Rev Bras Cardiol. 2013;26(4):xx-xx julho/agosto Relato de Caso 1 Defaveri et al. Hematoma como Complicação de Anticoagulação Relato de Caso Hematoma Espontâneo de Parede Abdominal como Complicação de Anticoagulação na Fibrilação Atrial Spontaneous Hematoma of the Abdominal Wall as a Complication of Anticoagulation in Atrial Fibrillation Geovana Bertoldi Defaveri, Fabiano Bianchi, Aline dos Santos Nogueira, Luiz Vinícius Andrade Hipolito, Bruno Sá Antunes de Souza, Maria Luanda Berriel Pontes Resumo Abstract Relata-se o caso de hematoma espontâneo de parede abdominal como complicação de anticoagulação com heparina não fracionada em paciente com fibrilação atrial e alto risco de fenômeno tromboembólico. O hematoma do músculo reto abdominal é uma doença de baixa prevalência e que faz diagnóstico diferencial com outras condições abdominais agudas. Seu aparecimento se associa mais comumente à anticoagulação indicada na profilaxia de fenômenos tromboembólicos. No caso descrito, optou-se por tratamento clínico conservador. This case study describes a spontaneous hematoma of the abdominal wall as a complication of anticoagulation with unfractionated heparin (UFH) in a patient with atrial fibrillation and at high risk for a thromboembolic event. Hematoma of the rectus abdominis muscle is a disease with low prevalence and a different diagnosis with other acute abdominal conditions. Its appearance is most commonly associated with anticoagulation indicated as prophylaxis for thromboembolic events. In the case described, conservative clinical treatment was selected. Palavras-chave: Fibrilação atrial; Heparina; Hematoma Keywords: Atrial fibrillation; Heparin; Hematoma Introdução O hematoma do músculo reto abdominal caracteriza-se por uma hemorragia presente na bainha muscular, causado principalmente por uma ruptura das artérias epigástrica superior e/ou inferior de maneira atraumática. Sua importância reside na dificuldade diagnóstica, levando a intervenções cirúrgicas desnecessárias3. Fibrilação atrial (FA) é a arritmia sustentada mais frequente na prática médica1. Sua prevalência aumenta com a idade e encontra-se entre 1,5 % e 2,0 % na população em geral2. Essa arritmia aumenta o risco de acidente vascular encefálico (AVE) isquêmico em cinco vezes e de insuficiência cardíaca em três vezes, o que implica aumento da mortalidade2. A prevenção primária e secundária de fenômenos tromboembólicos é importante e deve ser avaliada1. O objetivo da anticoagulação baseada na estratificação de risco é minimizar os riscos de tromboembolismo sem impacto significativo nas taxas de hemorragia1. Relato do Caso Paciente do sexo feminino, 67 anos, branca, com diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica, foi admitida no serviço de emergência, encaminhada por cardiologista após consulta, na qual apresentava quadro de mal-estar, tendo sido diagnosticada Unidade Cardiológica Intensiva - Hospital São José do Avaí – Itaperuna, RJ - Brasil Correspondência: Geovana Bertoldi Defaveri E-mail: [email protected] Rua Coronel Romualdo Monteiro de Barros, 251 - Cidade Nova - 28300-000 - Itaperuna, RJ – Brasil Recebido em: xx/xx/2013 | Aceito em: xx/xx/2013 26 Defaveri et al. Hematoma como Complicação de Anticoagulação Relato de Caso fibrilação atrial com alta resposta ventricular, de início indeterminado. Na admissão hospitalar a paciente apresentava a mesma queixa relatada na consulta. Desconhecia arritmia cardíaca prévia e fazia uso contínuo apenas de captopril. Rev Bras Cardiol. 2013;26(4):xx-xx julho/agosto abdominal. Três dias após suspensão da anticoagulação, optou-se por reiniciar a heparinização plena, seguindo a indicação dessa terapêutica. A abordagem cirúrgica da lesão valvar mitral foi programada para um tempo posterior. Ao exame do aparelho cardiovascular apresentava ritmo cardíaco irregular, bulhas normofonéticas, sem sopros, frequência cardíaca de 177 bpm, pressão arterial de 170x100 mmHg em ambos os membros, boa perfusão capilar periférica, pulsos periféricos amplos e simétricos. Ao exame do aparelho respiratório, apresentava murmúrio vesicular universalmente audível, sem ruídos adventícios; eupneica em ar ambiente; frequência respiratória de 16 irpm. Ao exame dos membros, apresentava edema de membros inferiores (1+/4+); panturrilhas livres; pulsos periféricos amplos e simétricos. Internada na unidade cardiológica intensiva, foi submetida a medidas terapêuticas para fibrilação atrial, iniciado anticoagulação plena com heparina não fracionada baseado na estratificação de risco pelo escore de CHA2DS2-Vasc (3 pontos) e controle da frequência cardíaca. A paciente apresentou melhora clínica e se manteve em ritmo de fibrilação atrial. Foi mantida sob controle rigoroso da anticoagulação e programado ecocardiograma transesofágico (ETE). Vinte e quatro horas após o início da infusão de heparina, a paciente apresentou quadro de dor abdominal. Ao exame apresentava dor à palpação em fossa ilíaca esquerda e região hipogástrica, sem sinais de irritação peritoneal e peristalse diminuída. Tomografia computadoriza de abdome evidenciou hematoma em porção inferior do músculo reto abdominal (Figura 1) e coleção intra-abdominal (hematoma) anterior à bexiga. Naquele momento, a paciente apresentava-se antiocoagulada com tempo de tromboplastina parcial ativada dentro dos parâmetros preconizados pela literatura, tendo sido suspensa a infusão de heparina. Ao exame cardiovascular apresentava-se estável hemodinamicamente, com ritmo cardíaco irregular e sopro sistólico pancardíaco (4+/6+). Realizado ETE que evidenciou insuficiência mitral grave com sinais de ruptura aguda do folheto posterior e presença de trombo na auriculeta esquerda. Após avaliação conjunta da equipe de cardiologia e cirurgia geral, optou-se por tratamento conservador e acompanhamento da série vermelha. Houve necessidade de hemotransfusão de dois concentrados de hemácias e de duas unidades de plasma fresco, além de medidas de suporte. Realizadas tomografias seriadas de controle que evidenciaram melhora gradativa, com redução do hematoma da parede Figura 1 Tomografia computadorizada de abdome evidenciando coleção no músculo reto abdominal esquerdo. Discussão A FA é uma arritmia diretamente relacionada ao envelhecimento da população e ao aparecimento de cardiopatias que, por sua vez, se tornam mais frequentes em populações mais idosas. Assim, a FA tende a ser cada dia mais incidente e prevalente1. Quando a FA permanece por mais de 48 horas, favorece a formação de trombos intra-atriais, podendo causar fenômenos tromboembólicos, que constituem as complicações mais frequentes e graves4. Pacientes de alto risco para fenômenos tromboembólicos também são os que têm maiores chances de apresentar eventos hemorrágicos como efeito adverso da terapia antitrombótica 1 , especialmente AVE hemorrágico, que é a complicação mais temida e confere alto risco de morte5. A estratificação de risco para tromboembolismo e AVE em pacientes com FA é baseada no escore CHA2DS2-Vasc, que pontua: insuficiência cardíaca (1); hipertensão arterial sistêmica (1); idade ≥75 anos (2); diabetes (1); história prévia de AVE (2); doença vascular (infarto do miocárdio prévio, placa aórtica, doença arterial periférica) (1); idade entre 65-74 (1); sexo feminino (1). É considerado alto risco se dois ou mais pontos; risco intermediário se um ponto; e baixo risco se sem fatores de risco6. 27 Rev Bras Cardiol. 2013;26(4):xx-xx julho/agosto A hemorragia na bainha do músculo reto abdominal é uma afecção autolimitada, grandes hematomas podem alcançar índices de mortalidade global de até 4 % e para os indivíduos com uso de terapia anticoagulante, pode chegar até 25 %7. A manifestação clínica mais comum desses hematomas é a dor e/ou massa abdominal, eventualmente com febre e sinais de irritação peritoneal e, menos frequentemente, com choque hipovolêmico 8. Na opinião de alguns autores7,8, o tratamento conservador de hematoma reto abdominal deve ser a primeira escolha, reservando a cirurgia para aqueles casos em que exista alteração hemodinâmica importante ou nos casos de infecção sobreposta. A indicação adequada da anticoagulação é importante tanto na prevenção dos fenômenos tromboembólicos quanto para evitar que pacientes de baixo risco sejam anticoagulados e expostos ao risco de eventos hemorrágicos adversos. O hematoma do músculo reto abdominal é uma condição rara, que faz diagnóstico diferencial com abdome agudo cirúrgico. No caso do hematoma do músculo reto abdominal observa-se melhor prognóstico com o tratamento conservador com suspensão da anticoagulação. Potencial Conflito de Interesses Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes. Fontes de Financiamento O presente estudo não teve fontes de financiamento externas. Vinculação Acadêmica O presente estudo não está vinculado a qualquer programa de pós-graduação. Referências 1. Zimerman LI, Fenelon G, Martinelli Filho M, Grupi C, Atié J, Lorga Filho A, et al; Sociedade Brasileira de Cardiologia. Diretrizes brasileiras de fibrilação atrial. Arq Bras Cardiol. 2009;92(6 supl. 1):1-39. 28 Defaveri et al. Hematoma como Complicação de Anticoagulação Relato de Caso 2. Camm AJ, Lip GY, De Caterina R, Savelieva I, Atar D, Hohnloser SH, et al. 2012 focused update of the ESC Guidelines for the management of atrial fibrillation: an update of the 2010 ESC Guidelines for the management of atrial fibrillation. Developed with the special contribution of the European Heart Rhythm Association. Eur Heart J. 2012;33(21):2719-47. 3. Valentim LF, Rodrigues GL, Coeli RM. Hematoma espontâneo do músculo reto abdominal. Rev Col Bras Cir. 2005;32(3):165-6. 4. Atrial Fibrillation Investigators. Risk factors for stroke and efficacy of antithrombotic therapy in atrial fibrillation. Analysis of pooled data from five randomized controlled trials. Arch Intern Med. 1994;154(13):1449-57. Erratum in: Arch Intern Med. 1994;154(19):2254. 5. Fuster V, Rydén LE, Cannom DS, Crijns HJ, Curtis AB, Ellenbogen KA, et al; Task Force on Practice Guidelines, American College of Cardiology/American Heart Association; Committee for Practice Guidelines, European Society of Cardiology; European Heart Rhythm Association; Heart Rhythm Society. ACC/ AHA/ESC 2006 Guidelines for the management of patients with atrial fibrillation - executive summary: a report of the American College of Cardiology/ American Heart Association Task Force on Practice Guidelines and the European Society of Cardiology Committee for Practice Guidelines (Writing Committee to revise the 2001 Guidelines for management of patients with atrial fibrillation). Eur Heart J. 2006;27(16):1979-2030. Erratum in: Eur Heart J. 2007;28(16):2046. 6. Lip GY, Nieuwlaat R, Pisters R, Lane DA, Crijns HJ. Refining clinical risk stratification for predicting stroke and thromboembolism in atrial fibrillation using a novel risk factor-based approach: the Euro Heart Survey on Atrial Fibrillation. Chest. 2010;137(2):263-72. 7. Martín Parra JI, Herrera Noreña L, Fernández Escalante C, Gómez Fleitas M. Hematoma de los músculos rectos abdominales: aproximación clínica y terapéutica. Cir Esp. 2001;69(4):426. 8. Pelayo Salas A, Garcéz Guallart MC, Casals Garrigó R, Pérez Ruiz L. Hematoma espontáneo bilateral de la vaina de los rectos. Cir Esp. 2000;67(3):310-1.