e na
associação, até o prazer de estar com as outras mulheres, dos laços de amizade construídos e
de estar neste espaço público que demandava delas muito mais que domínio sobre
administração e gestão. Neste processo, conquistaram autoestima, autovalorização e o
reconhecimento das pessoas das comunidades. Enquanto indivíduos, portanto, elas se
empoderaram como consequência do envolvimento no local, na comunidade, nas diversas
atividades (produtivas, organizativas e culturais), nos processos de formação (reuniões,
encontros, cursos, intercâmbios) e no exercício cidadão dentro da associação, sindicato,
grupos de mulheres e conselhos.
Entre as dez mulheres agricultoras estudadas, apenas uma, Maria dos Prazeres,
demonstra estar no nível de empoderamento comunitário. Ressalto que ela já tinha uma
trajetória de inserção social e política, em vários espaços e movimentos sociais, antes do
PGV. Então, seu engajamento, sua participação social no Fórum do Território (da Cidadania),
em instituições locais e regionais, como o sindicato e a cooperativa, já vinha de longa data. A
participação no Conselho Municipal de Educação, sua luta para elaborar projetos, na busca de
recursos para viabilizar o trabalho do grupo de mulheres doceiras, na perspectiva de obtenção
de segurança econômica, teve o estímulo e acolaboração dos técnicos e técnicas do PGV e de
outras organizações. A frequente articulação em redes com outras pessoas, organizações e
movimentos sociais, como a Associação Regional de Convivência ao Semiárido (ARCAS),
Pastoral Rural, Escola Família de Cícero Dantas etc., vem acontecendo há muitos anos em sua
trajetória.
Em um contexto político mais amplo, ou melhor, no nível comunitário, o
empoderamento, como democratização, ocorreu quando as reivindicações das mulheres
agricultoras e as exigências de apoio a suas demandas e necessidades, enquanto organizações
comunitárias da sociedade civil, tiveram impacto sobre as estratégias de desenvolvimento de
236
um projeto governamental e no acesso a projetos, programas e políticas públicas direcionadas
para mulheres rurais. Como exemplo deste nível comunitário, relembro a experiência de
Maria dos Prazeres e das mulheres da Associação de Novo Triunfo ao reivindicar a
minifábrica de processamento da castanha de caju junto à Fundação Banco do Brasil, através
da Cooperacaju90, e com o apoio do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de
Novo Triunfo e, também ao elaborar e acessar um projeto governamental direcionado para
mulheres rurais, viabilizando os equipamentos e recursos para o grupo de beneficiamento de
frutas.
Os limites desse empoderamento, na perspectiva de desenvolvimento, é que
podem ser ilusórios, pela ênfase no empoderamento individual sem se relacionar com ações
coletivas (LEÓN, 2001), por não ser um processo social e político de maior amplitude e
impacto. Outro limite é que o empoderamento depende dos sujeitos: se não quiserem aceitar
as iniciativas dos agentes externos, dificilmente ocorrerá o empoderamento, pois, raramente,
se empoderam espontaneamente (HOROCHOVSKI, 2007).
Tendo analisado a efetivação das estratégias de gênero do Estado empregada no
Projeto Gente de Valor, conclui-se que estas propiciam às mulheres agricultoras
empoderamento pessoal e social, mas não político. No sentido político, elas não se
empoderaram, porque não era esta a perspectiva do PGV cuja proposta, fincada em uma
perspectiva de “empoderamento liberal”, ao invés de “empoderamento para a libertação”
(SARDENBERG, 2009), focou no empoderamento individual das mulheres, com ênfase nos
aspectos cognitivos. Pouca ênfase foi dada às ações coletivas.
Surpreendente foi constatar que os agentes técnicos e técnicas, mesmo não tendo
uma formação específica nem estarem a priori sensíveis ao enfoque de gênero e apesar de as
mulheres agricultoras não terem uma formação específica e sistemática em gênero, “um
encontro de mulheres” conseguiu “mexer” com algumas delas a ponto de externarem o sonho
de mudarem as suas realidades e das outras também. Apesar de o empoderamento proposto no
90
Cooperativa da Cajucultura Familiar do Nordeste da Bahia, que atua nos municípios: Água Fria,
Antas, Banzaê, Biritinga, Cícero Dantas, Cipó, Euclides da Cunha, Fátima, Heliópolis, Itapicuru,
Jeremoabo, Lamarão, Nova Soure, Novo Triunfo, Olindina, Quijingue, Ribeira do Amparo, Ribeira
do Pombal, Sátiro Dias, Sítio do Quinto e Tucano. Tem uma central de comercialização localizada
em Ribeira do Pombal e sete unidades de beneficiamento, destas, cinco construídas em Banzaê,
Novo Triunfo, Cícero Dantas, Olindina e Ribeira do Amparo. E duas unidades ainda em projeto, a
serem construídas em Lamarão e Tucano. A COOPERACAJU tem parceria com a Fundação Banco
do Brasil, o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), Empresa Baiana de
Desenvolvimento Agrícola (EBDA), Pastoral Rural, Escola Família Agrícola (EFA) e Comissão
Evangélica dos Direitos da Terra (CEDITER). Disponível em: <http://www.cooperacaju.com.br/>.
Acesso em: 27 jul. 2014.
237
PGV, como resultado de capacitação ou instrumento teórico-metodológico, ter sido
apreendido pelas mulheres, algumas delas ainda desencadearam internamente um processo de
empoderamento efetivo.
Isto se evidenciou no despertar das suas consciências, quando começaram a
questionar suas realidades em casa, discutir a divisão sexual do trabalho, suas relações de
dependência e de subordinação aos maridos e começaram a querer mudar e acabar com a
opressão patriarcal. Desencadeou-se, assim, o empoderamento destas mulheres, em uma
perspectiva feminista, que não era esperado nem previsto pelo PGV.
Com base na surpresa destas constatações, defendo, então, a adoção da
perspectiva feminista em um projeto de desenvolvimento rural do Estado. Creio que já é
possível e viável assumir, nestes projetos como o PGV, o enfoque de gênero não só
teoricamente e com conotações dúbias, mas implementar as políticas de equidade de gênero
como uma conquista social, com uma redistribuição de privilégios, tidos não mais como tais,
incluídas as mulheres, com condições reais para uma efetiva igualdade de gênero. Mais
difícil, porém, urgente – em vista também das violências que ocorrem –, será promover
mudanças nas relações de gênero no meio rural e no espaço doméstico, envolvendo também
os homens nos cursos e encontros de formação específicos sobre o enfoque de gênero, com a
perspectiva de interconectar as relações entre as estruturas de poder e as práticas da vida
cotidiana de indivíduos e grupos. Como afirma León (2001), o empoderamento das mulheres
significa um empoderamento também dos homens.
No dizer de Rose Marie Muraro (2001, p. 1), “educar um homem é educar um
indivíduo, mas educar uma mulher é educar uma sociedade”. O desafio está posto. E o desafio
é urgente, pois:
As mulheres entram nos sistemas simbólicos masculinos no momento em
que esses estão se mostrando implacavelmente destrutivos em relação à vida.
[...] E [entram] não só nas instituições convencionais (empresas, partidos
etc.), mas também em outras, muitas vezes na contramão da história (nas
lutas populares, ecológicas, pela paz etc., onde são a grande maioria). Elas
estão construindo uma nova ordem simbólica, na qual o "grande outro" é a
vida (viver e deixar viver), e ajudando a desconstruir a atual ordem universal
de poder. (MURARO, 2001, p. 1).
Nesta perspectiva, o PGV, com todos os seus limites, significou também
possibilidade de avanço para as mulheres agricultoras rurais. Avanço que poderia e pode ser
maior na reedição prevista do projeto em outra região do semiárido baiano, porém, com a
perspectiva evoluindo em direção à feminista, ou seja, no sentido de um “empoderamento
238
para a libertação”, visto que, assim, mais mulheres se conscientizariam da sua força, do seu
poder, dos seus direitos sociais e políticos e se fariam articuladas e mobilizadas coletivamente
para conquistá-los.
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