Imagem da Semana: Dopplerecocardiograma Figura 1: Dopplerecocardiograma Figura 2: Dopplerecocardiograma Enunciado Paciente do sexo masculino, 11 anos, foi atendido em pronto atendimento com queixa de prostração, febre e dispneia intensa, principalmente em decúbito dorsal, há 15 dias. Relatou dor na articulação do joelho D por dois dias. História de faringoamigdalite há 1 mês (antiestreptolisina O < 200 U). Ao exame, encontrava-se taquipneico, febril, ritmo cardíaco em 3 tempos e sopro holossistólico, grau III/VI (Classificação de Levine), em área mitral. Foi encaminhado ao setor de Cardiologia Pediátrica para avaliação, quando foi solicitado um dopplerecocardiograma. Com base na história clínica e no exame de imagem, o diagnóstico mais provável é: a) Endocardite b) Miocardite c) Febre reumática d) Doença de Kawasaki Análise da imagem As imagens 3 e 4 apresentam 2 tempos de movimento (fechamento e abertura) da valva mitral ao dopplerecocardiograma. Imagem 3: A imagem representa provavelmente a fase de contração isovolumétrica, uma vez que as valvas mitral e aórtica encontram-se fechadas. Círculo azul: folhetos não se coaptam completamente. Seta laranja: ventrículo esquerdo. Seta verde: aorta. Seta azul: átrio esquerdo. Imagem 4: A imagem representa um período de enchimento ventricular, uma vez que a valva mitral está aberta. É possível observar espessamento dos folhetos da valva mitral, ausência de coaptação completa dos folhetos da valva mitral e leve restrição da mobilidade do folheto posterior. Seta laranja: folheto posterior da valva mitral. Seta verde: espessamento dos folhetos da valva mitral. Seta azul: folheto anterior da valva mitral. Diagnóstico A história pregressa de faringoamigdalite antecedente às manifestações cardiorrespiratórias e articulares apresentadas em paciente pediátrico sugere o diagnóstico de febre reumática. Os níveis normais de ASO não afasta uma infecção estreptocócica prévia. Além disso, o dopplerecocardiograma evidencia lesão valvar importante com alterações morfológicas sugestivas de envolvimento reumático, corroborando o diagnóstico. Na endocardite, mais comumente o paciente apresenta história anterior de cardiopatia e quadro de febre prolongada, sem etiologia definida. Hemoculturas positivas e imagem ecocardiográfica sugestiva de vegetação contribuem para o diagnóstico. As manifestações clínicas da miocardite são bastante variáveis, podendo abranger formas subclínicas, com dilatação e disfunção ventricular assintomática, ou mesmo manifestações agudas de insuficiência cardíaca descompensada, fulminante com quadro de choque cardiogênico, dor precordial, mimetizando doença coronariana, palpitações, síncope, ou lipotimia, e morte súbita. Nos casos de etiologia viral, pode-se obter história prévia de infecção respiratória, gastrointestinal ou sistêmica. A Doença de Kawasaki acomete principalmente crianças entre 1 e 5 anos, sendo mais comum nos dois primeiros anos. Caracteriza-se por febre prolongada (>5 dias) e pelo menos quatro de cinco critérios: alterações de extremidades, exantema polimorfo, hiperemia conjuntival bilateral, alteração de lábios e cavidade oral e linfoadenomegalia cervical. Ocasionalmente, sopro regurgitativo mitral é auscultado. O achado ecocardiográfico mais significativo são as alterações coronarianas. Discussão do caso A febre reumática (FR) é uma doença inflamatória multissistêmica que acomete crianças e adultos jovens, sendo que o primeiro episódio agudo geralmente ocorre entre 5 e 15 anos de idade, resultante de infecção por cepas reumatogênicas do estreptococo β hemolítico do grupo A (EBHGA). É capaz de afetar o coração, a pele, as articulações e o sistema nervoso central (SNC), representando uma das principais causas de morte por doenças cardiovasculares em crianças e adultos jovens em países em desenvolvimento. A fisiopatologia da doença é baseada na faringoamigdalite pelo EBHGA e em fatores do hospedeiro. Uma reação autoimune cruzada induzida por mimetismo molecular entre proteínas M da parede celular do Streptococcus pyogenes e proteínas cardíacas do hospedeiro (miosina e laminina) provoca agressão e destruição de tecidos do organismo. As manifestações clínicas surgem de modo abrupto e incluem febre, dores articulares e prostração. Em fases mais avanças, observam-se, principalmente, sinais e sintomas de insuficiência cardíaca secundárias às lesões valvares. Pode haver envolvimento do endocárdio, pericárdio ou miocárdio, sendo o acometimento da valva mitral o mais comum, se manifestando com regurgitação mitral. A inflamação miocárdica pode provocar prolongamento do intervalo PR ao ECG por afetar as vias de condução elétrica. Pode ocorrer também artrite migratória, quadro de artrite mais típico associado à FR, que dura até duas semanas, caracterizada por dor intensa e responsiva a anti-inflamatórios. O envolvimento do SNC pode se manifestar com quadro tardio de coreia de Syndeham (sua presença, mesmo como manifestação isolada, permite o diagnóstico de FR), comprometimento da fala e distúrbios emocionais. Podem associar-se também alterações dermatológicas ao quadro de FR, sendo a manifestação clássica o eritema marginado em tronco e raiz de membros. O diagnóstico é baseado nos Critérios de Jones modificados – presença de 2 critérios maiores ou 1 critério maior e 2 menores, sendo necessária evidência de infecção estreptocócica antecedente (Tabela 1). A evidência de infecção pelo estreptococo β hemolítico do grupo A é obtida por cultura de swab de orofaringe, teste rápido para EBGA e elevação dos títulos de anticorpos antiestreptolisina O (ASO). Tabela 1: Critérios modificados de Jones para o diagnóstico de febre reumática aguda (AHA, 1992) O tratamento apresenta três objetivos principais: o alívio dos sintomas agudos, a erradicação do agente infeccioso e a profilaxia contra uma nova infecção. Entre as principais medidas, tem-se repouso (principalmente na fase aguda), antibioticoterapia para a infecção estreptocócica, anti-inflamatórios não-esteroidais e AAS para a artrite/artralgia, além de corticoides para casos de cardite grave. A prevenção primária pode ser feita mediante o diagnóstico de faringoamigdalite estreptocócica e adequado tratamento antimicrobiano, com a finalidade de prevenir o primeiro surto de FR. Se o primeiro surto não pôde ser evitado, a profilaxia de novos episódios (profilaxia secundária) é indicada para impedir o aparecimento de novas lesões ou agravamento de valvopatia já instalada, permitindo melhor evolução dos pacientes. Aspectos relevantes - A febre reumática (FR) é uma das principais causas de morte por doenças cardiovasculares em crianças e adultos jovens em países em desenvolvimento. - As manifestações clínicas surgem de modo abrupto e envolvem alterações no coração, na pele, nas articulações e no sistema nervoso central, além de febre e prostração. - O diagnóstico de FR é feito na presença de 2 critérios maiores ou 1 critério maior e 2 menores (critérios modificados de Jones), com história prévia de infecção estreptocócica. - A cardite é uma consequência relevante por deixar sequelas. Manifesta-se com regurgitação mitral que pode evoluir para quadro de insuficiência cardíaca e necessitar intervenção cirúrgica. - A coreia de Sydenham é caracterizada por movimentos rápidos, involuntários e incoordenados, e sua presença, mesmo como manifestação isolada, permite o diagnóstico de FR. - A prevenção primária mediante o diagnóstico de faringoamigdalite estreptocócica e adequado tratamento antimicrobiano é fundamental para se evitar primeiro surto de FR. Referências - Fauci AS, Braunwald E, Isselbacher KJ, Wilson JD, Martin JB, Kasper DL, et al, editors. Harrison’s Principles of Internal Medicine. 18th Edition. New York: McGraw-Hill; 2012. - Gibofsky A, Zabriskie JB. Clinical manifestations and diagnosis of acute rheumatic fever. Walthman (MA): UpToDate; 2013. Disponível em: http://www.uptodate.com/contents/clinical-manifestations-and-diagnosis-of-acuterheumatic-fever - Ayoub EM. Rheumatic fever and rheumatic heart disease. In: Moss and Adams. Heart disease in infants, children, and adolescents. Allen HD, Driscoll DJ, Shaddy RE, Feltes TF. 7th Edition. Philadelphia: Wolters Kluver; 2008. 1256-1280. - Committee on Rheumatic Fever, Endocarditis and Kawasaki Disease, Council on Cardiovascular Disease in the Young. American Heart Association. Guidelines for the diagnosis of rheumatic fever: Jones criteria, updated 1992. JAMA. 1992; 268: 2069-2073. - I Diretriz Brasileira de Miocardites e Pericardites. Arq Bras Cardiol. 2013; 100 (4 Supl. 1): 136. - Diretrizes Brasileiras para o Diagnóstico, Tratamento e Prevenção da Febre Reumática. Arq Bras Cardiol. 2009; 93 (3 supl.4): 1-18. Responsáveis André Aguiar Souza Furtado de Toledo, acadêmico do 9º período de Medicina da FM-UFMG E-mail: asftoledo[arroba]gmail.com Kamilla F. Babilônia Correa, acadêmica do 9º período de Medicina da FM-UFMG E-mail: kamillababilonia[arroba]gmail.com Orientadora Profa. Zilda Maria Alves Meira, pediatra, professora convidada do Departamento de Pediatria da FM-UFMG E-mail: zilda.m.a.meira[arroba]gmail.com Revisores Janaína Chaves, Glauber Eliazar, Lucas Fonseca, Luanna Monteiro, Hércules Riani, Profa. Viviane Parisotto