A MANIPULAÇÃO DO DISCURSO modena

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1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso
27, 28 e 29 de março de 2008
A MANIPULAÇÃO DO DISCURSO RELATADO EM TEXTOS
JORNALÍSTICOS
Maria Estela Maiello MODENA (PUC/SP)
Introdução
O presente artigo tem por objetivo verificar as estratégias lingüísticas utilizadas
pelos jornais diários ao relatarem opiniões e discursos de terceiros.
Tal como defende Marcuschi (2007), partimos da premissa de que não é possível
apresentar ou citar o discurso de alguém sem manipular, sob a forma de interpretação,
esse discurso. Em função de tal premissa, buscamos explicitar o modo como a
manipulação do discurso alheio relatado se manifesta, em textos jornalísticos, por meio
da seleção das informações reproduzidas e das expressões empregadas para introduzilas (verbos, nominalizações, construções adverbiais).
Em nosso estudo, consideramos que, mais do que uma escolha aleatória ou um
simples recurso estilístico, a seleção de informações e de expressões introdutórias, já é,
na verdade, fruto de uma interpretação realizada pelo jornalista. Julgamos que, longe de
ser inofensiva, essa seleção aja sobre o conteúdo das opiniões e dos discursos relatados,
revelando posições interpretativas tomadas pelo jornalista e direcionando, por
conseqüência, a interpretação dos leitores.
Para a análise realizada, dois textos jornalísticos foram examinados1.
Pertencentes a jornais distintos ― Folha de S. Paulo (FSP) e O Estado de S. Paulo
(OESP) ― ambos datam do dia 1º de maio de 2006 e trazem o pronunciamento do
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em homenagem ao Dia dos Trabalhadores, como
tema. Além desses textos, contamos, ainda, com o acesso ao pronunciamento original e
integral do Presidente2, o que se revelou como um importante argumento para a escolha
de tais textos para a composição de nossa análise.
1. O discurso relatado e a seleção das informações reproduzidas
Segundo Maingueneau (2005, p.139), o discurso relatado “constitui uma
enunciação sobre outra enunciação; põem-se em relação dois acontecimentos
enunciativos, sendo a enunciação citada objeto da enunciação citante.”
Charaudeau (2006, p.161-2), por seu turno, afirma:
O discurso relatado é o ato de enunciação pelo qual um locutor (Loc/r)
relata (Dr) o que foi dito (Do) por um outro locutor (Loc/o), dirigindose a um interlocutor (Interloc/r) que, em princípio, não é o interlocutor
de origem (Interloc/o). A isso é preciso acrescentar que o dito, o
locutor e o interlocutor de origem (Do, Loc/o, e Interloc/o) encontramse num espaço-tempo (Eo-To) diferente daquele (Er-Tr) do dito
relatado (Dr), do locutor-relator (Loc/r) e do interlocutor final
(Interloc/r).
Charaudeau esquematiza esse mecanismo no esquema apresentado a seguir:
Eo/To
Er/Tr
[Loc/o → Do → Interloc/o] ------→ [Loc/r → Dr → Interloc/r]
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Considerando-se os textos jornalísticos de que estamos tratando, os elementos
do referido esquema se preenchem da seguinte forma:
Texto FSP
Eo = cadeia de rádio e televisão
To = dia 30 de abril de 2006
Loc/o = Presidente Lula
Do = Pronunciamento em referência ao
Dia dos Trabalhadores
Interloc/o = trabalhadores do Brasil
Er = jornal FSP
Tr = dia 01 de maio de 2006
Loc/r = jornalista responsável pela
matéria (não identificado)
Dr = discurso do jornalista sobre o
pronunciamento do Presidente
Interloc/r = leitores do jornal FSP
Texto OESP
Eo = cadeia de rádio e televisão
To = dia 30 de abril de 2006
Loc/o = Presidente Lula
Do = Pronunciamento em referência ao
Dia dos Trabalhadores
Interloc/o = trabalhadores do Brasil
Er = jornal OESP
Tr = dia 01 de maio de 2006
Loc/r = jornalista responsável pela
matéria (Denise Madueño)
Dr = discurso do jornalista sobre o
pronunciamento do Presidente
Interloc/r = leitores do jornal OESP
Em ambos os textos, todos os elementos acima apresentados são perfeitamente
identificáveis3. De acordo com Maingueneau (op.cit, p.140), a explicitação dos
elementos relacionados ao discurso de origem fica obrigatoriamente a cargo do discurso
citante, ou seja, do discurso no qual se insere o discurso relatado. Desse modo, o grau
de precisão na identificação desses elementos pode variar muito de um texto para outro.
A esse respeito, Charaudeau alerta:
Quanto mais o locutor que relata identifica (ainda que seja necessário
considerar o modo de identificação), mais ele produz uma garantia de
autenticidade ao que foi dito. (op.cit., p.164)
Referentemente a essa questão, pode-se afirmar que os dois textos analisados
asseguram um alto grau de autenticidade ao dito relatado4, uma vez que identificam de
forma precisa todos os elementos que se relacionam a esse dito.
Contudo, quanto ao problema da seleção das informações reproduzidas, ambos
os textos garantem para si um menor grau de seriedade, dado que reproduzem apenas
parcialmente o dito relatado (cf.ibid., p.171), no caso: o pronunciamento do Presidente
em referência ao Dia dos Trabalhadores.
A reprodução parcial apresenta o dito relatado de maneira truncada,
fragmentada, o que, para Charaudeau, produz um efeito de subjetivação na medida em
que apenas uma parte do dito é revelada (cf. ibid., p.164). Tal fato, além de permitir que
o dito de origem seja reorganizado segundo uma nova lógica, a lógica do discurso no
qual é inserido, possibilita igualmente que aspectos desse dito sejam valorizados, uma
vez que revelados, enquanto outros sejam absolutamente desprezados, uma vez que
omitidos. Procede-se, dessa forma, a uma manipulação do discurso relatado.
Nos textos de que tratamos, essa manipulação do discurso relatado por meio da
seleção e da organização das informações reproduzidas fica bastante evidente na
composição de suas manchetes:
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(1) FSP: Lula usa TV para falar de petróleo e salário mínimo
(2) OESP: Lula vai à TV e faz auto-elogio.
As manchetes têm uma função catafórica em relação ao texto que encabeçam, já
que antecipam informações que serão posteriormente desenvolvidas no corpo da notícia.
Pelo destaque que lhes é conferido, mais do que, normalmente, resumir os textos que as
seguirão, as manchetes, freqüentemente, pré-determinam a interpretação desses textos.
Daí, o fato de a seleção da informação que comporá a manchete ser tão relevante.
Pelos exemplos mostrados, verifica-se que os dois jornais optaram por
apresentar em suas manchetes informações a propósito do espaço de veiculação e do
assunto central do pronunciamento do Presidente. Porém, ainda que partindo de uma
mesma seleção de referentes (espaço de veiculação e assunto central), os dois jornais
preenchem com informações distintas ou distintamente tratadas esses referentes.
Para FSP, no que diz respeito às condições de produção do pronunciamento, o
Presidente Lula usa a TV, enquanto que, para OESP, o Presidente Lula vai à TV. Se
OESP optou por um verbo mais neutro ao fazer referência ao veículo de comunicação
utilizado pelo Presidente, a FSP não fez a mesma opção. Ao dizer Lula usa TV para
falar de petróleo e salário mínimo, a FSP não apenas se refere ao fato de o Presidente
ter ido à televisão para fazer seu pronunciamento, mas insinua, pela escolha do verbo
usar, que o Presidente Lula tirou proveito da televisão ― meio de comunicação em
massa que é, no Brasil, o de maior poder de alcance, ou seja, o mais utilizado/visto
pelos brasileiros ―, para falar sobre petróleo e salário mínimo.
Aqui, com relação à escolha das informações reproduzidas, é preciso que se diga
ainda que, em suas manchetes, ambos os jornais apenas mencionam a televisão como
espaço de veiculação do pronunciamento, quando, na verdade, este foi divulgado em
cadeia de rádio e televisão5. A seleção da informação apresentada coloca em evidência o
veículo de comunicação que convém aos jornais enfatizar em função da idéia global que
pretendem transmitir em suas manchetes. Se, ao invés de dizer: Lula usa TV para falar
de petróleo e salário mínimo (FSP) ou Lula vai à TV e faz auto-elogio (OESP), os
jornais tivessem afirmado, respectivamente: Lula usa rádio para falar de petróleo e
salário mínimo e Lula vai ao rádio e faz auto-elogio, certamente, os efeitos de sentido
alcançados teriam sido outros. Em verdade, são os dois jornais que “tiram proveito” da
televisão e do que ela representa para os brasileiros para comporem suas manchetes
segundo seus interesses, procedendo, ambos, a uma manipulação do discurso relatado.
Referentemente ao assunto central do pronunciamento, os dois jornais são
divergentes: para FSP, Lula fala de petróleo e salário mínimo e, para OESP, Lula faz
auto-elogio. No primeiro caso, tem-se um verbo relativamente neutro, falar,
introduzindo aquilo que teria sido o objeto central do discurso do Presidente: petróleo e
salário mínimo. No segundo, vê-se todo o pronunciamento de Lula ser resumido pela
nominalização auto-elogio.
Considerando-se, então, que, em seu pronunciamento, o Presidente Lula abordou
diversos temas, resumi-los, todos, a apenas petróleo e salário mínimo (FSP) ou
classificá-los como sendo um auto-elogio (OESP) revela, pois, que, em ambos os casos,
aquilo que se apresenta como assunto central do pronunciamento do Presidente não é,
senão, fruto de uma interpretação promovida pelos jornalistas responsáveis pelos textos.
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Com relação ao assunto central do pronunciamento e a questão da interpretação,
é ainda interessante dizer que, se perguntássemos ao próprio Presidente Lula qual foi o
assunto por ele tratado em seu discurso, é possível que ele respondesse: o Dia dos
Trabalhadores e a importância dessas pessoas para a nossa nação.
2. As expressões introdutórias do discurso relatado
De acordo com Marcuschi (2007, p.147-50), são quatro as formas mais
freqüentes de se relatar a opinião ou o discurso de alguém:
a) mediante o uso de um verbo: introduz-se a opinião por meio de um verbo
cujo sentido “antecipa o caráter geral da opinião relatada.” (p.147)
Encontram-se, dentre muitos outros, verbos como: dizer, declarar, afirmar,
indagar, retrucar, acreditar, pensar, acusar, pedir, perguntar etc.
b) mediante o uso de uma nominalização: a opinião é introduzida pela
nominalização de um verbo. Nem todos os verbos podem, contudo, ser
nominalizados. As nominalizações mais freqüentes são: declaração,
confirmação, denúncia, elogio, crítica, entre outras.
c) mediante o uso de construções adverbiais: “aparentemente neutra, esta
modalidade introduz o discurso literalmente ou parafraseado.” (p.148) Aqui,
uma vez que tais construções permitem atribuir por completo a
responsabilidade do dito ao próprio autor da opinião citada, Marcuschi faz
um alerta sobre a possibilidade de se “parafrasear a opinião de alguém e
apresentá-la como literalmente dada.” (p.148) Dentre as expressões
adverbiais mais freqüentes estão: segundo fulano, de acordo com beltrano,
para cicrano etc.
d) mediante o uso de dois pontos ou de inserção aspeada no texto: introduzse a opinião de modo direto; a opinião não vem acompanhada de nenhuma
expressão introdutória, ela é simples e diretamente inserida no corpo do
texto ou da notícia.
À parte dessas formas de se relatar, Marcuschi (op.cit.) afirma ser a paráfrase,
com efeito, o recurso mais comumente utilizado para reproduzir opiniões e discursos.
Ora, para que se possa formular uma paráfrase, é preciso que, primeiro, proceda-se a
uma compreensão daquilo que se vai relatar/parafrasear e, inevitavelmente, tal
compreensão permeia-se por uma interpretação. Desse modo, torna-se difícil de
acreditar que se possa reproduzir a opinião de alguém com neutralidade; em outras
palavras, conforme já argumentamos, torna-se difícil de acreditar que se possa relatar
um discurso sem manipulá-lo. A interpretação6 parece, pois, revelar-se intrínseca ao ato
de relatar opiniões e discursos que já foram expressos por outrem.
Com relação aos textos de que estamos tratando, desconsiderando-se as
manchetes e a linha fina, na FSP, foram encontrados 11 verbos, 3 nominalizações e 1
construção adverbial introduzindo a fala do Presidente e 1 verbo referindo-se à fala de
uma outra organização do governo. Em OESP, por sua vez, foram encontrados 11
verbos e 2 nominalizações.
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Dada a maior ocorrência de verbos do que de nominalizações e de expressões
adverbiais, é, então, essencialmente, a eles, que voltamos nossa análise.
Os verbos que apareceram em um e outro texto são:
Texto FSP: assumir (não assumiu); ostentar (ostentar); acenar (acenar); destacar
(destacou); dizer (disse que / disse que / disse); sugerir (sugeriu / sugeriu); discursar
(discursou); indicar (indicou); exaltar (exaltou).
Texto OESP: saudar (saudar); dizer (disse que / disse que / disse); afirmar (afirmou
que / afirmou que); atribuir (atribuiu); avaliar (avaliou); citar (citou); garantir
(garantiu); prometer (prometeu).
Embora os dois textos tratem do mesmo assunto, verifica-se que apenas um
verbo é comum a ambos: o verbo dizer, considerado por Marcuschi (op.cit.) um verbo
“coringa”. Em cada texto, ele aparece três vezes, com ocorrências idênticas, isto é: disse
que, com duas ocorrências, e disse, com uma ocorrência em cada um deles. De resto,
todas as citações feitas, mesmo as absolutamente idênticas e comuns aos dois textos, são
introduzidas ou pontuadas por verbos distintos.
Vejamos alguns exemplos7:
(3) FSP: Segundo o presidente, o país tem muitos desafios ainda. Lula sugeriu a
dificuldade de realizar tudo o que é necessário em um único mandato. “É
impossível fazer tudo isso em um prazo muito curto, mas em 39 meses de
governo temos avançado bastante nessa direção”, discursou.
(4) OESP: Pregando otimismo, ele disse que esse avanço mostra que o País tem
condições de vencer outras batalhas com esforço e determinação. “É
impossível fazer tudo isso em um prazo muito curto, mas em 39 meses de
governo temos avançado bastante nessa direção”, avaliou.
(5) LULA: Se o Brasil venceu uma luta tão difícil, tem todas as condições de
vencer muitas outras batalhas. Com esforço e determinação, poderemos, sem
dúvida, conseguir melhorar ainda mais a qualidade da educação, da saúde, e
de várias outras áreas, transformando por completo a vida das famílias
brasileiras.
É impossível fazer tudo isso em um prazo muito curto, mas em 39 meses de
governo temos avançado bastante nesta direção.
Nesses exemplos, encontra-se a mesma opinião ― É impossível fazer tudo isso
em um prazo muito curto, mas em 39 meses de governo temos avançado bastante nessa
direção ―, citada, pelos dois jornais, de modo direto, exatamente como foi dita pelo
Presidente. Porém, em cada um dos textos, essa opinião, ainda que idêntica, ganha
valores diferentes, visto que é precedida por discursos indiretos distintos e, pontuada, ao
final, por verbos também distintos.
No pronunciamento de Lula, pode-se dizer que a citação acima mencionada
funciona, sobretudo, como uma justificativa: tanto com relação ao que já foi feito em
seu governo, quanto com relação ao que ainda se pode fazer.
Contudo, para OESP, a referida citação de Lula, uma vez que pontuada pelo
verbo avaliar ― no caso, avaliou ―, configura-se como uma avaliação, como um
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balanço dos 39 meses já passados de seu governo. Pelo discurso indireto que a precede
― Pregando otimismo, ele disse que esse avanço mostra que o País tem condições de
vencer outras batalhas com esforço e determinação ―, atribui-se, ainda, um caráter
otimista a tal avaliação. A expressão pregando otimismo, que funciona como uma
locução adverbial de modo, age sobre o sentido do verbo dizer, que a sucede, tirandolhe a neutralidade. Assim, nesse exemplo, para OESP, Lula não apenas disse que, mas,
ao dizer, pregou otimismo, dando um caráter positivo a sua própria opinião. A avaliação
que complementa e dá seqüência a esse discurso indireto vem, pois, “contaminada” pelo
caráter positivo e otimista apontado na citação precedente. Desse modo, pode-se dizer
que, para OESP, Lula não apenas faz uma avaliação, mas faz, sobretudo, uma avaliação
otimista de seu próprio governo, o que indica certa parcialidade do Presidente ao
manifestar sua opinião/avaliação com relação a seu trabalho.
No texto da FSP, a referida citação direta ― É impossível fazer tudo isso em um
prazo muito curto, mas em 39 meses de governo temos avançado bastante nessa
direção ― ganha outro valor. Nesse jornal, verifica-se um grande esforço em se atribuir
toda a responsabilidade do que está sendo dito/citado única e exclusivamente ao
Presidente Lula, numa tentativa de se criar, como será visto a seguir, uma imagem
negativa das falas do Presidente.
Nesse artigo, primeiro, tem-se o uso da construção adverbial ― segundo o
presidente ―, que deixa a cargo de Lula toda a responsabilidade sobre o que é dito em
seguida. Depois, tem-se o verbo sugerir ― sugeriu ―, classificado por Marcuschi
(op.cit.) como um verbo fraco, que indica certa imprecisão. Em função disso, no caso
tratado, esse verbo não só não transforma a fala do Presidente em um “fato consumado”,
como também não a legitima dentro daquilo que Marcuschi denomina discurso do
poder8. Segundo o lingüista, quando verbos e expressões da esfera subjetiva ― caso do
exemplo citado ― introduzem um discurso oficial é porque o representante do governo
em questão encontra-se em posição desvantajosa.
Por último, no texto desse jornal, tem-se, finalmente, a citação direta da fala de
Lula, pontuada, ao final, pelo verbo discursou. Pela seleção desse verbo, fica nítido o
trabalho de “depreciação” da fala do Presidente. De emprego claramente irônico, o
verbo discursar ganha, nesse excerto, o sentido pejorativo atribuído a tal verbo no
contexto político brasileiro; ou seja, nesse caso, discursar pode tanto querer dizer falar
vazio, como falar inverdades para valorizar-se, para fazer propaganda política.
No exemplo (3) da FSP, a citação direta da fala de Lula não funciona como um
elemento novo ou como um complemento do que estava sendo dito ― o que se pode
ver, por exemplo, no texto de OESP. Na FSP, a citação direta da fala do Presidente
funciona como um “trocando em miúdos” do que já havia sido dito em forma de
discurso indireto; ela é, assim, antes de tudo, utilizada para comprovar/ilustrar as
citações indiretas precedentes. Como ela é composta das justas palavras de Lula, por
meio de seu uso, o jornalista esquiva-se da responsabilidade do que está apresentando
em discurso indireto; é como se o jornalista dissesse: “se você não está acreditando que
o Presidente disse isso, comprove você mesmo pelas palavras transcritas ipsis litteris a
seguir”.
O mesmo procedimento pode ser percebido no próximo exemplo:
(6) FSP: Diferentemente do que sugeriu a última ata do Copom (Comitê de
Política Monetária do Banco Central), Lula indicou a manutenção do ritmo
de queda das taxas de juros depois de sete meses consecutivos.
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“Depois de garantirmos a estabilidade e conseguirmos o mais baixo índice de
inflação dos últimos tempos, estamos agora reduzindo os juros em ritmo
constante e sem sobressaltos.”
Aqui, depois de insinuar, em discurso indireto, a incoerência entre o que Lula
diz e o que demonstram documentos de órgãos oficiais do governo ― Diferentemente
do que sugeriu a última ata do Copom (...), Lula indicou... ―, a FSP coloca o discurso
direto do Presidente ― fonte da paráfrase feita no discurso indireto precedente ―, para
atribuir a Lula a responsabilidade do dito. Novamente, tem-se a sensação de que o
jornalista está dizendo: “se você não acredita no que eu estou lhe contando, comprove
você mesmo pela transcrição a seguir”.
Essa mesma opinião do Presidente com relação às taxas de juros é apresentada
de modo bastante diverso em OESP:
(7) OESP: Lula afirmou que a tendência de queda da taxa de juros vai continuar
para estimular a produção e melhorar o crescimento.
Para OESP, Lula afirma e não apenas indica, como pretende a FSP, a
manutenção da queda dos juros, o que, claramente, garante um peso muito maior à fala
do Presidente. Dizer: Lula afirmou, concede uma dimensão de força e de certeza com
relação ao que foi dito; ao passo que dizer: Lula indicou, coloca certa expectativa e uma
boa dose de incerteza com relação ao que está sendo proposto na fala.
Observando-se o pronunciamento de Lula:
(8) LULA: Depois de garantirmos a estabilidade, e conseguirmos o mais baixo
índice de inflação dos últimos tempos, estamos agora reduzindo os juros em
ritmo constante e sem sobressaltos.
Este mês, por exemplo, o banco central aplicou a sétima baixa consecutiva na
taxa Selic. E esta tendência vai continuar estimulando a produção e
melhorando o nosso índice de crescimento.
vê-se, porém, que, em verdade, a menção à queda das taxas de juros funciona,
sobretudo, como uma constatação, que é confirmada, em seguida, pelo exemplo da
sétima baixa consecutiva na taxa Selic.
Continuando nos exemplos, tem-se a referência à questão das conquistas do
governo Lula:
(9) FSP: Em tom de campanha eleitoral, Lula exaltou feitos de sua
administração. Disse que o preço dos alimentos está mais baixo, que o
trabalhador come melhor e “pode comprar o material de construção para
melhorar sua casa”.
(10) OESP: Como avanços, o presidente citou que 3 milhões de pessoas foram
tiradas da miséria, foram criados quase 4 milhões de empregos com carteira
assinada no setor privado e o Bolsa Família está acabando com a fome e a
desnutrição de 36 milhões de pessoas.
No excerto da FSP, encontram-se dois verbos introdutores de opinião: exaltar
― no caso, exaltou ― e dizer ― no caso, disse que. O primeiro verbo, indicador de
força de argumento9, coloca os feitos da administração de Lula como tendo sido um dos
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pontos de destaque do pronunciamento do Presidente; o segundo, relativamente neutro,
vem, contudo, “contaminado” pela locução adverbial de modo que introduz toda a
citação: em tom de campanha eleitoral. Essa locução, vale dizer, não modifica apenas o
sentido do verbo dizer, mas modifica também o sentido do verbo exaltar e modifica,
ainda, o sentido de todo o excerto. Em menção direta ao caráter de campanha eleitoral
do pronunciamento de Lula, a FSP apresenta, em tom irônico, os feitos do governo do
Presidente como se eles tivessem sido, não mencionados, mas, exaltados por Lula
somente para fazer propaganda eleitoral.
Para igualmente referir-se às conquistas do governo Lula, OESP escolhe um
verbo muito mais neutro do que o escolhido pela FSP; o verbo escolhido é citar ― citou
que ―, verbo esse que, normalmente, introduz uma seqüência de exemplos, tal como
aparece no texto. Além do verbo mais neutro, OESP não usa nenhum modificador do
tipo em tom de campanha eleitoral, como foi utilizado pela FSP.
Não se pode ignorar, também, que tanto a seleção lexical para se fazer referência
às conquistas do governo, quanto a própria seleção dos exemplos dessas conquistas são
bastante diferentes nos dois artigos, evidenciando, assim, mais uma vez, as distintas
interpretações realizadas pelos jornalistas de cada um dos jornais. Para FSP, as
conquistas do governo Lula são, em verdade, feitos de sua administração; para OESP,
tais conquistas são avanços.
O termo feitos é um termo neutro ― que não indica progressos, nem retrocessos
― e, por isso mesmo, adequado aos objetivos da FSP, que vai deixar por conta da
locução adverbial, em tom de campanha eleitoral, e da seleção de exemplos
apresentados a interpretação a ser feita a respeito desses feitos. Basta que se examinem
os exemplos dados para que se diga se tais feitos foram bons ou ruins, e, pelo que foi
escolhido, fica difícil não se chegar ao que a FSP deseja: a desqualificação do governo
Lula.
O termo avanços, em compensação, atribui uma qualidade às conquistas de Lula,
dando-lhes um valor positivo. Além disso, ao citar tais avanços, OESP preferiu pegar os
exemplos mais objetivos a que o Presidente fez referência, ou seja, preferiu aqueles
exemplos que vêm especificados com valores reais, que, de certa forma, comprovam
esses avanços: 3 milhões de pessoas foram tiradas da miséria, foram criados quase 4
milhões de empregos com carteira assinada no setor privado e o Bolsa Família está
acabando com a fome e a desnutrição de 36 milhões de pessoas.
Além disso, a seqüência que se segue ao excerto acima citado de OESP (10)
termina, também, por colaborar para a legitimação do discurso do Presidente,
atribuindo-lhe status de fato consumado:
(11) OESP: “Muita coisa ainda precisa melhorar no País, mas nos 3 últimos anos
a balança se inverteu em favor do brasileiro comum, em especial do
trabalhador”, garantiu. “Tudo isso não aconteceu por acaso, mas porque
temos um projeto de Nação e um plano de governo. Porque sabemos o que
queremos e para onde estamos caminhando”.
Ao contrário, a seqüência que se segue ao excerto da FSP (9) continua a
colaborar com a desqualificação do Presidente. A FSP termina seu artigo da seguinte
forma:
(12) FSP: Sobre o salário mínimo, disse: “sei que o valor ainda está longe do
ideal, mas este ano já foi possível dar um aumento melhor”.
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Aqui, mais uma vez, é como se o jornalista dissesse: “você pode não acreditar,
mas foi exatamente isso que disse o Presidente, comprove você mesmo pelas palavras
transcritas a seguir”. Nesse exemplo, a neutralidade do verbo dizer desaparece, uma vez
que já está “contaminado” pelo sentido do parágrafo anterior (9), em que se evoca o
caráter de campanha eleitoral do pronunciamento do Presidente.
OESP termina seu artigo de modo diferente:
(13) OESP: Ele prometeu investir no setor produtivo e no social. “Vamos dar
ainda mais ênfase à educação e ao desenvolvimento tecnológico. E continuar
agindo com responsabilidade, porém com muita sensibilidade”, disse. “Hoje
podemos investir mais porque criamos as condições para isso. Mas sem
comprometer o equilíbrio fiscal e o controle da inflação”.
Na parte final do texto de OESP, tem-se a opinião do Presidente, em discurso
indireto, interpretada como uma promessa e seguida por duas citações diretas
empregadas, respectivamente, para ilustrar/exemplificar e para justificar/explicar o que
foi citado no discurso indireto precedente.
Para encerrar a presente análise, é importante dizer que, ao final de seu artigo, o
jornal OESP indica um endereço eletrônico em que se pode encontrar o pronunciamento
original do Presidente Lula transcrito na íntegra. Acredita-se que tal atitude revela uma
postura consciente em relação ao que se está citando e em relação à impossibilidade de
fazê-lo de modo absolutamente imparcial.
Considerações finais
Pela análise realizada, acreditamos ter-se comprovado que, mais do que um
mero recurso estilístico, a seleção das informações reproduzidas e das expressões
empregadas para introduzi-las é fruto de uma interpretação prévia realizada pelo
jornalista, que, ao fazê-la, não importa com que intenções ― boas ou más ―, altera
sensivelmente o discurso original do autor a que se faz referência.
A comparação dos textos selecionados deixou evidentes as diferenças e, até, em
alguns casos, as divergências interpretativas presentes nos dois artigos. Cada um a seu
modo, os dois artigos dos jornais organizam o pronunciamento do Presidente segundo
suas necessidades e intenções. Pode-se observar que nem a seqüência das citações
corresponde nos dois textos jornalísticos, nem elas são correspondentes à ordem das
falas do Presidente no pronunciamento original. A própria estruturação da seqüência de
citações e o encadeamento das opiniões do Presidente já são, acredita-se, previamente
pensados e visam a uma melhor apresentação das interpretações realizadas pelos
jornalistas.
Longe de ser ingênua, a escolha de cada uma das citações e de cada uma das
palavras selecionadas para introduzi-las ou pontuá-las ― e, aqui, enfatiza-se o papel dos
verbos introdutores de opinião ― é sempre muito bem pensada. Cabe, porém, ao bom
leitor observar, e/ou desvendar, que tipo de interpretação, ou de manipulação, está por
trás dessas escolhas que os jornalistas fazem e que tanto insistem em dizer objetivas.
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Referências
CHARAUDEAU, P. O discurso das mídias. Trad. de Angela M. S. Corrêa. São Paulo:
Contexto, 2006.
LULA usa TV para falar de petróleo e salário mínimo. Folha de S. Paulo, São Paulo,
1º maio 2006.
MADUEÑO, D. Lula vai à TV e faz auto-elogio. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 1º
maio 2006.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Trad. de Cecília P. de
Souza-e-Silva e Décio Rocha. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2005.
MARCUSCHI, L. A. A ação dos verbos introdutores de opinião. In: MARCUSCHI,
L. A. Fenômenos da linguagem: reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2007, p.146-168. (Série Dispersos)
PRONUNCIAMENTO original do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o Dia dos
Trabalhadores.
O
Estado
de
São
Paulo.
Disponível
em:
<http://www.estadao.com.br//ultimas/nacional/noticias>. Acesso em: 09 maio 2006.
NOTAS
1
Esses dois textos estão integralmente apresentados na parte final deste artigo.
Pronunciamento retirado do site: http://www.estadao.com.br/ultimas/nacional/noticias. Acesso em: 09
maio 2006. Em decorrência da extensão do pronunciamento e dos limites deste artigo, não
apresentaremos, aqui, o pronunciamento em sua forma integral. Este, porém, pode ser consultado no site
indicado.
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A única exceção diz respeito ao jornalista responsável pela matéria da FSP. Ele não é identificado
individualmente, tendo-se apenas uma referência à origem de onde provém esse enunciador: DA
SUCURSAL EM BRASÍLIA. Aqui, o jornal como um todo acaba se responsabilizando pela matéria.
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As expressões discurso relatado e dito relatado são, aqui, usadas equivalentemente, conforme o faz
Charaudeau (2006) em seu texto que nos serve de referência.
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É preciso ressaltar, porém, que a informação de que o pronunciamento foi veiculado em cadeia de rádio
e televisão consta no corpo da notícia dos dois jornais.
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Para Marcuschi (2007), o termo “interpretação”, dentro do contexto do relato de opiniões, deve ser
compreendido tomando-se por base três aspectos possíveis: a) interpretação explícita: comentário(s)
feito(s), de modo explícito, pelo redator da notícia; b) interpretação implícita: “feita pela seleção dos
verbos que introduzem as opiniões ou por expressões equivalentes, sem um comentário adicional.”
(p.150); c) interpretação pela seleção: feita pela seleção daquilo que é/será informado: o simples “fato de
se prestar uma e não outra parte das opiniões de alguém já é uma forma de interpretar o discurso através
da omissão.” (p.151) Os dois últimos aspectos considerados por Marcuschi são os que abordamos no
presente estudo.
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Em funções dos limites deste artigo, de todas as ocorrências de verbos, nominalizações e construções
adverbiais, aqui, apenas apresentaremos um número restrito, que acreditamos, contudo, já ser suficiente
para a explicitação dos objetivos pretendidos.
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Para a análise que realiza em seu artigo, Marcuschi (2007) propõe que se considerem dois tipos de
discurso: o discurso de populares e o discurso do poder, este último subdividido em: discurso oficial
(Executivo, Legislativo, Judiciário); discurso para-oficial (clero, setores da indústria e do comércio,
autoridades universitárias etc.); discurso da oposição (partidos de oposição ao governo, sindicatos
patronais etc.). De acordo com Marcuschi, os discursos oficial e para-oficial são, freqüentemente,
introduzidos por verbos fortes ― reiterar, frisar, ressaltar, destacar, manifestar, anunciar, prever,
aconselhar etc. ― que, segundo o próprio lingüista, ajudam a atribuir a esses discursos um status de fato
consumado. Os discursos da oposição, por sua vez, são, com freqüência, introduzidos por verbos e
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expressões da esfera subjetiva ― afirmar, admitir, sustentar, julgar, pensar, achar etc.―, que permitem,
mais facilmente, deixar as opiniões por conta e responsabilidade de seus autores.
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Aqui, tomamos por base a classificação proposta por Marcuschi (2007) referentemente às funções
lógico-argumentativas desempenhadas pelos verbos introdutores de discurso: 1) verbos indicadores de
posições oficiais e afirmações positivas (declarar, afirmar, comunicar etc.); 2) verbos indicadores de
força do argumento (frisar, ressaltar, sublinhar etc.); 3) verbos indicadores de emocionalidade
circunstancial (desabafar, gritar, vociferar etc.); 4) verbos indicadores da provisoriedade do argumento
(achar, julgar, acreditar etc.); 5) verbos organizadores de um momento argumentativo no conjunto do
discurso (iniciar, prosseguir, introduzir etc.); 6) verbos indicadores de retomadas opositivas,
organizadores dos aspectos conflituosos (reagir, reiterar, reafirmar etc.); 7) verbos interpretativos do
caráter ilocutivo do discurso referido (aconselhar, criticar, advertir etc.). Para Marcuschi, esses verbos
organizam os discursos que introduzem na medida em que “costuram” os argumentos do autor de um
discurso anteriormente constituído.
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