UM ESTUDO DO GÊNERO TERMO DE INFORMAÇÃO EM DENÚNCIAS DE ESTUPRO Maria Eulália Tomasi Albuquerque Doutora em Linguística Universidade Federal de Santa Maria- UFSM ([email protected]) RESUMO Este artigo tem como objetivo compreender o funcionamento discursivo das denúncias de estupro formuladas nos Termos de Informação, para apontar as posições-sujeito que atravessam esses documentos. Para tanto, a perspectiva teórico-analítica adotada foi a da Análise de Discurso materialista. Trabalhamos com o relato do estupro apresentado nesses documentos, considerando as condições de produção e o processo sócio-histórico em que os sentidos são produzidos.Na imbricação dessas vozes analisamos, especificamente, a contradição entre o sujeito-vítima e o sujeito-denunciante, abordando o funcionamento da imputação da responsabilidade do que é dito. Em meio à voz da instituição jurídica que sustenta os Termos de Informação, se produz a ilusão de que é a vítima quem fala. PALAVRAS-CHAVE: Análise de Discurso – estupro – discurso relatado ABSTRACT This paper aims at understanding the discursive functioning of rape charges formulated in Terms of Information to highlight the subject-positions that permeate those documents. For that purpose, the analytical and theoretical perspective was provided by the materialistic discourse analysis. We worked with the rape account conveyed through those documents considering both the conditions of production and the historical and social process through which meaning is produced. In the interrelation of those voices, we particularly analysed the contradiction between the subject as victim and the subject as accuser, addressing the functioning of the imputation of responsability of what is said. Along with the voice of the legal institution that sustains the Terms of Information, the illusion that the victim is the one who speaks is created. Keywords : Discourse Analysis, rape, reported discourse, 1.INTRODUÇÃO Este estudo tem por objetivo interpretar/compreender o funcionamento de denúncias de estupro, formuladas por crianças e adolescentes (entre cinco e dezoito anos de idade) e transcritas nos Termos de Informação. Para tanto, analisamos o discurso relatado à luz de Authier-Revuz (1990, 1998) e princípios teóricos de Análise de Discurso (AD) de linha francesa. 2. TERMOS DE INFORMAÇÃO Os Termos de Informação são documentos que trazem as “denúncias” 1 de estupro prestadas pelas vítimas crianças e adolescentes 2 na Delegacia de Polícia que, como instituição policial, tem suas práticas normatizadas por leis e fixam-se na sociedade, como resultado de longos processos históricos durante os quais ocorre a sedimentação de determinados sentidos concomitantemente à legitimação de práticas ou condutas sociais. São práticas discursivas e não discursivas que se legitimaram e institucionalizaram, ao mesmo tempo em que organizam direções de sentido e formas de agir no todo social (MARIANI, 1998, p. 71). 1 Estamos usando o termo ‘denúncia com o significado genérico de declaração, anúncio ou notícia de um fato comunicado, conforme o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Buarque de Holanda. Não o estamos empregando no sentido jurídico de representação feita a respeito de um fato delituoso por um representante do Ministério Público. 2 Para a Organização Mundial da Saúde, adolescência é o período entre os dez e os vinte e um anos de idade. No Brasil, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, adotamos outra faixa etária: dos dez aos dezoito anos. 2 Esses documentos apresentam uma estrutura padrão: menção do crime, da cidade e do Estado em que ocorreu, da Delegacia de Polícia, do nome da Delegada de Polícia e do escrivão da Delegacia em que é lavrada a ocorrência; a qualificação da vítima, o nome do seu acompanhante legal, no caso de declarantes menores de idade. Na seqüência desses dados, aparece o relato dos acontecimentos- crime de estupro -, a partir das respostas das declarantes às perguntas formuladas pela Delegada de Polícia, quando elas relatam/narram/descrevem os acontecimentos da violência sexual sofrida. No encerramento dos Termos, encontramos fórmulas de fechamento, tais como “Nada mais foi perguntado nem dito, sendo o presente lido e assinado por todos”. O pronome indefinido “todos” refere-se às pessoas presentes a essa inquirição, ou seja, à declarante, à Delegada de Polícia e ao escrivão. Outros fechamentos diferem um pouco do anterior, ou seja, “Nada mais, encerro o presente que vai lido e assinado, inclusive pelo avô materno da depoente, senhor.........”; “Nada mais, após lido e achado conforme, vai por todos assinado. O Conselheiro Tutelar, [nome] .......... acompanhou o depoimento”, que fazem referência expressa aos representantes legais que devem acompanhar a declarante menor de idade nos atos legais de que participa. Em relação às condições de produção desses discursos 3 , é importante ressaltar que o escrivão, sujeito institucional, transcreve as respostas das declarantes às perguntas formuladas pela Delegada de Polícia a respeito dos acontecimentos denunciados, como alguém que medeia a formulação das denúncias, formatando-as segundo o modelo da instituição judicial. Nessas circunstâncias, entendemos que não temos um ouvinte/escrivão imparcial, porque, ao transcrever o que é dito, é possível que texto sofra acréscimos e reduções, embora esse sujeito não possa emitir qualquer juízo de valor em relação ao que foi narrado ou modificar o teor dos depoimentos prestados. Os Termos de Informação, nesse aspecto, têm uma configuração que nos leva a considerar o atravessamento do discurso das vítimas pelo discurso institucional jurídico, mostrando que o estupro é, de forma concomitante, relatado de dois lugares diferentes: (1) do lugar de 3 As condições de produção englobam uma série de fatores, como, por exemplo,os sujeitos, a situação, contexto imediato, contexto sócio-histórico-ideológico, a memória. 3 um sujeito que “se conta” (ou seja, a vítima dizendo); (2) do lugar de um sujeito institucional dizendo o que lhe foi relatado. 3. O SUJEITO VÍTIMA “SE DIZENDO” Nos Termos de Informação, é marcante uso do discurso relatado 4 (doravante DR), nas formas de meio do discurso direto e do discurso indireto (doravante DD e DI respectivamente), como resultado da formatação das respostas dadas pelas declarantes às perguntas formuladas pela Delegada de Polícia. Authier-Revuz (1998) faz um amplo estudo a respeito do discurso relatado em direção oposta à forma como esse tema tem sido abordado, ou seja, dividido em três modalidades: discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre. A autora aponta, nessa perspectiva tradicional, impropriedades, como, por exemplo, quando diz que o DD reproduz, com fidelidade e objetividade as palavras ditas por outrem. Para ela, o DD, na cadeia discursiva, é outro ato de enunciação em que o sujeito denunciante traz as palavras do denunciado e da vizinha, conforme podemos observar na sequência (1). Sequência (1) ... o acusado sempre a ameaçava dizendo: “Se tu contar para tua mãe, eu mato vocês todas”. (...) Segundo a vizinha Ângela, moradora ao lado, esta teria presenciado, em certa ocasião, o acusado no quarto de Jerusa e ouviu quando a menor gritou, dizendo:“Pára, eu vou contar para mãe”. 5 Nessa formulação, o DD direto é marcado pelo emprego das aspas e vem antecedido pelo verbo dicendi num espaço cedido pela instituição. Assim temos: um modo padrão introdutor do dizer de outrem, configurado pelo verbo “dizendo” e, de imediato, o que Authier-Revuz (1998, p. 146) denomina de modo autonômico de o enunciador vítimas (L) proferir palavras de outros enunciadores (l = denunciado e vizinha). Para melhor compreendermos, trazemos o esquema de DR concebido pela autora. 4 5 Para Authier-Revuz (1998), discurso relatado é um ato de enunciação e não o relato de um outro ato.. Grifos nossos. 4 Tempo Lugar ... SIT tempo Infinidade de dados sobre o mundo entre sit lugar os quais infinidade de o ato de enunciação e, ao qual M dados... se refere e: l _____________ r m E : L ______________________________________________________________R M: mensagem caracterizada como constituindo um DR No esquema, DR significa discurso reatado (DD ou DI); L e R são empregados para designar os interlocutores (L = as vítimas denunciantes e R = a autoridade institucional), além de e e que remetem a outros interlocutores e m a mensagem. A autora reconhece que o que caracteriza todo DR (DD ou DI) é “a situação de enunciação e, na qual e através da qual a mensagem m de e ganha sentido, não é um dado de fato, como um ato de fala ordinário, mas está presente apenas pela descrição que L faz dela em M” (AUTHIER-REVUZ, 1998, p.148). Além disso, esclarece que, por mais completa e detalhada que for a fala de L (sujeito que fala, para quem ele fala, quando, onde em que circunstâncias, etc.), no sintagma introdutor, ele não pode ser considerado como restituição completa e fiel de outro ato de enunciação que ele tenha como objeto. Dizendo de outra forma, citar m exatamente não impede que e seja reconstruído, ao ser descrito por L (p. 149), é sempre uma interpretação parcial e subjetiva. Temos, então, na seqüência (1), uma operação de citação dos fatos relatados, mas sem as características de fidelidade e objetividade ou de ocorrência “escrupulosamente textual”, como ensinam algumas gramáticas tradicionais (Authier, p. 148, 149). São discursos que se cruzam: o da declarante e do denunciado, numa situação ilusória de que são as mesmas palavras ditas pelos sujeitos. 5 Sedimenta-se, assim, a crença de que as palavras do texto sejam uma “cópia” do que foi dito, ilusão de imparcialidade e de objetividade produzida pela sintaxe do discurso relatado. Reafirma-se o estereótipo de objetividade e clareza dos discursos jurídico-institucionais, com um efeito de credibilidade. A Análise do Discurso de linha francesa nega a possibilidade de um sentido concebido como um produto pronto, acabado à disposição do leitor. Nessa perspectiva, firma-se a concepção de linguagem como um lugar de constituição de sentido e do sujeito, que se dá no ponto de conjunção da língua com a história -, lugar da interpretação. É como se o relato, pela voz institucional, reproduzisse “a realidade” dos fatos, na ilusão de uma língua neutra e de um sujeito fonte de seu dizer. É o que se dá, quando falamos ou lemos um texto, ficamos, ideologicamente, tomados pela ilusão de sentidos evidentes, de linguagem transparente e de ligação direta entre linguagem e pensamento. O sujeito, submetido ao simbólico, sofre o “efeito do apagamento da alteridade (exterioridade, historicidade) com a ilusão do sentido-lá, de sua evidência” (ORLANDI, 2001, p.26), porque se “apaga” o processo de sua constituição e da constituição do significante, quando interpelado pela ideologia. Na seqüência (1), as aspas marcam posições sujeito que pertencem a FDs distintas: o sujeito denunciado falando –“Se tu contar para tua mãe, eu mato vocês todas” e o sujeito declarante :“Pára, eu vou contar para mãe”. 6 Também o sujeito institucional perpassa o texto, narrando o que foi declarado pela vítima. As posições sujeito – acusado, vítima-denunciante – são sublinhadas pelo uso das aspas. Ouve-se, assim, uma polifonia de vozes que constituem diferentes posições sujeito e que, compreendidas discursivamente, muitas vezes ficam imbricadas, como é o caso das posições sujeito vítima e denunciante, contraditoriamente constituídas e manifestadas na mesma seqüência discursiva. A relação entre as vozes marca posições distintas ocupadas pelos sujeitos e também distintas formações discursivas em que se inserem esses discursos -, vozes que muitas vezes se sobrepõem umas às outras. Segundo Pêcheux (1995), formação discursiva é o que, numa formação ideológica dada, determina o que pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1990, p. 192). 6 Grifos nossos. 6 São formações ideológicas e as formações discursivas coexistem no discurso: as primeiras “representam, na ordem do discurso, as formações ideológicas a que elas correspondem” (ORLANDI, 1996, p. 108); as segundas remetem ao que pode e deve ser dito determinadas situações. No que se refere ao DI, a autora entende-o como um discurso que cita um outro dizer, mas, que, ao fazê-lo, reorganiza, reformula. É, pois, um dizer de reformulação, de “produção de um enunciado como tendo o mesmo sentido que a m do ato relatado e não um caso de derivação” como entende o ensino tradicional (p.149,150). Vejamos: Sequência (2) PR. Que André Ferrugem costumava dar doces, salgados e até um vídeo game portátil para Maria do Socorro (...) PR. Que, durante os dias em que a menina (com 10 anos de idade) estava “diferente,”... As iniciais PR. antecedem a explicitação das respostas dadas pelas declarantes às questões formuladas pelo sujeito institucional e significam “perguntado e respondido”. Na sequência, aparece a conjunção “que” introduzindo as palavras de L, em DI, a respeito do que lhe foi narrado. Na sequência (2), além da supressão das perguntas formuladas pela Delegada de Polícia, observamos a supressão dos verbos discendi 7 . A fala das denunciantes vem iniciada pelo emprego da conjunção integrante, que se coloca como marca do discurso relatado. Esse conectivo estabelece um limite entre a pergunta formulada e a resposta dada. Destacamos um recorte, sequência (3), que focaliza, por meio do discurso indireto, a vítima sendo “contada”, pelo sujeito institucional, como uma terceira pessoa. Vejamos. Sequência (3) [Pergunta] Que todas as vezes Jacinto se aproximava dela, abraçando-a e beijando-a no rosto, ele dizia que gostava dela. [Pergunta] Que Jacinto pegava uma cinta para bater na depoente, quando ela não aceitava que ele a tocasse. [Pergunta] Que Jacinto estava embriagado quando abusou da depoente. [Pergunta] Que a depoente contou tudo o que estava acontecendo para sua mãe somente na sexta-feira, dia 29/05/1998. 7 Marcuschi (1991), p.83) reconhece sete classes de funções organizadoras dos verbos dicendi, dentre as quais os “verbos indicadores de posições oficiais e afirmações positivas: ‘declarar’, “afirmar’, ‘comunicar, ‘anunciar ‘anunciar’, ‘informar’, ‘confirmar’, ‘assegurar’, Identifica o verbo “dizer” como um coringa que, sem função explícita, exerce uma ação típica de acordo com o contexto e o tipo do discurso. 7 O fato de nos Termos de Informação não estarem explícitas as perguntas da autoridade policial contribui para que se produza a ilusão de objetividade e de evidência dos acontecimentos narrados, marcando-se também um apagamento da interpretação. Para Authier-Revuz, o DI se caracteriza como um dizer de reformulação de outro dizer, isto é, “produção de um enunciado como tendo o mesmo sentido que a m [mensagem] do ato relatado e não um caso de derivação” (p. 149-150) como muitos entendem. No modelo tradicional, o DI é entendido como derivado do DD. Divergindo da concepção tradicional, Authier-Revuz o considera uma operação de citação de outro dizer, ou seja, para ela o DI caracteriza-se como um dizer de reformulação, de “produção de um enunciado como tendo o mesmo sentido que a m do ato relatado e não um caso de derivação”. (p.149,150) Essas considerações feitas pela autora são importantes para a análise das denúncias de estupro, pois nos permitem observar um espaço de reformulação entre o dizer da denunciante e o dizer institucional e que há, nesse espaço de reformulação, uma complexidade de vozes que merece nossa atenção. Ao mesmo tempo em que simula reproduzir as palavras das declarantes ipses literis, o DR isenta a autoridade institucional da responsabilidade pelas palavras das declarantes. Tanto no DD quanto no DI, a responsabilidade pelo que é dito na comunicação do estupro praticado e também pelo teor da palavra do outro que, por vezes, emerge no discurso da vítima cabe à declarante. 4. CONCLUSÃO Ouve-se, nos Termos de Informação, uma polifonia de vozes das distintas posições sujeito. É importante observar que essas vozes, compreendidas discursivamente, muitas vezes ficam imbricadas, como é o caso das posições sujeito vítima e sujeito denunciante, contraditoriamente, constituídas e manifestadas na mesma seqüência (1) discursiva. Em relação ao DR, observamos que L, sujeito institucional, traz as palavras do enunciador em meio às suas, o que deixa visível a operação encoberta da citação, embora marque a responsabilização do outro, sujeito denunciante, pelo que foi posto, embora essa responsabilidade fique apagada 8 O DR isenta a autoridade institucional da responsabilidade pelas palavras das declarantes, ao mesmo tempo em que simula reproduzir as palavras originais. Tanto o emprego do DD quanto do DI livra o sujeito institucional da responsabilidade do que é dito. As palavras de outros, de forma marcada (aspas, DD e DI), surgem no fio do discurso da autoridade institucional de forma integrada e produzindo um efeito de unidade do discurso. É como se o relato, pela voz institucional, reproduzisse “a realidade” dos fatos, na ilusão de uma língua neutra e de um sujeito fonte de seu dizer. Sedimenta-se, assim, a crença de que as palavras do texto são uma “cópia” do que foi dito, ilusão de imparcialidade e de objetividade produzida pela sintaxe do discurso relatado. REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. (1998). Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas: Ed. UNICAMP. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. (1986). Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. MARIANI, Bethania S. (1998). O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989), Rio de Janeiro: Revan; Campinas: Ed. UNICAMP. MARCUSCHI, l.a. (1991). Análise da conversação. São Paulo: Ática. ORLANDI, Eni P. (1996). Interpretação: autoria, e litura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes. ________. (2001). Discurso e texto. Formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes. PÊCHEUX, M. (1990). Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes. 9 10