O PBF é uma boa política emergencial para reduzir a extrema

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BOLSA FAMÍLIA: TUTELA OU EMANCIPAÇÃO?
José Eustáquio Diniz Alves1
“Comida
... a gente não quer só comida,
a gente quer comida, diversão e arte.
... a gente não quer só dinheiro,
a gente quer dinheiro e felicidade.
a gente não quer só dinheiro,
a gente quer inteiro e não pela metade”.
(Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto)
O tema da pobreza e da fome passou a fazer parte da agenda dos organismos internacionais na
década de 1980 quando se percebeu que o desenvolvimento econômico por si não seria capaz de
resolver a situação das parcelas da população não incluídas nas atividades mais dinâmicas e
modernas da economia. A Cúpula para o Desenvolvimento Social de Copenhague (1995) foi um
ponto de inflexão crucial em direção ao “novo paradigma antipobreza”.
Os primeiros programas de Transferência de Renda com Condicionalidades (TRC) no Brasil
foram implantados em Campinas e no Distrito Federal. O chamado Bolsa Escola transferia
recursos para as famílias pobres que tivessem todas as suas crianças em idade escolar
matriculadas na escola pública. A idéia era investir nas crianças e jovens para a superação do
ciclo intergeracional, rompendo com a reprodução da armadilha da pobreza (poverty trap).
Na cúpula do Milênio, realizada entre 6 e 8 de setembro de 2000, na sede da ONU em Nova
Iorque, foi definida como meta 1 dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio: “Erradicar a
extrema pobreza e a fome”. Em termos numéricos, o objetivo é reduzir pela metade o número de
pessoas vivendo em extrema pobreza, considerando o período de 1990 a 2015, e acabar com a
fome até 2015.
No Brasil, a “Campanha contra a fome” em meados dos anos de 1990, liderado pelo Betinho, fez
surgir por todo o país os comitês de Ação da Cidadania. A iniciativa chegou a ser tachada de
assistencialista pela esquerda. Mas na campanha presidencial de 2002, o candidato do PT, Luiz
Inácio Lula da Silva, reconheceu o potencial mobilizador da iniciativa e estabeleceu como
política social prioritária o Programa Fome Zero, para garantir a segurança alimentar.
Contudo, o governo Lula, depois de eleito, trocou o programa Fome Zero pelo Programa Bolsa
Família (PBF), criado a partir de outros programas de transferência de renda existentes, como o
Programa Bolsa Escola; o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI); o Programa
Bolsa Alimentação, gerido pelo Ministério da Saúde (MS); o Auxílio Gás sob gestão do
Ministério das Minas e Energia; e o Cartão Alimentação, implementado pelo Ministério
1
Professor titular da Escola Nacional de Ciências Estatísticas - ENCE/IBGE. Tel: (21) 2142 496
[email protected]
E-mail:
1
Extraordinário de Segurança Alimentar (MESA). O governo assumiu a tarefa de reduzir a
extrema pobreza e a fome como um objetivo prioritário e inadiável e coube ao PBF a liderança
desta tarefa.
Porém, tal como efetivado, existem autores que alertam para o tipo de desenho do programa e o
perigo de manter a população eternamente tutelada e dependente da ajuda governamental.
Sposati2 (2003) alerta para o perigo de transformar o a população alvo em “mendicantes
institucionais”. Frei Beto considerava o Fome Zero um programa emancipatório e argumenta que
o PBF tem apenas um caráter compensatório, pois resultou na desmobilização de milhares de
comitês gestores eleitos democraticamente, com representantes da sociedade civil. Até hoje não
se definiu as “portas de saída” do PBF3.
A despeito do caráter desmobilizador e da baixa capacidade de gerar capital social, o PBF tem
aumentado o volume de recursos transferidos às famílias pobres, devendo ultrapassar R$12
bilhões, em 2009. O Relatório Nacional de Acompanhamento dos ODMs (IPEA, 2007)4 mostra
que, em 2005, o Brasil já havia atingido a meta de redução da extrema pobreza pela metade,
quando se considera o percentual da população vivendo com menos de um dólar ao dia. Assim
como outros indicadores de pobreza, o gráfico 1 mostra que a pobreza aumentou no início dos
anos de 1990 devido a crise econômica e ao processo de elevada inflação.
Gráfico 1: Percentagem da população vivendo com menos de um dólar ao dia, Brasil: 1990-2005
11
9,5
10
9,5
8,8
9
8
%
6,9
7
6,7
6,4
6,2
6
6,2
5,9
6
5
5,5
5
4
4,2
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1991
1990
3
Fonte: Relatório Nacional de Acompanhamento dos ODMs, IPEA, 2007
2
SPOSATI, A. O. et al. Assistência na trajetória das políticas sociais brasileiras: uma questão em análise. 8 ed. São
Paulo: Cortez, 2003.
3
Frei Beto: “O Bolsa-Família melhorou as condições sociais de milhares de pessoas que viviam na miséria. Porém, a
proposta do Fome Zero era mais abrangente e possuía caráter emancipatório. Não conheço outra política pública na
história do Brasil que tenha provocado tanta empolgação na opinião pública. O Bolsa-Família tem aspectos positivos,
mas possui caráter compensatório. Até hoje não se descobriu a porta de saída das famílias que dele dependem”.
Disponível em: http://alainet.org/active/29369&lang=es
4
Disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/download/TerceiroRelatorioNacionalODM.pdf
2
Com a implementação do Plano Real e a estabilidade monetária, em 1994, houve uma rápida
queda da pobreza, seguida de uma certa estabilização até 2001, para em seguida iniciar um
processo de queda contínua. Por este indicador, o Brasil já conseguiu reduzir a extrema pobreza
pela metade, conforme estabelecido na meta número um dos ODMs.
Com relação à fome e à desnutrição também houve avanços significativos. De acordo com a
Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS-2006) a desnutrição infantil crônica no Brasil
diminuiu 46% em relação à pesquisa anterior que foi de 1996. Na Região Nordeste, a redução
chegou a 74%. No mesmo período, a taxa de mortalidade infantil caiu 43,5% no país. A literatura
especializada mostra que a desnutrição infantil provoca maior mortalidade e morbidade,
comprometendo o crescimento físico e mental das crianças, além de prejudicar o
desenvolvimento psicomotor e o aproveitamento escolar, diminuindo a capacidade produtiva na
idade adulta. Segundo Monteiro (2008)5 os principais achados da PNDS-2006 em relação a
PNDS-1996, no que diz respeito ao combate à fome e à desnutrição são:
“1) a exposição das crianças brasileiras a formas agudas de desnutrição (déficit
de peso para altura) tornou-se virtualmente nula em todo o país, incluindo a Região
Nordeste e os estratos das famílias de menor renda, onde o problema ainda alcançava
dimensões relevantes em meados da década de 90; 2) a prevalência de formas crônicas
de desnutrição (déficit de altura para idade), de mais difícil controle, foi reduzida em
cerca de 50% entre 1996 e 2006 (de 13% para 7%), com perspectivas de virtual controle
em mais dez anos; 3) a desnutrição infantil crônica declinou de modo espetacular na
Região Nordeste (de 22% para 6%), eliminando toda a tradicional diferença existente
entre essa região e o Centro-Sul do país (o declínio menos intenso na Região Norte faz
dessa região, no momento, a única ainda a ostentar prevalências de desnutrição típicas
de países em desenvolvimento); 4) o declínio particularmente intenso da desnutrição nos
estratos de menor renda reduziu em 70% a desigualdade existente nos anos 90 entre o
quinto mais pobre e o quinto mais rico das crianças brasileiras; 5) a prevalência atual de
desnutrição infantil no Brasil é uma das mais baixas no mundo em desenvolvimento,
sendo cerca de 50% inferior à estimada para países com semelhante nível de
desenvolvimento econômico — no México, por exemplo, no mesmo ano de 2006, o risco
de desnutrição infantil foi mais de duas vezes superior ao encontrado no Brasil”.
Contribuíram para estes avanços, o aumento dos níveis de escolaridade, a redução da pobreza
extrema indicada no gráfico 1, a expansão da cobertura do sistema de saúde, em especial, a
assistência pré-natal e ao parto e a ampliação dos serviços de saneamento básico (água, esgoto e
coleta de lixo). Contribuiram também o aumento da cobertura do Benefício de Prestação
Continuada – BPC/LOAS e a política de valorização do salário mínimo, pois este se estava
abaixo de 100 dólares americanos na década de 1990 e encontra-se acima de US 200 atualmente.
Portanto, os avanços das políticas públicas e do sistema de proteção social no Brasil foram
fundamentais para a redução da extrema pobreza, da fome e da desnutrição. O Programa Bolsa
Família foi mais uma das políticas que contribuiram para a efetivação da meta 1A dos ODMs:
“Reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população com renda inferior a um
dólar PPC por dia”.
5
Monteiro, Carlos A. O espetacular declínio da desnutrição, jornal O Globo, Rio de Janeiro, 04 de Julho de 2008.
3
Entretanto, o sucesso na redução da pobreza e da fome não pode ser considerado como objetivo
finalistico, mas como um meio para se chegar a uma verdadeira emancipação das parcelas
socialmente excluídas da população. A comunidade internacional reconheceu isto durante a
Cúpula do Milênio + 5, realizada entre 14 e 16 de setembro de 2005, após a abertura da 60ª
Sessão da Assembléia Geral em Nova York. Na revisão dos ODMs foi incluída a meta 1B:
“Alcançar o emprego pleno produtivo e o trabalho decente para todos, incluindo mulheres e
jovens”.
Assim, o PBF precisa se articular com uma política de geração de emprego decente (formalizado)
especialmente para mulheres e jovens. Para romper com o “ciclo de pobreza intergeracional” é
preciso que a família não seja tutelada pelas políticas públicas, mas sim consiga uma mobilidade
social por meio de uma inserção produtiva no mercado de trabalho, com fortalecimento do capital
social das famílias e com os indivíduos recebendo com justiça pelo trabalho que contribui para o
desenvolvimento coletivo. Não basta receber o peixe é preciso ajudar a pescá-lo (respeitando-se o
meio ambiente). O Brasil não pode se dar ao luxo de ter eternamente 20% de sua população
vivendo às custas de transferências de renda, pois isto limita quem contribui e que recebe a ajuda.
Mesmo que o custo fiscal do PBF para reduzir a extrema pobreza e a fome seja relativamente
baixo, uma expansão do programa para ter efeitos mais duradouros teria limites óbvios, além de
não ser desejável que uma parcela significativa da população em idade ativa se torne mendicante
institucional.
Portanto, por meio da meta 1B dos ODMs - “Alcançar o emprego pleno produtivo e o trabalho
decente para todos, incluindo mulheres e jovens” – o Brasil poderá dar um passo mais sólido
para erradicar de vez a pobreza e contribuir para o bem-estar social. Só uma população
emancipada poderá caminhar por suas próprias pernas e subir as escadas da ascensão social com
dignidade e com solidariedade social. A endogamia familiar não é uma boa política social. O
sistema de proteção social precisa fortalecer a exogamia familiar, incentivando, especialmente, as
mulheres e jovens a se interagirem com a sociedade, criando melhores condições de
reconhecimento coletivo e atuando mais decisivamente como trabalhadores que têm obrigações e
são sujeitos de direitos.
O pleno emprego e o trabalho decente devem não só fazer parte de qualquer política econômica
justa, mas também é um direito que já estava presente artigo 23° da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948: “Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho,
a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego. Todos
têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual”.
No Brasil, a Constituição Federal, no artigo 170, diz o seguinte: "A ordem econômica, fundada
na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)
III – função social da propriedade; (...) VIII – busca do pleno emprego”.
Porém o combate à pobreza e a busca do pleno emprego e do trabalho decente são objetivos
reduzidos em relação à pauta mais ampla aprovada nas Conferencias do ciclo social dos anos de
1990, organizadas pela ONU. Numa perspectiva mais ampla, além do pleno emprego e do
trabalho decente é preciso o reforço de políticas públicas de conciliação entre trabalho e família,
4
tais como: ampliação do ensino infantil e da pré-escola, escolas em tempo integral, lazer nas
escolas nos fins de semana, com educação física, políticas de transporte escolar, licença
maternidade, creche no local de trabalho e espaço para amamentação, jornadas de trabalho
flexíveis, etc. Segundo Bruschini e Ricoldi (2009)6:
“As políticas públicas de conciliação entre trabalho e família devem levar em
consideração não só facilidades familiares que possibilitem às mulheres as mesmas
oportunidades de trabalho existentes aos homens, mas também mecanismos de
responsabilização masculina nessas tarefas. É importante ressaltar que a Convenção
156, sobre Trabalhadores com Responsabilidades Familiares (OIT, 1981), complementad
pela Recomendação 123, sobre o Emprego de Mulheres com Responsabilidades
Familiares, traz uma importante contribuição ao tema, definindo o conceito de
responsabilidades familiares e sugerindo políticas” (p. 122)
Estas questões mostram que na relação entre pobreza, emprego e responsabilidades familiares o
tema de gênero não pode ser subsumido. Atualmente, a discussão sobre autonomia das mulheres
tem ficado reduzida ao debate sobre a titularidade do beneficiário. Mas a “lógica da eficiência”
feminina na aplicação dos recursos em benefício dos demais membros da família tem um caráter
instrumental que tende a reificar as desigualdades da divisão sexual do trabalho. O necessário,
entretanto, é romper com as segregações e as discriminações nos espaços públicos e privados.
Por fim, cabe considerar a crítica, feita pelo senador Cristovam Buarque, de que o governo Lula
tirou a educação do foco do PBF. Para ele, o programa Bolsa Escola, anterior ao PBF, estava
mais comprometido com o avanço educacional do país: "A educação das crianças é o único
caminho para a emancipação dessas famílias".7
Portanto, para a verdadeira erradicação da pobreza é preciso que se articule as políticas de
transferencia de renda, com a formação de capital social e com uma política de pleno emprego
produtivo e decente, articuladas com medidas de conciliação entre trabalho e família, justiça de
gênero e a universalização da educação brasileira (inclusive creche e educação infantil).
O PBF é uma boa política emergencial, mas é uma proteção social pela metade. Somente com
uma inserção produtiva e a participação efetiva na divisão social do trabalho a população pobre
deixará de ser tutelada, atingirá a maioridade na vida social e conquistará a emancipação
individual e familiar, produzindo os seus próprios meios de sustento, se constituindo como
sujeito autônomo e solidário.
6
BRUSCHINI, M.C., RICOLDI, A.M. Família e trabalho: difícil conciliação para mães trabalhadoras de baixa
renda. São Paulo, Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 136, pp 93-123, jan/abr 2009.
7
BUARQUE, Cristovam. O Bolsa-Família mantém ou erradica a pobreza? Jornal de Debates, 2007. Disponível em:
http://www1.jornaldedebates.com.br/debate/bolsafamilia-mantem-ou-erradica-pobreza
5
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