Conhecimento com Consciência: forma de saber viver Regina

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Conhecimento com Consciência: forma de saber viver
Regina Migliori
Está acontecendo uma mudança radical na relação entre as pessoas, na
relação com o mundo. Alguns já entenderam isso; outros, entendendo ou não,
estão sendo obrigados a assimilar as mudanças.
Há 300 anos um filósofo anunciou: “penso, logo existo”. E isso bastava. No século
XVII, pensar era sinônimo de raciocinar. No século XXI, pensar é uma atividade
estimulada por múltiplas inteligências e dimensões humanas, não só o raciocínio.
Hoje a frase é outra: “existo, e por isso penso, sinto, experimento e ainda imagino
um infinito de possibilidades.”
O “pensar” adotado no século XVII vingou até muito pouco tempo. Uma relação
com o mundo enraizada exclusivamente na estrutura do pensamento lógico. Um
jeito de lidar com a vida que parte do princípio de que é possível compreender cada
aspecto da realidade separadamente, e lidar com ele de forma satisfatória. Esta
postura deu origem a uma arrumação do conhecimento em disciplinas, as mesmas
que se estuda na escola. E assim surgiu a separação das diferentes áreas de
atuação, as diferentes profissões, que se tornaram responsáveis pela maneira como
nos relacionamos com a gente mesmo, com o trabalho, filho, marido, política,
esporte, e tudo mais.
As disciplinas resultam de uma visão de mundo exclusivamente lógica e racional,
que organiza a vida em partes para poder lidar com cada uma delas
separadamente. Isso é o que hoje chamamos de fragmentação da realidade.
Todo mundo já passou pela experiência de lidar com um especialista, aquela
criatura que sabe tudo sobre uma coisa só. Vá ao ortopedista, que receita um
remédio para o joelho, que provoca uma gastrite, e aí você consulta um gastro, que
prescreve uma medicação que dá lhe alergia. E nenhum deles consegue resolver
seu problema na totalidade, nem deixar de causar outro com o qual também não
sabe lidar.
É também o que ocorre a uma nação que para gerar desenvolvimento econômico
promove a destruição da natureza, compromete a evolução da vida (a nossa
inclusive) e nos coloca diante do atual desafio de criar um modelo de vida
sustentável.
Não se trata de defeito ou falta de competência. É o resultado da tal fragmentação.
Não há nenhum problema em fazer isso, contanto que não se esqueçam que depois
de separar, é preciso recuperar a natural totalidade, pois a vida não acontece “em
separado”. E como é que se junta tudo isso de novo?
É aí que entra a importância do que se entende por “pensar” e “existir”. Se no
século XVII nossa existência estava vinculada a uma relação exclusivamente
racional com a vida, hoje ela tem um significado múltiplo.
Trazemos em nós diferentes inteligências e múltiplas dimensões humanas, não só a
racional. Todas elas produzem conhecimento e lidam com a riqueza de experiências
que a vida oferece. A relação com a vida se ampliou. E como ficam as disciplinas,
organizadas em diferentes áreas de atuação completamente separadas? Dessa
forma, não ficam. Não há mais espaço para este tipo de visão de mundo. Por uma
razão muito simples: ela não dá conta do que estamos vivendo. No século XVII
servia. Hoje, não serve mais.
Temos o desejo de ultrapassar um modelo que não é de todo ruim, mas não dá
conta do que temos para fazer. Desta necessidade de reintegrar, reaproximar o que
foi artificialmente separado na nossa relação com o mundo, surgiram diferentes
esforços.
Um primeiro esforço foi a multidisciplinaridade. Como o nome já diz, são as
disciplinas que se aproximam em torno de um mesmo objetivo. Os diferentes
especialistas que se reúnem para oferecer, em um mesmo projeto, as diferentes
contribuições das disciplinas que representam. Não são as pessoas que contribuem,
são suas áreas de especialidade. Um tipo de contribuição produzido por um
fragmento humano, somente pela dimensão racional que gerou o modelo das
disciplinas, de forma isolada e separada.
Todos conhecem o que é uma equipe multidisciplinar: se tenho que construir uma
escola, chamo o arquiteto, o engenheiro, a pedagoga, os professores, gestores, e
cada um
oferece sua contribuição de forma específica, a partir da sua área de conhecimento
e atuação.
Outro esforço para reaproximar o que o tal modelo cartesiano separou, é a
interdisciplinaridade. É a tentativa de integrar métodos e conceitos de uma
disciplina para outra. Veja bem, integrar métodos e conceitos produzidos pela
dimensão racional. É um esforço válido e relevante, porém ainda subordinado a
uma noção de conhecimento que só contempla a lógica racional..
E aí surge a transdisciplinaridade, um esforço de reaproximação com a vida,
sugerido nas últimas décadas do século XX.
“Trans” significa ir além. Transdisciplinaridade significa ir além das disciplinas.
Ultrapassar um modelo racional que organizou não só as disciplinas, mas também o
jeito como lidamos com nosso dia-a-dia.
Este modelo “trans” abre espaço para nossas múltiplas inteligências, para as
diferentes dimensões humanas, do orgânico ao espiritual, passando pelo racional,
emocional, social, cultural, planetário. Tudo o que em nós é também vivo e
inteligente.
Alargando a noção de inteligência, mudamos também o jeito de produzir
conhecimento. Amplia-se a forma como vivemos, trabalhamos, nos relacionamos.
Amplia-se a nossa capacidade de manter uma atitude aberta, de respeito mútuo,
uma postura de reconhecimento em que não há lugar para espaços culturais
privilegiados, onde seja permitido julgar e hierarquizar como mais correto ou mais
verdadeiro qualquer sistema de relação com a realidade. A relação não se dá entre
disciplinas, e sim entre pessoas, com tudo o que elas sabem, sentem, pensam e
fazem. Não é só plugar em um pedacinho delas. Trata-se de se relacionar com as
pessoas na sua integridade inteligente que produz conhecimento.
Uma ação transdisciplinar é na sua essência transcultural, contempla diferentes
modos de viver e estar no mundo. Mais ainda, não se esgota em argumentos
produzidos somente pela dimensão racional. Inclui emoções, sentimentos, dúvidas,
imaginação, intuição, e também a experiência concreta. Numa tentativa de
descrever a riqueza deste jeito de ser, podemos dizer que é uma experiência onde
somos ao mesmo tempo cientistas, filósofos, artistas e místicos.
Praticar a transdisciplinaridade é ser capaz de, ao mesmo tempo, explicar o mundo
com a lógica de um cientista, questiona-lo com as dúvidas de um filósofo, percebelo com a sensibilidade intuitiva de um artista, e experimentar cada momento da
vida com a profundidade de quem vive intensamente um magnífico ritual de uma
grande tradição. Arte, ciência, filosofia e tradições – este é um circuito
transdisciplinar percorrido na construção da nossa trajetória no mundo.
Não é só uma multiplicidade de experiências. Trata-se de acessar a multiplicidade
de seres que somos, pensando, sentindo, trabalhando, lidando com a vida. É a
unidade na diversidade - na prática.
Descartes que me perdoe, mas esta riqueza de dimensões humanas é mais viva e
real do que só raciocinar.
Este jeito transdisciplinar de viver, que acolhe em pé de igualdade nossas
diferentes inteligências, do orgânico ao espiritual, oferece suporte para os desafios
atuais. É a visão sistêmica do próprio conhecimento, necessária para se inventar
um modo de vida um pouco melhor: mais feliz, mais harmônico, mais competente,
e mais viável no planeta e no nosso dia-a-dia.
Uma forma de produzir conhecimento que agrega à dimensão lógica uma boa dose
de valores universais como amor, paz e não-violência. Um saber comprometido
com o bem-comum, com o respeito pela diversidade inerente à natureza e à
humanidade.
Esta nova produção de conhecimento gera profundos impactos na realidade. O
modelo adotado para o conhecimento determina um modo de vida, e vice-versa. É
melhor acreditarmos logo nisso, enquanto ainda há tempo, e modificarmos
rapidamente a forma como educamos a nós, aos nossos filhos e aos que nos
rodeiam. Não há como transformar o mundo sem transformar a maneira como nos
conhecemos, evoluímos e nos inserimos no mundo.
Regina Migliori é educadora, advogada, escritora, pioneira no Brasil em projetos de Educação e Gestão centrados em Valores, Ética e
Sustentabilidade. Como Diretora Presidente do Instituto Migliori, tem realizado projetos junto a governos, empresas, e instituições de
educação. Coordenou o MBA em Gestão com foco em Ética, Valores e Sustentabilidade na Fundação Getúlio Vargas. Estão entre seus
clientes: Governo do Estado de Minas Gerais, UNESCO; Polícia Militar do Estado de São Paulo; Banco Real, Grupo Votorantim, Natura,
entre outros; é autora de livros, CD-Rom, e programas de e-learning.
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