Lógicas do reconhecimento Aula 4 Na aula de hoje, começaremos a discutir o conceito de reconhecimento, tal como aparece na filosofia hegeliana. A insistência na centralidade dos processos de reconhecimento é uma inovação filosófica fundamental produzida por Hegel, mesmo que o conceito apareça pela primeira vez com Fichte. Tal centralidade dos processos de reconhecimento indicará um regime de saída do idealismo que será explorado em toda sua extensão principalmente, como veremos, por setores maiores do pensamento do século XX. Isto implicará não apenas assumir a gênese social da consciência cognitiva, ou seja, a maneira com que ela submete processos de conhecimento a estruturas sociais de reconhecimento. Pois, como disse em outra aula, o reconhecimento nos abre para a tematização da gênese das estruturas da consciência através das relações concretas de trabalho, desejo e linguagem. Se a consciência só é enquanto reconhecida, então serão os campos concretos de reconhecimento que determinarão sua estrutura, seus modos de apreensão e pensamento. A filosofia deverá assim se direcionar à compreensão das modalidades concretas de trabalho, de desejo e de linguagem enquanto expressões de uma gênese social da consciência. Gênese esta que demonstra como toda proposição de validade deverá ser historicamente situada. Posição cujas consequências estão muito bem expressas em afirmações como esta de Robert Brandom: “Toda determinação transcendental é uma instituição social”. Por isto, havia dito a vocês que a temática do reconhecimento representava o eixo de uma guinada materialista no interior do idealismo alemão, um materialismo que não é simplesmente a expressão do empirismo e de seus sense data, mas de um materialismo histórico que a partir de então paulatinamente irá se configurar. No entanto, a defesa hegeliana das dinâmicas de reconhecimento trará consequências maiores também para a compreensão de conceitos reguladores centrais de nossas formas de vida, como liberdade, identidade, individualidade, autonomia e emancipação. O reconhecimento é uma peça fundamental de todo pensamento dialético, não apenas por enraizar nossas proposições sobre estado de coisas em gêneses sociais, mas também por expor modalidades de determinação de si que passam pela desarticulação das distinções estritas entre identidade e diferença, entre referência-a-si e referência-a-outro, o que implica uma verdadeira “metamorfose categorial” a respeito do que devemos compreender por “si mesmo”. É a natureza desta desarticulação, sua extensão e radicalidade, que colocará problemas para vários setores do pensamento do século XX. É esta sua força de descentramento que, a meu ver, ainda está subexplorada. Por isto, parece-me que uma maneira privilegiada para entrar em dimensões importantes de nosso debate filosófico contemporâneo seja propondo um certo retorno a Hegel, um retorno às tensões próprias a seu texto. Notemos ainda que vimos em nosso trajeto como a filosofia social do século XVII e XVIII, em especial Hobbes e Rousseau, não tinham a sua disposição um conceito de reconhecimento enquanto horizonte regulador de dinâmicas de conflito social. Isto produzia, no caso de Hobbes, uma filosofia que pensava a emergência de corpos políticos baseados na gestão social de uma psicologia que visava a naturalização de relações concorrenciais, belicistas e possessivas. Uma psicologia que visava fornecer as bases para a naturalização do conceito moderno de indivíduo, transforma-lo em um conceito pré-político e ligado a um processo de determinação meramente psicológica. Neste sentido, a instauração do estado de sociedade só era possível através da repressão contínua do que aparecia como natureza humana, obrigando com isto a mobilização contínua do medo como afeto social. Este circuito de afetos baseado no medo, fruto da aceitação da fantasia social da guerra de todos contra todos, aparecia como a mais profunda contradição em relação a práticas de reconhecimento. Não pode haver reconhecimento lá onde há medo social. No caso de Rousseau, vimos como a liberdade civil pressupunha uma autonomia que representava, a sua maneira, um esquecimento da natureza humana em sua relação de imanência ao corpo da natureza. De onde se seguia o fato das demandas de reconhecimento serem compreendidas, em larga medida, de maneira negativa, como processos de alienação e dependência da estima do outro. Dependência esta que criava o cultivo da aparência e a perda da transparência. Aqui também a emergência de um corpo político, sob as formas do contrato social e da vontade geral, tinha que lidar com as limitações existenciais próprias da elevação da individualidade moderna à célula elementar da vida social. A vontade geral nascia da possibilidade de motivações para a ação que não se resumiam a emulação dos interesses individuais. No entanto, ela implicava a instauração de uma segunda natureza na qual a independência era transmutada em coesão social no interior de um “Eu comum”. Neste processo, a soberania popular não implica lidar com uma primeira natureza perdida e sua nostalgia. Esta nostalgia continuará a assombrar os laços sociais, mas mesmo esta primeira natureza não será objeto de reconhecimento, no que o termo tem de determinação de singularidades. Sua emergência será a marca do retorno a uma origem na qual a generalidade da voz da natureza fala através dos humanos. De toda forma, tanto a filosofia de Hobbes quanto a de Rousseau tinham ao menos um ponto em comum: parte-se dos indivíduos isolados em estado de natureza para alcançarmos as condições possíveis de emergência de um corpo político. Em Hegel, veremos estratégias completamente distintas. Ao insistir na centralidade dos processos de reconhecimento, Hegel lembra que a célula elementar da vida social não são indivíduos atomizados, mas relações. Ou seja, é certo afirmarmos que, no seu caso, as relações vem antes de seus termos. Ou seja, o que temos inicialmente são relações, os indivíduos são abstrações, e não o contrário (os indivíduos seriam “reais” e as relações seriam “abstrações”). Hegel age como quem diz: a consciência não é prévia às relações intersubjetivas. Na verdade, ela é seu produto. O que há de concreto no mundo são as relações e sua força produtiva, não as disposições individuais de conduta. No entanto, a consciência não é um mero produto, um simples suporte de relações intersubjetivas. Ela é também o que força as estruturas intersubjetivas a operarem a partir de conflitos que não são apenas conflitos a respeito da melhor aplicação de normas sociais intersubjetivamente partilhadas, mas são conflitos a respeito da legitimidade de tais normas. Esta tensão de difícil manejo é possível para Hegel, sem necessariamente substancializar a consciência porque, como veremos, ele tem à sua disposição o conceito de “negatividade”, que se mostrará central em toda nossa discussão. Mas antes de entrar na exposição da estrutura conceitual hegeliana, há de entender as matizes de sua trajetória até a tematização do problema do reconhecimento. Fenomenologia do Espírito e reconhecimento O texto mais importante sobre a teoria do reconhecimento de Hegel é, sem dúvida, sua Fenomenologia do Espírito, de 1806. Nela, encontramos a primeira formulação acabada do problema do reconhecimento através de várias figuras da consciência (como a dialética do senhor e do escravo, o mal e seu perdão, entre outras). Elas serão retomadas e desenvolvidas principalmente em duas obras posteriores: a Enciclopédia das ciências filosóficas e os Fundamentos da Filosofia do direito. De certa forma, o movimento que anima a Fenomenologia do Espírito está sintetizado na afirmação, presente em sua Introdução: “o caminho do erro é o caminho da verdade”. Em Hegel, “fenomenologia” significa o estudo da maneira com que a consciência erra, a maneira com que ela aliena-se na dimensão do que lhe aparece. No entanto, este sistema de erros é um caminho em direção ao saber, pois algo acumula-se às costas da consciência, mesmo que ela não perceba. Isto a ponto do saber aparecer como indissociável da compreensão deste processo em sua direção. O verdadeiro objeto do saber é a compreensão do sentido do caminho em sua direção. Assim, em um movimento contínuo, veremos a consciência procurar adequar sua certeza à verdade, e para tanto ela partira da certeza mais elementar, a saber, a certeza da objetividade dos dados imediatos do sentido. Desde o início, ela se verá enredada em contradições a partir do momento em que tentará exteriorizar sua certeza, falar sobre ela, expressa-la em um espaço intersubjetivo. Ela descobrirá que não há relação imediata entre a consciência e seu objeto, que todas essas relações são mediadas pela estrutura de uma linguagem que não é simplesmente “minha”, mas que é fruto de uma experiência social. Neste caminho, ela descobrirá como a estrutura do objeto tem a estrutura do Eu. O que a princípio para uma proposição idealista típica que reduz o objeto à projeção da estrutura de categorização do sujeito. No entanto, Hegel quer mostrar que é o Eu que irá se modificar a partir de seus fracassos em adequar seu conceito ao objeto, a certeza à verdade. Neste momento, a consciência deixa de ser “consciência de objeto” e passa a ser “consciência-de-si”. Pois compreende-se a emergência de um “Eu que é Nós, de um Nós que é Eu”. Ou seja, não é o Eu isolado como subjetividade constituinte que se confronta aos objetos. São as estruturas sociais de relações que determinam as formas gerais da experiência. No entanto, dizer isto é ainda dizer pouco. Pois há de se entender como analisar tais estruturas sociais. No caso de Hegel, podemos dizer que o problema central consiste em entender o que as move. Qual é o motor do movimento das estruturas sociais e de suas modificações históricas. É para responder esta questão que Hegel mobilizará o tema do reconhecimento. É através de lutas por reconhecimento que as estruturas se movem e se modificam. É forçando processos incompletos e parciais de reconhecimento que elas se transformam. Ou seja, a história na Fenomenologia do Espírito é uma história de lutas por reconhecimento. Quando for capaz de apreender tal história, quando se ver como sujeito transindividual que atualiza tal história e age no presente a partir dela, a consciência-de-si não será mais consciência-de-si. Ela será Espírito. Neste sentido, Espírito não é uma espécie de entidade metafísica superior que teria parte com a secularização de um conceito divino de providência. Quando Hegel fala em Espírito, podemos compreender isto, a princípio, de uma maneira não-metafísica. Atualmente, quando falamos sobre sujeitos socializados que procuram julgar, orientar racionalmente suas ações e usos da linguagem, lembramos inevitavelmente da necessidade de um background pensado um “sistema de expectativas” fundamentado na existência de um saber prático cultural e de um conjunto de pressupostos que define, de modo préintencional, o contexto de significação. Este background indica que toda ação e todo julgamento pressupõem um “espaço social partilhado” capaz de garantir a significação da ação, do julgamento e, principalmente, de nossos modos de estruturar relações. Como disse, este background é, em larga medida, pré-intencional e préreflexivo. Não colocamos normalmente a questão sobre a gênese deste saber prático cultural que fundamenta nossos espaços sociais. Sua validade não aparece como objeto de problematização. No entanto, podemos imaginar uma situação na qual os sujeitos socializados irão procurar apreender de maneira reflexiva aquilo que aparece a eles como fundamento para suas práticas e julgamentos racionais, podemos pensar uma situação na qual eles procurem compreender o processo de formação cultural que os levou a tais modos de orientação da conduta. Podemos ainda achar que tais modos de orientação não devem ter apenas uma validade historicamente determinada e restrita a espaços sociais particulares, mas só podem ser válidos se puderem ser defendidos enquanto universais. Neste momento, estaremos muito próximos daquilo que Hegel compreende por Espírito. Devemos, neste ponto, seguir a definição de um comentador de Hegel que viu claramente isto: “Espírito é uma forma de vida autoconsciente, ou seja, uma forma de vida que desenvolveu várias práticas sociais a fim de refletir a respeito do que ela toma por legítimo/válido (authoritative) para si mesma no sentido de saber se estas práticas podem dar conta de suas próprias aspirações e realizar os objetivos que elas colocaram para si mesmas (...) Espírito não denota, para Hegel, uma entidade metafísica, mas uma relação fundamental entre pessoas que medeia suas consciências-de-si, um meio através do qual pessoas refletem sobre o que elas tomaram por válidos para si mesmas”1. É a este horizonte que as prática de reconhecimento em Hegel procuram nos levar. Mas para compreendê-lo de maneira mais efetiva, teremos que passar da Fenomenologia do Espírito à Filosofia do direito. Pois é lá que este horizonte normativo do Espírito estará mais claramente posto. Os primeiros passos em direção ao reconhecimento No entanto, as primeira formulações sobre o problema do reconhecimento em Hegel devem ser creditadas a seus manuscritos de juventude, em especial o chamado Sistema da eticidade e o curso sobre a Filosofia do Espírito, de 1805. Neles, encontramos de forma clara a maneira com que a tarefa filosófica de Hegel se vincula a um diagnóstico de época que é, ao mesmo tempo, socio-histórico e filosófico. 1 PINKARD, Terry; The sociality of reason, p. 9 Hegel partilha com pós-kantianos, como Fichte e Schelling, o diagnóstico de que viveríamos em um momento histórico de cisão resultante da elevação do princípio de subjetividade a condição de fundamento da razão moderna, assim como de seus modos de racionalização social. Este princípio de subjetividade, com sua condição de fundamento, exige que tudo aquilo que aspira validade seja submetido à força da reflexão. Ele faz com que ser e reflexão seja pois o mesmo. No entanto, isto parece inicialmente submeter o ser à dimensão estrita daquilo que é ser-para-o-sujeito, e não ser em-si. Daí diagnósticos como este que encontramos no prefácio da Fenomenologia: Tomando a manifestação dessa exigência [do Absoluto] em seu contexto mais geral e no nível em que presentemente se encontra o espírito consciente-de-si [ou seja, trata-se de compreender o que o presente coloca como exigência do espírito], vemos que esse foi além da vida substancial que antes levava no elemento do pensamento; além desta imediatez de sua fé, além da satisfação e segurança da certeza que a consciência possuía devido à sua reconciliação com a essência e a presença universal dela – interior e exterior. O espírito não só foi além – passando ao outro extremo da reflexão, carente-de-substância, de si sobre si mesmo – mas ultrapassou também isso. Não somente está perdida para ele sua vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é seu conteúdo. [Como o filho pródigo], rejeitando os restos da comida, confessando sua abjeção e maldizendo-a, o espírito agora exige da filosofia não tanto o saber do que ele é, quanto resgatar por meio dela, aquela substancialidade e densidade do ser [que tinha perdido]”2. Como vemos, Hegel compreende claramente a modernidade como um momento de cisão. O espírito teria perdido a imediatez da sua vida substancial, ou seja, nada lhe apareçeria mais como substancialmente fundamentado em um poder capaz de unificar as várias esferas de valores sociais. Não haveria mais recurso à autoridade da tradição ou à certeza da imediatez. Ao contrário, a modernidade pode ser compreendida como este momento que está necessariamente às voltas com o problema da sua auto-certificação. Isto significa: ela não pode mais procurar em outras épocas os critérios para a racionalização e para a produção do sentido de suas esferas de valores. Ela deve criar e fundamentar suas normas a partir de si mesma. Isto significa que a substancialidade que outrora enraizava os sujeitos em contextos sociais aparentemente não-problemáticos está fundamentalmente perdida. Como dirá, cem anos depois, Max Weber: “O destino de nossos tempos é caracterizado pela racionalização e intelectualização e, acima de tudo, pelo desencantamento do mundo. Precisamente, os valores últimos e mais sublimes retiraram-se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade das relações humanas e pessoais”3. Ou seja, aquilo que fornecia o enraizamento dos sujeitos através da fundamentação das práticas e critérios da vida social não é mais substancialmente assegurado. 2 3 HEGEL, Fenomenologia I, p. 24 WEBER, Ciência como vocação in Ensaios de sociologia, p. 182 Em uma análise hoje clássica, Hegel indica três acontecimentos que foram paulatinamente moldando a modernidade em suas exigências: a reforma protestante [com sua confrontação direta entre o crente e Deus através da subjetividade da fé], a revolução francesa [que colocava o problema do Estado Justo enquanto aquele capaz de conciliar aspirações de universalidade da Lei e exigências dos indivíduos] e o Iluminismo [que, segundo Hegel, terá em Kant sua realização mais bem acabada]. Em todos estes acontecimentos, o que parece impulsiona-los é o aparecimento do que poderíamos chamar de “subjetividade”. É a gênese desta subjetividade que deverá ser objeto da filosofia e de seus processos de fundamentação. Hegel poderia, no entanto, apelar a uma saída transcendental que visaria definir o sujeito como mera condição formal de toda experiência possível. Isto daria ao sujeito a universalidade necessária para não sermos empurrado a um psicologismo subjetivista. Mas a saída transcendental de moldes kantianos era insatisfatória para Hegel e para os pós-kantianos. Pois, primeiramente, ela criaria sua universalidade através da supressão de todo processo histórico de gênese e metamorfose das categorias do pensamento. As categorias do pensamento aparecem assim como entidades estáticas e, por isto, indiferente ao mundo tal como seria em-si. No entanto, dirá Hegel: Todas as revoluções, nas ciências não menos que na história mundial, provêm (kommen) somente de que o Espírito agora, para entender e perceber a si, para tomar posse de si, modificou (geändert hat) suas categorias, apreendendo-se (sich erfassend) mais verdadeira e profundamente, mais intimamente e com mais coesão (einiger)”4. Ou seja, para Hegel, ao procurar apreender-se verdadeira e profundamente, o Espírito produz necessariamente uma “modificação de categorias”, um movimento no interior da própria significação destas determinações universais do pensar. Tais modificações não são apenas acompanhadas por aquilo que o século XX chamará de “mudança de paradigma científico” e que Hegel descreve como “revolução” na ciência. Elas são necessariamente acompanhadas por amplas mutações em nossas formas de vida às quais Hegel alude ao falar de revoluções na história mundial. Por isto, sua Ciência da lógica será, primeiramente, uma crítica a ideias como esta: Pode-se reconhecer que a lógica, desde remotos tempos, seguiu a via segura, pelo fato de desde Aristóteles, não ter dado um passo atrás, a não ser que se leve à conta de aperfeiçoamento a abolição de algumas sutilezas desnecessárias ou a determinação mais nítida de seu conteúdo. Também é digno de nota que não tenha até hoje progredido, parecendo, por conseguinte, acabada e perfeita, tanto quanto se nos pode afigurar (...) Que a lógica tenha sido tão bem sucedida deve-se ao seu caráter limitado, que a autoriza e mesmo a obriga a abstrair de todos os objetos do conhecimento e suas diferenças, tendo nela o entendimento que se ocupar apenas consigo próprio o com sua forma (...) Desde os tempos mais 4 HEGEL, Enciclopédia, par. 246 remotos que a história da razão pode alcançar no admirável povo grego, a matemática entrou na via segura de uma ciência5. Estas afirmações de Kant no segundo prefácio à Crítica da razão pura sintetizam admiravelmente tudo contra o qual Hegel luta em sua filosofia. Não é por outra razão que a primeira frase da Ciência da Lógica é exatamente uma lamentação: A modificação completa que afetou o modo de pensar filosófico desde mais ou menos vinte cinco anos entre nós, a perspectiva mais elevada que a auto-consciência do Espírito alcançou a respeito de si mesmo neste período de tempo teve, até agora, pouca influência na forma (Gestalt) da lógica6. A confrontação não poderia ser mais clara. Hegel vê como bloqueio fundamental o fato da lógica “não ter até hoje progredido” e ter pago, como preço desta estaticidade, a impossibilidade de tematizar a Coisa mesma (die Sache selbst). Isto nos leva ao segundo problema com uma estratégia transcendental, a saber, a universalidade de categorias estáticas nos obriga a constituir uma espécie de “objetividade para nós” que, para Hegel, equivale a estar a um passo de uma profissão de fé cética. Pois não há modificação de categorias porque as coisas em-si e os processos concretos não afetam nossas formas de apreendê-los. Nada que ocorre no tempo será capaz de modificar a forma pura do tempo. Nada que ocorre no espaço será capaz de modificar as condições de uma estética transcendental do espaço. Contra isto, o jovem Hegel irá procurar submeter as estruturas do conhecimento às dinâmicas de reconhecimento. Isto significará não só se perguntar pelas condições sociais do conhecimento, ou seja, pela maneira com que processos históricos coletivos determinam a forma do pensar. Isto significará também se perguntar como a consciência emerge, quais são as condições materiais de sua emergência e de suas modificações, como estas condições determinarão as potencialidades práticas de suas ações em suas expectativas de racionalidade. Pois há de se entender que, quando Hegel fala em razão, ele não está a pensar apenas na capacidade de se orientar no julgamento e de deliberar através da procura pelo melhor argumento no interior de um processo marcado pelo ato de dar e compreender razões. Processo este que pressupõe a existência de um fundamento comum de avaliação de enunciados a partir de uma espécie de gramática geral partilhada por todos os atores. Razão é, para Hegel, uma forma de vida que se incarna em instituições e práticas sociais tendo em vista a efetivação das condições de liberdade. Forma marcada pela reflexividade e pela capacidade que tenho de me ver como agente das instituições e práticas que me determinam, isto no sentido de ver minha vontade como atuante no interior das determinações fundamentais da vida social. Esta razão, como fica claro, é indissociável da capacidade humana de constituir relações capazes de garantir e 5 KANT, Crítica da razão pura, B VIII/B XI HEGEL, Idem, p. 13. Lembrando, é claro, que a afirmação de Kant não é totalmente correta, já que: ‘a doutrina que ele vê como descoberta completa e perfeita de Aristóteles foi, de fato, uma confusa versão peculiar da mistura tradicional entre elementos aristotélicos e estóicos” (KNEALE e KNEALE, The development of logic, Oxford University Press) 6 reconhecer nossas demandas de liberdade. Ou seja, a razão não é só a característica da estrutura cognitiva da consciência. Ela é sua força de instauração de formas sociais. Isto explica porque o jovem Hegel tentará uma saída ao princípio de subjetividade constituinte em Kant fazendo apelo à recuperação de laços sociais pretensamente marcados pelo reconhecimento mútuo e pela garantia de uma ação social orientada para a emancipação, como seria o caso da polis grega e das primeiras comunidades cristãs baseadas no amor. Este modelo, no entanto, será paulatinamente abandonado por Hegel quando compreender que as sociedades modernas de livre-mercado levaram a individualidade a um desenvolvimento tal, assim como levaram processos de trabalho a um ponto tal de degradação, que não seria mais possível apelar a modelos baseados em vínculos comunitários substanciais. Em seu lugar, o jovem Hegel construirá uma descrição fenomenológica de etapas sociais de reconhecimento. Elas começam pelas exigências de satisfação do desejo. Neste sentido, nos encontramos mais uma vez no ponto de partida de Thomas Hobbes e de seu estado de natureza. No entanto, simplesmente não há estado de natureza em Hegel. Comparemos, por exemplo, o movimento textual do Leviatã e o movimento textual da Fenomenologia do Espírito. No primeiro caso, temos um movimento sempre ascendente. Começa-se da descrição da estrutura do desejo individual, expõe-se seus conflitos, evidencia-se seus impasses e chega-se ao estado social. Em Hegel, temos uma espécie de dinâmica de aprofundamento, no qual a consciência desvela a natureza mediada daquilo que ela julgava imediato, desvela a natureza socialmente constituída daquilo que lhe aparecia como natural. Por isto, perde o sentido em falar em algo como um “estado de natureza”. Saí de cena as discussões sobre a natureza humana, mesmo que a filosofia de Hegel procure compreender uma espécie de emergência do social a partir da natureza, ou seja, a partir do movimento da vida, o que explica porque a vida aparece como primeira figura do desejo no capítulo IV da Fenomenologia do Espirito. Mas tentemos dar o sentido do movimento geral desta dinâmica hegeliana de aprofundamento. No caso de Hegel, e isto já está presente nos escritos de juventude, o processo do desejo nos leva a uma dinâmica de conflitos que fará emergir o trabalho em sua forma de trabalho alienado, trabalho feito no interior de uma relação de submissão e de medo da morte. Daí porque a primeira figura da consciência que trabalho é o servo. No entanto, pelas vias do trabalho as relações de dependência levarão a uma modificação da consciência individual. Ao trabalhar para um Outro, a consciência descobrirá habitada por uma perspectiva que não é apenas sua, mas também de Outro. Daí o sentido de afirmações surpreendentes como: A submissão (Unterwerfung) do egoísmo do escravo forma o início da verdadeira liberdade dos homens. A dissolução da singularidade da vontade, o sentimento de nulidade do egoísmo, o hábito da obediência (Gehorsams) é um momento necessário da formação de todo homem. Sem ter a experiência deste cultivo (Zucht) que quebra a vontade própria (Eigenwillen), ninguém advém livre, racional e apto a comandar. E para advir livre, para adquirir a aptidão de se auto-governar, todos os povos tiveram que passar pelo cultivo severo da submissão a um senhor7. Esta heteronomia ganhará múltiplas figuras, mas será o início de uma estrutura descentrada fundamental para o advento da noção de Espírito. A consciência verá esta heteronomia, por exemplo, em chave teológica, como o culto a um Deus cuja vontade ela não compreende e cuja língua ela não entende. Figura esta tematizada através do que Hegel chama de “consciência infeliz”. Ou seja, Hegel mostra como as dinâmicas do trabalho estão no fundamento das forma de relação ao Outro que comporão as relações sociais em seu sentido mais amplo. Neste sentido, há de se lembrar como em seus escritos de juventude, Hegel submete até mesmo o amor como estrutura de reconhecimento às dinâmicas do trabalho. Por exemplo, no curso sobre a Filosofia do Espírito, ele dirá que o amor é uma forma de: “supressão em si-mesmo dos dois [opostos]; cada um é igual ao outro justamente nisto que lhe é oposto; ou o outro, este que o outro é para si, é ele mesmo. Exatamente porque cada um se sabe no outro, cada um renunciou a si mesmo”8. No entanto, esta intuição de si no outro aparece depois que o trabalho foi apresentado como um ato de se fazer outro, de tomar a forma de um objeto. Isto a ponto de Hegel afirmar que o amor se realiza na família, principalmente através da concepção da criança “produto do trabalho” do amor. No entanto, se Hegel oferece uma versão de uma filosofia da praxis através desta centralidade do trabalho, seu conceito de trabalho não é simplesmente fenomenológico. Os escritos de juventude mostram como ele lida com uma compreensão historicamente precisa da emergência da sociedade do trabalho. Por exemplo, no Sistema da eticidade, Hegel insiste que a circulação dos objetos trabalhados pressupõe o valor como abstração capaz de viabilizar a troca. Tais processos de abstração impedem toda forma efetiva de reconhecimento. Ele compreende que o advento do trabalho cooperativo inaugura um processo de “trabalho mecânico” no qual não é mais o gozo singular que conta, mas a produção do excedente. Ou seja, em todas as situações nos deparamos com formas de alienação vinculadas a configurações precisas dos processos materiais de produção. No entanto, é próprio de Hegel um movimento singular no qual a alienação é superada pelo próprio processo que ela coloca em marcha. Há um movimento dialético que tem como objeto a própria alienação. O que não poderia ser diferente, já que para Hegel toda forma de exteriorização (Entausserung) é uma forma de alienação (Entfremdung). Não há exteriorização que não sejam, em seu primeiro momento, modalidade de alienação. Ou seja, de certa forma, tudo se passa como se a alienação fosse necessária para que os processos de reconhecimento pudessem ocorrer, tudo se passa como se elas fossem paradoxalmente não apenas uma perda de si, mas uma formação de si. Pois a experiência da alienação será também a experiência da inefetividade e da irrealidade das relações imediatas e imanentes. Ela será a condição para a emergência de uma consciência do caráter constitutivo das estruturas relacionais, mesmo que tal consciência seja produzida à condição da consciência 7 8 HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia, par. 435 HEGEL, G.W.F.; Filosofia do Espírito, p. 36 ter que continuamente perder a si mesma, até chegar o momento em que ela perceba que perdeu o que, de certa forma, ela nunca teve.