1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 A MANIPULAÇÃO DO DISCURSO RELATADO EM TEXTOS JORNALÍSTICOS Maria Estela Maiello MODENA (PUC/SP) Introdução O presente artigo tem por objetivo verificar as estratégias lingüísticas utilizadas pelos jornais diários ao relatarem opiniões e discursos de terceiros. Tal como defende Marcuschi (2007), partimos da premissa de que não é possível apresentar ou citar o discurso de alguém sem manipular, sob a forma de interpretação, esse discurso. Em função de tal premissa, buscamos explicitar o modo como a manipulação do discurso alheio relatado se manifesta, em textos jornalísticos, por meio da seleção das informações reproduzidas e das expressões empregadas para introduzilas (verbos, nominalizações, construções adverbiais). Em nosso estudo, consideramos que, mais do que uma escolha aleatória ou um simples recurso estilístico, a seleção de informações e de expressões introdutórias, já é, na verdade, fruto de uma interpretação realizada pelo jornalista. Julgamos que, longe de ser inofensiva, essa seleção aja sobre o conteúdo das opiniões e dos discursos relatados, revelando posições interpretativas tomadas pelo jornalista e direcionando, por conseqüência, a interpretação dos leitores. Para a análise realizada, dois textos jornalísticos foram examinados1. Pertencentes a jornais distintos ― Folha de S. Paulo (FSP) e O Estado de S. Paulo (OESP) ― ambos datam do dia 1º de maio de 2006 e trazem o pronunciamento do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em homenagem ao Dia dos Trabalhadores, como tema. Além desses textos, contamos, ainda, com o acesso ao pronunciamento original e integral do Presidente2, o que se revelou como um importante argumento para a escolha de tais textos para a composição de nossa análise. 1. O discurso relatado e a seleção das informações reproduzidas Segundo Maingueneau (2005, p.139), o discurso relatado “constitui uma enunciação sobre outra enunciação; põem-se em relação dois acontecimentos enunciativos, sendo a enunciação citada objeto da enunciação citante.” Charaudeau (2006, p.161-2), por seu turno, afirma: O discurso relatado é o ato de enunciação pelo qual um locutor (Loc/r) relata (Dr) o que foi dito (Do) por um outro locutor (Loc/o), dirigindose a um interlocutor (Interloc/r) que, em princípio, não é o interlocutor de origem (Interloc/o). A isso é preciso acrescentar que o dito, o locutor e o interlocutor de origem (Do, Loc/o, e Interloc/o) encontramse num espaço-tempo (Eo-To) diferente daquele (Er-Tr) do dito relatado (Dr), do locutor-relator (Loc/r) e do interlocutor final (Interloc/r). Charaudeau esquematiza esse mecanismo no esquema apresentado a seguir: Eo/To Er/Tr [Loc/o → Do → Interloc/o] ------→ [Loc/r → Dr → Interloc/r] 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 Considerando-se os textos jornalísticos de que estamos tratando, os elementos do referido esquema se preenchem da seguinte forma: Texto FSP Eo = cadeia de rádio e televisão To = dia 30 de abril de 2006 Loc/o = Presidente Lula Do = Pronunciamento em referência ao Dia dos Trabalhadores Interloc/o = trabalhadores do Brasil Er = jornal FSP Tr = dia 01 de maio de 2006 Loc/r = jornalista responsável pela matéria (não identificado) Dr = discurso do jornalista sobre o pronunciamento do Presidente Interloc/r = leitores do jornal FSP Texto OESP Eo = cadeia de rádio e televisão To = dia 30 de abril de 2006 Loc/o = Presidente Lula Do = Pronunciamento em referência ao Dia dos Trabalhadores Interloc/o = trabalhadores do Brasil Er = jornal OESP Tr = dia 01 de maio de 2006 Loc/r = jornalista responsável pela matéria (Denise Madueño) Dr = discurso do jornalista sobre o pronunciamento do Presidente Interloc/r = leitores do jornal OESP Em ambos os textos, todos os elementos acima apresentados são perfeitamente identificáveis3. De acordo com Maingueneau (op.cit, p.140), a explicitação dos elementos relacionados ao discurso de origem fica obrigatoriamente a cargo do discurso citante, ou seja, do discurso no qual se insere o discurso relatado. Desse modo, o grau de precisão na identificação desses elementos pode variar muito de um texto para outro. A esse respeito, Charaudeau alerta: Quanto mais o locutor que relata identifica (ainda que seja necessário considerar o modo de identificação), mais ele produz uma garantia de autenticidade ao que foi dito. (op.cit., p.164) Referentemente a essa questão, pode-se afirmar que os dois textos analisados asseguram um alto grau de autenticidade ao dito relatado4, uma vez que identificam de forma precisa todos os elementos que se relacionam a esse dito. Contudo, quanto ao problema da seleção das informações reproduzidas, ambos os textos garantem para si um menor grau de seriedade, dado que reproduzem apenas parcialmente o dito relatado (cf.ibid., p.171), no caso: o pronunciamento do Presidente em referência ao Dia dos Trabalhadores. A reprodução parcial apresenta o dito relatado de maneira truncada, fragmentada, o que, para Charaudeau, produz um efeito de subjetivação na medida em que apenas uma parte do dito é revelada (cf. ibid., p.164). Tal fato, além de permitir que o dito de origem seja reorganizado segundo uma nova lógica, a lógica do discurso no qual é inserido, possibilita igualmente que aspectos desse dito sejam valorizados, uma vez que revelados, enquanto outros sejam absolutamente desprezados, uma vez que omitidos. Procede-se, dessa forma, a uma manipulação do discurso relatado. Nos textos de que tratamos, essa manipulação do discurso relatado por meio da seleção e da organização das informações reproduzidas fica bastante evidente na composição de suas manchetes: 136 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 (1) FSP: Lula usa TV para falar de petróleo e salário mínimo (2) OESP: Lula vai à TV e faz auto-elogio. As manchetes têm uma função catafórica em relação ao texto que encabeçam, já que antecipam informações que serão posteriormente desenvolvidas no corpo da notícia. Pelo destaque que lhes é conferido, mais do que, normalmente, resumir os textos que as seguirão, as manchetes, freqüentemente, pré-determinam a interpretação desses textos. Daí, o fato de a seleção da informação que comporá a manchete ser tão relevante. Pelos exemplos mostrados, verifica-se que os dois jornais optaram por apresentar em suas manchetes informações a propósito do espaço de veiculação e do assunto central do pronunciamento do Presidente. Porém, ainda que partindo de uma mesma seleção de referentes (espaço de veiculação e assunto central), os dois jornais preenchem com informações distintas ou distintamente tratadas esses referentes. Para FSP, no que diz respeito às condições de produção do pronunciamento, o Presidente Lula usa a TV, enquanto que, para OESP, o Presidente Lula vai à TV. Se OESP optou por um verbo mais neutro ao fazer referência ao veículo de comunicação utilizado pelo Presidente, a FSP não fez a mesma opção. Ao dizer Lula usa TV para falar de petróleo e salário mínimo, a FSP não apenas se refere ao fato de o Presidente ter ido à televisão para fazer seu pronunciamento, mas insinua, pela escolha do verbo usar, que o Presidente Lula tirou proveito da televisão ― meio de comunicação em massa que é, no Brasil, o de maior poder de alcance, ou seja, o mais utilizado/visto pelos brasileiros ―, para falar sobre petróleo e salário mínimo. Aqui, com relação à escolha das informações reproduzidas, é preciso que se diga ainda que, em suas manchetes, ambos os jornais apenas mencionam a televisão como espaço de veiculação do pronunciamento, quando, na verdade, este foi divulgado em cadeia de rádio e televisão5. A seleção da informação apresentada coloca em evidência o veículo de comunicação que convém aos jornais enfatizar em função da idéia global que pretendem transmitir em suas manchetes. Se, ao invés de dizer: Lula usa TV para falar de petróleo e salário mínimo (FSP) ou Lula vai à TV e faz auto-elogio (OESP), os jornais tivessem afirmado, respectivamente: Lula usa rádio para falar de petróleo e salário mínimo e Lula vai ao rádio e faz auto-elogio, certamente, os efeitos de sentido alcançados teriam sido outros. Em verdade, são os dois jornais que “tiram proveito” da televisão e do que ela representa para os brasileiros para comporem suas manchetes segundo seus interesses, procedendo, ambos, a uma manipulação do discurso relatado. Referentemente ao assunto central do pronunciamento, os dois jornais são divergentes: para FSP, Lula fala de petróleo e salário mínimo e, para OESP, Lula faz auto-elogio. No primeiro caso, tem-se um verbo relativamente neutro, falar, introduzindo aquilo que teria sido o objeto central do discurso do Presidente: petróleo e salário mínimo. No segundo, vê-se todo o pronunciamento de Lula ser resumido pela nominalização auto-elogio. Considerando-se, então, que, em seu pronunciamento, o Presidente Lula abordou diversos temas, resumi-los, todos, a apenas petróleo e salário mínimo (FSP) ou classificá-los como sendo um auto-elogio (OESP) revela, pois, que, em ambos os casos, aquilo que se apresenta como assunto central do pronunciamento do Presidente não é, senão, fruto de uma interpretação promovida pelos jornalistas responsáveis pelos textos. 137 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 Com relação ao assunto central do pronunciamento e a questão da interpretação, é ainda interessante dizer que, se perguntássemos ao próprio Presidente Lula qual foi o assunto por ele tratado em seu discurso, é possível que ele respondesse: o Dia dos Trabalhadores e a importância dessas pessoas para a nossa nação. 2. As expressões introdutórias do discurso relatado De acordo com Marcuschi (2007, p.147-50), são quatro as formas mais freqüentes de se relatar a opinião ou o discurso de alguém: a) mediante o uso de um verbo: introduz-se a opinião por meio de um verbo cujo sentido “antecipa o caráter geral da opinião relatada.” (p.147) Encontram-se, dentre muitos outros, verbos como: dizer, declarar, afirmar, indagar, retrucar, acreditar, pensar, acusar, pedir, perguntar etc. b) mediante o uso de uma nominalização: a opinião é introduzida pela nominalização de um verbo. Nem todos os verbos podem, contudo, ser nominalizados. As nominalizações mais freqüentes são: declaração, confirmação, denúncia, elogio, crítica, entre outras. c) mediante o uso de construções adverbiais: “aparentemente neutra, esta modalidade introduz o discurso literalmente ou parafraseado.” (p.148) Aqui, uma vez que tais construções permitem atribuir por completo a responsabilidade do dito ao próprio autor da opinião citada, Marcuschi faz um alerta sobre a possibilidade de se “parafrasear a opinião de alguém e apresentá-la como literalmente dada.” (p.148) Dentre as expressões adverbiais mais freqüentes estão: segundo fulano, de acordo com beltrano, para cicrano etc. d) mediante o uso de dois pontos ou de inserção aspeada no texto: introduzse a opinião de modo direto; a opinião não vem acompanhada de nenhuma expressão introdutória, ela é simples e diretamente inserida no corpo do texto ou da notícia. À parte dessas formas de se relatar, Marcuschi (op.cit.) afirma ser a paráfrase, com efeito, o recurso mais comumente utilizado para reproduzir opiniões e discursos. Ora, para que se possa formular uma paráfrase, é preciso que, primeiro, proceda-se a uma compreensão daquilo que se vai relatar/parafrasear e, inevitavelmente, tal compreensão permeia-se por uma interpretação. Desse modo, torna-se difícil de acreditar que se possa reproduzir a opinião de alguém com neutralidade; em outras palavras, conforme já argumentamos, torna-se difícil de acreditar que se possa relatar um discurso sem manipulá-lo. A interpretação6 parece, pois, revelar-se intrínseca ao ato de relatar opiniões e discursos que já foram expressos por outrem. Com relação aos textos de que estamos tratando, desconsiderando-se as manchetes e a linha fina, na FSP, foram encontrados 11 verbos, 3 nominalizações e 1 construção adverbial introduzindo a fala do Presidente e 1 verbo referindo-se à fala de uma outra organização do governo. Em OESP, por sua vez, foram encontrados 11 verbos e 2 nominalizações. 138 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 Dada a maior ocorrência de verbos do que de nominalizações e de expressões adverbiais, é, então, essencialmente, a eles, que voltamos nossa análise. Os verbos que apareceram em um e outro texto são: Texto FSP: assumir (não assumiu); ostentar (ostentar); acenar (acenar); destacar (destacou); dizer (disse que / disse que / disse); sugerir (sugeriu / sugeriu); discursar (discursou); indicar (indicou); exaltar (exaltou). Texto OESP: saudar (saudar); dizer (disse que / disse que / disse); afirmar (afirmou que / afirmou que); atribuir (atribuiu); avaliar (avaliou); citar (citou); garantir (garantiu); prometer (prometeu). Embora os dois textos tratem do mesmo assunto, verifica-se que apenas um verbo é comum a ambos: o verbo dizer, considerado por Marcuschi (op.cit.) um verbo “coringa”. Em cada texto, ele aparece três vezes, com ocorrências idênticas, isto é: disse que, com duas ocorrências, e disse, com uma ocorrência em cada um deles. De resto, todas as citações feitas, mesmo as absolutamente idênticas e comuns aos dois textos, são introduzidas ou pontuadas por verbos distintos. Vejamos alguns exemplos7: (3) FSP: Segundo o presidente, o país tem muitos desafios ainda. Lula sugeriu a dificuldade de realizar tudo o que é necessário em um único mandato. “É impossível fazer tudo isso em um prazo muito curto, mas em 39 meses de governo temos avançado bastante nessa direção”, discursou. (4) OESP: Pregando otimismo, ele disse que esse avanço mostra que o País tem condições de vencer outras batalhas com esforço e determinação. “É impossível fazer tudo isso em um prazo muito curto, mas em 39 meses de governo temos avançado bastante nessa direção”, avaliou. (5) LULA: Se o Brasil venceu uma luta tão difícil, tem todas as condições de vencer muitas outras batalhas. Com esforço e determinação, poderemos, sem dúvida, conseguir melhorar ainda mais a qualidade da educação, da saúde, e de várias outras áreas, transformando por completo a vida das famílias brasileiras. É impossível fazer tudo isso em um prazo muito curto, mas em 39 meses de governo temos avançado bastante nesta direção. Nesses exemplos, encontra-se a mesma opinião ― É impossível fazer tudo isso em um prazo muito curto, mas em 39 meses de governo temos avançado bastante nessa direção ―, citada, pelos dois jornais, de modo direto, exatamente como foi dita pelo Presidente. Porém, em cada um dos textos, essa opinião, ainda que idêntica, ganha valores diferentes, visto que é precedida por discursos indiretos distintos e, pontuada, ao final, por verbos também distintos. No pronunciamento de Lula, pode-se dizer que a citação acima mencionada funciona, sobretudo, como uma justificativa: tanto com relação ao que já foi feito em seu governo, quanto com relação ao que ainda se pode fazer. Contudo, para OESP, a referida citação de Lula, uma vez que pontuada pelo verbo avaliar ― no caso, avaliou ―, configura-se como uma avaliação, como um 139 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 balanço dos 39 meses já passados de seu governo. Pelo discurso indireto que a precede ― Pregando otimismo, ele disse que esse avanço mostra que o País tem condições de vencer outras batalhas com esforço e determinação ―, atribui-se, ainda, um caráter otimista a tal avaliação. A expressão pregando otimismo, que funciona como uma locução adverbial de modo, age sobre o sentido do verbo dizer, que a sucede, tirandolhe a neutralidade. Assim, nesse exemplo, para OESP, Lula não apenas disse que, mas, ao dizer, pregou otimismo, dando um caráter positivo a sua própria opinião. A avaliação que complementa e dá seqüência a esse discurso indireto vem, pois, “contaminada” pelo caráter positivo e otimista apontado na citação precedente. Desse modo, pode-se dizer que, para OESP, Lula não apenas faz uma avaliação, mas faz, sobretudo, uma avaliação otimista de seu próprio governo, o que indica certa parcialidade do Presidente ao manifestar sua opinião/avaliação com relação a seu trabalho. No texto da FSP, a referida citação direta ― É impossível fazer tudo isso em um prazo muito curto, mas em 39 meses de governo temos avançado bastante nessa direção ― ganha outro valor. Nesse jornal, verifica-se um grande esforço em se atribuir toda a responsabilidade do que está sendo dito/citado única e exclusivamente ao Presidente Lula, numa tentativa de se criar, como será visto a seguir, uma imagem negativa das falas do Presidente. Nesse artigo, primeiro, tem-se o uso da construção adverbial ― segundo o presidente ―, que deixa a cargo de Lula toda a responsabilidade sobre o que é dito em seguida. Depois, tem-se o verbo sugerir ― sugeriu ―, classificado por Marcuschi (op.cit.) como um verbo fraco, que indica certa imprecisão. Em função disso, no caso tratado, esse verbo não só não transforma a fala do Presidente em um “fato consumado”, como também não a legitima dentro daquilo que Marcuschi denomina discurso do poder8. Segundo o lingüista, quando verbos e expressões da esfera subjetiva ― caso do exemplo citado ― introduzem um discurso oficial é porque o representante do governo em questão encontra-se em posição desvantajosa. Por último, no texto desse jornal, tem-se, finalmente, a citação direta da fala de Lula, pontuada, ao final, pelo verbo discursou. Pela seleção desse verbo, fica nítido o trabalho de “depreciação” da fala do Presidente. De emprego claramente irônico, o verbo discursar ganha, nesse excerto, o sentido pejorativo atribuído a tal verbo no contexto político brasileiro; ou seja, nesse caso, discursar pode tanto querer dizer falar vazio, como falar inverdades para valorizar-se, para fazer propaganda política. No exemplo (3) da FSP, a citação direta da fala de Lula não funciona como um elemento novo ou como um complemento do que estava sendo dito ― o que se pode ver, por exemplo, no texto de OESP. Na FSP, a citação direta da fala do Presidente funciona como um “trocando em miúdos” do que já havia sido dito em forma de discurso indireto; ela é, assim, antes de tudo, utilizada para comprovar/ilustrar as citações indiretas precedentes. Como ela é composta das justas palavras de Lula, por meio de seu uso, o jornalista esquiva-se da responsabilidade do que está apresentando em discurso indireto; é como se o jornalista dissesse: “se você não está acreditando que o Presidente disse isso, comprove você mesmo pelas palavras transcritas ipsis litteris a seguir”. O mesmo procedimento pode ser percebido no próximo exemplo: (6) FSP: Diferentemente do que sugeriu a última ata do Copom (Comitê de Política Monetária do Banco Central), Lula indicou a manutenção do ritmo de queda das taxas de juros depois de sete meses consecutivos. 140 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 “Depois de garantirmos a estabilidade e conseguirmos o mais baixo índice de inflação dos últimos tempos, estamos agora reduzindo os juros em ritmo constante e sem sobressaltos.” Aqui, depois de insinuar, em discurso indireto, a incoerência entre o que Lula diz e o que demonstram documentos de órgãos oficiais do governo ― Diferentemente do que sugeriu a última ata do Copom (...), Lula indicou... ―, a FSP coloca o discurso direto do Presidente ― fonte da paráfrase feita no discurso indireto precedente ―, para atribuir a Lula a responsabilidade do dito. Novamente, tem-se a sensação de que o jornalista está dizendo: “se você não acredita no que eu estou lhe contando, comprove você mesmo pela transcrição a seguir”. Essa mesma opinião do Presidente com relação às taxas de juros é apresentada de modo bastante diverso em OESP: (7) OESP: Lula afirmou que a tendência de queda da taxa de juros vai continuar para estimular a produção e melhorar o crescimento. Para OESP, Lula afirma e não apenas indica, como pretende a FSP, a manutenção da queda dos juros, o que, claramente, garante um peso muito maior à fala do Presidente. Dizer: Lula afirmou, concede uma dimensão de força e de certeza com relação ao que foi dito; ao passo que dizer: Lula indicou, coloca certa expectativa e uma boa dose de incerteza com relação ao que está sendo proposto na fala. Observando-se o pronunciamento de Lula: (8) LULA: Depois de garantirmos a estabilidade, e conseguirmos o mais baixo índice de inflação dos últimos tempos, estamos agora reduzindo os juros em ritmo constante e sem sobressaltos. Este mês, por exemplo, o banco central aplicou a sétima baixa consecutiva na taxa Selic. E esta tendência vai continuar estimulando a produção e melhorando o nosso índice de crescimento. vê-se, porém, que, em verdade, a menção à queda das taxas de juros funciona, sobretudo, como uma constatação, que é confirmada, em seguida, pelo exemplo da sétima baixa consecutiva na taxa Selic. Continuando nos exemplos, tem-se a referência à questão das conquistas do governo Lula: (9) FSP: Em tom de campanha eleitoral, Lula exaltou feitos de sua administração. Disse que o preço dos alimentos está mais baixo, que o trabalhador come melhor e “pode comprar o material de construção para melhorar sua casa”. (10) OESP: Como avanços, o presidente citou que 3 milhões de pessoas foram tiradas da miséria, foram criados quase 4 milhões de empregos com carteira assinada no setor privado e o Bolsa Família está acabando com a fome e a desnutrição de 36 milhões de pessoas. No excerto da FSP, encontram-se dois verbos introdutores de opinião: exaltar ― no caso, exaltou ― e dizer ― no caso, disse que. O primeiro verbo, indicador de força de argumento9, coloca os feitos da administração de Lula como tendo sido um dos 141 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 pontos de destaque do pronunciamento do Presidente; o segundo, relativamente neutro, vem, contudo, “contaminado” pela locução adverbial de modo que introduz toda a citação: em tom de campanha eleitoral. Essa locução, vale dizer, não modifica apenas o sentido do verbo dizer, mas modifica também o sentido do verbo exaltar e modifica, ainda, o sentido de todo o excerto. Em menção direta ao caráter de campanha eleitoral do pronunciamento de Lula, a FSP apresenta, em tom irônico, os feitos do governo do Presidente como se eles tivessem sido, não mencionados, mas, exaltados por Lula somente para fazer propaganda eleitoral. Para igualmente referir-se às conquistas do governo Lula, OESP escolhe um verbo muito mais neutro do que o escolhido pela FSP; o verbo escolhido é citar ― citou que ―, verbo esse que, normalmente, introduz uma seqüência de exemplos, tal como aparece no texto. Além do verbo mais neutro, OESP não usa nenhum modificador do tipo em tom de campanha eleitoral, como foi utilizado pela FSP. Não se pode ignorar, também, que tanto a seleção lexical para se fazer referência às conquistas do governo, quanto a própria seleção dos exemplos dessas conquistas são bastante diferentes nos dois artigos, evidenciando, assim, mais uma vez, as distintas interpretações realizadas pelos jornalistas de cada um dos jornais. Para FSP, as conquistas do governo Lula são, em verdade, feitos de sua administração; para OESP, tais conquistas são avanços. O termo feitos é um termo neutro ― que não indica progressos, nem retrocessos ― e, por isso mesmo, adequado aos objetivos da FSP, que vai deixar por conta da locução adverbial, em tom de campanha eleitoral, e da seleção de exemplos apresentados a interpretação a ser feita a respeito desses feitos. Basta que se examinem os exemplos dados para que se diga se tais feitos foram bons ou ruins, e, pelo que foi escolhido, fica difícil não se chegar ao que a FSP deseja: a desqualificação do governo Lula. O termo avanços, em compensação, atribui uma qualidade às conquistas de Lula, dando-lhes um valor positivo. Além disso, ao citar tais avanços, OESP preferiu pegar os exemplos mais objetivos a que o Presidente fez referência, ou seja, preferiu aqueles exemplos que vêm especificados com valores reais, que, de certa forma, comprovam esses avanços: 3 milhões de pessoas foram tiradas da miséria, foram criados quase 4 milhões de empregos com carteira assinada no setor privado e o Bolsa Família está acabando com a fome e a desnutrição de 36 milhões de pessoas. Além disso, a seqüência que se segue ao excerto acima citado de OESP (10) termina, também, por colaborar para a legitimação do discurso do Presidente, atribuindo-lhe status de fato consumado: (11) OESP: “Muita coisa ainda precisa melhorar no País, mas nos 3 últimos anos a balança se inverteu em favor do brasileiro comum, em especial do trabalhador”, garantiu. “Tudo isso não aconteceu por acaso, mas porque temos um projeto de Nação e um plano de governo. Porque sabemos o que queremos e para onde estamos caminhando”. Ao contrário, a seqüência que se segue ao excerto da FSP (9) continua a colaborar com a desqualificação do Presidente. A FSP termina seu artigo da seguinte forma: (12) FSP: Sobre o salário mínimo, disse: “sei que o valor ainda está longe do ideal, mas este ano já foi possível dar um aumento melhor”. 142 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 Aqui, mais uma vez, é como se o jornalista dissesse: “você pode não acreditar, mas foi exatamente isso que disse o Presidente, comprove você mesmo pelas palavras transcritas a seguir”. Nesse exemplo, a neutralidade do verbo dizer desaparece, uma vez que já está “contaminado” pelo sentido do parágrafo anterior (9), em que se evoca o caráter de campanha eleitoral do pronunciamento do Presidente. OESP termina seu artigo de modo diferente: (13) OESP: Ele prometeu investir no setor produtivo e no social. “Vamos dar ainda mais ênfase à educação e ao desenvolvimento tecnológico. E continuar agindo com responsabilidade, porém com muita sensibilidade”, disse. “Hoje podemos investir mais porque criamos as condições para isso. Mas sem comprometer o equilíbrio fiscal e o controle da inflação”. Na parte final do texto de OESP, tem-se a opinião do Presidente, em discurso indireto, interpretada como uma promessa e seguida por duas citações diretas empregadas, respectivamente, para ilustrar/exemplificar e para justificar/explicar o que foi citado no discurso indireto precedente. Para encerrar a presente análise, é importante dizer que, ao final de seu artigo, o jornal OESP indica um endereço eletrônico em que se pode encontrar o pronunciamento original do Presidente Lula transcrito na íntegra. Acredita-se que tal atitude revela uma postura consciente em relação ao que se está citando e em relação à impossibilidade de fazê-lo de modo absolutamente imparcial. Considerações finais Pela análise realizada, acreditamos ter-se comprovado que, mais do que um mero recurso estilístico, a seleção das informações reproduzidas e das expressões empregadas para introduzi-las é fruto de uma interpretação prévia realizada pelo jornalista, que, ao fazê-la, não importa com que intenções ― boas ou más ―, altera sensivelmente o discurso original do autor a que se faz referência. A comparação dos textos selecionados deixou evidentes as diferenças e, até, em alguns casos, as divergências interpretativas presentes nos dois artigos. Cada um a seu modo, os dois artigos dos jornais organizam o pronunciamento do Presidente segundo suas necessidades e intenções. Pode-se observar que nem a seqüência das citações corresponde nos dois textos jornalísticos, nem elas são correspondentes à ordem das falas do Presidente no pronunciamento original. A própria estruturação da seqüência de citações e o encadeamento das opiniões do Presidente já são, acredita-se, previamente pensados e visam a uma melhor apresentação das interpretações realizadas pelos jornalistas. Longe de ser ingênua, a escolha de cada uma das citações e de cada uma das palavras selecionadas para introduzi-las ou pontuá-las ― e, aqui, enfatiza-se o papel dos verbos introdutores de opinião ― é sempre muito bem pensada. Cabe, porém, ao bom leitor observar, e/ou desvendar, que tipo de interpretação, ou de manipulação, está por trás dessas escolhas que os jornalistas fazem e que tanto insistem em dizer objetivas. 143 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 Referências CHARAUDEAU, P. O discurso das mídias. Trad. de Angela M. S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2006. LULA usa TV para falar de petróleo e salário mínimo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 1º maio 2006. MADUEÑO, D. Lula vai à TV e faz auto-elogio. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 1º maio 2006. MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Trad. de Cecília P. de Souza-e-Silva e Décio Rocha. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2005. MARCUSCHI, L. A. A ação dos verbos introdutores de opinião. In: MARCUSCHI, L. A. Fenômenos da linguagem: reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007, p.146-168. (Série Dispersos) PRONUNCIAMENTO original do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o Dia dos Trabalhadores. O Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br//ultimas/nacional/noticias>. Acesso em: 09 maio 2006. NOTAS 1 Esses dois textos estão integralmente apresentados na parte final deste artigo. Pronunciamento retirado do site: http://www.estadao.com.br/ultimas/nacional/noticias. Acesso em: 09 maio 2006. Em decorrência da extensão do pronunciamento e dos limites deste artigo, não apresentaremos, aqui, o pronunciamento em sua forma integral. Este, porém, pode ser consultado no site indicado. 3 A única exceção diz respeito ao jornalista responsável pela matéria da FSP. Ele não é identificado individualmente, tendo-se apenas uma referência à origem de onde provém esse enunciador: DA SUCURSAL EM BRASÍLIA. Aqui, o jornal como um todo acaba se responsabilizando pela matéria. 4 As expressões discurso relatado e dito relatado são, aqui, usadas equivalentemente, conforme o faz Charaudeau (2006) em seu texto que nos serve de referência. 5 É preciso ressaltar, porém, que a informação de que o pronunciamento foi veiculado em cadeia de rádio e televisão consta no corpo da notícia dos dois jornais. 6 Para Marcuschi (2007), o termo “interpretação”, dentro do contexto do relato de opiniões, deve ser compreendido tomando-se por base três aspectos possíveis: a) interpretação explícita: comentário(s) feito(s), de modo explícito, pelo redator da notícia; b) interpretação implícita: “feita pela seleção dos verbos que introduzem as opiniões ou por expressões equivalentes, sem um comentário adicional.” (p.150); c) interpretação pela seleção: feita pela seleção daquilo que é/será informado: o simples “fato de se prestar uma e não outra parte das opiniões de alguém já é uma forma de interpretar o discurso através da omissão.” (p.151) Os dois últimos aspectos considerados por Marcuschi são os que abordamos no presente estudo. 7 Em funções dos limites deste artigo, de todas as ocorrências de verbos, nominalizações e construções adverbiais, aqui, apenas apresentaremos um número restrito, que acreditamos, contudo, já ser suficiente para a explicitação dos objetivos pretendidos. 8 Para a análise que realiza em seu artigo, Marcuschi (2007) propõe que se considerem dois tipos de discurso: o discurso de populares e o discurso do poder, este último subdividido em: discurso oficial (Executivo, Legislativo, Judiciário); discurso para-oficial (clero, setores da indústria e do comércio, autoridades universitárias etc.); discurso da oposição (partidos de oposição ao governo, sindicatos patronais etc.). De acordo com Marcuschi, os discursos oficial e para-oficial são, freqüentemente, introduzidos por verbos fortes ― reiterar, frisar, ressaltar, destacar, manifestar, anunciar, prever, aconselhar etc. ― que, segundo o próprio lingüista, ajudam a atribuir a esses discursos um status de fato consumado. Os discursos da oposição, por sua vez, são, com freqüência, introduzidos por verbos e 2 144 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 expressões da esfera subjetiva ― afirmar, admitir, sustentar, julgar, pensar, achar etc.―, que permitem, mais facilmente, deixar as opiniões por conta e responsabilidade de seus autores. 9 Aqui, tomamos por base a classificação proposta por Marcuschi (2007) referentemente às funções lógico-argumentativas desempenhadas pelos verbos introdutores de discurso: 1) verbos indicadores de posições oficiais e afirmações positivas (declarar, afirmar, comunicar etc.); 2) verbos indicadores de força do argumento (frisar, ressaltar, sublinhar etc.); 3) verbos indicadores de emocionalidade circunstancial (desabafar, gritar, vociferar etc.); 4) verbos indicadores da provisoriedade do argumento (achar, julgar, acreditar etc.); 5) verbos organizadores de um momento argumentativo no conjunto do discurso (iniciar, prosseguir, introduzir etc.); 6) verbos indicadores de retomadas opositivas, organizadores dos aspectos conflituosos (reagir, reiterar, reafirmar etc.); 7) verbos interpretativos do caráter ilocutivo do discurso referido (aconselhar, criticar, advertir etc.). Para Marcuschi, esses verbos organizam os discursos que introduzem na medida em que “costuram” os argumentos do autor de um discurso anteriormente constituído. 145 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 146 27, 28 e 29 de março de 2008