Aspectos Técnicos do PET e KtV Maria Claudia Cruz Andreoli

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A diálise peritoneal (DP) crônica pode ser prescrita das seguintes formas (Figura 1):
 Diálise peritoneal ambulatorial contínua (CAPD, por sua sigla em inglês):
habitualmente envolve a realização de três a cinco trocas de solução de diálise
por dia, de forma manual, de 2 l a 2,5 l cada, permanecendo cada troca cerca
de 4 a 8h na cavidade peritoneal.
 Diálise peritoneal automatizada (APD, por sua sigla em inglês): 3 a 6 trocas de
solução são realizadas através de uma cicladora automática durante a noite. A
APD pode ser dos seguintes tipos:
1. Diálise peritoneal contínua por cicladora (CCPD, por sua sigla em inglês): quando
o paciente, além de fazer as trocas noturnas com a cicladora, mantém a solução
de diálise na cavidade peritoneal durante o dia, podendo ou não fazer trocas
manuais no período diurno (cavidade úmida durante o dia).
2. Diálise peritoneal noturna intermitente (NIPD, por sua sigla em inglês): quando o
paciente, após fazer as trocas noturnas com a cicladora, permanece com a
cavidade peritoneal sem líquido durante o dia (cavidade seca durante o dia).
Para indicar a modalidade adequada para cada paciente, é preciso compreender alguns
aspectos do tratamento que discutiremos a seguir.
Teste do Equilíbrio Peritoneal
As características de transporte de solutos pela membrana peritoneal variam de um
paciente para o outro. Portanto, para definir sua categoria ou tipo de transporte
peritoneal, o paciente que inicia a DP deve ser submetido ao Teste do Equilíbrio
Peritoneal (PET, pela sua sigla em inglês), descrito inicialmente por Twardowski e
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cols1. O resultado deste teste é fundamental para guiar a prescrição da diálise, além de
auxiliar a análise de problemas como falência de ultrafiltração (UF), e para predizer
comprometimento mais severo da membrana peritoneal.
As características de transporte peritoneal para pequenos solutos sofrem mudanças
significativas durante o primeiro mês de tratamento, tornando-se estáveis depois desse
período. Portanto, o PET deve ser realizado após quatro a oito semanas em DP. 2
Por convenção, o teste envolve a infusão de 2 l de dialisato (D) a 2,5% de glicose na
cavidade peritoneal e coleta de amostras desse dialisato com 0, 2 e 4 h de
permanência na cavidade. Amostra de plasma (P) também é obtida no meio do período
(2 horas). De acordo com a relação D/P de creatinina na segunda e quarta horas, D/D0
de glicose no mesmo período e o volume de dialisato drenado após 4 horas, os
pacientes podem ser classificados em uma de quatro categorias de transporte
peritoneal (Figura 2 e Tabela 1).
Como a dosagem de creatinina em soluções com alta concentração de glicose é
superestimada, esta deve ser corrigida através da seguinte fórmula:
Creatinina corrigida (mg/dl) = Creatinina dosada (mg/dl) – glicose (mg/dl) × fator de
correção
Para obter-se o fator de correção, dosa-se a creatinina e a glicose numa bolsa virgem
de diálise a 2,5% e divide-se o valor obtido para a creatinina (mg/dl) pelo valor da
glicose desta bolsa (mg/dl).
Em pacientes diabéticos, para melhor acurácia do exame, a glicemia de jejum deve ser
inferior a 235 mg/dl.
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Em caso de peritonite, deve-se esperar ao menos um mês após a resolução da infecção
para realizar o PET porque a inflamação causa aumento no transporte de pequenos
solutos e redução da UF.
Na versão original do PET, descrita para pacientes em CAPD, recomenda-se que,
durante a noite que antecede o exame, a solução de DP deva permanecer na cavidade
abdominal por 8 a 12 horas. Entretanto, caso o paciente esteja em APD, aceita-se que
este realize a terapia habitual na noite que antecede o exame, desde que compareça à
unidade com a cavidade úmida e que este líquido esteja na cavidade há pelo menos 4560 minutos.2
Considerando-se o transporte peritoneal, deve-se observar:
 Altos transportadores: atingem rapidamente o equilíbrio D/P para creatinina e
ureia, mas absorvem rapidamente a glicose, com perda rápida do gradiente
osmótico. Beneficiam-se de trocas de curta duração, pois dissipam rapidamente
o gradiente osmótico e a UF fica comprometida com períodos longos de
permanência do líquido na cavidade. Via de regra, estes pacientes ficam mais
adequados em APD, especialmente se não tiverem mais função renal residual.
 Baixos transportadores: o equilíbrio D/P de creatinina é mais lento e o gradiente
osmótico permanece mais tempo. Necessitam de trocas com maior tempo de
permanência e maior volume por troca para obter adequada difusão dos solutos,
mas mantêm a UF sustentada por maior período de tempo.
O PET deve ser repetido anualmente ou quando suspeitar-se de alteração nas
características da membrana (por redução da UF ou por queda na depuração de
solutos).
Adequação da Diálise
Considera-se adequada a dose ou quantidade de diálise oferecida ao paciente abaixo da
qual ocorre um aumento da morbidade e da mortalidade em estudos epidemiológicos.
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A adequação da diálise se refere, classicamente, à quantificação da depuração de ureia
e creatinina pela diálise. Entretanto, as Diretrizes da Sociedade Internacional de
Diálise Peritoneal (ISPD, pela sua sigla em inglês) sugerem que a adequacidade da DP
deve ser interpretada considerando-se não apenas o clearance de pequenos solutos,
mas também uma análise clínica que avalie qualidade de vida, aspectos nutricionais,
estado volêmico com uma UF adequada, valores de hemoglobina, metabolismo de
cálcio e fósforo e controle de níveis pressóricos. 3
A ideia de que uma dose mínima de diálise deve ser ofertada teve início
a partir da publicação, em 1981, do National Cooperative Dialysis Study (NCDS), estudo
em hemodiálise que comparou prospectivamente grupos de pacientes com diferentes
prescrições de diálise, objetivando diferentes níveis de ureia. Este estudo teve que ser
interrompido precocemente, pois houve uma maior morbidade no grupo com ureia
elevada.4 Numa reanálise destes dados, publicada posteriormente, calculou-se o
clearance de ureia por sessão de hemodiálise e normatizou-se o valor pelo volume de
água corporal, introduzindo-se o conceito de Kt/V, onde K = clearance de ureia, t =
tempo de diálise e V = volume de distribuição de ureia (que representa o volume de
água corporal total). Os resultados mostraram que um Kt/V menor se correlacionava
com piores desfechos clínicos. 5
O princípio da quantificação da diálise pelo Kt/V foi aplicado também na DP com o
objetivo de investigar se a correlação entre clearance de pequenos solutos e sobrevida
seria observada nesta técnica.
Na DP, considera-se o clearance renal e o clearance peritoneal para obtenção,
respectivamente, do Kt/V renal e do Kt/V peritoneal. Estes, somados, resultam no
Kt/V total. Para obtenção destes valores é coletado o volume urinário de 24 horas e o
dialisato drenado em 24 horas. Os resultados obtidos em 24 horas são multiplicados por
7
para
obtenção
do
Kt/V
semanal,
que
é
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calculado
da
seguinte
forma:
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Kt total = Kt peritoneal + Kt renal
V
V
V
Kt peritoneal = volume de dialisato 24h (l) × ureia dialisato mg/dl × 7
ureia sérica mg/dl
Kt renal = volume de urina em 24 horas (l) × ureia urinária mg/dl × 7
ureia sérica mg/dl
V (litros) fórmula de Watson:
Homens = 2,447 – 0,09516 × idade (anos) + 0,1704 × altura (cm) + 0,3362 × peso (kg)
Mulheres = 2,097 + 0,1069 × altura (cm) + 0,2466 × peso (kg)
Observação: nos pacientes em CAPD, a amostra de sangue pode ser coletada em
qualquer momento do dia, pois os valores de ureia se mantêm relativamente estáveis;
nos pacientes em APD, a amostra de sangue deverá ser coletada durante o dia, num
momento equidistante entre uma sessão prévia e outra subsequente de APD, pois será
mais representativa de um momento de equilíbrio. 6
O estudo CANUSA, realizado no Canadá e nos Estados Unidos e publicado em 1996, foi o
primeiro a evidenciar de forma conclusiva a importância dos clearances na DP. Neste
estudo, com mais de 600 pacientes incidentes em CAPD acompanhados por dois anos,
observou-se que, para cada incremento de 0,1 no Kt/V semanal, havia uma redução no
risco relativo de óbito de 6%. 7 Posteriormente, as diretrizes da National Kidney
Foundation de 1997 (National Kidney Foundation Kidney Disease Outcomes Quality
Initiative [NKF KDOQI]) recomendaram que o Kt/V semanal mínimo deveria ser 2,0 na
CAPD; 2,1 na CCPD e 2,2 na NIPD. 8 Esses alvos, no entanto, foram revistos
posteriormente, como veremos a seguir.
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Uma reanálise dos dados do CANUSA, publicada em 2001, mostrou que havia uma
significativa contribuição da função renal residual nos resultados obtidos naquele
estudo. Foi observado que, a cada aumento de 5 l/semana no ritmo de filtração
glomerular, havia uma redução de 12% no risco de óbito dos pacientes, e que o
clearance peritoneal não foi preditor de mortalidade. 9 O ADEMEX, maior estudo
randomizado em DP, realizado no México com 965 pacientes e publicado em 2002,
investigou o efeito do aumento do clearance peritoneal nos desfechos clínicos. Não
houve diferença entre a sobrevida dos pacientes do grupo controle (Kt/V = 1,62) e os
do grupo intervenção (Kt/V = 2,13). 10 Resultados semelhantes foram encontrados em
estudo desenvolvido em Hong Kong e publicado em 2003. Nele, os pacientes foram
randomizados em 3 grupos com os seguintes Kt/V alvos: 1,5 a 1,7; 1,7 a 2,0 e >2,0.
Embora os pacientes com Kt/V <1,7 tenham evoluído com mais problemas clínicos, não
houve evidência de melhores desfechos com maior clearance peritoneal.11
Portanto, diante da falta de evidência de benefícios com maiores valores de clearance
peritoneal, as últimas diretrizes de adequação em DP da NKF KDOQUI de 2006 foram
alteradas, passando a recomendar-se que o Kt/V semanal alvo mínimo seja de 1,7,
independentemente da modalidade de DP. 12 Nos pacientes que apresentam função
renal residual, a dose mínima de Kt/V total (peritoneal + renal) deve ser de pelo menos
1,7 por semana, e deve ser avaliada no final do primeiro mês de DP e, posteriormente,
a cada quatro meses. Quando a função renal residual é significativa (o que é
considerado quando diurese >100 ml em 24 horas) e está sendo considerada para
obtenção do Kt/V alvo, esta deve ser reavaliada a cada dois meses (avaliação do
volume urinário e do clearance de solutos). Para pacientes sem função renal residual, a
dose de diálise mínima oferecida deve corresponder a um Kt/V peritoneal de ao menos
1,7 por semana. A dose deve ser medida no primeiro mês da terapia e,
subsequentemente, a cada quatro meses. 12 As diretrizes europeias (European Best
Practice Guidelines for Peritoneal Dialysis) e da ISPD têm alvos semelhantes. 3,13
Chama a atenção o fato de os alvos de Kt/V na DP serem inferiores aos da hemodiálise,
onde se recomenda um Kt/V mínimo de 1,2 por sessão e, portanto, um Kt/V semanal
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de 3,6. A explicação para alvos tão distintos entre as terapias resultarem em desfechos
clínicos semelhantes é dada pela hipótese do pico de concentração. 14 Segundo esta
teoria, a toxicidade da ureia é dada pelo seu valor de pico, e não pelo seus níveis
médios; como a hemodiálise é uma terapia intermitente, são necessários maiores
valores de Kt/V para evitar a ocorrência destes picos. Além disso, o clearance ofertado
continuamente é mais eficiente do que a mesma quantidade de clearance ofertada de
forma intermitente.
Em nosso serviço, nos pacientes aptos tanto à CAPD quanto à APD, a escolha entre as
duas modalidades como terapia inicial tem sido feita pelo próprio paciente, de acordo
com a sua preferência e melhor adequação ao seu estilo de vida. Posteriormente, de
acordo com os resultados do PET e do Kt/V, são realizados os ajustes necessários.
Na admissão de um paciente em DP, é fundamental estabelecer o nível da função renal
residual, já que esta irá guiar sua prescrição inicial. Caso ela seja significativa, uma
menor dose de diálise poderá ser ofertada com relativa segurança. Um paciente com
maior função renal pode ser tratado, por exemplo, com terapias intermitentes, no caso
de APD, ou com apenas três trocas ao dia na CAPD; por outro lado, em pacientes com
função renal desprezível, o ideal são as modalidades contínuas de APD ou a prescrição
padrão de quatro trocas ao dia na CAPD. Esta prescrição inicial será reavaliada após o
resultado do PET e do Kt/V (antes de conhecer o resultado do PET, para fins de início
de terapia, considera-se empiricamente o paciente como sendo médio-transportador
de solutos, que é a categoria mais frequente na DP). 15 Nos pacientes em CAPD que não
atingiram o Kt/V, o clearance peritoneal pode ser melhorado com o aumento do
número de trocas ou do volume de infusão. Nos pacientes em APD, pode-se
incrementar a dose de diálise aumentando o volume de infusão ou do tempo de
terapia, alterando o número de trocas, introduzindo a cavidade úmida durante o dia ou
mesmo acrescentando-se uma troca manual durante o dia. Ao fazer essas mudanças, é
preciso sempre lembrar que: 1) quanto maior o paciente, maior deve ser o volume de
infusão; 2) quanto mais permeável a membrana (de acordo com o resultado do PET),
menor deve ser a duração de cada troca.
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Para finalizar, é importante ressaltar que o paciente adequadamente dialisado deve
estar também euvolêmico. Portanto, da mesma forma que o clearance de solutos, o
volume de UF deve receber atenção, especialmente nos pacientes anúricos. No estudo
prospectivo EAPOS com pacientes anúricos em APD, publicado em 2003, UF >750 ml/dia
foi preditora de maior sobrevida. 16 Da mesma forma, no estudo NECOSAD, publicado
em 2005 com pacientes anúricos em DP, houve uma correlação positiva entre valores
de UF e sobrevida. 17 As diretrizes europeias de 2005 recomendam que pacientes
anúricos tenham como alvo UF >1 l/dia.13 A ISPD, por outro lado, não faz referência a
um valor alvo específico de UF. 3 De qualquer forma, a manutenção do peso seco
através da restrição da ingesta hídrica e de sal, da apropriada prescrição da DP
(considerando-se a categoria de transporte da membrana) e da escolha correta da
tonicidade das soluções para UF faz parte da avaliação da adequação da DP e deve ser
continuamente monitorada.
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Figura 1. Modalidades de diálise peritoneal
CAPD: Diálise peritoneal ambulatorial contínua; APD: Diálise peritoneal automática;
NIPD: Diálise peritoneal noturna intermitente; CCPD: Diálise peritoneal contínua por
cicladora.
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Figura 2. Curvas do equilíbrio peritoneal
Fonte: Twardowski ZJ, Nolph KD, Khanna R, et al. Peritoneal equilibration test. Perit
Dial Bull 1987;7:138-47
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Tabela 1. Classificação do tipo de transporte peritoneal pelo PET
Categoria
D/P creatinina
D/D0 glicose
Volume drenado 4 h
Alto transportador
>0,81
<0,26
1580 – 2084 ml
0,65 – 0,81
0,26 – 0,38
2085 – 2368 ml
0,50 – 0,64
0,38 – 0,49
2369 – 2650 ml
<0,50
>0,49
2651 – 3226 ml
Médio alto
transportador
Médio baixo
transportador
Baixo transportador
D/P creatinina: relação entre a creatinina do dialisato após 4 horas (D) e a creatinina
plasmática (P).
D/D0 glicose: relação entre a concentração de glicose no dialisato após 4 horas (D) e no
tempo zero (D0).
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