1 Argumentar e dar razões A filosofia, tal como concebida atualmente nas universidades britânicas (e em muitas outras), é uma disciplina eminentemente argumentativa. Os filósofos mais estudados não são sábios que se apresentam com ditos não justificados, mas pensadores que argumentam em favor do que pensam. Não estou dizendo que os filósofos devem ignorar os sábios; não se pode dizer, sem mais, o que se tornará filosoficamente interessante e importante. Mas, se estudarmos os ensinamentos de algum sábio, poderemos encontrar dificuldade em aceitá-los; em particular, eles podem parecer mutuamente inconsistentes. O próprio sábio pode não estar disposto a discutir nossas dificuldades, e pode estar certo em não querer fazê-lo; mas, para seguirmos levando-o a sério, ao menos seus discípulos deveriam estar prontos para ouvir nossas dificuldades e dar respostas fundamentadas. Mesmo aqueles que afirmam ser mensageiros que carregam uma revelação divina não estão dispensados de dar respostas fundamentadas a questões sérias. Cristãos, em particular, alegram-se por estar “sempre prontos para responder a todo aquele que vos pedir uma razão da esperança que há em vós, com humildade e reverência” (I Pedro 3.15). Embora seja razoável pedir razões, não é sempre razoável pedir razões. Uma discussão entre A e B será claramente frustrada se B insistir em pedir uma razão para aceitar o que A disse por último. Do mesmo modo, não é razoável exigir uma razão para a prática de exigir razões; o homem que afirma rejeitar a prática não deve perguntar aos outros por que (isto é, por qual razão) eles a seguem, pois, do contrário, mostrar-se-ia não ser alguém que a rejeita totalmente. Razões podem ser razões para uma crença ou razões para uma ação. O pensamento humano é tanto teórico quanto prático: estamos interessados tanto no modo como as coisas são quanto no que devemos fazer. Em ambos os domínios, há problemas para serem resolvidos, considerações que se opõem e uma decisão última; e, nos dois casos, um homem pode ser censurado por hesitação, vacilação ou obstinação teimosa, ou ainda, ser louvado por sua sabedoria em tomar decisões e firmeza em aderir ao que decidiu. Geach.indd 15 21/8/2012 13:35:32 16 P. T. Geach Aqui, entretanto, uma dúvida pode surgir: chegar a uma conclusão teórica, uma conclusão sobre como as coisas são, é realmente algo que cabe a nós decidir? Sobre esse ponto, posições extremamente opostas foram sustentadas; podemos tomar Descartes e Shelley* como típicos defensores dessas posições. Descartes parece ter considerado que crer em algo era simplesmente uma questão de escolha: ao menos por um período de tempo e em um momento de tranquilidade, você pode deixar de acreditar em algo que agora acredita. Algumas pessoas parecem ter sustentado possuir o poder de adotar crenças a qualquer momento, como a Rainha Branca** que (reconhecidamente com prática) podia crer em pelo menos seis coisas impossíveis antes do café da manhã. As palavras da Rainha são, provavelmente, uma alusão a um personagem de Oxford, W. G. (“Ideal”) Ward, outrora Fellow do Balliol; ele era um truculento ultramontano*** em religião, e conta-se que expressou o desejo de que um infalível documento papal pudesse chegar até ele, todas as manhãs, antes do café da manhã, para que acreditasse no The Times. Em nossos dias, um oficial da cúria romana parece ter igualmente alegado que, se o Papa aparecesse com um novo decreto aprovando a contracepção artificial, ele mesmo passaria de sua certeza atual de que esta prática é errada para uma igual certeza de que ela não é errada. Esse tipo de comando sobre nossas próprias crenças é algo que poucos de nós podem reivindicar. Shelley sustentaria que é algo que ninguém pode verdadeiramente reivindicar. De acordo com Shelley, quando estamos considerando se algo é verdadeiro, é uma mera questão de sentimento espontâneo se assentimos ou dissentimos ou se suspendemos o juízo; sentimentos não podem ser comandados, tampouco crenças. Isso aparece em The Necessity of Atheism – um interessante ensaio, que lastimo ser demasiadamente inacessível para ser usado como texto no trabalho diário de departamentos de filosofia. A compreensão de Shelley das causas da crença humana veio a mostrar-se muito falha; ele esperava que seu ensaio fizesse com que os professores de Oxford deixassem de acreditar na existência de Deus, mas, em vez disso, ele foi simplesmente mandado embora. A verdade parece estar entre esses dois extremos. Crenças não podem ser “ligadas” ou “desligadas” de acordo com a nossa vontade, mas elas estão, até certo ponto, sob nosso controle. Nós podemos formar hábitos de pensamento que modificarão nossas crenças para o bem ou para o mal, e a formação de tais hábitos é certamente voluntária. É ainda mais claro que podemos nos apegar voluntaria- N. de T.: Percy Bysshe Shelley (1792-1822), um dos mais importantes poetas românticos ingleses. N. de T.: Personagem de Alice no País dos Espelhos de Lewis Carroll (1832-1898). *** N. de T.: O ultramontanismo é a doutrina que defende a tese da infalibilidade do papa. * ** Geach.indd 16 21/8/2012 13:35:32 Razão e argumentação 17 mente a crenças ameaçadas. Há um poema de Thomas Hardy* sobre um homem que procura preservar sua crença de que uma lápide com o nome de sua amada de fato cobre seus restos mortais, ainda que ele pudesse facilmente confirmar a verdade de um boato desagradável que ouvira – de que a garota ali enterrada é na verdade uma outra garota e que a sua segue viva como uma garçonete bêbada e desleixada. Aqui, a resistência à modificação da crença nos pareceria algo lamentável ou desprezível, mas podemos considerar diferentemente o herói de um romance vitoriano que continua a acreditar que sua amada não cometeu o crime do qual é acusada e que não será demovido pela evidência contra ela, e, no desenlace, quando ela é triunfantemente inocentada, ele, com orgulho, pode dizer “eu sempre acreditei em sua inocência, mesmo quando provaram que você era culpada”. Aqui é natural introduzir a tripla distinção: motivos para uma crença, razões para uma crença, causas de uma crença. Por uma questão de conveniência, estou, no presente contexto, restringindo “razões para uma crença” ao seguinte significado: razões exprimíveis de cuja verdade se seguiria, com certeza ou probabilidade, que a crença é verdadeira. Cada um de nossos dois amantes tinha um forte motivo para crer na inocência de sua amada: a crença contrária, se aceita, traria muita infelicidade ao amante. Mas esse motivo não pode ser considerado uma razão para a crença. Do mesmo modo, um exilado acadêmico de Gana, nos tempos do “Redentor” Nkrumah,** teria um forte motivo para se converter à filosofia do consciencismo de Nkrumah: um motivo para uma crença real, não apenas declarada, pois uma declaração insincera, se detectada, poderia fazer o retorno do exílio ser muito perigoso; mas aqui também o motivo para crer não pode ser tomado como uma razão. Todo tipo de coisas pode causar crenças: uma crença de que cachorros pretos são especialmente perigosos pode encontrar sua origem em um medo esquecido de infância, ou a crença de que um homem é seu inimigo mortal pode ser devida a uma doença cerebral. Claramente, não temos aqui nem um motivo nem uma razão para crer. Algumas vezes, uma crença é adotada por motivos sem razões, ou surge de alguma causa psicológica ou fisiológica, também independente de quaisquer razões, mas aquele que crê inventa posteriormente razões em favor de sua crença. Esse processo é chamado de racionalização. Porém, na realidade, a apreensão de razões que, se verdadeiras, fariam com que aquilo em N. de T.: Thomas Hardy (1840-1928), romancista e poeta inglês do movimento naturalista. N. de T.: Kwame Nkrumah (1909-1972), presidente de Gana entre 1960 e 1966, autor de vários livros, entre eles Consciencism. * ** Geach.indd 17 21/8/2012 13:35:32 18 P. T. Geach que se acredita fosse certo ou ao menos provável, algumas vezes produz, de fato, uma crença; nem todo raciocínio é uma racionalização. Alguns pensadores sustentaram, ou pelo menos foram acusados de ter sustentado, que todo ato de dar razões para nossas crenças é uma racionalização: as razões apresentadas nunca determinaram o surgimento da crença, mas foram criadas após o seu surgimento. Se alguém defende essa opinião, é tolice de sua parte alegar quaisquer razões ou evidências para ela, pois, se essa pessoa estiver certa, então a concordância ou discordância de outras pessoas em relação ao seu ponto de vista se dará independentemente de considerarem quaisquer razões por ela alegadas. Este livro está escrito na convicção contrária de que a consideração das razões para se crer em algo em certas ocasiões resulta na crença apropriada; se alguém não compartilha dessa convicção, esse alguém dificilmente pode exigir razões para adotá-la. TÓPICOS PARA DISCUSSÃO 1. Quando não é razoável exigir razões? 2. Deve uma boa razão ser tal que, se necessário, pode ser colocada em palavras? Por exemplo: você tem uma boa razão e poderia colocá-la em palavras para crer que seus pais são M. e N., ou, ainda, que você nunca esteve na Lua? 3. Em que medida dar razões de um modo honesto difere de uma racionalização? (Para esse tópico, o Capítulo 3 de Miracles de C. S. Lewis* é um ponto de partida útil. A edição revisada em brochura é preferível). N. de T.: Clive Staples Lewis (1898-1963), escritor irlandês, autor da famosa série de livros infantis As Crônicas de Nárnia. * Geach.indd 18 21/8/2012 13:35:32