ALFABETIZAÇÃO/LETRAMENTO PARA SURDOS: DESAFIOS À INCLUSÃO QUALITATIVA Luzia Cristina Nogueira de Araújo1 - UVA Grupo de Trabalho – Diversidade e Inclusão Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo A problemática relacionada ao processo de alfabetização/letramento para surdos, principalmente no que tange o ensino do português na modalidade escrita, já vem sendo alvo de investigação a longa data, sempre sendo caracterizada por inúmeros desafios, ambiguidades e paradoxos entre os profissionais da educação e o aprendiz, o que certamente, inviabiliza a clara compreensão teórica do processo de aprendizagem como uma possibilidade de atuação eficaz no campo da prática pedagógica. Percebe-se claramente que existem tensões de ambos os lados – professor e aprendiz – nas quais se concretizam em práticas de comunicação distantes de uma interação significativa entre os sujeitos do processo ensinoaprendizagem, impossibilitando a inclusão social. Essa pesquisa, de cunho qualitativo, objetiva sinalizar que as práticas de alfabetização e letramento destinadas aos surdos não coadunam com todos seus direitos enquanto cidadãos historicamente excluídos. A presente pesquisa utilizou-se metodologicamente de suportes teóricos para questões desafiadoras que norteiam o processo alfabetização e letramento, baseados nas concepções educacionais de Ronice Quadros (2006 e 2004); Lodenir Becker Karnopp(2004), Magda Soares (2010), Luiz Paulo Moita Lopes (1996), Eulália Fernandes (2006), Maria Cecília Rafael Goes (2000); Lev Semenovitch Vygotsky (1989) e nas leis: nº 9394/96 (LDB) e 10.436 (Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais). Assim, elucida hipóteses a respeito de: Como se dá o processo de aprendizagem com vistas ao letramento para os sujeitos surdos? Como se aprende e como se ensina? Conclui-se que os professores encontram muitas dificuldades em apropriar-se de uma proposta de aprendizagem que legitime a linguagem dos surdos, sem que se perca de vista o processo educacional integral, respeitando as suas características físicas, mentais, sensórias, afetivas e cognitivas diferenciadas, valorizando a singularidade do seu processo de aprendizagem. Palavras-chave: Surdez. Alfabetização. Letramento. 1 Drnª em Educação; Ms. em Educação (UERJ); Graduação em Pedagogia e Letras/Literatura (UNIVERSO); Pós-Graduada em: Psicopedagogia; Docência Superior (UCAM); LIBRAS; Educação Especial e Inclusiva; Letras e Literatura; Aperfeiçoamento em Planejamento de ensino, Educação Infantil e Educação especial; Pesquisadora SEE-RJ, INEP-MEC. Professora adjunto da universidade Veiga de almeida (UVA).Coordenadora de pesquisas na área da surdez (PIC UVA). E-mail:[email protected]. ISSN 2176-1396 16378 Introdução A lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº º9394/ 96) estabelece que as escolas cumpram o processo de inclusão de todos os alunos com deficiências em escolas públicas em turmas regulares. Enveredando por esse caminho, especificamente para os surdos, surge a lei 10.436 de 2002, que oficializa a LIBRAS (língua brasileira de sinais) e garante a oferta da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, na condição de língua nativa das pessoas surdas, se constituindo numa educação bilíngue, na qual o ensino da língua portuguesa prevalece em sua modalidade escrita. Entretanto, sua implementação vem acarretando várias problemáticas, já que professores vêm encontrando muitas dificuldades em compreender capacidade de expressão dos sujeitos surdos, instaurando nesse processo a exclusão. A peculiaridade da lei proposta, na qual reconhece a língua de sinais como a língua materna dos grupos surdos, legitimando a sua cultura, evidencia a sua importância na formação do sujeito, já que a língua é um elemento indispensável para a formação das estruturas mentais do ser humano.(Vygotsky,1989), que se corporifica e adquire sentido na fala. Contempla-se, assim, a necessidade de implementação nas escolas, de uma pedagogia voltada para a diversidade e necessidades específicas do aluno surdo já que a sua fala é representada pela a forma de sinais No entanto, até o momento, a aquisição do português escrito para os sujeitos surdos, na maioria das escolas, é baseada no ensino do português para sujeitos ouvintes. Nesse contexto, a escola, embora deva se constituir num espaço de aprendizagem qualitativa assegurado também para surdos, se encontra ainda enquanto espaço muito direcionado pelos modos ouvinte de representação. Assim, de forma velada, as práticas alfabetizadoras explicitam uma ideologia de que o surdo precisa ser reconstruído para o meio ouvinte, para que se efetive qualitativamente o processo de inclusão. Em consequência, tais práticas são traduzidas em posturas reducionistas e equivocadas, das quais se resumem em uma mera inclusão da língua de sinais na sala de aula, ao lado da língua portuguesa ou na mera e simples tradução do conteúdo pedagógico para a língua de sinais. Esse contexto traz inúmeros desafios e dificuldades no processo de alfabetização e letramento, onde aqui, são defendidos como processos distintos e complementares, em que a alfabetização significa a aquisição do sistema convencional de escrita e o letramento possibilita o cidadão a construir, em si próprio, o sentido da escrita para sua vida cotidiana. 16379 A princípio, o sistema escolar não pode oferecer as mesmas condições de práticas pedagógicas de alfabetização para alunos ouvintes e surdos, já que não falam a mesma língua. Equivocadamente, a língua de sinais, quando utilizada no processo de ensino da leitura e da escrita é preconizada como um meio para ensinar a língua portuguesa e não enquanto razão que se justifica por si só – direito da pessoa surda de usar a sua língua. A língua visualespacial é utilizada apenas como um recurso a mais, mas jamais a reconhecendo em sua completude linguística. Esse quadro vem acentuando ainda mais a exclusão, pois os surdos são tratados como incapazes de entender a estrutura da língua portuguesa. Esses processos excludentes que a escolarização brasileira, que de um modo ou de outro, ainda articula, podemos identificar três questões estreitamente relacionadas a área da surdez: Em primeiro lugar, o déficit de letramento entre os brasileiros surdos, tanto crianças quanto jovens e adultos – a sua dificuldade ou mesmo incapacidade de fazer diferentes e qualificados usos tanto individual quanto socialmente significativos da língua escrita. Em segundo lugar, o fato de persistir amplamente disseminada entre os profissionais da educação certa abordagem segundo a qual leitura e produção textual são meras habilidades aprendidas por indivíduos em processos de alfabetização, desconsiderando a construção da escrita e da leitura como práticas interativas e contínuas. Em terceiro lugar, a insuficiência da formação inicial e continuada desses profissionais na tarefa de torná-los aptos a lidar com diferenças linguísticas de alunos em processos de ensino e aprendizagem, como a existente entre alunos surdos e ouvintes, e a consequente demanda de aperfeiçoamento profissional, por meio da ampliação, do aprofundamento e da atualização de conhecimentos de quem são os sujeitos da aprendizagem. Ao se discutir sobre as condições de inclusão qualitativa no processo de alfabetização/letramento das crianças surdas é necessário chamar a atenção para o fato de não ser levado em conta, na absorção destas crianças pelo sistema regular de ensino, sua singularidade linguística e cultural. As crianças surdas, assim como as crianças de minoria linguísticas, seriam convidadas à escola inclusiva, mas sem que esta reconhecesse suas particularidades linguísticas como um sistema tecedor de cultura, visto que a língua portuguesa seria a língua dominante aceita nas escolas. Contempla-se dessa forma, a necessidade de implementação nas instituições educacionais de práticas de alfabetização e letramento voltadas para a diversidade e necessidades específicas do aluno surdo, sem esquecer-se que todos nós que compomos um agrupamento qualquer de seres humanos somos diferentes uns dos outros, portanto, somos 16380 também diferentes em nossas concepções, normas, valores e formas construção de conhecimentos. Práticas de alfabetização/letramento para surdos em análise A linguagem é uma instituição social, em que uma análise do discurso se inscreve num espaço linguístico e mantém vínculos peculiares com as condições sócio-históricas de produção, onde se considera a interação, a relação entre homem e realidade cultural e social. É válido ressaltar que a primeira língua não é definida pelo momento em que ocorre a aquisição mas, principalmente, por uma questão de identificação com o grupo social como forma de expressar e entender sentimentos, bem como tem o papel fundamental no desenvolvimento do pensamento, possibilitando a produção de operações mentais complexas, aproximando-se assim, na viabilização da “construção social da mente” postulada nas pesquisas de Vygotsky (1989). Segundo o autor, para chegarmos ao pensamento, para “nos tornarmos nós mesmos”, temos que passar pelo processo dialógico, é nela que a criança desenvolve seus próprios conceitos e significações, alcança a sua própria identidade e constrói o seu mundo. Ressalva-se, assim, que a educação de sujeitos surdos não envolve apenas considerar a necessidade do uso de duas línguas, mas, significa além de dar espaço privilegiado e prioritário à língua natural dos surdos, ter como eixo fundamental, como mencionado por Góes (2000, p.31), “a produção de significados em relação ao mundo da cultura e a si próprio é um processo necessariamente mediado pelo outro, é efeito das relações sociais vivenciadas [...] através da linguagem”. Urge nesse contexto, a necessidade de implementação nas escolas, de uma pedagogia voltada para a diversidade e necessidades específicas do aluno surdo já que a sua fala é representada pela forma de sinais. Sabe-se, contudo, que a escola não vem cumprindo essa premissa, onde a língua tem se tornado um grande obstáculo para o desenvolvimento cognitivo dessas pessoas, já que a língua privilegiada no cotidiano escolar das escolas formais é a língua portuguesa na sua forma oral e escrita. Nesse cenário, é preciso destacar que: o conceito de inclusão envolve um pensar radical na sociedade de modo que isso reflete na prática e reflete um jeito de pensar diferente sobre as origens das dificuldades de comportamento. Estamos falando de uma mudança de ideia de “defeito” para um “modelo social” (MITTLER, 2003,p.25). 16381 Mittler (2003) ressalva que o modelo social de deficiência baseia-se na proposição de que a sociedade e suas instituições é que são opressivas, discriminadoras e incapacitantes e que portanto a atenção precisa ser direcionada para as mesmas, para a remoção desses obstáculos que ainda permeiam sejam corrompidos. Dessa forma, ao se pensar no processo de alfabetização e letramento para os surdos deve-se levar em conta a superação dessas proposições. Para o autor a educação inclusiva dá-se através da interação, socialização e própria construção do conhecimento. Soares (2010) ressalva que os conceitos de alfabetização e letramento são processos que se dão de forma simultânea e interdependente, pois enquanto alfabetizar significa a aquisição do sistema convencional de escrita, e letramento designa o desenvolvimento de comportamentos que envolvem práticas sociais de leitura e escrita. Nessa perspectiva, o processo de alfabetização/letramento para os surdos deve contemplar a concepção de homemsujeito que estabelece com o mundo uma relação consciente de trocas significativas, concretizadas a partir da compreensão do papel social da escrita. Nesse contexto, o letramento aparece como uma forma de construção de conhecimento que implica numa abordagem interdisciplinar de alfabetização, em que se configura em um processo no qual o cidadão possa construir, em si próprio, o sentido da escrita para a sua vida cotidiana. Não se trata de apenas aceitar a língua de sinais, mas de viabilizá-la, pois todo trabalho pedagógico que considere o desenvolvimento cognitivo tem que considerar a aquisição de uma primeira língua natural e respeitar as diferenças linguísticas. De outra forma, como o surdo estabelecerá contato com o mundo de representações e tecerá suas próprias significações? Os surdos precisam se reescrever na sua língua. Como o surdo constitui a linguagem dele de sinais, através da língua de modalidade visual-espacial, ele não constitui o conceito de gramática tal como as línguas de modalidade oral. Na verdade, do ponto de vista lógico se torna um paradoxo se alfabetizar um aluno surdo através da escrita de uma língua que não seja pela língua de sinais, pois para ele é triplamente difícil porque tem: (i) todo o custo do código, (ii) mais o custo da descoberta da língua e, (iii) mais o custo da descoberta de uma estrutura gramatical que ele não tem no pensamento. Assim, se as práticas de alfabetização e letramento para surdos, estiverem centradas no trabalho normativo da língua portuguesa, em técnicas e regras gramaticais e/ou em itens lexicais, sem considerar a interação e a língua de sinais no contexto da aprendizagem, seu resultado será inócuo. 16382 O "estar" no mundo caracterizado pela falta ou pouco som, significa permitir a apropriação do conhecimento pela língua visual-espacial por pessoas surdas que desconhecem o valor sonoro das palavras. Dessa forma, no ensino do alfabeto por exemplo, o professor não poderá oferecer metodologias de alfabetização que incentivem o valor sonoro das letras, visto que tal prática, como outras, fundamentadas no modo ouvinte de aprender, geram para os surdos dificuldades ou mesmo incapacidade de fazer diferentes e qualificados usos tanto individual quanto socialmente significativos da língua escrita. O sistema escolar não pode oferecer idênticas condições de alfabetização/Letramento para alunos ouvintes e alunos não ouvintes quando estes diferentes alunos não falam a mesma língua. As regras na língua brasileira de sinais são diferenciadas da língua portuguesa, refletem-se em sua forma de comunicação e, consequentemente, na sua escrita. Destaca-se que um dos maiores obstáculos no ensino da escrita na língua portuguesa para alunos surdos, está em que os professores conhecem pouco sobre a língua escrita e tentam fazer com que os surdos aprendam através de procedimentos que não são válidos nem para os ouvintes. É necessário, portanto, que o professor, durante o processo de alfabetização/letramento mantenha uma atitude diferenciada que não parta das aparentes limitações iniciais apresentadas, mas das possibilidades que as especificidades dessa construção contemplam. Os ‘erros’ que estudantes surdos cometem ao escrever o português devem ser encarados como decorrentes da aprendizagem de uma segunda língua, ou seja, o resultado da interferência da sua primeira língua e a sobreposição das regras da língua que está aprendendo. Ressalva-se que “há necessidade de um trabalho contextualizado, no qual sejam focados conteúdos relacionados à prática da produção escrita, ou seja, o conhecimento gramatical e seu efeito retórico deverão ser decorrentes do uso em atividades significativas de escrita. (FERNANDES, 2006, p.140). Cumpre-se, assim, a necessidade de se viabilizar metodologias pedagógicas de alfabetização/letramento que se materializem através do respeito às singularidades do processo de aprendizagem dos sujeitos surdos de modo que possibilite uma significativa e efetiva inclusão social. Nessa perspectiva o processo de aprendizagem para os surdos deve contemplar a concepção de homem-sujeito que estabelece com o mundo uma relação consciente de trocas significativas, concretizadas a partir da compreensão do papel social da escrita. O problema está na segregação das práticas de alfabetização/letramento no cotidiano escolar, em que raramente se articulam com as demais áreas do conhecimento e não 16383 legitimam as possibilidades das diferenciações cognitivistas em que envolve a construção da leitura e da escrita. Agrega-se a esse contexto dois fatores: (i)uma concepção arcaica de que a alfabetização restringe-se meramente ao ato de dar acesso às letras, ou seja, conhecendo seus nomes e juntando-as para formar palavras; esta percepção evidencia uma prática alfabetizadora onde o sentido comunicativo da linguagem inexiste e a língua é encarada como um sistema estável, imutável e único, ou seja, prevalece a língua portuguesa como a única língua possível; tal concepção acontece contraditoriamente ao ambiente alfabetizador, tão priorizado, atualmente, nas escolas, cuja concepção pressupõe que palavra escrita, refletindo, criando e apropriando-se dela, para alfabetizar é criar condições significativas para que os alunos surdos ou não, tenham acesso à construir novos conhecimentos e maneiras de ler o mundo; (ii) professores não conseguem entender da estrutura da LIBRAS, restringindo a aprendizagem da leitura e escrita para alunos surdos à concepção da língua portuguesa. Com efeito, tais práticas escolares traduzem-se por posturas indesejadas que se têm resumido em práticas baseadas no oralismo, momentos estanques de aprendizagem da escrita, a inclusão de intérpretes em salas de aula que, ao lado da Língua Portuguesa, ilusoriamente propiciam uma mera tradução de ministrados conteúdos pedagógicos para a LIBRAS. Tal não bastasse, práticas pedagógicas tem longamente demonstrado, que mesmo surdos que chegam a acessar a modalidade oral do Português continuam enfrentando problemas com a linearidade igualmente explorada na equivalente escrita. Fato idêntico tem ocorrido com surdos usuários de Línguas de Sinais como primeira língua (L1), e sabemos que para uma efetiva competência textual são necessários dois tipos de domínio : o sistêmico e o esquemático (LOPES, 1996). Ou seja, são necessários um domínio do sistema abstrato que regula a língua e a capacidade de transformar tudo o que existe em linguagem. O epicentro de impasses que configuram esse último, coaduna-se com o fato de que, a população surda brasileira apresenta dificuldades linguísticas na aprendizagem e no uso da modalidade escrita da Língua Portuguesa. Brasileiros surdos têm ficado, então, à mercê de barreiras linguísticas por conta da falta de um efetivo processo de alfabetização/letramento, que impedem significativamente suas reais inserções nos espaços sociais que perpassam diariamente. É válido destacar que concepções equivocadas no processo de alfabetização/letramento estão ligadas à formação do professor. Embora a alfabetização com a concepção interdisciplinar na perspectiva da diversidade deva ser encarada pelo professor como uma meta a ser buscada no processo mais amplo de letramento do aluno, sua identidade enquanto alfabetizador, na sua formação, é propriamente construída em uma ou duas 16384 disciplinas, em que se encaixam técnicas de alfabetização. Nas demais disciplinas, a alfabetização não é mais abordada, de modo que o professor aprende a crer que se possa tratála na escola apenas em momentos isolados, especificamente relacionados ao aprendizado da escrita. Como torná-lo, antes, significativo e funcional para o aluno? Em primeiro lugar, devese zelar para que se torne significativo e funcional para o professor. Signos linguísticos: língua portuguesa e língua de sinais O homem, historicamente, criou símbolos e signos de vários tipos (linguísticos, pictóricos e gráficos) com o intuito de comunicar-se. Assim, toda língua se compõe de signos linguísticos, que são as unidades de significação que possuem um significante (uma memória de um termo) e um significado (conceito contido em um signo, acionado pelo significante). O significante seria a forma de como é passada a informação e o significado é o conteúdo. Sob esta ótica, podemos assim diferenciar a representação dos códigos linguísticos entre sujeitos ouvintes e sujeitos surdos. Para os ouvintes o significante(forma)é uma imagem acústica e o significado é o conceito de características que definem as coisas. Já para os surdos o significante (forma) é a imagem cinética e o significado - o conceito de características que definem as coisas. Observa-se assim que nem todo significante é uma imagem acústica. A diferença, a priori, entre as Línguas Orais-Auditivas e Línguas Visual-espacial é a natureza do significante, é que a primeira se manifesta por sons e a segunda por gestos. Quando se sinaliza por movimento ‘cadeira’ com as mãos, o surdo capta aquela imagem e o conceito subjetivo de cadeira que possui registrado pelo cérebro, dando significado para aquele sinal. Os sinais são formados a partir da combinação das mãos com determinado formato em um determinado lugar, podendo esse lugar ser uma parte do corpo ou um espaço em frente ao corpo. As articulações das mãos para produção dos sinais que representam as palavras podem ser comparadas aos fonemas e às vezes aos morfemas, e são denominadas de Parâmetros, a saber: Configurações das mãos: são formas das mãos, que podem ser datilologia(alfabeto manual) ou outras formas; 2.Ponto de articulação: onde incide a mão predominante configurada, podendo tocar as partes do corpo ou estar em espaço neutro vertical (meio de corpo até a cabeça) ou horizontal(frente do emissor); 3. Movimento: os sinais podem ter um movimento ou não; 4. Orientação: direção dos sinais; 5. Expressão facial e/ou corporal: além dos quatro parâmetros citados acima, os sinais em sua configuração também tem a expressão 16385 facial e corporal como um traço diferenciador, pois através das expressões que revelamos nossas emoções de alegria, tristeza, frio, raiva, calor etc., e sentido que atribuímos a determinados fatos, situações e objetos. (QUADROS e KARNOPP, 2004). Na combinação destes cinco parâmetros tem-se o sinal. Naturalmente de uma língua para outra os significantes podem mudar. O que passa desapercebido é que o conceito profundo de um termo também pode ser diferente em duas línguas que comparemos, muito embora se refiram ao mesmo ser na natureza. Isso acontece porque tudo na língua é representação, tudo se realiza como cultura. Para Quadros a língua de sinais "é uma língua espacial visual, pois utiliza a visão para captar as mensagens e os movimentos, principalmente das mãos, para transmiti-la"(2006, p. 35). Percebe-se assim que se distinguem das línguas orais pela utilização do canal comunicativo, enquanto as línguas orais utilizam canal oral-auditivo, as línguas de sinais utilizam canal gestual-visual. Tabela 1 - Distinções na forma de comunicação entre a Língua Portuguesa e a LIBRAS LÍNGUA PORTUGUESA Fonético/ fononológico morfológico sintaxe semântico Textual / discursivo Fonte: Quadros (2006). Adaptado pela autora. LIBRAS configuração das mãos ponto de articulação movimento orientação expressões Os fonemas da língua oral são substituídos na língua de sinais pelos quiremas (sinalização, corresponde ao fonema das línguas faladas) que é a unidade elementar visual da língua sinalizada. A mudança do quirema do sinal lhe modifica o sentido, do mesmo modo que a mudança do fonema o sentido da palavra. Nas línguas de sinais, os fonemas podem ser articulados simultaneamente. É preciso ressalvar que de modo semelhante à oralidade para os ouvintes, a língua de sinais organiza, de forma lógica, as ideias dos surdos e tem sua estrutura gramatical refletida nos textos produzidos pelos alunos. A partir de diferentes estudos já realizados na área da surdez, pode-se exemplificar algumas principais características da escrita de alunos surdos. Assim definidos: Artigos e elementos de ligação (preposição, conjunções, pronomes relativos, entre outros) são inexistentes; os verbos apresentam sem flexões de tempo, na LIBRAS o tempo é expresso através de relações espaciais (Ex: faz-se primeiro o sinal de passado, presente, futuro, hoje, amanhã, ontem, anteontem, dias da semana acompanhado posteriormente do verbo, que se apresenta no infinitivo); o uso de verbo de ligação é inexistente; há ausência de desinência para gênero e número. 16386 Góes (2000), num estudo onde entrevistava alguns surdos sobre os problemas encontrados na leitura e na escrita, apresenta uma sugestão que pode vir a ser uma bastante plausível para essas produções. Ela afirma que a maioria do grupo entrevistado, concebia a fala, escrita e sinais enquanto modalidades de uma mesma categoria, ou seja, as produções orais, gráficas e gestuais seriam formas de produção de uma mesma língua. Segundo a autora, “é como se um sinal fosse gesto da fala; a fala, a sonorização do sinal; e a escrita o registro dos dois primeiros”. Exalta-se, assim, uma forma de VER o mundo, traduzido na percepção que o sujeito faz do ambiente que o cerca e que se reflete na escrita. Quadros (2006) ao definir a Língua de Sinais destaca que esta forma de linguagem é rica, completa, coexiste com as línguas orais, mas é independente e possui estrutura gramatical própria e complexa, com regras fonológicas, morfológicas, semânticas, sintáticas e pragmáticas. É lógica e serve para atingir todos os objetivos de forma rápida e eficiente na exposição de necessidades, sentimentos, desejos, servindo plenamente para alimentar os processos mentais. Ainda acrescenta a autora: “contém os mesmos princípios subjacentes de construção que as línguas orais”, isto é, “as línguas de sinais é determinada pela gramática universal inata e pela interação entre a percepção visual e a produção gestual” (p. 48). Lê-se gramática universal, segundo a autora, entendida de acordo com a Teoria Gerativa, proposta por Chomsky, em que a linguagem é uma característica inata e específica ao ser humano. Todos nós temos inscritos em nosso código genético uma capacidade que nos permite adquirir e desenvolver a linguagem, e essa característica é exclusiva à nossa espécie, ou seja, a criança, durante o processo de aquisição de sua língua materna, não aprende a língua, ela a desenvolve e a adquire. Vale a ressalva de que ao se atribuir a língua de sinais o status de língua, destaca-se que embora sendo de modalidade diferente, possui também características em relação às diferenças regionais, socioculturais, entre outras. Considerações Finais As questões aqui abordadas levam-nos a considerar que um projeto de escolarização na perspectiva do alfabetização e letramento, para sujeitos surdos, deve ser construído tendo como referência as suas singularidades no processo de aprendizagem. Tal premissa deve priorizar estratégias interdisciplinares de ensino que possibilitem o desenvolvimento de competências necessárias para que o sujeito possa instrumentalizar-se de forma significativa, para atender a nova demanda social – sujeito letrado. 16387 Enfatizou-se aqui que alfabetizar na perspectiva do letramento não é apenas codificar e decodificar, mas saber usar e refletir, questionar os códigos e particularmente usá-los no cotidiano, mas é necessário um trabalho amplo e profundo e de longo prazo para alcançar esse objetivo. Para aprender a ler e a escrever precisamos pensar sobre a escrita, pensar sobre o que a escrita representa, como a mesma representa graficamente a linguagem, que por sua vez está diretamente ligada aos pensamentos afetivos e que foram processados singularmente. Portanto, a pesquisa propôs a ideia de que há uma cadeia de significantes e significados, coligados por relações afetivas, socioculturais, interacionais, construídas ao longo do desenvolvimento das competências para um efetivo aprendizado da leitura e escrita dos sujeito surdos. Os surdos, por possuírem uma cultura própria e uma língua materna(visual/espacial), apresentam modos particulares de expressão e buscam neste contexto, através da língua, a constituição da sua identidade, determinando a significação do próprio eu, bem como a possibilidade de desenvolver o sentimento de pertencimento na sociedade em que vive, não sentindo-se excluído. Portanto, o aprendizado da LIBRAS e, consequentemente, a aquisição da linguagem é fundamental para que o sujeito surdo possa reescrever-se através da interação social, cultural política e científica. Considerou-se aqui que qualquer estudo sobre a aquisição da leitura e escrita em uma segunda língua pressupõe que os alunos estejam alfabetizados na forma escrita da primeira língua. Nesse sentido, capta-se uma das diferenças essenciais do ser surdo, cuja proposta educacional de alfabetização/letramento para o mesmo deve considerar, entre outras questões fundamentais, as implicações linguísticas. É válido destacar que não descarta a possibilidade de um aprendizado possível da língua portuguesa pelos surdos, desde que a pedagogia dispensada seja apropriada e significativa. O ensino da língua portuguesa tornar-se-á possível, se o processo for de alfabetização/letramento de segunda língua, sendo a língua de sinais reconhecida e efetivamente a primeira língua. A ideia não é simplesmente uma transferência de conhecimentos da primeira língua para a segunda língua, mas sim um processo paralelo de aquisição e aprendizagem em que cada língua apresenta seus papéis e valores sociais representados. Ressalva-se que a língua não se constitui a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciações concretas, que se constituem numa teia de interações discursivas, diante das quais os significados são estabelecidos e novos discursos são desencadeados. Com efeito, a 16388 linguagem é uma instituição social, em que uma análise do discurso se inscreve num espaço linguístico e mantém vínculos peculiares com as condições sócio-históricas de produção, onde a linguagem considera a interação, a relação entre homem e realidade cultural e social. Sob essa ótica, jamais poderemos desconsiderar a existência de um leitor pressuposto como personagem necessariamente indispensável, quando pensarmos na construção da escrita também na área da surdez. Dessa forma, privilegia-se a cultura, identidades e formas de apropriação de conhecimentos, de todos os envolvidos, numa relação dialógica, acreditando numa educação como processo de formação e desenvolvimento integral das pessoas que, interagindo interdisciplinarmente, desvelam dialeticamente a realidade, transformando-a e construindo novas experiências que ajudarão na produção de novos conhecimentos e, consequentemente, a uma inclusão qualitativa. Nesta perspectiva a escola como uma agencia educacional é preciso proporcionar um espaço para os surdos, onde as práticas pedagógicas, como as do ensino da língua portuguesa torna-se uma atividade ao mesmo tempo prazerosa e construtora de conhecimentos pedagógicos, dos quais envolvam a aprendizagem cultural, social e cognitiva, tornando o conhecimento mais amplo e diversificado, respeitando o surdo como um cidadão que pertence uma minoria linguística. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional- nº 9394/96. 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