Artigo 31

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O dicionário enquanto documento
identitário das comunidades
lingüísticas ameríndias
Daniela Dal Fabbro
Mestre em Lingüística Aplicada na área de Tradução - UNICAMP
Professora da Faculdade Comunitária de Limeira
e-mail: [email protected]
Resumo
Os dicionários devem sua existência, em parte, aos interesses de investigação dos cientistas por línguas representantes de
comunidades marginalizadas ou excluídas da relação de interesses das sociedades dominantes, caso das comunidades indígenas
latino-americanas; outra parte, os dicionários existem graças a diferentes necessidades das comunidades lingüísticas que
representam. Um dicionário é o documento de identidade primeiro de uma sociedade, onde fica registrado todo o percurso
histórico-evolutivo pelo qual passou sua língua. Nesse sentido, é fundamental distinguir a lexicografia feita em função de uma
descrição lingüística da lexicografia feita em benefício dos falantes de uma determinada comunidade. Se por um lado, faz-se
necessário uma lexicografia descritiva voltada para o léxico, que respeite os métodos de compilação e edição exigidos pela
elaboração documental do léxico de uma língua tal como o utilizam seus falantes; por outro lado, é preciso lembrar que a
lexicografia nasceu de uma necessidade social e informativa muito tempo antes da Lingüística se constituir como ciência. O
presente artigo tem como objetivo discutir de modo crítico o fazer dicionarístico e o papel do lexicógrafo nesse processo. O intuito
aqui é o de garantir, através de uma discussão respaldada na teoria lingüística, que as línguas ameríndias, em especial, saiam de
um plano meramente técnico-descritivo, passando a integrar um plano que as façam emergir do ostracismo, legitimando sua
identidade social e cultural.
Palavras-chave: dicionários, línguas ameríndias, lexicografia, lingüística.
Introdução
“La palabra humana es más expresiva y duradera
que el monumento. Señálense las palabras que
usaba un pueblo y se sabrá sus ideas, lo que se
hallaba al alcance de sus manos ó de su
inteligencia, lo que se conocía, lo que se
ignoraba.” (Escritos del Doctor D. Tomás de
Avellaneda, T. I, 1883, pág.100. in Diccionario
Argentino de Tobías Garzón, 1910)
A elaboração de dicionários tem vindo de
encontro, ao longo dos anos, a diferentes necessidades
das comunidades lingüísticas que representam. Um
dicionário é o documento de identidade primeiro de uma
sociedade, onde fica registrado todo o percurso
histórico-evolutivo pelo qual passou sua língua. Nesse
sentido, os dicionários têm sua existência creditada
também aos diferentes interesses de investigação dos
cientistas, que se interessam tanto pelo registro histórico
quanto pela ação documental de línguas cujo inventário
escrito é pequeno, muitas vezes, por representar
comunidades lingüísticas marginalizadas ou excluídas da
relação de interesses das sociedades dominantes, como
é o caso das comunidades indígenas latino-americanas.
Esse processo deixa à margem uma produção que
poderia ter um caráter mais voltado para o discurso de
natureza poético-narrativa, por exemplo, do que a um
caráter meramente científico, cuja finalidade maior é
responder unicamente a questões levantadas por um
seleto grupo de antropólogos e lingüistas. O presente
artigo tem como objetivo discutir de modo crítico o fazer
dicionarístico e o papel do lexicógrafo nesse processo.
O intuito aqui é o de garantir, através de uma discussão
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respaldada na teoria lingüística, que as línguas ameríndias,
em especial, saiam de um plano meramente técnicodescritivo, passando a integrar um plano que as façam
emergir do ostracismo, legitimando sua identidade social
e cultural.
Este artigo está organizado da seguinte maneira: a
seção 2 apresenta os conceitos pertinentes à discussão
a que se propõe este artigo, introduzindo em seguida
uma reflexão sobre a função social que pode
desempenhar o dicionário. os principais sistemas
empregados por diversas comunidades lingüísticas em
situações de uso escrito. Os subsídios para a comparação
entre a produção de dicionários de sociedades
dominantes e sociedades indígenas são oferecidos na
seção 3 deste trabalho, em que se apresenta a análise
de dois dicionários da língua inglesa, ao lado de uma
reflexão sobre o papel do lexicógrafo visando um melhor
padrão de formatação de dicionários. Continuando a
comparação entre os dois tipos de dicionários, na seção
4, apresenta-se a análise de um dicionário bilíngüe
espanhol-mixteco, língua falada por uma comunidade
indígena no México. Por fim, as conclusões são
encaminhadas na seção 5.
O dicionário: conceitos e função social
Para falar em dicionários é necessário esclarecer
alguns conceitos recorrentes naquilo que tange o universo
lexical. Inicialmente, cabe mencionarmos os três níveis
de análise lexical propostos por Bartholomew e
Schoenhals (1983). De acordo com os autores, haveria
dois níveis de análise lexical considerados preliminares e
opostos a um terceiro nível considerado relativamente
completo: os dois primeiros referem-se à lista de
palavras (word list level) e ao glossário (glossary
level), enquanto que o último nível corresponde àquele
em que se enquadra o dicionário (dictionary level).
Dessa forma, a lista de palavras refere-se à prática
comum de usar uma lista em uma dada língua A para
elucidar palavras correspondentes em uma língua B. Tal
prática tem sido útil para agrupar línguas de acordo com
sua proximidade lingüística, bem como para a
reconstrução comparativa de itens lexicais da língua-mãe.
O problema dessa técnica é que nem sempre a
correspondência entre os significados de palavras de uma
língua para outra é recíproca.
O glossário, por sua vez, corresponderia a um tipo
de vocabulário incluso em livros de ensino de línguas e
fornece ao aprendiz equivalentes de palavras ou frases
da língua A, explicitando seu uso de acordo com
contextos específicos. Normalmente, a seleção de
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palavras e frases é feita com base em sua ocorrência
dentro do livro-texto em questão. Segundo os autores,
o nível em que se situam os glossários é um nível
relativamente próximo ao dos dicionários, uma vez que
examinam cada palavra de acordo com seu uso em
determinado contexto, apresentando equivalentes
apropriados para cada um.
O nível em que são enquadrados os dicionários
propõe, conforme postulam os autores, um tratamento
relativamente completo a palavras significativas. Muitos
dicionários refletem a análise cuidadosa de uma equipe
de pesquisadores que pretensamente tentam se impor
através das conclusões em seus trabalhos. A tarefa a
que se propõe quando da elaboração de um dicionário
é identificar o significado básico de uma entrada, seus
significados secundários mais comuns e seus usos
idiomáticos. Todas essas informações relacionadas a uma
dada palavra ou entrada constituem aquilo a que se
denomina artigo de um dicionário.
Nesse sentido, há que se considerar aqui alguns
conceitos importantes para nossa discussão, tais como:
lexicografia, lexicologia, lema e lematização, tipos de
dicionários e público-alvo. De acordo com Porto
Dapena (2002), lexicografia e dicionário referem-se
a dois conceitos que se pressupõem, embora ambos com
definições bastante problemáticas. O autor distingue,
primeiramente, lexicografia de lexicologia: aquela
compreenderia a elaboração dos dicionários, esta poderia
consistir em uma disciplina lingüística, que assim como
outras disciplinas da área, estaria voltada ao estudo das
palavras. Podemos dizer, resumidamente que o que se
depreende da leitura do texto de Porto Dapena é que a
lexicologia aborda o “estudo geral ou particular do
léxico” (p.23), enquanto disciplina lingüística que é; já a
lexicografia corresponde à “disciplina que se ocupa de
tudo o que concerne aos dicionários, tanto ao que se
refere ao seu conteúdo científico (estudo do léxico), como
à elaboração material e às técnicas adotadas em sua
realização” (p. 23), equivalendo, nesse sentido, a algo
mais técnico.
A fim de definirmos lema e lematização
lançaremos mão do texto de Frawley et al (2002), em
que os autores discutem aspectos importantes quanto à
elaboração de dicionários. Nesse texto, entradas
(headwords) são itens que iniciam um artigo de
dicionário, constituindo-se no próprio objeto de
definição; são os chamados lemas, “abstrações que
assumem outras formas relacionadas entre si tanto
morfológica quanto semanticamente” (p. 03). De acordo
com os mesmos autores, a lematização1, enquanto
processo pelo qual uma entrada torna-se não uma palavra
em si, mas um “indicador abstrato”, constitui um
procedimento extremamente complicado nas línguas
indígenas. O motivo varia de língua para língua, mas em
geral está relacionado à maneira pela qual as línguas
indígenas têm seu léxico morfologia e semanticamente
organizado, causando uma dificuldade em escolher
determinada forma base como lema em detrimento de
outra.
Finalmente, em relação ao conceito de dicionários
propriamente dito, Porto Dapena (2002) postula que,
em linhas gerais, um dicionário é uma descrição do léxico
concebida como um fichário em que cada ficha
corresponde a um artigo em que se estuda uma
determinada palavra. A finalidade de um dicionário,
segundo o autor, seria a de resolver “necessidades
concretas”, tais como solucionar, em primeiro lugar,
dúvidas que possam surgir com relação às palavras e,
em segundo lugar, garantir que tal resolução ocorra do
modo mais rápido, eficaz e preciso possível.
No texto de Haensch et al (1982), apresenta-se
uma distinção entre dicionários gerais e específicos. Um
dicionário geral, freqüentemente mais complexo no que
se refere à sua elaboração, dirige-se a um público-alvo
constituído por aquilo que, por exemplo, a publicação
Grand Larousse de la langue française (apud op. cit.,
p. 398) define como “leitor culto”. Já os dicionários
específicos estariam voltados a necessidades específicas,
como o caso de dicionários escolares, que têm como
público-alvo alunos do ensino médio e fundamental,
devendo por isso, apresentar definições simples e claras,
evitar tecnicismos e palavras ditas “vulgares” e, sempre
que possível, apresentar certa variedade de ilustrações
e informações gramaticais.
De acordo com Haensch et al (op. cit.), é
importante definir também qual o critério de seleção
lexical empregado na elaboração do dicionário em
questão. Além do público-alvo, são três os critérios, dois
externos (a finalidade - descritiva, normativa, etc. - e
sua extensão) e um interno (o método de seleção das
unidades lexicais). Tais aspectos configuram informações
adicionais de extrema importância, que devem vir
explicitadas no texto introdutório de todo dicionário,
segundo o que nos colocam os autores e que
consideramos fundamental para o desenvolvimento deste
trabalho.
Podemos dizer que a Ciência Lingüística atual,
certamente, vive ainda a era da primazia da fala sobre a
escrita, assim como também vive às expensas da busca
por uma suposta “naturalidade” da fala. Cabe ressaltar,
contudo, que nem por isso, o discurso escrito deve ser
menosprezado; obviamente, enquanto discurso e objeto
de estudo igualmente legítimo da ciência da linguagem, a
escrita merece seu “lugar ao sol”.
Assim é que Lara (2003), com o evidente objetivo
de situar o dicionário para além de uma perspectiva
meramente metodológico-lexicográfica, questiona a
concepção cientificista que lhe atribuem outras disciplinas
da Lingüística, tais como, História das Línguas ou
Lingüística Descritiva. Tais disciplinas viriam a se basear
nos dicionários, especialmente aqueles confeccionados
por missionários europeus nos séculos XVI e XVIII,
fiando-se apenas nos aspectos histórico-documentais das
línguas que retratavam, sem considerar sua realidade
lexicográfica, a saber, o público a que se destinavam, a
espécie de vocabulário que retratavam, como foram
elaborados ou como era interpretada a tradição
lexicográfica que precedeu seus autores.
Segundo o autor, para fins de investigação de uma
dada língua, não se pode fazer uso do dicionário dentro
de um mero passo-a-passo, em que sua consulta venha
ao final de uma exaustiva descrição “fono-morfosintática”. Tomando-se como parâmetro o valor cultural
da análise semântica, há que se considerar o contexto
semântico como aquele a oferecer, com mais eficácia,
as chaves para uma interpretação mais ao alcance dos
leitores em potencial.
Para Lara (op.cit.), é fundamental distinguir a
lexicografia feita como parte de uma descrição lingüística
do sistema da lexicografia feita em benefício dos falantes.
Se por um lado, faz-se necessário uma lexicografia
descritiva voltada para o léxico, que respeite os métodos
de compilação e edição exigidos pela elaboração
documental do léxico de uma língua tal como o utilizam
seus falantes; por outro lado, é preciso lembrar, como
convenientemente coloca o autor, que a lexicografia
nasceu de uma necessidade social e informativa muito
tempo antes da Lingüística se constituir como ciência.
Tal divisão de conceitos conduz a duas noções
distintas de dicionários propostas pelo autor: o dicionário
lingüístico (científico) e o dicionário social. Em sua
opinião, este último desempenha um papel que vai além
do desempenhado pelo dicionário lingüístico, já que para
os falantes a língua ficaria reduzida a uma descrição
meramente técnica. Não se trata, na verdade, de
simplesmente sublimar os dicionários, mas sim de
reivindicar para aquelas línguas que há anos vem sido
objeto profícuo de estudo para muitos lingüistas,
sobretudo as ameríndias, o mesmo olhar, o mesmo
tratamento dispensado às chamadas línguas “de cultura”,
i.e., as línguas das civilizações ocidentais que não ficam
relegadas ao plano da análise técnico-descritiva. É
necessário afastar das línguas ameríndias e de outras todo
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o preconceito que as restrinja a meras produções que,
sequer poderiam ser reconhecidas como “fenômenos
verbais complexos”, dado seu caráter técnico; quanto
mais, obras que pudessem ser consideradas “discursos
elaborados”.
Nesse sentido, o autor defende a idéia de uma
“teoria do dicionário” como parte das teorias que
abordam os discursos e, conseqüentemente, de uma
teoria da significação humana, todas elas formando a
teoria da linguagem. A teoria assim concebida estaria
fundamentada sobre dois pontos principais: uma história
dos dicionários (enquanto fenômenos verbais, culturais
e simbólicos) e outra história da lexicografia, que,
segundo Lara, não se estabelece enquanto teoria, mas
sim, como metodologia, uma vez que não se constitui
por si só em fenômeno verbal.
Ainda, no tocante à lexicografia, cabe ressaltar
que, da mesma forma como podemos distinguir o
dicionário lingüístico do social, também podemos
distinguir uma lexicografia descritiva, que serve à
taxonomia lingüística, portanto, ao dicionário científico;
de uma lexicografia social, que servirá à produção dos
dicionários sociais. Esta última, de acordo com Lara,
devendo calcar-se nos fundamentos da Lingüística,
ciência que permite melhor compreender as línguas e
seus vocabulários e cuja ausência leva à produção de
obras ruins: “a prática tradicional e o desdém pela
metodologia séria e pelos conhecimentos lingüísticos
continuam dando lugar a dicionários de má qualidade”
(2003, p. 48).
Disso resulta que, elaborar dicionários de boa
qualidade é garantir o respeito e as condições necessárias
às sociedades aborígines para viverem com autonomia
e liberdade, considerando-se dicionário como “(...) uma
obra que supera a necessidade de informação para dar
lugar à verdadeira construção social do significado e ao
papel determinante que têm os dicionários nas culturas
verbais que conhecemos e apreciamos” (op.cit., p. 49).
Como bem coloca o autor, “(...) en donde terminan
los métodos, comienza el arte del diccionario ...”
(idem, p. 46).
Os dicionários de sociedades dominantes e o
papel do lexicógrafo
A fim de estabelecermos parâmetros para avaliar
o tratamento dispensado a cada tipo de dicionário (de
línguas ocidentais e de línguas ameríndias), apresentamos
a seguir, o trabalho de Atkins (et alli, 1986), em que se
discute o papel do lexicógrafo na elaboração de
dicionários. Nesse trabalho, os autores examinam como
230
os vários componentes de entradas lexicais,
particularmente as frases-exemplo, são usados para
apresentar informações sobre vários tipos de interações
de significado / forma em dois dicionários estudantis:
Longman Dictionary of Contemporary English
(Procter, 1978), aqui denominado LDOCE; e Oxford
Advanced Learner’s Dictionary of Current English
(Hornby, 1974), denominado OALD.
Em geral, os exemplos que ilustram os usos de
um item lexical ocupam uma porção significativa do
espaço destinado a qualquer entrada em dicionários.
Nesse sentido, uma entrada lexical compreensível seria
aquela que indica cada um dos sentidos de um item lexical
juntamente com sua definição e um código metalingüístico
indicando seu uso sintático.
As frases-exemplo podem tão somente reforçar
a informação dada em outro lugar da entrada,
representando expressões idiomáticas, colocações e usos
idiossincráticos. Entretanto, também servem a uma
função mais sutil, que faz uma contribuição única à
informação metalingüística expressa por uma entrada
lexical. Elas desempenham papel determinante ao revelar
ao usuário de dicionários variações sistemáticas sutis no
significado de um verbo relacionado ao seu contexto
sintático.
De acordo com o que dispõem os autores, é
preciso entender em que implica aprender um verbo, a
saber:
- aprender seu significado, isto é, ações, estados
e processos que podem envolver um número de
participantes (os argumentos verbais);
- aprender sobre esses participantes e as várias
maneiras pelas quais podem ser sintaticamente expressos
enquanto frases nominais ou frases de outras categorias
sintáticas (propriedades de complementação verbal),
entendendo o que distingue cada uma das expressões
alternativas;
- colocar o verbo dentro do grande esquema
organizacional de verbos em inglês, já que o escopo
definido pelos autores incide sobre verbos da língua
inglesa.
Isto posto, cabe ilustrar com exemplos fornecidos
no próprio trabalho ora em discussão, o que os autores
denominam propriedades de complementação verbal e
frases nominais e de outros tipos. Assim, considerando
o verbo “comer” (eat), temos um verbo de atividade
(ingestão), denotando uma ação que envolve dois
participantes: o agente que desempenha a ação de comer
e aquilo que é comido. O verbo tem tanto um uso
transitivo como intransitivo nos quais os participantes da
ação ocupam, em inglês, a função de frases nominais.
Os autores alertam para o fato de que as
interdependências entre o signifcado de um verbo e suas
propriedades de complementação não podem ser
ignoradas num dicionário porque diferentes conjuntos
de interações caracterizam verbos de diferentes tipos.
Dessa maneira, ao se considerar as sentenças
apresentadas no texto: Mike ate the cake / Mike ate,
(Mike comeu o bolo / Mike comeu), não se verifica
qualquer empecilho, digamos, semântico. Já com a
sentença Mike ate paper (Mike comeu papel), o mesmo
não se verifica, ocorre um uso inadequado envolvendo
um dos participantes da complementação verbal de eat,
a saber, uma restrição semântica do objeto “paper”.
Cabe ressaltar, dentro de tal análise, que as
relações entre os usos verbais transitivos e intransitivos
podem diferir de um verbo para outro, o que se verifica
nas seguintes sentenças: Janet broke the cup (Janet
quebrou o copo) e The cup broke (O copo quebrou),
ocorrendo aqui que agente e paciente trocam de posições
quanto à transitividade do verbo break.
Cada uma das alternâncias não é exclusividade
dos dois verbos mencionados (break / eat), mas
especificam padrões de alternância associados a uma
classe semântica específica de verbos. Tais alternâncias
demonstram interações complexas entre o significado
verbal e sua propriedade de complementação. Segundo
os autores, convém observar que o fato de que padrões
particulares são comuns a classes verbais cujos membros
compartilham certos elementos de significação indica que
a relação semântica entre tais pares de usos transitivo e
intransitivo de um verbo não são arbitrários.
É importante considerar que a entrada lexical de
um verbo deve fornecer aos usuários tudo o que eles
precisam saber a fim de empregar um verbo
adequadamente. A tarefa do lexicógrafo é determinar o
que a entrada lexical deve incluir e qual a melhor forma
de apresentar essa informação ao usuário a fim de atingir
tal objetivo.
De acordo com Atkins (et alli), a inclusão de
frases-exemplo fornece ao usuário de dicionários
informações essenciais para a integração apropriada do
significado de um dado verbo com suas propriedades
de complementação, o que facilita sua colocação no
grande esquema organizacional de verbos em inglês.
As propriedades verbais ilustradas através de
frases-exemplo são aquelas que precisamente os estudos
lingüísticos reconhecem como centrais para a
classificação verbal. O prevalecimento de tais frases indica
o reconhecimento que o lexicógrafo tem de sua
importância.
Os próprios autores assumem que o maior escopo
de seu trabalho incide sobre a questão das “complexas”
interações entre transitividade e significado, uma vez que
não é fácil apresentar ao usuário informações úteis sobre
transitividade. Essencialmente, o que se coloca é que a
distinção transitividade / intransitividade fornece uma
indicação geral da estrutura sintática do verbo.
Embora em nível muito abstrato, a noção de
transitividade reflete as propriedades de complementação
verbal que dependem do significado verbal. Esses dois
aspectos da transitividade, complemento e significado
verbal, nem sempre são fáceis de serem relacionados
de modo a tornar produtiva a utilização do dicionário.
As entradas lexicais nos dicionários indicam
categorias sintáticas. Geralmente, observam os autores,
qualquer dicionário, até mesmo os mais resumidos,
apresentam informações relativas à transitividade dos
verbos. Isso requer que se determine o que de fato
constitui o uso transitivo de um verbo frente ao seu uso
intransitivo, questão que pode ser iluminada pela teoria
lingüística. Uma vez apresentadas as opções, cabe ao
lexicógrafo decidir como organizar as entradas lexicais
de modo a fornecer informações adequadas ao usuário.
Nesse sentido, nem a tarefa do lingüista, nem a do
lexicógrafo é simples.
A princípio, um verbo transitivo envolve um sujeito
e um objeto direto, como demolir (demolish: The men
demolished the old building), enquanto que um verbo
intransitivo envolve apenas um sujeito. (arrive: The
visitors have arrived). Em inglês, sujeito e objeto direto
são considerados frases nominais pré e pós verbais,
respectivamente. Uma segunda característica de verbos
transitivos refere-se ao fato de poderem ser empregados
na voz passiva. Ex.: cortar (cut - The cook cut the cake;
*The cook cut; The cake was cut by the cook). Dessa
forma, um verbo intransitivo não cumpriria uma ou outra
regra, a saber, possuir um objeto direto e admitir voz
passiva.
Acontece por vezes, porém, de um verbo por em
conflito as mencionadas regras de transitividade, como
o caso dos verbos considerados simultaneamente
transitivos e intransitivos (eat). No caso de verbos como
eat, há na realidade um objeto implícito quanto ao seu
uso intransitivo, o que demonstra que esse verbo
descumpre a regra de “possuir um objeto direto” apenas
em sentido mais restrito. Pode ocorrer também o inverso,
quando um verbo que parece ser transitivo possui um
objeto implícito, mas não admite a voz passiva, o que
vem de encontro de encontro à segunda propriedade
dos verbos transitivos (o exemplo dado pelos autores
nesse caso é o do verbo caber, servir – fit, que não
admitiria a sentença: *I am fitted).
231
Ainda que um dicionário deva informar de alguma
forma que verbos como fit não são prototipicamente
transitivos, uma análise detalhada de casos como esse
cabe à Lingüística. De fato, nesse sentido, alguns casos
problemáticos de transitividade são reconhecidos e
analisados pelos lexicógrafos.
Por todos esses motivos, os autores afirmam a
dificuldade em se definir um verbo enquanto transitivo
ou intransitivo. Entre os lingüistas, a definição tem sido
controversa. Os autores consideram que as pesquisas
bem sucedidas são aquelas que isolam, dando um
tratamento diferenciado, os casos problemáticos como
dos verbos intransitivos dormir (sleep) e florescer
(bloom), por exemplo. Por esse motivo, fundamentam
seu trabalho na Hipótese da Ergatividade (Unaccusative
Hypothesis ou Ergative Hypothesis). Tal hipótese tem
resultado em importantes implicações aos lexicógrafos,
uma vez que identifica um número significativo de
diagnósticos na distinção entre os dois tipos de verbos
intransitivos.
Os lexicógrafos, por sua vez, têm de considerar
aspectos mais pragmáticos e não podem esperar por
uma resposta da teoria lingüística quanto ao que é ou
não um verbo transitivo. Alguns recursos adotados por
eles, por vezes, têm-nos levado a arcar com alguns dos
mais problemáticos aspectos da transitividade, à medida
que desenvolvem esquemas de classificação verbal cada
vez mais elaborados. Alguns dicionários introduzem uma
classe de verbos de ligação, como o LDOCE, ou verbos
que envolvem adjuntos adverbiais, como o OALD,
ambos examinados pelos autores. Muitos dicionários,
contudo, definem a transitividade de um verbo apenas
com base na presença ou ausência de um objeto. Quando
assumem, em face de um caso problemático, que um
verbo pode ser tanto transitivo como intransitivo (como
no caso de eat – comer - ou sleep – dormir), outros
problemas de organização podem surgir.
Muitos fabricantes de dicionários partem do
princípio que a única coisa que um usuário pode
determinar ao se defrontar com uma palavra
desconhecida em um determinado contexto, é a parte
do discurso a qual pertence um determinado uso
transitivo daquela palavra. Nesse caso, todos os sentidos
transitivos de um verbo são apresentados em um grupo
separadamente dos usos intransitivos do mesmo verbo.
O problema dessa estratégia é que há casos em que se
apresentam maiores relações semânticas entre usos
transitivos e intransitivos de um mesmo verbo, do que
entre os usos exclusivamente transitivos ou não. Tais casos
não caracterizam um ou outro verbo em particular, mas
fazem parte da organização lexical do inglês. Na opinião
232
de Atkins (et alli), uma entrada lexical deveria deixar
isso claro ao usuário.
Outros dicionários adotam um recurso
diametralmente oposto ao mencionado anteriormente:
cada subentrada é destinada a um sentido específico do
verbo, independentemente de ser transitivo, intransitivo
ou ambos. Na opinião dos autores, os dicionários que
recorrem a essa medida (tais como o LDOCE e OALD)
apresentam melhores condições de lidar com o problema
que se coloca a partir dos pares transitivos e intransitivos.
O importante é que a adoção de uma ou outra
medida a fim de se organizar dicionários, cabe ao
lexicógrafo decidir, considerando as implicações de cada
uma com cuidado: se deve considerar a entrada lexical
de um verbo a partir da perspectiva de seu significado
ou de suas propriedades de complementação. Os autores
opinam que na medida em que as propriedades de
complementação de um verbo refletem seus possíveis
significados, é preferível o emprego do critério baseado
no sentido.
Um bom dicionário deve ser talhado para os
usuários aos quais se destina, um dicionário estudantil,
em particular, deve ser simples, claro e fácil de usar. Deve
apresentar informação suficiente sobre cada item lexical
a fim de permitir ao usuário empregá-lo adequadamente.
Os lexicógrafos são convenientemente inteirados das
necessidades dos usuários, bem como das limitações de
tempo e espaço e da existência de relatos lingüísticos
apenas parciais do fenômeno em questão. Eles evitam
sobrecarregar o usuário com informações
demasiadamente detalhadas ou complexas. Por questões
de ordem prática, são freqüentemente obrigados a
apresentar uma caracterização não-exaustiva da entrada
lexical. Nesse sentido, exemplos constituem um modo
mais eficaz de fornecer informações ao usuário, não
apenas por tornar a informação em si mais inteligível,
mas também por expressar informações com as quais a
metalinguagem não consegue arcar. É importante
observar, como pontuam os autores, que as pessoas
parecem ser capazes de inferir com mais facilidade um
princípio ou regra a partir de um exemplo da língua natural
do que a partir de uma descrição sintática ou outra
informação metalingüística.
Nos dicionários estudantis, as frases-exemplo
desempenham um papel multifacetado ao expressar as
correlações de forma / significado características de uma
dada palavra. Elas reforçam as informações expressas
na definição de sentido, no código sintático, ou em
ambos, fornecendo as mesmas informações num formato
diferente. A diferença que se coloca é que a descrição
metalingüística explícita, muitas vezes, não consegue ser
tão clara para o usuário quanto à informação implícita
veiculada pelos exemplos.
As informações relevantes às interdependências
de forma e sentido não devem apenas ser expressas
convenientemente em cada entrada lexical, mas também
deveriam ser expressas de modo compreensível e
consistente através das entradas lexicais.
O que é de fato necessário não é meramente uma
questão de elaborar ou modificar as entradas lexicais
existentes, como por exemplo, por meio da expansão
de conjuntos de códigos sintáticos ou da proliferação
do número de sentidos numa dada entrada. O que os
autores sugerem é que se reestruture totalmente a
maneira pela qual são abordados os verbos nos
dicionários. Qualquer verbo toma parte em apenas um
subgrupo de padrões de alternância possíveis. Contudo,
se um dicionário tem a intenção de fornecer informações
compreensíveis e consistentes sobre alternância, nada
pode ficar implícito. As entradas verbais que não se
voltam a todas as opções devem equiparar-se àquelas
que o fazem. Explicitar um conhecimento por natureza
implícito num dicionário só é possível no contexto de
uma teoria da organização lexical e isso pode constituirse numa contribuição da Lingüística. Dessa forma,
postula-se que a construção de dicionários deveria tirar
proveito do trabalho teórico da Lingüística ao organizar
o vocabulário.
A Lexicografia é uma arte: um bom lexicógrafo
deve ser capaz de escrever um dicionário destinado a
quase qualquer especificidade. Para Atkins (et alli), o
padrão no qual são formatados os dicionários atualmente
apresenta certas limitações que, na verdade, podem ser
demudadas em traços de eficácia, à medida que forem
cuidadosa e consistentemente escritos e baseados numa
boa descrição teórica. O que o lexicógrafo tem a oferecer
ao lingüista é a habilidade de fornecer qualquer número
de exemplos, contra-exemplos e fenômenos interrelacionados. Por fim, cabe ressaltar que se torna
necessário promover a aproximação entre lexicógrafos
e lingüistas a fim de que se reconheçam os benefícios da
colaboração para ambos.
O olhar voltado para um dicionário de língua
ameríndia: Diccionario Mixteco de San Juan
Colorado
Continuando o levantamento que distingue a
elaboração de cada tipo de dicionário avaliado neste
trabalho, esta seção apresenta a análise crítica de um
dicionário bilíngüe de Mixteco (língua indígena falada no
México) / Espanhol.
Inicialmente, seria interessante considerar a divisão
do dicionário aqui estudado:
™ Introdução
™ O alfabeto mixteco
™ Estrutura do artigo no dicionário
™ Abreviações empregadas
™ Primeira parte: dicionário mixteco-espanhol
™ Segunda parte: dicionário espanhol-mixteco
™ Terceira parte: a gramática mixteca
™Apêndices (A, B, C, D, E, F, G, H) e bibliografia
A introdução do Dicionário Mixteco, além de
informações sobre seu conteúdo, traz também
informações a respeito da língua falada pelos mixtecos
de San Juan Colorado, distrito de Jamiltepec, estado de
Oaxaca, México. Além de dados estatísticos (quantidade
de falantes do idioma e sua distribuição geográfica de
acordo com os diferentes grupos a que pertencem), o
texto também apresenta dados históricos, remontando
ao período anterior à ocupação espanhola no México.
São abordados, ainda, aspectos culturais dos povos
mixtecos, particularmente no tocante a suas habilidades
artísticas, que datam de tempos remotos (1350 e 1500),
estendendo-se até os dias atuais.
Algumas observações interessantes fazem
menção, por exemplo, à primeira gramática e ao primeiro
vocabulário de Mixteco2 publicados no país, ambos no
ano de 1593, por dois religiosos: freis Antonio de los
Reyes e Francisco de Alvarado, respectivamente. Com
relação à situação sócio-comunicativa dos falantes, os
autores advertem que San Juan é um lugar afastado dos
meios de comunicação3 e que todos os habitantes falam
mixteco, sendo o espanhol usado muito raramente. O
texto de introdução encerra-se, elucidando que a
publicação inclui a maioria das palavras básicas da língua
e que um volume maior seria necessário a fim de arrolar
“todas as palavras que existem em mixteco”. Cabe aqui
uma ressalva, ou ao menos, um questionamento: seria
viável a elaboração de um volume maior em que se
apresentasse “todas as palavras que existem em
mixteco”? Creditamos essa postura a certo atributo de
autoridade de que comumente são dotadas as obras
lexicográficas. Nesse sentido, Ferreira (2002) 4 observa
que:
Algumas obras lexicográficas representam
tanto a autoridade como o prestígio e, assim sendo,
são reconhecidas por estas características pelos
usuários. Embora formalmente tais aspectos não
façam parte explícita dos manuais de organização
das obras lexicográficas, reconhecemos que tais
marcas determinam as escolhas de diferentes grupos
233
sociais quanto aos dicionários.
Seguindo-se à introdução, é apresentado ao leitor
o alfabeto mixteco. Com base nos fonemas da língua
espanhola, são listadas palavras que apresentam o fone
correspondente ao grafema em questão, com a
observação por parte dos autores de que “a maioria das
letras do alfabeto mixteco é igual às do espanhol e se
pronuncia de maneira semelhante”.
O item intitulado “Estructura del artícolo en el
diccionario” apresenta ao leitor informações de ordem
mais técnica quanto ao manuseio da publicação,
demonstrando a organização dos artigos. Assim, são
explicadas como se apresentam os lemas e de que modo
estão formatados, a fim de facilitar ao leitor o
reconhecimento de que tipo de informação se trata. Cada
lema vem destacado em negrito, seguido de sua
representação fonêmica, indicando o tom (alto, médio
ou baixo) da palavra em questão, entre parênteses e
formato regular. Na seqüência, introduz-se a classe
gramatical a que pertence o lema, destacada em itálico,
e a tradução ou significado do vocábulo, em formato
regular. A maioria dos artigos do dicionário lança mão
das frases-exemplo em mixteco para demonstrar o
emprego do vocábulo apresentado, seguido de sua
tradução para o espanhol.
Os autores ressaltam ainda que alguns artigos
podem apresentar partes adicionais, como mais de uma
acepção para um mesmo lema. Neste caso, cada
acepção recebe um número antes da glosa em espanhol
e uma oração ilustrando seu uso. Pode ocorrer também
o emprego de colchetes para introduzir qualquer
informação lingüística considerada indispensável para a
adequada flexão da palavra.
Em alguns casos, podem-se constatar entradas de
lemas secundários, que representam palavras ou frases
derivadas do lema principal. Tais lemas derivativos
aparecem também em negrito, seguindo a ordem
alfabética a que corresponde. No caso de lemas que
não possuem correspondência em espanhol, apresentase, em itálico, uma breve explicação sobre o uso da
palavra em questão. Raízes de palavras e prefixos
(seguidos de hífen e acompanhados da designação
prefixo) também são incluídas como lemas.
Em seguida, os autores explicam como é feita a
entrada de lemas que representam os verbos da língua
mixteca, questão muito controversa entre os estudiosos.
No caso do mixteco, os verbos são registrados
conjugados no presente da primeira pessoa do plural
inclusivo. No final do artigo, entre colchetes, constam as
formas do futuro e do pretérito. Quanto aos verbos
irregulares, uma lista de vocábulos, acomoda-os em
234
entradas menores, seguidos da indicação de tom entre
parênteses, da identificação flexional e de sua forma
conjugada no presente, que corresponde ao lema
principal.
A todas essas informações, que podemos
considerar de ordem mais prática, seguem mais algumas
observações quanto à organização alfabética dos lemas
e outras rápidas explicações fonológicas. Cabe ressaltar
aqui, que ao final do dicionário os autores apresentam
uma elaboração da Gramática da língua em que constam
informações a respeito da fonologia mixteca, até aquelas
tradicionalmente tidas por gramaticais (classes de nomes,
adjetivos, advérbios, modificadores, etc.).
Esse “capítulo” do dicionário encerra-se com uma
tímida menção a um provável tipo de leitor do dicionário,
a qual transcrevemos a seguir:
Para aquellos lectores que no son hablantes
del mixteco, es necesario saber que esta lengua tiene
muchas palabras compuestas. Esto puede causar
frustración al que busca por separada cada palabra
para descubrir el significado de una oración. (p. xi)
Com esta referência, retomamos a importante
observação de Haensch et al (op. cit.), segundo a qual
informações sobre finalidade do dicionário, público-alvo
a que se destina e critérios de seleção lexical devem vir
explicitadas logo na introdução da obra lexicográfica.
Como vemos, excetuando-se a pequena observação
feita a um possível leitor, nenhum dos três itens foi
observado no dicionário ora em estudo.
Antes do início dos artigos, os autores fornecem
uma pequena listagem com abreviações empregadas na
obra. Trata-se, em geral, de abreviações relativas à
nomenclatura gramatical.
O corpo do dicionário, propriamente dito, tem
início com a versão mixteco – espanhol, seguida do seu
inverso. Além de todos os detalhes fornecidos
anteriormente, vale enfatizarmos o emprego de
ilustrações, que não ultrapassam a quantia de duas por
página, e para as quais não há nenhum comentário por
parte dos autores.
A terceira parte do dicionário é uma compilação
da teoria gramatical da língua, estando assim dividida: a
fonologia; o substantivo; o pronome; o adjetivo; o verbo;
o advérbio; a preposição; a conjugação; índice da
gramática mixteca. Trata-se de uma parte da publicação
que apresenta informações teóricas com exemplificações
dos itens apresentados. Cabe observar que esse tipo de
informação não é usual entre dicionários de línguas
ocidentais.
A última parte do dicionário, “Apêndices e
bibliografia”, aquilo que seria a “Quarta parte”, apresenta
a seguinte subdivisão: Apêndice A (Saludos y
vocativos); Apêndice B (Las palabras compuestas que
usan iñi); Apêndice C (El telar de cintura); Apêndice
D (El trapiche de madera); Apêndice E (El cuerpo
humano); Apêndice F (Los números); Apêndice G (Los
tiempos em mixteco); Apêndice H (Los mapas).
Todos esses apêndices abordam questões, bem
como vocabulários ligados à cultura mixteca, o que torna
a proposta dos autores mais interessante, mas que ao
mesmo tempo nos leva a uma questão fundamental: qual
seria o público-alvo de tal dicionário? Essa é uma
questão que fica difícil de responder dada a variedade
de informações que os autores procuram fornecer, o que
não é necessariamente uma falha. Como já observamos,
a falha está na falta de informações, já na introdução do
dicionário, que venham de encontro a esse
questionamento.
Neste ponto, se retomarmos o que foi exposto na
introdução deste trabalho com relação aos três níveis de
análise lexical propostos por Bartholomew e Schoenhals
(1983), podemos levantar uma última questão, que
buscaria enquadrar o dicionário aqui estudado em um
dos três níveis de análise. Desta forma, não podemos
afirmar categoricamente que se trata de uma mera lista
de palavras, dado que a publicação apresenta
informações muito mais consistentes. Tampouco
podemos afirmar que se trata especificamente de um
dicionário, dado as informações com respeito à gramática
da língua, bem como os aspectos culturais fortemente
nele elucidados, o que o descredenciaria como tal. Restanos a opção de classificar a publicação como um
glossário, mas isso também não condiz com seu
conteúdo: as entradas em cada uma das línguas são muito
numerosas e não se limitam a ilustrar os textos
apresentados nos itens que abordam a gramática e os
aspectos culturais.
Talvez pudéssemos afirmar que se trata de uma
obra que reúne um dicionário bilíngüe e textos para
consultas com finalidades mais específicas quanto à língua
e a seus aspectos culturais. Trata-se de uma obra que
pode servir de apoio a pesquisadores (lingüistas e
antropólogos, entre outros), mas que não se configura
como essencial ou específica para esse tipo de público.
Fora desse grupo, poderíamos pensar em outras
possibilidades de público alvo: estudantes de espanhol,
tendo por língua materna o mixteco e vice-versa;
estudantes de mixteco, que tenham por língua materna
línguas aparentadas ao espanhol; eventuais turistas da
localidade de San Juan, Oaxaca.
Conclusão
O dicionário, em geral, deve ser aproveitado como
material de pesquisa não só para discutir questões
relacionadas à morfologia, etimologia, classificação
gramatical e prosódia, mas também para ampliar as
possibilidades, que se apresentam através dos
enunciados lexicográficos, de reconhecer marcas de
períodos históricos e do pensamento da época em que
foi organizada a obra, como preconceitos, devoções,
tendências sociais e regimes políticos vigentes. Conforme
propõe Ferreira (2002):
A intenção é inter-relacionar outras áreas do
conhecimento humano e realizar uma leitura mais
ampla do que aquela que se faz do dicionário como
simples decodificador de significados.
Quanto às tarefas da Lingüística, enquanto fonte
de informações e métodos fundamentais para a produção
de dicionários, uma prioridade é a elaboração de
descrições de boa qualidade, bem como a reunião e
sistematização de dados confiáveis e abrangentes das
línguas indígenas. De acordo com Seki (1999), da mesma
forma que isto representará uma contribuição para a
Lingüística, permitirá igualmente atender, em parte, a
demanda, das comunidades indígenas, quanto à
documentação de suas línguas e culturas. Assim, o
trabalho poderá contribuir para tornar essas línguas
“visíveis” às demais sociedades, com uma produção que
reflita sua verdadeira identidade cultural.
Referências Bibliográficas
BALLÓN, Enrique 1985. Introducción a la lexicografía
en lenguas andinas y selváticas. Amazonía Peruana v.
4(12): 59-115.
BARTHOLOMEU, Doris A. & SCHOENHALS, Louise
C. 1983. Bilingual dictionaries for indigenous
languages. México: SIL.
Diccionario Mixteco de San Juan Colorado.
Vocabularios Indigenas 29. Mexico: Instituto Lingüístico
de Verano, 1996.
FERREIRA, Angela M.C. Unidade e diversidade da
língua em duas edições do Dicionário da Real
Academia Espanhola (1947 e 1992): o léxico indígena
mexicano. RJ, UFRJ, 2002, dissertação de mestrado.
FRAWLEY, William et al 2002. Making dictionaries.
Preserving indigenous languages of the Americas.
Berkeley: UCLA.
HAENSCH, G. et al 1982. La lexicografía. De la
lingüística teórica a la lexicografía práctica. Madrid:
ed. Gredos.
LARA, Luis F. 2003. El diccionario y sus disciplinas.
Revista Internacional de Lingüística Iberoamericana
1: 35-49.
235
PORTO DAPENA, José-Álvaro. 2002. Manual de
técnica lexicográfica. Madrid: Arco/Libros, S.L.
SEKI, Luci. 1999. A lingüística indígena no Brasil.
D.E.L.T.A., Vol. 15, N.º ESPECIAL. pp. 257-290.
Sites consultados:
http://www.cce.ufsc.br. Acesso em 01/09/2006.
http://www.rae.es. Acesso em 07/09/2006.
Notas
1
Lematizar consiste em encontrar uma forma canônica
que sirva de entrada para determinado verbete.
2
Arte en lengua mixteca e Vocabulario en lengua
mixteca.
3
Cabe ressaltar, que se trata de uma publicação datada
do ano de 1986.
4
Disponível em: http://www.cce.ufsc.br. Acesso em
01/09/2006.
Recebido em 05 de outubro de 2007 e aprovado
12 de novembro de 2007.
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