59 êXODO RURAL: os processos migratórios nos territórios rurais no Estado do Ceará RURAL EXODUS: migration processes in rural areas in the State of Ceará Iolanda Pereira da Silva RESUMO Graduada em Serviço Social da Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza – FAMETRO O estudo propõe compreender os processos migratórios das populações rurais para os centros urbanos no Estado do Ceará, no contexto de construção sócio-histórica da sociedade capitalista. A abordagem consiste em compreender esses processos, a partir da análise das políticas públicas destinadas aos agricultores, através dos projetos de reforma agrária. O estudo evidencia o debate social entre os segmentos urbano/rural, objetivando analisar as relações sociais engendradas nesses processos. Utilizando-se de fundamentação metodológica teórico-crítica, buscamos apreender as determinações que constituem esses processos, gestadas na assimétrica relação entre a busca por trabalho formal e a permanência dos agricultores nos territórios rurais, que vem produzindo, ao longo da história, um dos mais graves fenômenos que afeta a vida campesina e amplia o debate acerca da questão agrária: o êxodo rural. Para o alcance dos objetivos, utilizou-se de pesquisa bibliográfica e documental, o que propiciou melhor apreensão do estudo proposto. Palavras-chave: Reforma agrária. Urbano/rural. Relações sociais. Questão agrária. Êxodo rural. ABSTRACT The study aims to understand the migratory processes of rural populations to urban centers in the state of Ceará, in the context of historical social construction of capitalist society. The approach is to understand these processes, from the analysis of public policies for farmers, through land reform projects. The study highlights the social debate among urban/rural segments, aiming to analyze the social relations of these processes. Using theoretical-methodological review, we seek to grasp the determinations that constitute these processes, gestated in the asymmetric relationship between the search for formal employment and residence of farmers in rural areas, which has been producing throughout history one of the most serious phenomena that affects the peasant life and broadens the debate about agrarian question: the rural exodus. To reach the objectives, we used the literature and documents, which allowed better understanding of the proposed study. Keywords: Land reform. Urban/rural. Social relations. Agrarian question. Rural exodus. Recebido em: 30/05/2014 Aceito em : 22/10/2014 Revista Diálogos Acadêmicos, Fortaleza, v. 4, n. 1, jan./jun. 2015. 60 1 INTRODUÇÃO a r t i g o s Os processos migratórios no Brasil têm sua origem em meados do Século XVIII, com o advento da revolução industrial, se intensificando ao longo da história com a expansão e fortalecimento do capitalismo. A necessidade de mão-de-obra para as fábricas fez surgir uma nova classe social constituída de trabalhadores urbanos e rurais, o proletariado, resultando no processo de urbanização vertiginoso e desorganizado, que contribuiu para o aumento da pobreza dando início a desertificação dos territórios campesinos, expresso no êxodo rural. Ocorre também em outras circunstâncias como analisa Furtado (2011, p. 74-77). [...] como a decadência da pecuária nos sertões do Nordeste, assolados pela seca, e o florescimento dela no extremo sul da colônia. Em suma, um conjunto de fatos que vai provocar nova redistribuição do povoamento. [...] a pecuária duramente atingida por secas cada vez mais amplas e severas. A Seca Grande de 1791-3 foi o último e quase mortal golpe sofrido, no século XVIII, pelos sertões do Nordeste. No Ceará, a migração das populações campesinas para os centros urbanos tem como uma de suas características aos seguidos períodos de estiagem prejudicando a pecuária e o plantio da agricultura de subsistência, principal fonte de alimentação dos agricultores. Os territórios rurais cearenses, no início do Século XIX, eram ocupados por pecuaristas que empregavam os trabalhadores rurais que perdiam suas colheitas. (NEVES, 2007). Um marco histórico no processo de migrações no Ceará ocorre no final do Século XIX com a devastadora seca de 1877, configurando profundas mudanças na tradicional ordem econômica sertaneja e na vida da cidade. “De fato inaugura-se neste instante a seca tal qual a entendemos hoje: miséria, fome, destruição da produção, dispersão da mão-de-obra, migrações, invasões às cidades, corrupção, saques[...]” (NEVES, 2007, p. 80). As migrações rurais iniciadas nesse período marcaram o Ceará, em especial Fortaleza, Capital do Estado, que passava por um crescente período de modernização e urbanização. Segundo Ponte (2007, p. 167) O êxodo rural é um processo de fluxos migratórios rural/urbano que constitui um feA devastadora seca de 1877-1879, porém, interrompeu temporariamente esse fluxo modernômeno social de forte impacto na formação nizador que se instaurava na cidade. Além da territorial das cidades e do campesinato brasidesestabilização econômica cearense e provocar intenso êxodo rural para a capital, a longa estialeiro. É um processo sócio-histórico produzigem possibilitou a propagação de uma fulmido por fatores econômicos, sociais e climáticos nante epidemia de varíola, vitimando mais da decorrentes da industrialização e globalização metade dos 100 mil retirantes amontados em abarracamentos providenciados pelo governo da economia, a ineficiência das políticas públina periferia de Fortaleza. [...] o auge daquele tecas de convivência com o semiárido, a busca atro de horrores foi o 10 de dezembro de 1878, quando o cemitério do Lazareto recebeu 1.004 por trabalho formal e a alienação das populavitimas da epidemia, ficando por muito tempo ções rurais, em especial os jovens, pela atração na memória da capital como ‘O Dia dos Mil Mortos’. da vida urbana, a ideologia predominante do individualismo e consumo do sistema capitaOs fluxos migratórios, ocorridos no Eslista no interior do cotidiano urbano observatado do Ceará ao longo desse decurso tempodo por Araújo (2000, p. 01). ral, têm modificado drasticamente a vida das O cotidiano passa a se estabelecer pela pressão populações camponesas, produzindo aglomede relações sociais e imprime ordem no campo, metamorfoseando-se como aparência de uma ração dessas populações nos centros urbanos, vida distinta. Entretanto, o mundo da mercado- contribuindo para o crescimento populacional ria, com sua lógica e linguagem, se generaliza no cotidiano até o ponto em que cada coisa o vei- desordenado, resultando no surgimento de cula com suas significações, e, através do tecido favelas urbanas e moradias em áreas de risco. urbano, invade o campo. Por conseguinte, na Problemas que afligem Fortaleza nos dias aturealidade cearense, os trabalhadores rurais procuraram as cidades para complementar essa vida ais, como o aumento da pobreza, agravamento moderna, com seus signos de consumo. de desemprego, violência e dos altos índices de Revista Diálogos Acadêmicos, Fortaleza, v. 4, n. 1, jan./jun. 2015. 61 déficits habitacionais, surgindo a necessidade de políticas públicas efetivas no enfretamento a questão social campesina e urbana. Lacerda (2005, p. 04) apresenta estudos que relatam um período de maior contingência de imigrações no Brasil, ocorridos entre os anos de 1960 a 1980. Os dados revelam que tifundiários1 e a exploração da mão-de-obra camponesa que produziram imensas desigualdades sociais nos territórios rurais, transformando a questão agrária em expressivo fenômeno da questão social, traduzido na luta pelo direito de acesso a terra. A propriedade fundiária, concentrada nas mãos de grandes latifundiários, transforEntre 1960 e 1970, aproximadamente 13 milhões mou as relações de trabalho no meio rural. A de pessoas abandonaram suas residências rurais em busca dos centros urbanos, o que correspon- estrutura agrária no Brasil prima pelo regime dia a 33% da população rural no início do perío- capitalista de produção, como analisa Iamado. No período entre 1970 e 1980 a população de migrante foi de aproximadamente 16 milhões, moto (2012, p. 89-90) correspondendo a 38% da população rural no início do período. Nesse contexto, analisar os processos migratórios das populações rurais para os centros urbanos no Estado do Ceará, no contexto de construção sócio-histórica da sociedade capitalista, requer a compreensão dos fatores históricos determinantes de sua gênese: a industrialização econômica, expansão do capitalismo e fatores socioambientais. 2 Êxodo Rural como expressão da Questão Social A propriedade fundiária é um pressuposto histórico e fundamentado permanente do regime capitalista de produção, comum a outros modos históricos de produzir. Entretanto, o capital cria a forma histórica especifica de propriedade que lhe convém, valorizando este monopólio na base da exploração capitalista, subordinada ao capital. [...] A renda da constitui parte da mais-valia social, produzida pelo trabalho social assalariado no processo produtivo, que é apropriado pelos proprietários fundiários, em decorrência do fato de disporem de um titulo jurídico da propriedade da terra. O que é típico da renda fundiária capitalista é ser resultado do trabalho global da sociedade, e não resultado imediato do trabalho do produtor direto na agricultura, supondo a intermediação ativa do capital. A concentração de terras e a exploração da força de trabalho camponesa são fatores determinantes geradores de tais desigualdades e contribui para o aumento da pobreza nos territórios rurais e do êxodo rural. Obrigaram as populações rurais a migrarem para os grandes centros urbanos, afetando substancialmente a produção da agricultura familiar e, sobretudo, Os fluxos migratórios se intensificaram a vida da população campesina, fatores de for2 em consequência dos períodos de estiagem talecimento da questão agrária . O êxodo rural é um fenômeno que atinge que devastaram o meio rural em fins do séuma grande parcela de agricultores, vitimando culo XIX se estendendo aos dias atuais. Além da seca de 1887, que marcou o início das migrações, a seca de 1915 também deixa marcas 1 O início da colonização do território brasileiro se fez profundas na história do sertanejo cearense, com a doação de grandes extensões de terras a particulares, denominadas sesmarias. Dai surgiram os latifúnprovocando o agravamento da questão social dios escravistas. (SILVA. 1985) nos territórios rurais. 2 A força com que a questão agrária brasileira ressurge Outro fator determinante desse agrava- hoje não advém apenas da maior liberdade com que pomento é o longo processo histórico de con- demos discuti-la. Mas também do fato de que ela vem sendo agravada pelo modo como têm se expandido as centração de terras nas mãos dos grandes la- relações capitalistas de produção no campo. Em outras O sol poente, chamejante, rubro, desaparecia rapidamente como um afogado, no horizonte próximo. Sombras cambaleantes se alongavam na tira ruiva da estrada, que se vinha estirando sobre o alto pedregoso e ia sumir no casario dormente dum arado. Sombras vencidas pela miséria e pelo desespero que arrastavam passos inconscientes na derradeira embriaguem da fome. (QUEIROZ, 2010, p. 75). palavras a maneira como o país tem conseguido aumentar a sua produção agropecuária tem causado impactos negativos sobre o nível de renda e de emprego da sua população rural. (SILVA. 1985, p. 12) Revista Diálogos Acadêmicos, Fortaleza, v. 4, n. 1, jan./jun. 2015. 62 a r t i g o s pecuária, contribuindo para agravar os problemas na produção comercial. O Estado do Ceará possui grande parte de seu território na região semiárida, tornando necessário o desenvolvimento de políticas públicas de convivência com esta região, onde os períodos de estiagem são frequentes resultando no aumento da pobreza rural, consequência da perda da colheita e afetando a criação de animais. As políticas públicas de enfrentamento aos períodos de estiagem foram implementadas inicialmente visando o combate às secas, com a criação, em 1909, da Inspetoria de Obras Contra as Secas, conferido, posteriormente, em 1945, no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS. Foram construídas grandes obras hídricas como açudes, canais de integração, operações de emergência com carros-pipas e Programas de Cisternas de Placas. Entretanto, tais ações amenizaram, mas não significaram uma solução definitiva para os problemas decorrentes das secas. Associadas às políticas de enfrentamento às secas, o Estado passou a implementar ações de combate a pobreza rural, visando a permanência dos agricultores nos territórios rurais. Entretanto, tais ações de caráter compensatórios, focalizados e minimalistas, ainda não foram capazes de produzir efeitos consideráveis de resolutividade dos problemas do campesinato brasileiro, a exemplo do êxodo rural. São exemplos dessa política os Programas Seguro Safra e Bolsa Família. Associadas às políticas de caráter compensatórias encontram-se as políticas de investimento, gerenciadas por instituições financeiras estatais, responsáveis pelo endividamento de pequenos produtores, resultado da ausên3 Políticas públicas de convivên- cia de assistência técnica e amenizados pelas renegociações. Nos casos de declaração de cia com o semi-árido “estado de seca” e de perda da produção, os Até meados do Século XIX, os fatores agricultores são contemplados com o “perdão climáticos, considerados localizados e irregu- total da divida”. Aqui podemos citar as ações lares, não afetam as estruturas de poder a da do Programa Nacional de Fortalecimento da economia brasileira, NEVES (2007). Entretan- Agricultura Familiar – PRONAF. Cabe ressaltar as políticas de reforto, os seguidos períodos de estiagem começam a produzir efeitos na produção algodoeira e essa população a aventurar-se na vida urbana em busca de inserção no mercado de trabalho que lhes garantam segurança alimentar e de rendimentos, submetendo-se à exploração da mão-de-obra, barata e não qualificada, para o mercado e de fácil adaptação aos meios de produção industrial primário. A luta por moradia substitui a luta pela terra, caracterizando a permanente busca por uma vida digna e o acesso aos direitos sociais, garantidos na constituição e omitidos pelo Estado em sua benevolência relação com um sistema econômico explorador, que precede o homem como mercadoria descartável e o faz escravo de sua ideologia dominante, sob a alienante propagação de um mundo de oportunidades a partir do esforço individual e do utópico poder de consumo. É nesse contexto que analisamos o êxodo rural, como expressão da questão social rural, que produz pobreza no meio rural e reproduz as históricas relações de desigualdade entre os segmentos sociais urbanos e rurais. Inviabiliza o acesso das populações rurais aos seus direitos sociais e a garantia de sobrevivência em seu território, negando o direito à terra, à educação e à renda que lhes promova vida digna, garantindo o sustento de sua família e a permanência em seu território nativo. As expressões da questão social rural, circunscritas nos processos migratório, refletem nos centros urbanos com o aumento populacional vertiginoso acelerando um processo de urbanização permanente das cidades. Esse fenômeno transforma trabalhadores rurais no excedente populacional, aproveitada pelo capital para desvalorização da força de trabalho. Revista Diálogos Acadêmicos, Fortaleza, v. 4, n. 1, jan./jun. 2015. 63 ma agrária3 que visam a distribuição de terras para fins sociais. São exemplos dessas ações os Projetos de Assentamentos Rurais. As políticas públicas voltadas para os problemas dos trabalhadores sem terra ou com pouca terra para produzir buscam, em curto prazo, redistribuir terras privadas que não cumprem o seu papel social, o que atende ao entendimento primário de realização da reforma agrária, que somente é possível com a distribuição de terras, como destaca Oliveira (2006, p. 153, apud LIMA, KHAN, CASIMIRO FILHO, VIANA, 2011, Não paginado). [...] a falta uma política de desenvolvimento agrário levou à implementação de uma política de assentamentos rurais via mercado de terra que consistiu em uma descaracterização e mercantilização da reforma agrária no país. Como consequência muitos assentamentos não conseguem produzir o suficiente para alimentação e pagamento das terras adquiridas via ‘reforma agrária de mercado’ Os assentamentos rurais expressam a ação concreta da reforma agrária, compreendida no âmbito da distribuição de terras aos trabalhadores campesinos, entretanto não é possível construir um projeto de reforma agrária que não reconheça o homem do campo como sujeito social e, sobretudo, não contemplem possibilidades concretas de emancipação humana no mundo rural. Nesse sentido, “as expectativas de geração de emprego e renda de combate à pobreza e êxodo rural estimulam o debate social”. (LIMA et al, 2011, p. 88). A assistência e o acompanhamento técnico configuram outro aspecto que consideramos limitador para efetivação qualificada das políticas de reforma agrária nos assentamentos. É visível a lacuna existente entre a proposta estatal e o alcance de seus objetivos. Sob o argumento do acesso ao crédito, antes acessível somente aos grandes latifundiários, o governo lança mão de políticas de crédito rural para investimento, entretanto não o potencializa do conhecimento necessário para desenvolvimento e gestão dos projetos produtivos, especificamente no que concerne a criação de instrumentos de comercialização coletiva da produção. A quantidade de implantação dos projetos de assentamentos rurais nesse decurso temporal representa um reconhecido avanço na conquista da terra, todavia não acompanhou os avanços tecnológicos necessários para o desenvolvimento socioeconômico desses territórios, em especial aqueles adquiridos em territórios do semiárido nordestino, onde o difícil acesso à água e as condições climáticas podem inviabilizar a implantação e manutenção dos projetos produtivos irrigáveis, tornando os trabalhadores campesinos na permanente condição de dependência da ação assistencial do Estado, impressa na efetivação de políticas públicas compensatórias, focalizadas e seletivas. Araújo (2002) aponta para a sociedade cearense o problema do êxodo rural, que é um fator determinante de concentração e aglomeração nos centros urbanos. Fator predominante para a implementação de políticas públicas de fixação do homem nos territórios rurais até os de 1970. Entretanto, a autora atesta para o fracasso dessa política pública. O fracasso dessa política pública fez com que décadas depois, esse mesmo assunto assumisse importante posição no debate atual, desenvolvido no país, sobre a desruralização. Um fenômeno ainda pouco definido, que no caso do nordeste brasileiro, supostamente, seria resultante da ocorrência e constantes secas associadas à atração das cidades, pela concentração dos investimentos industriais e urbanos, que determinam frequentes migrações rurais, e em decorrência levaram a redução das populações residentes no campo a um contingente mínimo, com taxas negativas de crescimento. ARAÙJO (2002, p. 02) Outro aspecto considerável são as políticas de educação oferecidas aos trabalhadores campesinos. Salvo raras exceções, tais políticas seguem o padrão globalizado da educação. Não primam pelas especificidades do meio rural, contribuindo para a transformação da identidade rural dos 3 A reforma agrária só se colocou verdadeiramente como uma exigência social premente em países, ou regiões, indivíduos e alienando para a cultura do urem que existia uma grande massa de lavradores impe- bano, e a cultura descartável do individuadidos de ter acesso à propriedade da terra. Só em situações desse tipo é que ganhou força social a ideia de que a lismo e do consumismo inerentes ao capital. terra deve pertencer a quem a trabalha. (VEIGA. 1984) Revista Diálogos Acadêmicos, Fortaleza, v. 4, n. 1, jan./jun. 2015. 64 a r t i g o s No Estado do Ceará, as políticas de desenvolvimento econômico atuam sob a égide da exploração dos trabalhadores, reconfiguradas na emergência de novos postos de trabalhos com a criação de Polos industriais em cidades do interior do Estado, resultando na intensificação do êxodo rural, incentivado pela busca do trabalho formal. A emergência dos grandes Polos industriais nas cidades do interior do Ceará tem contribuído significativamente para o aumento do êxodo rural no Estado. Esse fenômeno é mais recorrente entre os jovens em busca do trabalho formal. A transformação da identidade rural, fruto da alienação da ideologia da ordem vigente, as difíceis condições de sobrevivência nos territórios rurais, decorrentes de frequentes períodos de estiagem, e da falta de acesso à saúde e transporte, intensificam o fluxo migratório. Nesse contexto, é possível compreender que as ações estatais de enfrentamento ao êxodo rural não são ainda capazes de concorrer com a forte industrialização e globalização econômica mundial e, sobretudo, a consolidação do capitalismo que, apesar de suas crises cíclicas, se fortalece com a exploração de trabalhadores urbanos e rurais. Portanto, é possível identificar a partir dessa análise a relação imbricada entre o Estado e o capital na manutenção da pobreza rural, transformando agricultores em trabalhadores urbanos sem qualificação, favorecendo o barateamento e a exploração de sua mão-de-obra, agravando substancialmente os problemas sociais nos territórios rurais e urbanos, emergindo um novo debate entre esses segmentos sociais. 4 O debate social entre os seguimentos urbano e rural A emergência de uma nova urbanização, configurada nas migrações de populações rurais para os centros urbanos, abre um novo debate nas relações urbano/rural. Segmentos sociais que não podem ser dissociados, as relações engendradas entre campo e cidade determinam o fluxo socioeconômico desses territórios mar- cados pela emergência do poder econômico do capital e das ações minimalistas do Estado. No Ceará, essa relação foi construída sob a predominância do urbano sobre o rural, impressa na exploração e no preconceito da classe dominante representada pelas elites cearenses. Um fato histórico de forte impacto social marcou as primeiras migrações rurais para Fortaleza, ainda no início de sua formação socioeconômica e cultural, foi a chegada de milhares de trabalhadores vitimados pela devastadora seca de 1877. O registro de Neves (2007, p. 81) retrata esse período negro da história do Ceará. A seca pega todos de surpresa. [...] No semiárido, a produção inteiramente destruída, os moradores consomem suas últimas sementes e, aos poucos, mas numa onda irresistível, vão deixando para trás seus casebres e suas terras arrendadas. Saem famintos de seus lares e começam a vagar pelos caminhos e estradas em busca de auxílio. O caminho da capital cedo transformar-se-á na única opção para sobrevivência: os ‘moradores’ das fazendas de criar transformam-se em retirantes. A chagada dos imigrantes da seca marca o início do debate entre os segmentos sociais urbano/rural que transcende tempos e fatos históricos, tendo por fundamento as relações de exploração dos retirantes. Aos retirantes, recebidos com perplexidade pela população urbana, foram destinados os trabalhos de grande esforço sob forte disciplina. Aos moradores que ali já estavam estabelecidos lhes cabia a vigilância e o controle dos retirantes, que não demorou a serem rotulados de preguiçosos, sobretudo, os que viviam a mendigar pelas ruas. Neves (2007, p. 82). O aumento da pobreza, da prostituição, de roubos e de doenças assustava a população urbana, produzindo ações coercivas e repressivas por parte das autoridades. Esse contexto situa o debate entre os segmentos urbano/rural como um determinante histórico dessa relação. Também descrito por Furtado (2005, p. 74), esse debate tem sua gênese na formação da sociedade brasileira, circunscritas nas relações culturais do povo brasileiro, desde sua colonização. Nesse período, camponeses, escravos negros e índios foram as principais vítimas da exploração de mão-de-obra e violação dos direitos. Revista Diálogos Acadêmicos, Fortaleza, v. 4, n. 1, jan./jun. 2015. 65 Em toda a segunda metade do século XVII e primeira do seguinte, os colonos do chamado Estado do Maranhão lutaram tenazmente para sobreviver. Criada com objetivos políticos, mas abandonada pelo governo português, a pequena colônia evoluiu de tal forma que meio século depois, no dizer de um observador da época, “para um homem ter o pão da terra, há de ter roça; para comer carne há de ter caçador; para comer peixe, pescador; para vestir roupa lavada, lavadeira”. A inexistência de qualquer atividade que permitisse produzir algo comercializável obrigava cada família a abastecer-se a si mesma de tudo, o que só era praticável para aquele que conseguia pôr as mãos num certo número de escravos indígenas. A caça ao índio se tornou, assim, condição de sobrevivência da população. Na sociedade contemporânea, as relações entre as populações rurais e urbanas são construídas na convivência dos novos trabalhadores das fábricas dos Polos industriais e nas periferias da cidade, onde se estabeleceram grande parte dos retirantes das secas e os imigrantes contemporâneos. Ainda predomina sobre o segmento rural o domínio da classe dominante, sobretudo, na desvalorização de sua força de trabalho. As configurações sócio-históricas dessa relação social se metamorfoseiam, transformando os imigrantes rurais em permanentes vítimas do modo de vida burguesa dos centros urbanos, determinados pela ideologia capitalista, o que estimula o debate da estrutura conservadora que rege a sociedade e não percebem as populações campesinas como detentoras de direitos sociais, tal qual, as populações urbanas. Todavia, esse debate não se esgota nas relações, nos aspectos econômicos e sociais, permeia a cultura e os costumes desses segmentos sociais. 5 Considerações finais: notas reflexivas Debulhar o trigo recolher cada bago do trigo Forjar no trigo o milagre do pão e se fartar de pão Decepar a cana recolher a garapa da cana Roubar da cana a doçura do mel se lambuzar de mel. Afagar a terra conhecer os desejos da terra Cio da terra, a propícia estação e fecundar o chão. Chico Buarque (O Cio da Terra) desertificação no meio rural. Ao analisar os fatores determinantes desse processo, o presente estudo compreende o alcance que tais determinações produzem na vida socioeconômica dos trabalhadores rurais. O meio rural sofre profundas transformações que afetam sua sobrevivência e, consequentemente, a sobrevivência da humanidade, considerando que é da terra que se extrai toda matéria-prima necessária para a produção industrial e alimentícia. O implemento de políticas públicas capazes de promover a emancipação social e política na vida campesina se faz necessário no enfretamento ao êxodo rural. Entretanto, seu alcance ainda não tem garantido a permanência dos agricultores em suas terras. A reprodução da lógica do capital tem produzido nos territórios rurais a forte alienação de uma sociedade fundamentada no individualismo e no consumismo descartável, que propaga a falsa ideia do “ter” em detrimento do “ser”. O êxodo rural é, portanto, o fruto de um longo processo sócio-histórico de transformação da sociedade em mercadoria a ser comprada a baixo custo pelo capital em sua avassaladora busca pela lucratividade e encontra no Estado o firme amparo para manutenção de sua lógica exploradora e segregadora. Nesse sentido, é possível analisar que as motivações que emergem nos fluxos migratórios resultam da falta de condições específicas para o desenvolvimento do campo que primem por um sistema agrário favorável ao pequeno agricultor. referências ARAÚJO, A. M. M. O êxodo dos trabalhadores rurais para cidades à luz de Lefbvre. Scripta Nova: Revista Eletrônica de Geografia Y Ciências Sociales, Barcelona. v. 6, n. 119, ago. 2002. FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 27 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1998. IAMAMOTO, M. V. Serviço social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 7 ed. São Paulo: Cortez, 2012. Os processos migratórios nos territórios rurais no Estado do Ceará têm produzido a Revista Diálogos Acadêmicos, Fortaleza, v. 4, n. 1, jan./jun. 2015. 66 LACERDA, K. C. A. Migração e seletividade no mercado de trabalho de Fortaleza: uma análise empírica. Fortaleza: Instituto de Pesquisa e Estratégica Econômica do Ceará, 2005. a r t i g o s LIMA, P. V. P. S.; KHAN A. S.; CASIMIRO FILHO, F.; VIANA, J. J. Políticas públicas e desenvolvimento sustentável. R. Pol. Públ., São Luís, v. 15, n. 1, p. 85-97, jan./jun. 2011 NEVES, F. C. A seca na história do Ceara. In: SOUSA, Simone de (Org.). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007. PONTE, S. R. A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle. In: SOUSA, Simone de (Org.). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007. QUEIROZ, Raquel de. O Quinze. 89 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. SILVA, J. G. O que é questão agrária. 10 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. VEIGA, E. J. 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