A Africana Miguel Vale de Almeida Houve um tempo em que a diferença se constituiu como um problema, sem que a identidade fosse problematizada. Esse foi o tempo dos “descobrimentos” europeus, seguidos do comércio de escravos, seguido da colonização. A categoria da “diferença” constituiu-se sobretudo como uma forma de explicar, e até de legitimar, relações de desigualdade profunda. Desse processo, longo de séculos, nasceria o complexo do racismo, criador da ideia de “raça”, reprodutor da suposta evidência da “raça”. E aos poucos, como quem não quer a coisa, se construiria a identidade supremacista dos ocidentais “brancos”. É certo que o processo etnocêntrico é universal, uma das raízes da própria dialética da identidade e da diferença. Mas certo é também, ou sobretudo, que ninguém como os ocidentais levou tão longe, cientifizando-a, a ideia de diferença incomensurável. A esse tempo seguiu-se outro, em que a diferença se constituiu como um fascínio, assim como a identidade. Começou com a ambiguidade entre imagens do bom e do mau selvagem, e entre o ocidental como pináculo da evolução ou como exemplo da decadência da natureza humana através do progresso desmesurado. O processo teria o seu culminar na organização política das comunidades segundo o princípio do estado-nação, a que as próprias nações descolonizadas não podiam ter deixado de aderir. As justaposições ideais entre ‘raça’, língua, religião, cultura e cidadania construir-se-iam até criarem o seu horror máximo, a sua consequência lógica e hiper-racional última no Holocausto. À segunda guerra mundial seguiu-se um período de pedagogia – pedagogia antiracista, de equivalência das diferenças. Mas sempre com um princípio de apartheid implícito – cada um no seu lugar. Graças ao aceleramento e expansão do que agora se designa por globalização, até isso foi posto em causa. Agora estamos cada vez mais no tempo em que a diferença e a identidade são questionadas, estrategizadas, politizadas e, pelos vistos, também transformadas em objeto do nosso humor cáustico. Questionamos a identidade e a diferença porque vemos nelas as fontes de conflitos aparentemente insanáveis, mas que sabemos não o serem. Entrevemos, no meio do caos definicional e autoritário das categorias de pertença e não pertença – ao estado, à nação, à cidadania, à “competência” cultural, à “família” – que na realidade somos todos e todas muitas coisas ao mesmo tempo, que somos muitas coisas em potência, que o somos em circunstância, em narrativa, em auto e hetero-construção, em afirmação, resistência, bricolage e invenção e linhas de fuga; e que estamos ligados oculta e subterraneamente quais rizomas.