A (IN) DISPONIBILIDADE SEXUAL DA MULHER NO RELACIONAMENTO CONJUGAL: ALGUMAS REFLEXÕES NEUROPSICANALITICAS Eliana Nogueira-Vale Eixo: O Corpo na teoria Palavras-chave: psicanálise, neurociências, relacionamento conjugal, sexualidade feminina. Resumo Neste texto, examinaremos a queixa clínica sobre a (in) disponibilidade sexual da mulher na conjugalidade, e faremos, à luz da Neuropsicanálise, uma tentativa de identificar melhor seus componentes. A Neuropsicanálise é uma proposta de abordagem integral sobre o ser humano, em que conceitos psicanalíticos e seus correlatos neurobiológicos (ou seja, que derivam do conhecimento neurocientífico sobre o funcionamento do Sistema Nervoso) são examinados, em busca de uma compreensão melhor e mais complexa do ser humano. Faremos uma Introdução sobre o assunto, abordando a) os aspectos instintivos e culturais da civilização ocidental, e b) a vertente terna e a sexual em Freud e na neurociência. A seguir, comentaremos alguns aspectos que poderiam contribuir à (in) disponibilidade sexual da mulher na conjugalidade: a desidealização da relação amorosa; a excitabilidade sexual e o Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia tempo cronológico; o envelhecimento e a relação sexual; a mulher profissional e a sexualidade, e, finalmente, O que quer uma mulher? NOTA: Os descritores seguem as normas dos Descritores em Ciências da Saúde da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Desenvolvimento INTRODUÇÃO: O tema acima será desenvolvido a partir de um referencial neuropsicanalítico, isto é, serão usados conceitos da psicanálise, mas com referência aos correlatos do Sistema Nervoso que dão suporte aos mesmos. Entre os pressupostos desta abordagem dois são fundamentais: a) não há fenômeno psíquico sem suporte cerebral (corporal); b) a abordagem integral da dinâmica psíquica e da neurobiológica permite um maior nível de complexidade na compreensão dos fenômenos humanos. Neste trabalho, serão exploradas as relações entre a dinâmica psíquica e o funcionamento hormonal e neural da sexualidade feminina na conjugalidade. Numa visão neuropsicanalítica, propomos que a (in) disponibilidade sexual da mulher frente ao parceiro conjugal deve ser resultante da manifestação – ou não – do desejo sexual, a partir da complexa interação de fatores tais como: aspectos psicossociais, epigenéticos, neurobiológicos, determinados pela idade, aspectos psicológicos determinados pela Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia estimulação produzida pelo parceiro, e tal como percebida pela mulher, e mediados pelo ideal de ambos sobre o ser mulher. INSTINTO E CULTURA NA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL: Como diferenciar e dimensionar os componentes instintivos e os do setting social/cultural do mamífero humano? Quanto nossa cultura logrou de fato domesticar o instinto sexual? Em O Mal Estar na Civilização, Freud menciona o embate entre prazer sexual e certa proteção contra o sofrimento, garantida pelas leis culturais inibitórias. Observa ainda que prazer e desprazer são moldados pelas experiências de vida, e pela ocorrência de fatos críticos em certas épocas da vida e do desenvolvimento libidinal, que, numa linguagem mais atual, chamaríamos de epigenéticos. Freud menciona também o desvio da libido e retirada de energia extraídos da vida sexual para fins culturais (Freud, 1930), referindo-se aqui ao homem, e não à mulher, como fará em outros textos. Na psicanálise, conforme Freud propôs, e Lacan enfatizou como uma das descobertas freudianas mais essenciais na base do Complexo de Édipo, na vida amorosa haveria uma tendência à degradação (Erniedrigung) psíquica do objeto sexual (Freud, 1912; Lacan, 1999). No mesmo texto, quando Freud descreve o que chama de impotência psíquica no homem, ou seja, a incapacidade de consumar o ato sexual com algumas mulheres (Freud, 1912), revela haver “uma série de ‘condições eróticas’” para que o ato ocorra (Freud, 1910), mas, novamente, refere-se ao homem, e não menciona a mulher. Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia Em termos neurobiológicos, sabemos que os hormônios testosterona e estrógeno são poderosos organizadores dos papéis sexuais e da eleição de objeto sexual. No entanto, o ser humano, na medida em que é um ser subjetivo, capaz de simbolizar suas próprias experiências e elaborar sobre elas, irá extrapolar os limites desse determinismo biológico. Uma proposta de investigação seria entender as relações entre tais condições eróticas e a organização sexual hormonal. No texto freudiano acima citado, o paradigma adotado é o masculino; a impotência psicológica referida é a masculina; e a incapacidade refere-se à consumação do ato sexual por parte do homem (Freud, 1912). O texto trata, portanto, do erotismo masculino. Panksepp, em sua Neurociência Afetiva, lembra que uma multiplicidade de fatores precisa ser sincronizada para que haja comportamento sexual competente, e que há um número muito maior de trabalhos enfocando o aspecto sexual consumatório (cópula) do que os componentes de cortejamento, ou apetitivos. Ele faz uma crítica aos neurocientistas, que tendem a restringir suas discussões ao comportamento sexual, e a ignorar os sentimentos sexuais (Panksepp, 1998). Assim, parece haver muito a desvendar sobre a sexualidade feminina, sobre o ser mulher e sua relação com o ato sexual. A sugestão sobre a investigação do comportamento apetitivo e dos sentimentos sexuais poderia ser um ponto de partida nessa investigação. A VERTENTE TERNA E A VERTENTE SEXUAL EM FREUD E NAS NEUROCIÊNCIAS: Outro aspecto interessante a mencionar nesta reflexão é a divisão que Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia Freud propõe entre “aspectos ternos” e “sensuais”, segundo a qual a criança originalmente receberia uma atenção “carinhosa” dos pais e cuidadores, em que carinho e erotismo se misturam. Para ele, com a puberdade surge a “poderosa corrente sensual” que levará à busca da satisfação dos desejos sexuais (Freud, 1912). E o que diria a neurociência sobre isso? Panksepp menciona a produção dos hormônios cerebrais ocitocina e vasopressina, caracterizados por ele como hormônios sexuais, já que desempenham um papel na aproximação sexual entre mamíferos. Mamíferos de ambos os sexos produzem os dois hormônios, similares em sua composição química e complementares, embora na fêmea a produção de ocitocina seja muito maior em comparação com a vasopressina, e no macho, o contrário ocorra. Ambos são originários de um mesmo hormônio ancestral, a arginina-vasotocina, a qual, ao ser injetada no cérebro de sapos e lagartos machos, produz imediatamente comportamentos sexuais. A divisão da arginina-vasotocina em ocitocina e vasopressina, que mantêm estruturas muito semelhantes entre si e com a primeira, possibilitará uma complexidade e sofisticação inéditas nos relacionamentos dos mamíferos. A ocitocina, por exemplo, além de hormônio de predisposição sexual na fêmea, tem papel primordial no instinto de apego e na maternagem. Para Panksepp, em termos evolutivos isso ocorreria por uma derivação do sistema neural de cuidados a partir do sistema sexual. Ou, como ele diz, o sistema de cuidados “tomou carona” na estrutura neuro-hormonal já existente dos comportamentos sexuais, mecanismo que, em linguagem científica, chamamos de exaptação. Então, neurocientificamente, a corrente terna deriva da sexual. Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia (IN) DISPONIBILIDADE SEXUAL DA MULHER NO RELACIONAMENTO CONJUGAL: Ao refletir sobre essa queixa, aliás, bastante frequente na clínica, a primeira observação a fazer é que, na conjugalidade, algo que deveria ser do nível do desejo ou do prazer da mulher torna-se um dever conjugal, o que não tarda a aparecer nas queixas do casal: ele, porque ela nunca quer transar; ela, porque ele não é carinhoso, só quer fazer sexo, por que está cansada, ou sem vontade. O que se passaria entre o casal? O que essas queixas revelam, além de denunciar que falam línguas diferentes? A DESIDEALIZAÇÃO DA RELAÇÃO AMOROSA: Após o período fusional de enamoramento, em que “eu e você somos um”, a convivência diária mostrará que isso não passa de uma ilusão, que ambos são diferentes, e, portanto, surgirá uma frustração narcísica importante se o casal não for capaz de lidar com as diferenças do outro. A clínica mostra que atingir esse estágio é muito mais difícil do que parece. As dificuldades cotidianas a serem enfrentadas também terão um papel na deserotização da relação. A EXCITAÇÃO CONJUGAL E O FATOR TEMPORAL: Não se pode ignorar, no nível neurobiológico, o aspecto de que a excitabilidade erótica seja uma variável do fator tempo cronológico na conjugalidade, sujeito ao fenômeno da habituação (Kandel, 2005) 1 . Isto quer 1 A habituação é um fenômeno presente na maioria dos animais, e uma das formas mais elementares de plasticidade comportamental, resultante de plasticidade neural correspondente. Quando a habituação ocorre, há Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia dizer que haveria uma tendência a que, no início do relacionamento os primeiros estímulos fossem sentidos como muito intensos, pouco a pouco, acabassem diminuindo de intensidade, e, eventualmente, até se extinguindo. Seria então possível que, por não mais despertar a mesma intensidade de sentimentos e emoções, o objeto fosse vivenciado como desvalorizado, ou esvaziado, caso a relação conjugal não consiga lançar mão de outros tipos de atratibilidade. A RELAÇÃO SEXUAL E O ENVELHECIMENTO: O fator idade cronológica dos cônjuges, quando se considera o aumento da expectativa de vida e a exaltação cultural da beleza do corpo e da juventude (Soares, 2012) precisa ser levado em conta, já que o parceiro estará sujeito a ser escrutinizado por esse ideal de eu muito exigente e perfeccionista, impossível numa idade mais avançada. Por outro lado, numa concepção evolucionista, o homem tende a se sentir atraído pelas mulheres mais jovens e mais bonitas, que seriam mais aptas a procriar e ter uma prole saudável... Aqui, a evolução desfavorece a mulher. No processo de envelhecimento normal do ser humano, muitos hormônios cessarão ou terão sua atividade diminuída. A diminuição do estrogênio impactará diretamente na diminuição do colágeno e concomitante flacidez dos tecidos. Os hormônios sexuais, notadamente na mulher, cairão abruptamente, trazendo impacto sobre sua disposição e disponibilidade sexual (García-Segura, 2009). Também a diminuição na produção de dopamina, fundamental para a energia motora e na busca por novidades, deverá se somar aos um decréscimo na intensidade da resposta decorrente de uma estimulação constante ou repetitiva (Kandel, 2005). Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia anteriores (Panksepp, 1998). A diminuição na produção dos hormônios tiroidianos e da serotonina poderá colaborar para um estado de espírito mais deprimido e desanimado (García-Segura, 2009). Vale lembrar, por outro lado, de que os antidepressivos, cujo uso está difundido e em alta na cultura ocidental, sabidamente retraem a libido. No entanto, já vimos mulheres de meia idade que, indiferentes no sexo com o marido, recobravam a sexualidade com um novo parceiro. A MULHER PROFISSIONAL E A SEXUALIDADE: Atualmente, muitas mulheres ingressaram no mercado de trabalhos, e acrescentam à responsabilidade pela casa e pelos filhos uma jornada de trabalho externo, que segue o modelo masculino: período integral, horas de trabalho prolongadas, viagens, e um investimento libidinal e de agressividade necessários para impor-se nesse mundo altamente competitivo. Com a entrada no mercado de trabalho, a despeito da realização profissional, a mulher parece haver caído num engodo fálico, ainda mais no que implica em adotar para si o modelo de trabalho masculino, que implica em manter as funções maternas e domésticas, e, ao mesmo tempo, entrar na pressão pela competitividade, pela atualização constante, cursos, pós-estudos, etc. Em termos psiconeuroendócrinos isso equivaleria a dizer que, ao mesmo tempo, seria necessária a ativação constante do eixo hipófise-pituitário-adrenal [HPA], produtor dos hormônios do estresse cortisol e noradrenalina, além da vasopressina, para entrar no modo luta-ou-fuga, e haver uma disponibilidade sexual que implicaria na ativação do sistema de calma-e-bem-estar, produzido pelo eixo ocitocinérgico e as endorfinas. Ora, isso significaria Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia ativar ao mesmo tempo o Sistema Nervoso Simpático [SNS] e o Sistema Nervoso Parassimpático [SNP], que têm, na maior parte das vezes, funcionamento antagônico. Porges (2012) observa que, excepcionalmente, no encontro sexual, ambos os sistemas funcionam de forma dual: o SNS seria necessário para ativar a excitabilidade sexual (arousal); num segundo momento, o SNP seria fundamental para a entrega no ato sexual, para a excitação, para a ereção no homem, e para o orgasmo em ambos os sexos (Panksepp, 1998). Panksepp (1998) observa ainda que a ocitocina seria responsável pela disponibilidade sexual na fêmea, e a vasopressina, pela insistência sexual no macho. Já a fêmea com excesso de produção de vasopressina torna-se tão agressiva que muitas vezes não permite que o macho se aproxime dela. Isso geralmente ocorre quando a fêmea está com filhotes recém-nascidos, e representa uma proteção à prole. Não seria talvez o que ocorre quando a mulher ingressa no mundo corporativo? Muita luta por questões de sobrevivência profissional? O QUE QUER UMA MULHER? Com relação ao desejo sexual, o que quer uma mulher? Muitas são movidas por um ideal romântico de homem, que “a desperte”, sendo comuns fantasias sobre “homens interessantes”, “românticos”, geralmente com comportamento diferente do homem a quem escolheram como cônjuge. Lembro-me de uma mulher que, próxima aos cinquenta anos, exigia que o marido dançasse com ela como preparação ao ato sexual. Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia Quando Lacan afirma que “a relação sexual não existe” (Lacan, 2012), aponta para essa falta de encaixe existente entre o masculino e feminino, que parece separar dois mundos. Que mulher consegue entender a relação do homem com o futebol, por exemplo? Geralmente, lhe parece uma paixão inexplicável, que faz degenerar a admiração por seu homem. E o homem, o que entenderá dos infantis desejos de cinderela das mulheres? REFERÊNCIAS: 1. Freud, S. (1910). Obras completas, vol. II. Sobre un tipo especial de la eleccion de objeto en el hombre. Madrid, Biblioteca Nueva, 1625-1630. 2. ________ (1912). Obras completas, vol. II. Sobre una degradación general de la vida erótica. Madrid, Biblioteca Nueva, 1710-1717. 3. _____ (1930). Obras completas, vol. III. El mal estar en la cultura. Madrid, Biblioteca Nueva, 3017-3067. 4. García-Segura, L.M. (2009). Hormones and brain plasticity. NY, Oxford, University Press. 5. Lacan J. (1999) O seminário, livro V: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro, Zahar. 6. Lacan J. (2003) O aturdito. In: Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 7. Kandel E.R. Psychotherapy and the single synapse: the impact of psychiatric thought on neurobiologic research. In: Kandel E.R. (Org.) (2005). Psychiatry, psychoanalysis, and the new biology of mind. Washington, American Psychiatric Publishing, Inc., 5-26. Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia 8. Panksepp, J. (1998) Affective neuroscience: the foundations of human and animal emotions. NY, Oxford, University Press. 9. Porges, S.W. (2011). The polyvagal theory: neurophysiological foundations of emotions, attachment, communication, self-regulation. New York, Norton. 10. Soares, S.S.G.S. (2012). Envelhescência, um fenômeno da modernidade à luz da psicanálise. São Paulo, Escuta. Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia