O dicionário enquanto documento identitário das comunidades lingüísticas ameríndias Daniela Dal Fabbro Mestre em Lingüística Aplicada na área de Tradução - UNICAMP Professora da Faculdade Comunitária de Limeira e-mail: [email protected] Resumo Os dicionários devem sua existência, em parte, aos interesses de investigação dos cientistas por línguas representantes de comunidades marginalizadas ou excluídas da relação de interesses das sociedades dominantes, caso das comunidades indígenas latino-americanas; outra parte, os dicionários existem graças a diferentes necessidades das comunidades lingüísticas que representam. Um dicionário é o documento de identidade primeiro de uma sociedade, onde fica registrado todo o percurso histórico-evolutivo pelo qual passou sua língua. Nesse sentido, é fundamental distinguir a lexicografia feita em função de uma descrição lingüística da lexicografia feita em benefício dos falantes de uma determinada comunidade. Se por um lado, faz-se necessário uma lexicografia descritiva voltada para o léxico, que respeite os métodos de compilação e edição exigidos pela elaboração documental do léxico de uma língua tal como o utilizam seus falantes; por outro lado, é preciso lembrar que a lexicografia nasceu de uma necessidade social e informativa muito tempo antes da Lingüística se constituir como ciência. O presente artigo tem como objetivo discutir de modo crítico o fazer dicionarístico e o papel do lexicógrafo nesse processo. O intuito aqui é o de garantir, através de uma discussão respaldada na teoria lingüística, que as línguas ameríndias, em especial, saiam de um plano meramente técnico-descritivo, passando a integrar um plano que as façam emergir do ostracismo, legitimando sua identidade social e cultural. Palavras-chave: dicionários, línguas ameríndias, lexicografia, lingüística. Introdução “La palabra humana es más expresiva y duradera que el monumento. Señálense las palabras que usaba un pueblo y se sabrá sus ideas, lo que se hallaba al alcance de sus manos ó de su inteligencia, lo que se conocía, lo que se ignoraba.” (Escritos del Doctor D. Tomás de Avellaneda, T. I, 1883, pág.100. in Diccionario Argentino de Tobías Garzón, 1910) A elaboração de dicionários tem vindo de encontro, ao longo dos anos, a diferentes necessidades das comunidades lingüísticas que representam. Um dicionário é o documento de identidade primeiro de uma sociedade, onde fica registrado todo o percurso histórico-evolutivo pelo qual passou sua língua. Nesse sentido, os dicionários têm sua existência creditada também aos diferentes interesses de investigação dos cientistas, que se interessam tanto pelo registro histórico quanto pela ação documental de línguas cujo inventário escrito é pequeno, muitas vezes, por representar comunidades lingüísticas marginalizadas ou excluídas da relação de interesses das sociedades dominantes, como é o caso das comunidades indígenas latino-americanas. Esse processo deixa à margem uma produção que poderia ter um caráter mais voltado para o discurso de natureza poético-narrativa, por exemplo, do que a um caráter meramente científico, cuja finalidade maior é responder unicamente a questões levantadas por um seleto grupo de antropólogos e lingüistas. O presente artigo tem como objetivo discutir de modo crítico o fazer dicionarístico e o papel do lexicógrafo nesse processo. O intuito aqui é o de garantir, através de uma discussão 227 respaldada na teoria lingüística, que as línguas ameríndias, em especial, saiam de um plano meramente técnicodescritivo, passando a integrar um plano que as façam emergir do ostracismo, legitimando sua identidade social e cultural. Este artigo está organizado da seguinte maneira: a seção 2 apresenta os conceitos pertinentes à discussão a que se propõe este artigo, introduzindo em seguida uma reflexão sobre a função social que pode desempenhar o dicionário. os principais sistemas empregados por diversas comunidades lingüísticas em situações de uso escrito. Os subsídios para a comparação entre a produção de dicionários de sociedades dominantes e sociedades indígenas são oferecidos na seção 3 deste trabalho, em que se apresenta a análise de dois dicionários da língua inglesa, ao lado de uma reflexão sobre o papel do lexicógrafo visando um melhor padrão de formatação de dicionários. Continuando a comparação entre os dois tipos de dicionários, na seção 4, apresenta-se a análise de um dicionário bilíngüe espanhol-mixteco, língua falada por uma comunidade indígena no México. Por fim, as conclusões são encaminhadas na seção 5. O dicionário: conceitos e função social Para falar em dicionários é necessário esclarecer alguns conceitos recorrentes naquilo que tange o universo lexical. Inicialmente, cabe mencionarmos os três níveis de análise lexical propostos por Bartholomew e Schoenhals (1983). De acordo com os autores, haveria dois níveis de análise lexical considerados preliminares e opostos a um terceiro nível considerado relativamente completo: os dois primeiros referem-se à lista de palavras (word list level) e ao glossário (glossary level), enquanto que o último nível corresponde àquele em que se enquadra o dicionário (dictionary level). Dessa forma, a lista de palavras refere-se à prática comum de usar uma lista em uma dada língua A para elucidar palavras correspondentes em uma língua B. Tal prática tem sido útil para agrupar línguas de acordo com sua proximidade lingüística, bem como para a reconstrução comparativa de itens lexicais da língua-mãe. O problema dessa técnica é que nem sempre a correspondência entre os significados de palavras de uma língua para outra é recíproca. O glossário, por sua vez, corresponderia a um tipo de vocabulário incluso em livros de ensino de línguas e fornece ao aprendiz equivalentes de palavras ou frases da língua A, explicitando seu uso de acordo com contextos específicos. Normalmente, a seleção de 228 palavras e frases é feita com base em sua ocorrência dentro do livro-texto em questão. Segundo os autores, o nível em que se situam os glossários é um nível relativamente próximo ao dos dicionários, uma vez que examinam cada palavra de acordo com seu uso em determinado contexto, apresentando equivalentes apropriados para cada um. O nível em que são enquadrados os dicionários propõe, conforme postulam os autores, um tratamento relativamente completo a palavras significativas. Muitos dicionários refletem a análise cuidadosa de uma equipe de pesquisadores que pretensamente tentam se impor através das conclusões em seus trabalhos. A tarefa a que se propõe quando da elaboração de um dicionário é identificar o significado básico de uma entrada, seus significados secundários mais comuns e seus usos idiomáticos. Todas essas informações relacionadas a uma dada palavra ou entrada constituem aquilo a que se denomina artigo de um dicionário. Nesse sentido, há que se considerar aqui alguns conceitos importantes para nossa discussão, tais como: lexicografia, lexicologia, lema e lematização, tipos de dicionários e público-alvo. De acordo com Porto Dapena (2002), lexicografia e dicionário referem-se a dois conceitos que se pressupõem, embora ambos com definições bastante problemáticas. O autor distingue, primeiramente, lexicografia de lexicologia: aquela compreenderia a elaboração dos dicionários, esta poderia consistir em uma disciplina lingüística, que assim como outras disciplinas da área, estaria voltada ao estudo das palavras. Podemos dizer, resumidamente que o que se depreende da leitura do texto de Porto Dapena é que a lexicologia aborda o “estudo geral ou particular do léxico” (p.23), enquanto disciplina lingüística que é; já a lexicografia corresponde à “disciplina que se ocupa de tudo o que concerne aos dicionários, tanto ao que se refere ao seu conteúdo científico (estudo do léxico), como à elaboração material e às técnicas adotadas em sua realização” (p. 23), equivalendo, nesse sentido, a algo mais técnico. A fim de definirmos lema e lematização lançaremos mão do texto de Frawley et al (2002), em que os autores discutem aspectos importantes quanto à elaboração de dicionários. Nesse texto, entradas (headwords) são itens que iniciam um artigo de dicionário, constituindo-se no próprio objeto de definição; são os chamados lemas, “abstrações que assumem outras formas relacionadas entre si tanto morfológica quanto semanticamente” (p. 03). De acordo com os mesmos autores, a lematização1, enquanto processo pelo qual uma entrada torna-se não uma palavra em si, mas um “indicador abstrato”, constitui um procedimento extremamente complicado nas línguas indígenas. O motivo varia de língua para língua, mas em geral está relacionado à maneira pela qual as línguas indígenas têm seu léxico morfologia e semanticamente organizado, causando uma dificuldade em escolher determinada forma base como lema em detrimento de outra. Finalmente, em relação ao conceito de dicionários propriamente dito, Porto Dapena (2002) postula que, em linhas gerais, um dicionário é uma descrição do léxico concebida como um fichário em que cada ficha corresponde a um artigo em que se estuda uma determinada palavra. A finalidade de um dicionário, segundo o autor, seria a de resolver “necessidades concretas”, tais como solucionar, em primeiro lugar, dúvidas que possam surgir com relação às palavras e, em segundo lugar, garantir que tal resolução ocorra do modo mais rápido, eficaz e preciso possível. No texto de Haensch et al (1982), apresenta-se uma distinção entre dicionários gerais e específicos. Um dicionário geral, freqüentemente mais complexo no que se refere à sua elaboração, dirige-se a um público-alvo constituído por aquilo que, por exemplo, a publicação Grand Larousse de la langue française (apud op. cit., p. 398) define como “leitor culto”. Já os dicionários específicos estariam voltados a necessidades específicas, como o caso de dicionários escolares, que têm como público-alvo alunos do ensino médio e fundamental, devendo por isso, apresentar definições simples e claras, evitar tecnicismos e palavras ditas “vulgares” e, sempre que possível, apresentar certa variedade de ilustrações e informações gramaticais. De acordo com Haensch et al (op. cit.), é importante definir também qual o critério de seleção lexical empregado na elaboração do dicionário em questão. Além do público-alvo, são três os critérios, dois externos (a finalidade - descritiva, normativa, etc. - e sua extensão) e um interno (o método de seleção das unidades lexicais). Tais aspectos configuram informações adicionais de extrema importância, que devem vir explicitadas no texto introdutório de todo dicionário, segundo o que nos colocam os autores e que consideramos fundamental para o desenvolvimento deste trabalho. Podemos dizer que a Ciência Lingüística atual, certamente, vive ainda a era da primazia da fala sobre a escrita, assim como também vive às expensas da busca por uma suposta “naturalidade” da fala. Cabe ressaltar, contudo, que nem por isso, o discurso escrito deve ser menosprezado; obviamente, enquanto discurso e objeto de estudo igualmente legítimo da ciência da linguagem, a escrita merece seu “lugar ao sol”. Assim é que Lara (2003), com o evidente objetivo de situar o dicionário para além de uma perspectiva meramente metodológico-lexicográfica, questiona a concepção cientificista que lhe atribuem outras disciplinas da Lingüística, tais como, História das Línguas ou Lingüística Descritiva. Tais disciplinas viriam a se basear nos dicionários, especialmente aqueles confeccionados por missionários europeus nos séculos XVI e XVIII, fiando-se apenas nos aspectos histórico-documentais das línguas que retratavam, sem considerar sua realidade lexicográfica, a saber, o público a que se destinavam, a espécie de vocabulário que retratavam, como foram elaborados ou como era interpretada a tradição lexicográfica que precedeu seus autores. Segundo o autor, para fins de investigação de uma dada língua, não se pode fazer uso do dicionário dentro de um mero passo-a-passo, em que sua consulta venha ao final de uma exaustiva descrição “fono-morfosintática”. Tomando-se como parâmetro o valor cultural da análise semântica, há que se considerar o contexto semântico como aquele a oferecer, com mais eficácia, as chaves para uma interpretação mais ao alcance dos leitores em potencial. Para Lara (op.cit.), é fundamental distinguir a lexicografia feita como parte de uma descrição lingüística do sistema da lexicografia feita em benefício dos falantes. Se por um lado, faz-se necessário uma lexicografia descritiva voltada para o léxico, que respeite os métodos de compilação e edição exigidos pela elaboração documental do léxico de uma língua tal como o utilizam seus falantes; por outro lado, é preciso lembrar, como convenientemente coloca o autor, que a lexicografia nasceu de uma necessidade social e informativa muito tempo antes da Lingüística se constituir como ciência. Tal divisão de conceitos conduz a duas noções distintas de dicionários propostas pelo autor: o dicionário lingüístico (científico) e o dicionário social. Em sua opinião, este último desempenha um papel que vai além do desempenhado pelo dicionário lingüístico, já que para os falantes a língua ficaria reduzida a uma descrição meramente técnica. Não se trata, na verdade, de simplesmente sublimar os dicionários, mas sim de reivindicar para aquelas línguas que há anos vem sido objeto profícuo de estudo para muitos lingüistas, sobretudo as ameríndias, o mesmo olhar, o mesmo tratamento dispensado às chamadas línguas “de cultura”, i.e., as línguas das civilizações ocidentais que não ficam relegadas ao plano da análise técnico-descritiva. É necessário afastar das línguas ameríndias e de outras todo 229 o preconceito que as restrinja a meras produções que, sequer poderiam ser reconhecidas como “fenômenos verbais complexos”, dado seu caráter técnico; quanto mais, obras que pudessem ser consideradas “discursos elaborados”. Nesse sentido, o autor defende a idéia de uma “teoria do dicionário” como parte das teorias que abordam os discursos e, conseqüentemente, de uma teoria da significação humana, todas elas formando a teoria da linguagem. A teoria assim concebida estaria fundamentada sobre dois pontos principais: uma história dos dicionários (enquanto fenômenos verbais, culturais e simbólicos) e outra história da lexicografia, que, segundo Lara, não se estabelece enquanto teoria, mas sim, como metodologia, uma vez que não se constitui por si só em fenômeno verbal. Ainda, no tocante à lexicografia, cabe ressaltar que, da mesma forma como podemos distinguir o dicionário lingüístico do social, também podemos distinguir uma lexicografia descritiva, que serve à taxonomia lingüística, portanto, ao dicionário científico; de uma lexicografia social, que servirá à produção dos dicionários sociais. Esta última, de acordo com Lara, devendo calcar-se nos fundamentos da Lingüística, ciência que permite melhor compreender as línguas e seus vocabulários e cuja ausência leva à produção de obras ruins: “a prática tradicional e o desdém pela metodologia séria e pelos conhecimentos lingüísticos continuam dando lugar a dicionários de má qualidade” (2003, p. 48). Disso resulta que, elaborar dicionários de boa qualidade é garantir o respeito e as condições necessárias às sociedades aborígines para viverem com autonomia e liberdade, considerando-se dicionário como “(...) uma obra que supera a necessidade de informação para dar lugar à verdadeira construção social do significado e ao papel determinante que têm os dicionários nas culturas verbais que conhecemos e apreciamos” (op.cit., p. 49). Como bem coloca o autor, “(...) en donde terminan los métodos, comienza el arte del diccionario ...” (idem, p. 46). Os dicionários de sociedades dominantes e o papel do lexicógrafo A fim de estabelecermos parâmetros para avaliar o tratamento dispensado a cada tipo de dicionário (de línguas ocidentais e de línguas ameríndias), apresentamos a seguir, o trabalho de Atkins (et alli, 1986), em que se discute o papel do lexicógrafo na elaboração de dicionários. Nesse trabalho, os autores examinam como 230 os vários componentes de entradas lexicais, particularmente as frases-exemplo, são usados para apresentar informações sobre vários tipos de interações de significado / forma em dois dicionários estudantis: Longman Dictionary of Contemporary English (Procter, 1978), aqui denominado LDOCE; e Oxford Advanced Learner’s Dictionary of Current English (Hornby, 1974), denominado OALD. Em geral, os exemplos que ilustram os usos de um item lexical ocupam uma porção significativa do espaço destinado a qualquer entrada em dicionários. Nesse sentido, uma entrada lexical compreensível seria aquela que indica cada um dos sentidos de um item lexical juntamente com sua definição e um código metalingüístico indicando seu uso sintático. As frases-exemplo podem tão somente reforçar a informação dada em outro lugar da entrada, representando expressões idiomáticas, colocações e usos idiossincráticos. Entretanto, também servem a uma função mais sutil, que faz uma contribuição única à informação metalingüística expressa por uma entrada lexical. Elas desempenham papel determinante ao revelar ao usuário de dicionários variações sistemáticas sutis no significado de um verbo relacionado ao seu contexto sintático. De acordo com o que dispõem os autores, é preciso entender em que implica aprender um verbo, a saber: - aprender seu significado, isto é, ações, estados e processos que podem envolver um número de participantes (os argumentos verbais); - aprender sobre esses participantes e as várias maneiras pelas quais podem ser sintaticamente expressos enquanto frases nominais ou frases de outras categorias sintáticas (propriedades de complementação verbal), entendendo o que distingue cada uma das expressões alternativas; - colocar o verbo dentro do grande esquema organizacional de verbos em inglês, já que o escopo definido pelos autores incide sobre verbos da língua inglesa. Isto posto, cabe ilustrar com exemplos fornecidos no próprio trabalho ora em discussão, o que os autores denominam propriedades de complementação verbal e frases nominais e de outros tipos. Assim, considerando o verbo “comer” (eat), temos um verbo de atividade (ingestão), denotando uma ação que envolve dois participantes: o agente que desempenha a ação de comer e aquilo que é comido. O verbo tem tanto um uso transitivo como intransitivo nos quais os participantes da ação ocupam, em inglês, a função de frases nominais. Os autores alertam para o fato de que as interdependências entre o signifcado de um verbo e suas propriedades de complementação não podem ser ignoradas num dicionário porque diferentes conjuntos de interações caracterizam verbos de diferentes tipos. Dessa maneira, ao se considerar as sentenças apresentadas no texto: Mike ate the cake / Mike ate, (Mike comeu o bolo / Mike comeu), não se verifica qualquer empecilho, digamos, semântico. Já com a sentença Mike ate paper (Mike comeu papel), o mesmo não se verifica, ocorre um uso inadequado envolvendo um dos participantes da complementação verbal de eat, a saber, uma restrição semântica do objeto “paper”. Cabe ressaltar, dentro de tal análise, que as relações entre os usos verbais transitivos e intransitivos podem diferir de um verbo para outro, o que se verifica nas seguintes sentenças: Janet broke the cup (Janet quebrou o copo) e The cup broke (O copo quebrou), ocorrendo aqui que agente e paciente trocam de posições quanto à transitividade do verbo break. Cada uma das alternâncias não é exclusividade dos dois verbos mencionados (break / eat), mas especificam padrões de alternância associados a uma classe semântica específica de verbos. Tais alternâncias demonstram interações complexas entre o significado verbal e sua propriedade de complementação. Segundo os autores, convém observar que o fato de que padrões particulares são comuns a classes verbais cujos membros compartilham certos elementos de significação indica que a relação semântica entre tais pares de usos transitivo e intransitivo de um verbo não são arbitrários. É importante considerar que a entrada lexical de um verbo deve fornecer aos usuários tudo o que eles precisam saber a fim de empregar um verbo adequadamente. A tarefa do lexicógrafo é determinar o que a entrada lexical deve incluir e qual a melhor forma de apresentar essa informação ao usuário a fim de atingir tal objetivo. De acordo com Atkins (et alli), a inclusão de frases-exemplo fornece ao usuário de dicionários informações essenciais para a integração apropriada do significado de um dado verbo com suas propriedades de complementação, o que facilita sua colocação no grande esquema organizacional de verbos em inglês. As propriedades verbais ilustradas através de frases-exemplo são aquelas que precisamente os estudos lingüísticos reconhecem como centrais para a classificação verbal. O prevalecimento de tais frases indica o reconhecimento que o lexicógrafo tem de sua importância. Os próprios autores assumem que o maior escopo de seu trabalho incide sobre a questão das “complexas” interações entre transitividade e significado, uma vez que não é fácil apresentar ao usuário informações úteis sobre transitividade. Essencialmente, o que se coloca é que a distinção transitividade / intransitividade fornece uma indicação geral da estrutura sintática do verbo. Embora em nível muito abstrato, a noção de transitividade reflete as propriedades de complementação verbal que dependem do significado verbal. Esses dois aspectos da transitividade, complemento e significado verbal, nem sempre são fáceis de serem relacionados de modo a tornar produtiva a utilização do dicionário. As entradas lexicais nos dicionários indicam categorias sintáticas. Geralmente, observam os autores, qualquer dicionário, até mesmo os mais resumidos, apresentam informações relativas à transitividade dos verbos. Isso requer que se determine o que de fato constitui o uso transitivo de um verbo frente ao seu uso intransitivo, questão que pode ser iluminada pela teoria lingüística. Uma vez apresentadas as opções, cabe ao lexicógrafo decidir como organizar as entradas lexicais de modo a fornecer informações adequadas ao usuário. Nesse sentido, nem a tarefa do lingüista, nem a do lexicógrafo é simples. A princípio, um verbo transitivo envolve um sujeito e um objeto direto, como demolir (demolish: The men demolished the old building), enquanto que um verbo intransitivo envolve apenas um sujeito. (arrive: The visitors have arrived). Em inglês, sujeito e objeto direto são considerados frases nominais pré e pós verbais, respectivamente. Uma segunda característica de verbos transitivos refere-se ao fato de poderem ser empregados na voz passiva. Ex.: cortar (cut - The cook cut the cake; *The cook cut; The cake was cut by the cook). Dessa forma, um verbo intransitivo não cumpriria uma ou outra regra, a saber, possuir um objeto direto e admitir voz passiva. Acontece por vezes, porém, de um verbo por em conflito as mencionadas regras de transitividade, como o caso dos verbos considerados simultaneamente transitivos e intransitivos (eat). No caso de verbos como eat, há na realidade um objeto implícito quanto ao seu uso intransitivo, o que demonstra que esse verbo descumpre a regra de “possuir um objeto direto” apenas em sentido mais restrito. Pode ocorrer também o inverso, quando um verbo que parece ser transitivo possui um objeto implícito, mas não admite a voz passiva, o que vem de encontro de encontro à segunda propriedade dos verbos transitivos (o exemplo dado pelos autores nesse caso é o do verbo caber, servir – fit, que não admitiria a sentença: *I am fitted). 231 Ainda que um dicionário deva informar de alguma forma que verbos como fit não são prototipicamente transitivos, uma análise detalhada de casos como esse cabe à Lingüística. De fato, nesse sentido, alguns casos problemáticos de transitividade são reconhecidos e analisados pelos lexicógrafos. Por todos esses motivos, os autores afirmam a dificuldade em se definir um verbo enquanto transitivo ou intransitivo. Entre os lingüistas, a definição tem sido controversa. Os autores consideram que as pesquisas bem sucedidas são aquelas que isolam, dando um tratamento diferenciado, os casos problemáticos como dos verbos intransitivos dormir (sleep) e florescer (bloom), por exemplo. Por esse motivo, fundamentam seu trabalho na Hipótese da Ergatividade (Unaccusative Hypothesis ou Ergative Hypothesis). Tal hipótese tem resultado em importantes implicações aos lexicógrafos, uma vez que identifica um número significativo de diagnósticos na distinção entre os dois tipos de verbos intransitivos. Os lexicógrafos, por sua vez, têm de considerar aspectos mais pragmáticos e não podem esperar por uma resposta da teoria lingüística quanto ao que é ou não um verbo transitivo. Alguns recursos adotados por eles, por vezes, têm-nos levado a arcar com alguns dos mais problemáticos aspectos da transitividade, à medida que desenvolvem esquemas de classificação verbal cada vez mais elaborados. Alguns dicionários introduzem uma classe de verbos de ligação, como o LDOCE, ou verbos que envolvem adjuntos adverbiais, como o OALD, ambos examinados pelos autores. Muitos dicionários, contudo, definem a transitividade de um verbo apenas com base na presença ou ausência de um objeto. Quando assumem, em face de um caso problemático, que um verbo pode ser tanto transitivo como intransitivo (como no caso de eat – comer - ou sleep – dormir), outros problemas de organização podem surgir. Muitos fabricantes de dicionários partem do princípio que a única coisa que um usuário pode determinar ao se defrontar com uma palavra desconhecida em um determinado contexto, é a parte do discurso a qual pertence um determinado uso transitivo daquela palavra. Nesse caso, todos os sentidos transitivos de um verbo são apresentados em um grupo separadamente dos usos intransitivos do mesmo verbo. O problema dessa estratégia é que há casos em que se apresentam maiores relações semânticas entre usos transitivos e intransitivos de um mesmo verbo, do que entre os usos exclusivamente transitivos ou não. Tais casos não caracterizam um ou outro verbo em particular, mas fazem parte da organização lexical do inglês. Na opinião 232 de Atkins (et alli), uma entrada lexical deveria deixar isso claro ao usuário. Outros dicionários adotam um recurso diametralmente oposto ao mencionado anteriormente: cada subentrada é destinada a um sentido específico do verbo, independentemente de ser transitivo, intransitivo ou ambos. Na opinião dos autores, os dicionários que recorrem a essa medida (tais como o LDOCE e OALD) apresentam melhores condições de lidar com o problema que se coloca a partir dos pares transitivos e intransitivos. O importante é que a adoção de uma ou outra medida a fim de se organizar dicionários, cabe ao lexicógrafo decidir, considerando as implicações de cada uma com cuidado: se deve considerar a entrada lexical de um verbo a partir da perspectiva de seu significado ou de suas propriedades de complementação. Os autores opinam que na medida em que as propriedades de complementação de um verbo refletem seus possíveis significados, é preferível o emprego do critério baseado no sentido. Um bom dicionário deve ser talhado para os usuários aos quais se destina, um dicionário estudantil, em particular, deve ser simples, claro e fácil de usar. Deve apresentar informação suficiente sobre cada item lexical a fim de permitir ao usuário empregá-lo adequadamente. Os lexicógrafos são convenientemente inteirados das necessidades dos usuários, bem como das limitações de tempo e espaço e da existência de relatos lingüísticos apenas parciais do fenômeno em questão. Eles evitam sobrecarregar o usuário com informações demasiadamente detalhadas ou complexas. Por questões de ordem prática, são freqüentemente obrigados a apresentar uma caracterização não-exaustiva da entrada lexical. Nesse sentido, exemplos constituem um modo mais eficaz de fornecer informações ao usuário, não apenas por tornar a informação em si mais inteligível, mas também por expressar informações com as quais a metalinguagem não consegue arcar. É importante observar, como pontuam os autores, que as pessoas parecem ser capazes de inferir com mais facilidade um princípio ou regra a partir de um exemplo da língua natural do que a partir de uma descrição sintática ou outra informação metalingüística. Nos dicionários estudantis, as frases-exemplo desempenham um papel multifacetado ao expressar as correlações de forma / significado características de uma dada palavra. Elas reforçam as informações expressas na definição de sentido, no código sintático, ou em ambos, fornecendo as mesmas informações num formato diferente. A diferença que se coloca é que a descrição metalingüística explícita, muitas vezes, não consegue ser tão clara para o usuário quanto à informação implícita veiculada pelos exemplos. As informações relevantes às interdependências de forma e sentido não devem apenas ser expressas convenientemente em cada entrada lexical, mas também deveriam ser expressas de modo compreensível e consistente através das entradas lexicais. O que é de fato necessário não é meramente uma questão de elaborar ou modificar as entradas lexicais existentes, como por exemplo, por meio da expansão de conjuntos de códigos sintáticos ou da proliferação do número de sentidos numa dada entrada. O que os autores sugerem é que se reestruture totalmente a maneira pela qual são abordados os verbos nos dicionários. Qualquer verbo toma parte em apenas um subgrupo de padrões de alternância possíveis. Contudo, se um dicionário tem a intenção de fornecer informações compreensíveis e consistentes sobre alternância, nada pode ficar implícito. As entradas verbais que não se voltam a todas as opções devem equiparar-se àquelas que o fazem. Explicitar um conhecimento por natureza implícito num dicionário só é possível no contexto de uma teoria da organização lexical e isso pode constituirse numa contribuição da Lingüística. Dessa forma, postula-se que a construção de dicionários deveria tirar proveito do trabalho teórico da Lingüística ao organizar o vocabulário. A Lexicografia é uma arte: um bom lexicógrafo deve ser capaz de escrever um dicionário destinado a quase qualquer especificidade. Para Atkins (et alli), o padrão no qual são formatados os dicionários atualmente apresenta certas limitações que, na verdade, podem ser demudadas em traços de eficácia, à medida que forem cuidadosa e consistentemente escritos e baseados numa boa descrição teórica. O que o lexicógrafo tem a oferecer ao lingüista é a habilidade de fornecer qualquer número de exemplos, contra-exemplos e fenômenos interrelacionados. Por fim, cabe ressaltar que se torna necessário promover a aproximação entre lexicógrafos e lingüistas a fim de que se reconheçam os benefícios da colaboração para ambos. O olhar voltado para um dicionário de língua ameríndia: Diccionario Mixteco de San Juan Colorado Continuando o levantamento que distingue a elaboração de cada tipo de dicionário avaliado neste trabalho, esta seção apresenta a análise crítica de um dicionário bilíngüe de Mixteco (língua indígena falada no México) / Espanhol. Inicialmente, seria interessante considerar a divisão do dicionário aqui estudado: Introdução O alfabeto mixteco Estrutura do artigo no dicionário Abreviações empregadas Primeira parte: dicionário mixteco-espanhol Segunda parte: dicionário espanhol-mixteco Terceira parte: a gramática mixteca Apêndices (A, B, C, D, E, F, G, H) e bibliografia A introdução do Dicionário Mixteco, além de informações sobre seu conteúdo, traz também informações a respeito da língua falada pelos mixtecos de San Juan Colorado, distrito de Jamiltepec, estado de Oaxaca, México. Além de dados estatísticos (quantidade de falantes do idioma e sua distribuição geográfica de acordo com os diferentes grupos a que pertencem), o texto também apresenta dados históricos, remontando ao período anterior à ocupação espanhola no México. São abordados, ainda, aspectos culturais dos povos mixtecos, particularmente no tocante a suas habilidades artísticas, que datam de tempos remotos (1350 e 1500), estendendo-se até os dias atuais. Algumas observações interessantes fazem menção, por exemplo, à primeira gramática e ao primeiro vocabulário de Mixteco2 publicados no país, ambos no ano de 1593, por dois religiosos: freis Antonio de los Reyes e Francisco de Alvarado, respectivamente. Com relação à situação sócio-comunicativa dos falantes, os autores advertem que San Juan é um lugar afastado dos meios de comunicação3 e que todos os habitantes falam mixteco, sendo o espanhol usado muito raramente. O texto de introdução encerra-se, elucidando que a publicação inclui a maioria das palavras básicas da língua e que um volume maior seria necessário a fim de arrolar “todas as palavras que existem em mixteco”. Cabe aqui uma ressalva, ou ao menos, um questionamento: seria viável a elaboração de um volume maior em que se apresentasse “todas as palavras que existem em mixteco”? Creditamos essa postura a certo atributo de autoridade de que comumente são dotadas as obras lexicográficas. Nesse sentido, Ferreira (2002) 4 observa que: Algumas obras lexicográficas representam tanto a autoridade como o prestígio e, assim sendo, são reconhecidas por estas características pelos usuários. Embora formalmente tais aspectos não façam parte explícita dos manuais de organização das obras lexicográficas, reconhecemos que tais marcas determinam as escolhas de diferentes grupos 233 sociais quanto aos dicionários. Seguindo-se à introdução, é apresentado ao leitor o alfabeto mixteco. Com base nos fonemas da língua espanhola, são listadas palavras que apresentam o fone correspondente ao grafema em questão, com a observação por parte dos autores de que “a maioria das letras do alfabeto mixteco é igual às do espanhol e se pronuncia de maneira semelhante”. O item intitulado “Estructura del artícolo en el diccionario” apresenta ao leitor informações de ordem mais técnica quanto ao manuseio da publicação, demonstrando a organização dos artigos. Assim, são explicadas como se apresentam os lemas e de que modo estão formatados, a fim de facilitar ao leitor o reconhecimento de que tipo de informação se trata. Cada lema vem destacado em negrito, seguido de sua representação fonêmica, indicando o tom (alto, médio ou baixo) da palavra em questão, entre parênteses e formato regular. Na seqüência, introduz-se a classe gramatical a que pertence o lema, destacada em itálico, e a tradução ou significado do vocábulo, em formato regular. A maioria dos artigos do dicionário lança mão das frases-exemplo em mixteco para demonstrar o emprego do vocábulo apresentado, seguido de sua tradução para o espanhol. Os autores ressaltam ainda que alguns artigos podem apresentar partes adicionais, como mais de uma acepção para um mesmo lema. Neste caso, cada acepção recebe um número antes da glosa em espanhol e uma oração ilustrando seu uso. Pode ocorrer também o emprego de colchetes para introduzir qualquer informação lingüística considerada indispensável para a adequada flexão da palavra. Em alguns casos, podem-se constatar entradas de lemas secundários, que representam palavras ou frases derivadas do lema principal. Tais lemas derivativos aparecem também em negrito, seguindo a ordem alfabética a que corresponde. No caso de lemas que não possuem correspondência em espanhol, apresentase, em itálico, uma breve explicação sobre o uso da palavra em questão. Raízes de palavras e prefixos (seguidos de hífen e acompanhados da designação prefixo) também são incluídas como lemas. Em seguida, os autores explicam como é feita a entrada de lemas que representam os verbos da língua mixteca, questão muito controversa entre os estudiosos. No caso do mixteco, os verbos são registrados conjugados no presente da primeira pessoa do plural inclusivo. No final do artigo, entre colchetes, constam as formas do futuro e do pretérito. Quanto aos verbos irregulares, uma lista de vocábulos, acomoda-os em 234 entradas menores, seguidos da indicação de tom entre parênteses, da identificação flexional e de sua forma conjugada no presente, que corresponde ao lema principal. A todas essas informações, que podemos considerar de ordem mais prática, seguem mais algumas observações quanto à organização alfabética dos lemas e outras rápidas explicações fonológicas. Cabe ressaltar aqui, que ao final do dicionário os autores apresentam uma elaboração da Gramática da língua em que constam informações a respeito da fonologia mixteca, até aquelas tradicionalmente tidas por gramaticais (classes de nomes, adjetivos, advérbios, modificadores, etc.). Esse “capítulo” do dicionário encerra-se com uma tímida menção a um provável tipo de leitor do dicionário, a qual transcrevemos a seguir: Para aquellos lectores que no son hablantes del mixteco, es necesario saber que esta lengua tiene muchas palabras compuestas. Esto puede causar frustración al que busca por separada cada palabra para descubrir el significado de una oración. (p. xi) Com esta referência, retomamos a importante observação de Haensch et al (op. cit.), segundo a qual informações sobre finalidade do dicionário, público-alvo a que se destina e critérios de seleção lexical devem vir explicitadas logo na introdução da obra lexicográfica. Como vemos, excetuando-se a pequena observação feita a um possível leitor, nenhum dos três itens foi observado no dicionário ora em estudo. Antes do início dos artigos, os autores fornecem uma pequena listagem com abreviações empregadas na obra. Trata-se, em geral, de abreviações relativas à nomenclatura gramatical. O corpo do dicionário, propriamente dito, tem início com a versão mixteco – espanhol, seguida do seu inverso. Além de todos os detalhes fornecidos anteriormente, vale enfatizarmos o emprego de ilustrações, que não ultrapassam a quantia de duas por página, e para as quais não há nenhum comentário por parte dos autores. A terceira parte do dicionário é uma compilação da teoria gramatical da língua, estando assim dividida: a fonologia; o substantivo; o pronome; o adjetivo; o verbo; o advérbio; a preposição; a conjugação; índice da gramática mixteca. Trata-se de uma parte da publicação que apresenta informações teóricas com exemplificações dos itens apresentados. Cabe observar que esse tipo de informação não é usual entre dicionários de línguas ocidentais. A última parte do dicionário, “Apêndices e bibliografia”, aquilo que seria a “Quarta parte”, apresenta a seguinte subdivisão: Apêndice A (Saludos y vocativos); Apêndice B (Las palabras compuestas que usan iñi); Apêndice C (El telar de cintura); Apêndice D (El trapiche de madera); Apêndice E (El cuerpo humano); Apêndice F (Los números); Apêndice G (Los tiempos em mixteco); Apêndice H (Los mapas). Todos esses apêndices abordam questões, bem como vocabulários ligados à cultura mixteca, o que torna a proposta dos autores mais interessante, mas que ao mesmo tempo nos leva a uma questão fundamental: qual seria o público-alvo de tal dicionário? Essa é uma questão que fica difícil de responder dada a variedade de informações que os autores procuram fornecer, o que não é necessariamente uma falha. Como já observamos, a falha está na falta de informações, já na introdução do dicionário, que venham de encontro a esse questionamento. Neste ponto, se retomarmos o que foi exposto na introdução deste trabalho com relação aos três níveis de análise lexical propostos por Bartholomew e Schoenhals (1983), podemos levantar uma última questão, que buscaria enquadrar o dicionário aqui estudado em um dos três níveis de análise. Desta forma, não podemos afirmar categoricamente que se trata de uma mera lista de palavras, dado que a publicação apresenta informações muito mais consistentes. Tampouco podemos afirmar que se trata especificamente de um dicionário, dado as informações com respeito à gramática da língua, bem como os aspectos culturais fortemente nele elucidados, o que o descredenciaria como tal. Restanos a opção de classificar a publicação como um glossário, mas isso também não condiz com seu conteúdo: as entradas em cada uma das línguas são muito numerosas e não se limitam a ilustrar os textos apresentados nos itens que abordam a gramática e os aspectos culturais. Talvez pudéssemos afirmar que se trata de uma obra que reúne um dicionário bilíngüe e textos para consultas com finalidades mais específicas quanto à língua e a seus aspectos culturais. Trata-se de uma obra que pode servir de apoio a pesquisadores (lingüistas e antropólogos, entre outros), mas que não se configura como essencial ou específica para esse tipo de público. Fora desse grupo, poderíamos pensar em outras possibilidades de público alvo: estudantes de espanhol, tendo por língua materna o mixteco e vice-versa; estudantes de mixteco, que tenham por língua materna línguas aparentadas ao espanhol; eventuais turistas da localidade de San Juan, Oaxaca. Conclusão O dicionário, em geral, deve ser aproveitado como material de pesquisa não só para discutir questões relacionadas à morfologia, etimologia, classificação gramatical e prosódia, mas também para ampliar as possibilidades, que se apresentam através dos enunciados lexicográficos, de reconhecer marcas de períodos históricos e do pensamento da época em que foi organizada a obra, como preconceitos, devoções, tendências sociais e regimes políticos vigentes. Conforme propõe Ferreira (2002): A intenção é inter-relacionar outras áreas do conhecimento humano e realizar uma leitura mais ampla do que aquela que se faz do dicionário como simples decodificador de significados. Quanto às tarefas da Lingüística, enquanto fonte de informações e métodos fundamentais para a produção de dicionários, uma prioridade é a elaboração de descrições de boa qualidade, bem como a reunião e sistematização de dados confiáveis e abrangentes das línguas indígenas. De acordo com Seki (1999), da mesma forma que isto representará uma contribuição para a Lingüística, permitirá igualmente atender, em parte, a demanda, das comunidades indígenas, quanto à documentação de suas línguas e culturas. Assim, o trabalho poderá contribuir para tornar essas línguas “visíveis” às demais sociedades, com uma produção que reflita sua verdadeira identidade cultural. Referências Bibliográficas BALLÓN, Enrique 1985. Introducción a la lexicografía en lenguas andinas y selváticas. Amazonía Peruana v. 4(12): 59-115. BARTHOLOMEU, Doris A. & SCHOENHALS, Louise C. 1983. Bilingual dictionaries for indigenous languages. México: SIL. Diccionario Mixteco de San Juan Colorado. Vocabularios Indigenas 29. Mexico: Instituto Lingüístico de Verano, 1996. FERREIRA, Angela M.C. Unidade e diversidade da língua em duas edições do Dicionário da Real Academia Espanhola (1947 e 1992): o léxico indígena mexicano. RJ, UFRJ, 2002, dissertação de mestrado. FRAWLEY, William et al 2002. Making dictionaries. Preserving indigenous languages of the Americas. Berkeley: UCLA. HAENSCH, G. et al 1982. La lexicografía. De la lingüística teórica a la lexicografía práctica. Madrid: ed. Gredos. LARA, Luis F. 2003. El diccionario y sus disciplinas. Revista Internacional de Lingüística Iberoamericana 1: 35-49. 235 PORTO DAPENA, José-Álvaro. 2002. Manual de técnica lexicográfica. Madrid: Arco/Libros, S.L. SEKI, Luci. 1999. A lingüística indígena no Brasil. D.E.L.T.A., Vol. 15, N.º ESPECIAL. pp. 257-290. Sites consultados: http://www.cce.ufsc.br. Acesso em 01/09/2006. http://www.rae.es. Acesso em 07/09/2006. Notas 1 Lematizar consiste em encontrar uma forma canônica que sirva de entrada para determinado verbete. 2 Arte en lengua mixteca e Vocabulario en lengua mixteca. 3 Cabe ressaltar, que se trata de uma publicação datada do ano de 1986. 4 Disponível em: http://www.cce.ufsc.br. Acesso em 01/09/2006. Recebido em 05 de outubro de 2007 e aprovado 12 de novembro de 2007. 236