SUBJETIVIDADE E CULTURA: A RELAÇÃO INDIVÍDUO E SOCIEDADE NA CONTEMPORANEIDADE* Mona Bittar** Resumo: a problemática que constitui objeto deste artigo tem como fundamento uma discussão clássica no campo das Ciências Humanas e Sociais e, particularmente, na Psicologia: a relação indivíduo e sociedade e os processos de constituição psíquica na sua relação com a cultura, colocando em causa a constituição da subjetividade na contemporaneidade. A discussão em questão se situa e pretendeu transitar no campo da Psicologia, na sua interface com as Ciências Sociais, referenciada na psicanálise freudiana e na teoria crítica, particularmente nos textos de Adorno e Horkheimer. Palavras-chave: Subjetividade. Indivíduo-sociedade. Subjetividade e cultura. Constituição psíquica. O exercício que se faz nesse trabalho1 busca beneficiar-se das contribuições de Freud, Adorno e Horkheimer. Autores que, através de suas pesquisas e reflexões, colocam em causa a concepção de indivíduo na sociedade burguesa e fundam uma perspectiva crítica sob bases teóricas que apreendem indivíduo e sociedade como elementos constituintes e constituídos de uma mesma realidade. Ao explicitar os processos que envolvem essas realidades, esses autores contribuem radicalmente para a apreensão das determinações sociais e psíquicas resultantes de um movimento recíproco e solidário. Assim, o que orienta esse exercício é buscar, nesses autores, as mediações que contribuem para a discussão da relação indivíduo e sociedade no sentido de apreender os elementos essenciais que constituem essas realidades. O desafio a ser enfrentado é a compreensão da dinâmica interna do indivíduo e da sociedade nas condições objetivas concretas, complexas e contraditórias que se constitui na realidade contemporânea. , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. 79 Colocar em causa essas realidades - indivíduo e sociedade é condição para desvendar as mediações envolvidas nos processos de estruturação psíquica em determinadas configurações históricas e sociais. A compreensão da subjetividade, seus nexos constitutivos e seus mecanismos de externalização, implicam a análise e reflexão dos mecanismos que organizam e estruturam a sociedade, as condições objetivas que se desenvolvem e se conformam em momentos históricos específico. A proposta da investigação que deu origem a este texto objetivou, assim, a análise histórico-conceitual dos processos psíquicos na sua relação com a cultura, enquanto mediação histórica na constituição do indivíduo, e seus desdobramentos no mundo contemporâneo. Está em causa, a discussão da relação entre indivíduo e sociedade em uma perspectiva que articula o singular e o universal, o individual e o social, o psíquico e a cultura, sem abdicar das tensões resultantes das especificidades dessas realidades referidas e distintas. Trata-se de discutir a constituição do indivíduo a partir das mediações culturais que o constituem como dimensão de uma realidade que o marca concretamente. Essa concepção é fundamental para a inteligibilidade dessa relação e nisso constitui a fertilidade das teorias que enfrentam essa problemática - indivíduo e sociedade/ subjetividade e cultura - explicitando as relações concretas constitutivas e constituintes da realidade objetiva e subjetiva, que trilham o caminho de ruptura com um determinado tipo de procedimento da razão. Essa perspectiva se contrapõe às teorias ainda prevalecentes no pensamento contemporâneo, que apreendem a relação indivíduo e sociedade como dicotômicas e convertem essas realidades em abstração. “[...] o conceito puro de sociedade é tão abstrato quanto o conceito puro de indivíduo, assim como o de uma eterna antítese entre ambos [...] tornando-se necessária a análise das relações sociais concretas e da configuração concreta que o indivíduo assume nessas relações” (HORKHEIMER; ADORNO, 1978, p. 53-4). Esse pensamento não se restringe à Psicologia, mas está presente em parte substantiva das ciências sociais em geral que, historicamente, têm tratado de modo abstrato e naturalizante essas realidades. Predomina, assim, uma compreensão limitada e reducionista dessa temática, reiterando-se a cisão entre realidade objetiva e subjetiva.2 Horkheimer e Adorno (1978), ao discutirem a temática do indivíduo e da sociedade, reafirmam a predominância de concepções que consideram essas realidades em oposição, e a antítese entre esses con80 , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. ceitos se torna hegemônica nas ciências, particularmente referendadas no aporte positivista, que se converte em ideal científico das ciências naturais e das ciências humanas e sociais. A crítica a essa concepção é balizada pela naturalização dos fenômenos sociais e humanos. E a ciência acaba por converter-se num “fim em si mesmo”. Os fenômenos sociais são produtos históricos, nos quais tendências históricas se apresentam como tensões internas dos próprios processos sociais; é por isso que a oposição entre a pura teoria das formas das relações entre os homens e a dinâmica da História nos deixam, em última análise, na posse de um molde vazio, no qual se perdeu toda a consciência do que é social (HORKHEIMER; ADORNO, 1978, p. 19-20). Criticam essa concepção e sublinham que essas realidades se constituem em condições sociais específicas, em relações dinâmicas e recíprocas e, nessa perspectiva, o conceito de sociedade está referido às relações entre os homens e às leis que regulam essas relações. Horkheimer e Adorno analisam a relação indivíduo e sociedade na sua concreticidade, como processo histórico que dá origem e fundamenta o desenvolvimento da sociedade burguesa, nos marcos da tradição positivista, que consolida tanto a ideia de indivíduo como a de sociedade como categorias absolutizadas. Nesse sentido, a tese da independência do indivíduo em relação à sociedade é abstrata, pois essas realidades se constituem em reciprocidade, em um processo que é dinâmico e complexo. O indivíduo concebido dessa maneira ampla se afasta cada vez mais da sua condição “natural”, pois está referido à sociedade. Nessa abordagem, a condição para apreender a constituição do que é universal, particular e singular diz respeito às “conexões” entre realidade objetiva e psiquismo. Portanto, os processos de humanização do homem estão referidos à totalidade das relações que o determinam, a partir da gênese de processos sociais mais amplos, e, nesse contexto, é possível apreender a relação entre indivíduo e sociedade. Ambos os conceitos são recíprocos. O indivíduo, num sentido amplo, é o contrário do ser natural, um ser que, certamente, se emancipa e se afasta das simples relações naturais, que está desde o princípio referido à sociedade, de um modo específico, que, , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. 81 por isso mesmo recolhe-se em seu próprio ser [...] A interação e a tensão do indivíduo e da sociedade resumem, em grande parte, a dinâmica de todo o complexo (HORKHEIMER; ADORNO, 1978, p. 53). Horkheimer (1990, p. 29) reafirma a importância da apreensão dessas realidades na história e em reciprocidade, pois “[...] o elemento subjetivo no conhecimento dos homens não é sua arbitrariedade, mas [...] é sua própria história, que deve ser compreendida em conexão com a história da sociedade”. Esses aspectos são essenciais e fundamentam a compreensão da relação indivíduo e sociedade como uma única realidade, na qual o particular se expressa no universal que, por sua vez, expressa essa particularidade. Acentuadamente, as teorias psicológicas têm tratado a temática da subjetividade na sua externalidade, ancorada em uma concepção de indivíduo e sociedade como realidades distintas e autônomas. A visão predominante que tem se configurado na trajetória da psicologia privilegia uma concepção naturalizada de indivíduo, sedimentando e legitimando um determinado tipo de procedimento racional que se alastra e se consolida no seu campo. Ao processo de naturalização do indivíduo corresponde o processo de naturalização da sociedade, concebida como realidade distinta, quando não oposta, externa e independente. Como resultado desse procedimento, o conceito de sociedade remete a um todo e o de indivíduo a uma parte, ambos abstratos. Nesse sentido, é possível afirmar que a predominância de uma concepção de indivíduo e sociedade em oposição, aprisionados em campos diversos e antagônicos, acaba por converter em abstrações realidades que, na sua essência, estabelecem relações concretas. Num sentido amplo, é possível afirmar que a psicologia se constitui e se desenvolve contemplando os diferentes princípios explicativos que assentaram as denominadas escolas ou teorias psicológicas, mas, para a compreensão dos seus fundamentos, é preciso, recuperar nos seus diferentes modelos explicativos, a historicidade do seu processo, ou seja, apreendê-los enquanto expressão lógica de realidades históricas. Nessa perspectiva, é preciso discutir os elementos que possibilitam colocar em causa a compreensão da relação entre indivíduo e sociedade e seus desenvolvimentos.A psicologia, que se constitui e se desenvolve solidariamente ao modo de produção capitalista, se consolida em um contexto histórico no qual prevalece, majoritariamente, o modelo de racionalidade do conhecimento positivo. 82 , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. Historicamente, as concepções objetivistas são predominantes nessa trajetória, privilegiando o estudo de um objeto estrito, o indivíduo, explicado por suas exteriorizações. Porém, ainda que predominante essa concepção não é a única no campo dessa ciência que, no seu desenvolvimento, assenta outros aportes teóricos que se ocupam da vida subjetiva, do psiquismo, com ênfase na determinância dos aspectos subjetivos. Assim, se a psicologia contemporânea é marcada por um desenvolvimento que a inscreve, de um lado, no campo da ciência positivista, sua história evidencia, também, outra tendência, menos predominante: a psicologia como ciência do “sentido íntimo” ou subjetivista.3 A temática da relação entre indivíduo e sociedade vai ser desenvolvida por Adorno (1991) no campo próprio da psicologia. Ao apontar uma tradição na ciência que privilegia uma visão dicotômica e cindida da relação entre realidade objetiva e subjetiva postula que esse procedimento implicou processos de ideologização das teorias psicológicas. Indivíduo e sociedade concebidos em oposição que não expressam o que essas realidades são na sua essência. E psicologia, nessa trajetória, assume o caráter de uma ciência individualista, ao privilegiar uma concepção fragmentada de indivíduo, mascarando a centralidade das relações sociais. Ao se ocupar, historicamente, do estudo do indivíduo independente, “livre”, autônomo, essa concepção sedimenta a antítese entre a realidade objetiva e a realidade subjetiva. “A psique desligada da dialética social, tomada em abstrato, em si mesma, e posta sob a lupa, se adequa admiravelmente como ‘objeto’ de ‘investigação’ em uma sociedade que ‘introduz’ os sujeitos como mero ponto de referência da força de trabalho em abstrato” (ADORNO, 1991, p. 168).4 Ressalta a importância de não analisar os determinantes objetivos e subjetivos como fenômenos isolados, pois eles são realidades que se inscrevem numa totalidade que não pode negar as tensões resultantes do confronto das demandas objetivas com as demandas subjetivas. Assim, a discussão deve ocorrer no interior do processo civilizatório, pois o desenvolvimento psíquico se materializa na história, sob determinadas condições concretas que conformam tanto a existência da sociedade quanto a do indivíduo. Nessa perspectiva, é real o caráter ideológico da psicologia que, historicamente, estuda o indivíduo apartado da cultura, portador de uma lógica própria, e esse processo de ideologização deve vir à tona como condição de esclarecimento da sua constituição, con, Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. 83 templando uma perspectiva que a inscreva na relação com a cultura.5 Aponta que a separação entre sociedade e indivíduo é falsa, pois nega a relação entre objetividade e subjetividade. A separação entre a sociedade e a psique é falsa consciência: eterniza categorialmente a cisão entre o sujeito vivente e a objetividade que impera sobre os sujeitos e que, porém, são eles quem a produzem. Contudo, desta falsa consciência não se pode retirar, por decreto metodológico, o solo em que pisa.Os homens não conseguem reconhecer a si mesmo na sociedade, nem tampouco neles, porque encontram-se alienados entre si e frente a todos. Suas relações sociais coisificadas os apresentam necessariamente como seres em si mesmos (ADORNO, 1991, p. 139).6 A trajetória da psicologia apresenta, ainda, a conformação de outras concepções que se fundam sob novos princípios explicativos, particularmente a teoria de Freud que, ao privilegiar a apreensão da dimensão psíquica mediada pelos processos culturais, assenta um caminho fértil para a discussão da relação entre indivíduo e sociedade. Nesse campo, a fertilidade da psicanálise freudiana para o estudo da subjetividade, pois Freud parte da relação recíproca entre a dimensão psíquica e social e, ao referenciar sua análise no processo civilizatório, marca a ruptura com o pensamento hegemônico na psicologia sobre a relação entre realidade objetiva e subjetiva. Horkheimer e Adorno (1978) - ao desenvolverem a crítica à concepção dicotômica da relação indivíduo e sociedade, evidenciando seus limites; ao se contraporem às concepções que autonomizam o indivíduo e desconsideram o desenvolvimento social como um processo dinâmico e histórico; ao afirmarem essa relação como uma relação de reciprocidade que expressa tensões e conflitos; ao apontarem que a análise da objetividade não ocorre apartada o indivíduo que, por sua vez, também não se constitui apartado dela e, nesse sentido, a compreensão das instâncias sociais não pode se separar da compreensão das instâncias psíquicas -, fazem referência à psicologia profunda de Freud, que enfatizou a compreensão do indivíduo na realidade social ao trazer para o âmbito da psicologia individual os aspectos referentes aos grupos. Esse caminho adotado por Freud colocou em questão o que se considerava até então objeto exclusivo da sociologia (os grupos). 84 , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. A moderna psicologia da profundidade enfatizou as conexões atuantes, com bastante clareza, de modo a anular as bases que justificavam os privilégios que a sociologia reivindicara para si como teoria do comportamento dos indivíduos reagrupados, em contraste com a investigação psicológica do indivíduo. [...] Em última instância, o mecanismo social e, principalmente, às chamadas ‘formas de socialização’, às quais cada indivíduo é exposto, dependem de processos econômicos, da produção e da permuta, e do estado da técnica [...] (HORKHEIMER; ADORNO, 1978, p. 20). Outrossim, Jacoby (1977), também analisando a história da psicologia, critica as teorias que sustentam a naturalização do pensamento e questiona as tendências que destituem a história para a compreensão da dinâmica social, o que implicou desdobramentos no indivíduo, cada vez mais fragmentado e “petrificado”. Reitera que esse processo gera o inconformismo e provoca o declínio do pensamento critico. Aponta, em contraposição a esse movimento, a retomada da discussão da temática da subjetividade referida às condições objetivas que a constituem. Evidencia, assim, a necessidade de recuperar as contribuições das teorias que discutem a subjetividade na história. Afirma que Freud, ao constituir uma teoria que desvenda o psiquismo, explicitando a relação entre a cultura e a constituição do indivíduo, rompe com a concepção hegemônica da “propriedade psíquica particular” e, ao colocar no centro dessa discussão, os antagonismos do processo civilizatório, transgride uma lógica que é conservadora. Os seus conceitos são radicais quando ele procura a sociedade onde supostamente ela não existe: no íntimo do indivíduo. Freud desfez a distinção burguesa fundamental entre particular e público, entre indivíduo e sociedade; ele descobriu as raízes objetivas do sujeito particular, o conteúdo social delas. Freud desmascarou a mentira que é o sujeito inviolado: mostrou como ele é violado em todos os aspectos (JACOBY, 1977, p. 41). Assim, os aspectos psíquicos e os aspectos culturais enquanto elementos tensionados reiteradamente remetem à discussão da vida psíquica sob o pressuposto da reciprocidade. Lasch (1983) reitera, nesse campo, a importância da psicanálise, pois Freud, ao analisar rigorosa, Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. 85 mente a dimensão psíquica, esclarece a dinâmica interna da sociedade. “A psicanálise esclarece melhor a conexão entre sociedade e indivíduo, a cultura e a personalidade, precisamente quando se confina ao cuidadoso exame dos indivíduos” (LASCH, 1983, p. 59). A par da estrutura psíquica referir-se aos aspectos singulares do indivíduo, esses aspectos estão carregados da existência do outro, outro que originariamente lhe é externo mas que, internalizado, passa a constituí-lo. O processo de internalização que conforma a estrutura psíquica revela uma dinâmica entre o que é interno e o que é externo e essas relações são também o campo próprio da cultura. A compreensão do indivíduo não pode referir-se, assim, à sua existência em si mesmo, pois ele se confronta subjetiva e objetivamente com outros indivíduos e se constitui nessas relações, no campo da sociabilidade, da cultura. Essa relação entre indivíduo e cultura já é apontada por Freud (1987) ao discutir o desenvolvimento da cultura no registro do desenvolvimento da estruturação psíquica, observando as suas modificações ao longo da história da humanidade. Assim, o psiquismo se desenvolve em consonância com os avanços da civilização, da ciência e da tecnologia, e entre esses avanços psíquicos, Freud acentua o fortalecimento do superego, como um dos “progressos mentais”. Esse fortalecimento do superego constitui uma vantagem cultural muito preciosa no campo psicológico. Àqueles em que se realizou são transformados de opositores em veículos da civilização. Quanto é maior o seu número numa unidade cultural, mais segura é a sua cultura e mais por ela pode passar sem medidas externas de coerção (FREUD, 1987, p. 92). A mediação da cultura para a compreensão dos processos de constituição psíquica, destacada por Freud particularmente nos textos “culturais”,7 evidenciam a radicalidade da sua teoria pois, ao estudar os mecanismos psíquicos, Freud revela e apanha as dimensões objetivas e sociais da estrutura psíquica. No recorte da cultura para a análise e discussão dos mecanismos psíquicos apreende, assim, as mediações psicossociais que marcam esse processo. Freud, ao discutir a constituição psíquica, descortina a oposição entre vida social e psíquica e reafirma que o indivíduo se estrutura a partir do reconhecimento do outro, diferenciando o eu e o não-eu, a partir das relações sociais que os homens estabelecem entre si, tanto no 86 , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. sentido de controle da natureza quanto nos aspectos necessários para regular essas relações. Nesse sentido, se essas condições são as que viabilizam a civilização, são também as que restringem o indivíduo e acarretam implicações à sua constituição psíquica. Acreditamos que a civilização foi criada sob a pressão das exigências da vida, à custa da satisfação dos instintos; e acreditamos que a civilização, em grande parte está sendo constantemente criada de novo, de vez que cada pessoa, assim que ingressa na sociedade humana, repete esse sacrifício da satisfação instintual em benefício de toda a comunidade. Entre as forças instintuais que têm esse destino, os impulsos sexuais desempenham uma parte importante, nesse processo [...] são desviados de suas finalidades sexuais e dirigidos a outras, socialmente mais elevadas e não mais sexuais (FREUD, 1980, p. 35-6). Se as relações sociais reguladas instauram a civilização e marcam as restrições à satisfação pulsional, o conflito entre as demandas do indivíduo e as exigências impostas pela cultura é recíproco e solidário a esse processo, pois a garantia da manutenção da cultura é o investimento psíquico por parte de cada indivíduo frente à exigência da repressão das pulsões. A garantia de que a cultura regulará as relações entre os homens, ordenando a vida social ao preço da restrição da liberdade individual instala o conflito com a cultura, que é permanente e parece se irremediável. O que se coloca em causa, assim, são os processos de interdição do desejo, que marca a incompletude humana. Freud busca entender, dessa maneira, as razões do sofrimento humano no processo civilizatório, que instala a repressão do desejo. Ao investigar as causas psicológicas do sofrimento humano, identifica os fatores determinantes da insatisfação frente às exigências da cultura – principal obstáculo às satisfações pulsionais do homem. E se a renúncia é condição desse processo, a promessa de reconciliação desse sacrifício também o constitui, cria mecanismos de ordem psíquica de forma a encobrir a dor e repor o que não é possível de ser reposto: o desejo interditado. Os conflitos irremediáveis entre as necessidades pulsionais e as restrições impostas pelo processo civilizatório originam o mal-estar e os dilemas do homem diante da civilização. E essas restrições, por um lado, trazem implicações à estruturação psíquica do indivíduo; por ou, Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. 87 tro, são condição para a vida entre os homens. Essas questões são objeto de estudo de Freud ao discutir a origem e os caminhos do processo civilizatório, o que o leva a afirmar que “[...] todo indivíduo é virtualmente inimigo do processo civilizatório, embora se suponha que esta constitui um objeto de interesse humano universal” (1978, p. 88)] e, nesse sentido, viver em sociedade só é possível pela repressão do desejo. Assim, a coerção e a renúncia aos instintos são condição do desenvolvimento da civilização e da estruturação psíquica do indivíduo. Assim, civilização se funda na repressão do desejo e estabelece as normas que regulam as relações entre os homens. A possibilidade da vida em comum se funda na renúncia, no sacrifício do desejo. E esse processo é recriado cotidianamente, cada vez que uma pessoa se insere na sociedade, e torna a convivência social um sacrifício para o indivíduo, que se sujeita às imposições da civilização, pois, Acho que se tem que levar em conta o fato de estarem presentes em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, anti-sociais e anti-culturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade humana (FREUD, 1978, p. 89). Nesse sentido, o processo civilizatório garante a restrição das possibilidades de satisfação das pulsões amparadas na coletividade e em regulamentos aos quais todos os indivíduos devem se sujeitar e esse processo marca a condição humana e a condição de ser da cultura. O desenvolvimento da civilização é solidário e determinante do psiquismo que se estrutura nessa relação com a realidade externa que, ao tempo em que é condição para a vida social, é restritiva quanto à liberdade humana, vistas a coerção e regulação da liberdade individual. E essas restrições trazem implicações na estruturação psíquica e são fontes de sofrimento, pois o indivíduo se desenvolve confrontando-se cotidianamente com o dilema da impossibilidade da satisfação pulsional. “O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado; contudo, não devemos – na verdade, não podemos – abandonar nossos esforços de aproximá-lo da sua consecução” (FREUD, 1978, p. 146). O mal-estar originado pelo sacrifício da pulsão coloca a incompletude na base da constituição do indivíduo, ou seja, o reconhecimento da ideia da incompletude lhe é a possibilidade de ser, visto que as 88 , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. exigências impostas pelo processo civilizatório não possibilitam a realização do seu desejo. É nesse sentido que Freud afirma que: Nenhum desses caminhos nos leva a tudo o que desejamos. A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e, finalmente, de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua constituição psíquica desempenhará papel decisivo, independentemente das circunstâncias externas (FREUD, 1978, p. 146). Essa análise freudiana a respeito da constituição psíquica se revela determinante particularmente quando consideramos a centralidade do mecanismo da repressão na discussão da psicanálise. Tomar esse mecanismo interrogá-lo e compreende-lo, investigando como o mesmo se cria e recria no campo da cultura é condição para a apreensão da constituição do indivíduo na contemporaneidade. A discussão dos mecanismos de repressão, tomados como categoria fundante da civilização e do indivíduo, é crucial para elucidar e explicitar como se opera e se processa, psiquicamente, o conflito permanente entre as demandas do indivíduo e as restrições impostas pela cultura e as implicações e desdobramentos. O conceito de repressão assume, assim, na teoria psicanalítica, centralidade na investigação e elucidação das demandas que estão sujeitas às restrições e coerção em nome da cultura. A repressão é, portanto, mecanismos que possibilita a internalização dos preceitos sociais e da moralidade, condição de vida social e da cultura. A civilização se constitui e se mantém às custas das regulações e ordenações das relações entre os homens. Condição, assim, de existência tanto do próprio indivíduo quanto do outro. Freud explicita que regular as relações entre os homens é o marco inaugural da civilização, condição que instaura o processo civilizatório. Ao recolocar a discussão da relação entre indivíduo e sociedade, a temática da subjetividade ganha corpo e é objeto privilegiado em vá, Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. 89 rias análises que apontam também a fertilidade dessa discussão a partir da consideração das mediações que constituem o indivíduo, pois expressam, do ponto de vista psíquico, a cultura na qual ele se inscreve. Se o indivíduo só pode ser realmente compreendido quando inserido na totalidade social e histórica que o determina e lhe dá sentido, as mediações determinantes dessa constituição devem ser, portanto, desvendadas. Não se trata de reinventar a subjetividade, mas de apreendê-la a partir das condições concretas que a constituem. A compreensão da subjetividade, portanto, coloca em causa as condições concretas sob as quais esta se constitui. Configura-se, assim, a necessidade de recuperar as contribuições das teorias que discutem a subjetividade no processo civilizatório no qual a humanidade se estabeleceu e se desenvolveu. O indivíduo se constitui em determinadas condições históricas e culturais e é necessário apreender essas mediações materiais que conformam a sua subjetividade, não como elementos que o afetam externamente, mas que são introjetados psiquicamente. As modificações significativas na realidade contemporânea transformam a dinâmica social, conformando mudanças significativas de estruturação das relações sociais, emergindo outras formas de vínculos sociais e mediações específicas dessa particularidade histórica, configurando outras formas de regulação e funcionamento de produção da existência, dadas às condições concretas que decorrentes desse contexto. E essas modificações repercutem na constituição psíquica contemporânea na qual o indivíduo se inscreve e constitui a sua subjetividade. Nessa perspectiva é possível a apreensão da estrutura psíquica e dos processos que estruturam a vida coletiva nas condições sociais e históricas que constituem essas realidades. Essa perspectiva permite arguir configurações psíquicas e sociais, revelar a relação do desenvolvimento da cultura e do indivíduo referida a cada contexto histórico. Realidade que forja, celebra e consolida o discurso de uma “nova ordem social”, “novo homem”, “nova sociabilidade”, “novos paradigmas”. Realidade marcada, por um lado, pelo enaltecimento do novo, pela centralidade dos processos de individualização, por novos padrões de regulação dos vínculos sociais, que opera de acordo com padrões de eficiência, flexibilidade, criatividade, que anuncia a autonomia e liberdade do indivíduo, o prazer, a imediaticidade, a ideia de indivíduo autônomo, particular, independente; que exalta o individualismo,corroborando e legitimando um determinado tipo de procedimento da razão: técnica,instrumental, pragmática, utilitarista 90 , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. que consolida o hedonismo, o hiperindividualismo; uma subjetividade “modelada”, “reificada”, “administrada”, narcisista, melancólica. Realidade que, ao reduzir, mascarar, as determinações históricas e sociais que constituem o indivíduo, obstaculariza os processos de reconhecimento do outro, da importância e do lugar do outro. Frente à conformação desse procedimento racional na contemporaneidade, não se pode prescindir da compreensão das formas de dominação política e ideológica da sociedade contemporânea, quando, contraditoriamente, o tempo que a celebra é o tempo no qual estão dispostas as condições para o seu desaparecimento. As formas de dominação evidenciam os aspectos regressivos da constituição psíquica, quando o outro, condição de existência do indivíduo e da cultura, internalizado na dinâmica psíquica, parece ter se pulverizado. E essa tendência psíquica regressiva revela às condições objetivas nas quais a mesma se inscreve, referida, pois, às condições históricas e sociais que geram essa subjetividade, condições objetivas que também revelam aspectos regressivos. O reconhecimento de um desacordo de interesses entre as demandas do indivíduo e as demandas culturais deve ser reconhecido, mas anunciar a possibilidade de resolução desse conflito, eliminando as fontes de insatisfação, com a promessa de que a renúncia não é mais necessária é caminhar rumo à barbárie. Nesse sentido, os controles sociais na contemporaneidade, que assumem formas cada vez mais complexas e sofisticadas, são mais sutis, mas certamente revelam formas cada vez mais autoritárias de controle e regulação social. Ainda que se apresente com uma roupagem nova, que anuncie a prevalência do desejo e da plena realização do ser humano, na verdade, é mais regressivo, pois o controle ocorre autoritariamente na ausência de controle. Mediada por essas questões, é possível apreender a configuração psíquica contemporânea e os desdobramentos do caminho da pulsão em uma realidade que se afirma marcada pelo arrefecimento da repressão; pela multiplicidade de referências identificatórias; por formas mais sutis de controle social; pelo acelerado avanço tecnológico; pela submissão e sacralização do mercado, que transforma a tudo e a todos em mercadorias; pela consolidação e ampliação dos meios de comunicação de massa como instância de socialização; pela crescente desvalorização cultural do passado; pelo crescente apelo às saídas individuais. E essa discussão se complexifica quando referenciada à sociedade contemporânea que, por um lado, avança vertiginosamente no desenvolvimento científico tecnológico e cada vez mais apresenta , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. 91 possibilidades até então inimagináveis de interação entre os indivíduos. Por outro, contraditoriamente, revela a configuração de espaços cada vez mais redimensionados e limitados de vínculos sociais, que respondem à lógica dos particularismos, dos processos de individualização, reorientando os processos de reconhecimento do outro. Nesse contexto, reafirmo, é inegável que estão postas as condições de estruturação de um indivíduo narcisista, auto-referido, auto-suficiente, com traços melancólicos. E nessa medida, parece que caminhar prescindindo do outro revela processos de regressão psíquica e da cultura. A barbárie à espreita. Não parece estar em questão, assim, o “novo” pois o que assistimos não é a novidade, mas o aprofundamento de crises anunciadas – a barbárie social e a barbárie individual. E o caminho para a compreensão dessa realidade objetiva e subjetiva certamente é fértil se trilhado pela teoria crítica e pela psicanálise, pela centralidade e radicalidade dessas teorias para apreensão dos processos de mediação que assumem papel fundamental para a compreensão dessa racionalidade que se conforma no mundo contemporâneo, consolidando um determinado tipo de razão que vai se alastrando na família, na escola, nas instituições, nos grupos. Esse é o desafio, essa é a tarefa. Notas 1 Esse trabalho é resultado de investigações e reflexões que venho desenvolvendo nos últimos anos, por meio de projetos de pesquisas vinculados ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicologia, Educação e Cultura (NEPPEC), na Faculdade de Educação da UFG. 2 “No pensamento contemporâneo, sobrevive uma tendência de considerar tanto o indivíduo quanto a sociedade como realidades distintas. Grosso modo, o conceito de sociedade costuma estar costurado por análises que induzem a entende-lo como uma unidade indissolúvel, que se apóia em estruturas imutáveis e ossificadas, e corresponde ao resultado da soma de particularidades. Enfim, um universal no qual o particular se dissolve e não se expressa. Por outro lado, o conceito de indivíduo guarda uma conotação exclusivamente singular e particular nesse tipo de pensamento” (RESENDE, 1997, p. 14). 3 Patto (1987), ao recuperar a história da psicologia, reitera que, se por um lado, a ciência positivista marca a psicologia contemporânea, por outro, “[...] sua história registra outra tendência, praticamente soterrada pela avalancha da psicologia empirista: a psicologia como ‘ciência do sentido íntimo’ [...]” (p.90). 4 “La psique desligada de la dialéctica social, tomada en abstrato en sí misma y puesta bajo la lupa, se adecua admirablemente como ‘objeto’ de ‘investigación’ 92 , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. en una sociedad que ‘introduce’ a los sujetos como mero punto de referencia de la fuerza de trabajo em abstrcto”(ADORNO, 1991, p. 168). 5 “Lo psicológico, como um interior relativamente autônomo respeto al exterior, se há convertido em enfermedad em um sociedad que lo busca sin descanso [… ]. El sujeto em que predomina lo psicológico como algo subtraído a la racionalidade social pasa desde siempre por uma anomalia, um estrafalario” (ADORNO, 1991, p. 155). 6 “La separación entre sociedad y psique es falsa conciencia: eterniza en forma de categorías la escision entre el sujeto vivente y la objetividade que impera sobre los sujetos y que, no obstante, son ellos quienes producen. Pero nose le puede quitar el terreno a esa falsa conciencia por decreto metodológico. Los seres humanos no son capaces de reconocerse a sí mismos en la sociedad, niésta en ellos, porque están enajenados entre sí y respecto al conjunto. Sus relaciones sociales cosificadas se les presentan necesariamente como seres en sí mismos” (ADORNO, 1991, p. 139). 7 Destacamos, entre esses textos, “Totem e Tabu” (1913); “Além do princípio do prazer” (1920); “Psicologia de grupos e análise do ego” (1921); “O futuro de uma ilusão” (1929) e “O mal estar na civilização” (1930). Referências ADORNO, Theodor W. De la relación entre sociologíay psicología. In. Actualidad de la filosofia. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do ego [1921]. In: Obras completas, v.XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ______. Conferência I – Introdução (1916[1915]). In: Obras completas, v. XV. Rio de Janeiro: Imago, 1980. ______. O futuro de uma ilusão [1927]. São Paulo: Abril Cultura, 1978. (Coleção Os Pensadores). ______. O mal estar na civilização (1930 [1929]). São Paulo: Abril Cultura, 1978. (Coleção Os Pensadores). ______. A história do movimento psicanalítico (1924 [1914]. São Paulo: Abril Cultura, 1978. (Coleção Os Pensadores). HORKHEIMER, Max. Teoria crítica: uma documentação. São Paulo: Perspectiva: Ed. Da USP, 1990. HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor (org). Temas básicos de Sociologia. São Paulo: Ed. Cultrix, 1978. JACOBY, Russel. Amnésia social – uma crítica à Psicologia conformista de Adler a Laing. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. LASCH. Christopher. A Cultura do narcisismo - a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983. PATTO, Maria Helena S. Psicologia e ideologia. São Paulo: T A Queiroz, 1987. RESENDE, Anita Cristina Azevedo. O tempo do tempo – objetividade e subjetividade sob o tempo quantificado. São Paulo, PUC, 1997. Dissertação de mestrado. , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013. 93 SUBJECTIVITY AND CULTURE - THE RELATIONSHIP BETWEEN INDIVIDUAL AND SOCIETY IN THE CONTEMPORARY TIMES Abstract: the problem that consist in the object of this article is based on a classic discussion in the field of humanities and social sciences and, particularly, in psychology: the relationship between individual and society and the processes of psychic constitution in its relation to culture, putting into question the constitution of the subjectivity in contemporary times. The discussion in question is located and intended transit in the field of psychology, in its interface with the Social Sciences, referenced in Freudian psychoanalysis and the critical theory, particularly in the writings of Adorno and Horkheimer. Keywords: Subjectivity. Culture. Psychic constitution. * Texto recebido em 24/11/2012 e aprovado em 30/01/2013. ** Mestre e Doutora em Educação; Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Goiás – UFG. 94 , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 79-94, jan./jun. 2013.