Deus, uma reentrada por linhas tortas - Ciências Sociais da PUC-RIO

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BOLETIM CEDES – OUTUBRO/DEZEMBRO 2011 – ISSN 1982-1522
Deus, uma reentrada por linhas tortas *
José Eisenberg **
São duras as palavras com que Terry Eagleton encerra a sua resenha de Deus,
um delírio (Companhia das Letras), de Richard Dawkins, para a London Review of
Books: “Dawkins, no entanto, poderia ter nos dito tudo isso sem ser tão teologicamente
ignorante, e tão assustadoramente insultante aos seus colegas cientistas que discordam
dele. Ademais, Dawkins poderia ter evitado ser ele mesmo o segundo indivíduo mais
citado em seu próprio livro – presumindo, é claro, que Deus conte como um indivíduo”.
Ao lado de Deus não é grande: como a religião envenena tudo (Ediouro),
de Christopher Hitchens, o livro de Richard Dawkins tornou-se um ícone do neoateísmo
mais radical do início deste século, e quando, dois anos depois, o mesmo Terry
Eagleton proferiu uma série de conferências na Universidade de Yale, manteve-se fiel
ao tom vigoroso e ácido de suas palavras, “transformando” o cientista e o polemista em
única criatura: Ditchkins.
A publicação das conferências de Yale sob o título Razão, fé e revolução (2009)
– do qual um trecho está traduzido para o português no último volume da revista
“Serrote” – não mudou o tom do debate, e a prosa sarcástica do crítico literário
travestido de teólogo marxista acaba ofuscando aspectos importantes de uma renovada
discussão que se trava entre teologia e filosofia acerca da autoridade e legitimidade da
fé e da razão. Ofusca, ademais, o curioso fato de que é dos quintais da esquerda do
século XX que brotam as respostas mais provocantes ao “vil materialismo”
de Ditchkins e aos “fundamentalismos” religiosos que os sustentam, na visão
de Eagleton.
Enquanto Eagleton digladiava contra Ditchkins, em um outro debate, organizado
em Munique em 2007, quatro teólogos jesuítas convidaram o filósofo Jürgen Habermas
para escrever um ensaio e discutir com eles a relação entre fé e razão. O livro Ein
*
Artigo originalmente publicado no jornal O Globo, 26/06/2010.
Professor Adjunto de Filosofia do Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e Membro da Coordenação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES).
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1
Bewußtein von dem, was fehlt (2008) foi traduzido este ano para o inglês sob o título
“An awareness of what is missing”. A tradução para o português é difícil.
O
conceito Bewußtein tem
história
na
filosofia
alemã,
de Wolff e Schlegel a Husserl e Gadamer, sempre associado a uma dimensão da
consciência que está reflexivamente articulada a uma ciência do mundo vivido (no
sentido de tomar “ciência” de algo). Seria uma (cons)ciência do que está faltando o que
Habermas e estes filósofos antes dele buscavam exprimir? Em contextos e debates
distintos, Terry Eagleton e Jürgen Habermas acabaram ambos fazendo, cada um a sua
maneira, uma surpreendente defesa da importância da fé e da religião para a edificação
de um mundo regido pela razão. Escreveram, digamos, sobre Deus, através das linhas
tortas da razão.
As palavras sarcásticas que Eagleton dirige ao livro de Dawkins expressam uma
revolta contra o que lhe parece um secularismo narcisista e alheio ao papel da religião e
da fé no mundo moderno, ordenado pela razão mas alimentado por ódios religiosos
oriundos de eventos como o 11 de setembro de 2001. A interpretar o mundo angloamericano a partir da intervenção de Eagleton, o debate parece se encontrar polarizado
entre modulações de um fundamentalismo cristão que acreditam sofrer a perseguição de
uma ciência antihumanista, e uma filosofia racionalista que se vitimiza diante do
crescente radicalismo destes cristãos que acreditam estar ameaçados por outros
fundamentalismos religiosos concorrentes e mais perigosos.
Neste contexto, a retórica com que Terry Eagleton ataca ambos os lados
contrasta com o aspecto moderado, quase ponderado que, na substância, seu argumento
sugere. Afinal, o critico literário inglês quer defender a religião de um racionalismo
pueril que busque colonizar as formas institucionalizadas de organização da fé, mas
quer também defender a filosofia de um fideísmo paternalista, diria até mesmo
imperialista, que tem a pretensão de vigilantemente alertar o mundo contra o perigo que
outras religiões representam para o ocidente secularizado.
É neste sentido que Eagleton transforma o 11 de Setembro no marco de
nascimento do neoateísmo representado por Ditchkins. Para combater o inimigo
generalizado “Islamismo”, Ditchkins volta a sua artilharia contra toda forma de crença
religiosa. E Eagleton vê razões para defender a religião, em particular os religiosos,
contra este ataque; sem que isto signifique, entretanto, um gesto de conversão para a fé.
Habermas, como Eagleton, oferece motivos histórico-sociológicos para desejar a
permanência de visões de mundo religiosas no ocidente secularizado, conferindo,
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inclusive um sentido epocal ao 11 de Setembro muito parecido com o de Eagleton.
Diferentemente de seu colega inglês, entretanto, Habermas não se limita aos embates
entre religião e filosofia pelo monopólio da interpretação do mundo. Seu embate não se
dirige aos neoateístas, a quem, aliás, Habermas dá pouca importância; seu debate é com
teólogos jesuítas, intelectuais da religião ocupados em compreender seu momento mais
sublime (a fé), sempre sob a égide dos preceitos da razão.
Para além de razões histórico-sociológicas, Habermas busca oferecer razões
filosóficas para crer na necessidade da fé, até mesmo em um mundo sob o império da
razão. O racionalismo habermasiano, em sua persecução de uma reconciliação entre fé e
razão acaba rendendo-se a um argumento que denuncia sua tímida desconfiança da
razão e de sua capacidade de fazer assegurar o império da filosofia: há algo faltando em
um ocidente completamente secularizado; e a razão, para manter seu império, precisa ter
(cons)ciência (Bewußtein) do que falta a ela.
Com o conceito de Bewußtein, Habermas busca manter-se coerente à superação
da filosofia da consciência que seu projeto pós-metafísico propõe, e assim, busca
expressar a ideia de uma (cons)ciência projetada para o mundo. Em sua Tanner
Lecture que
proferiu
em
1986
nos
Estados
Unidos
sobre
direito
e
moralidade, Habermas elaborou a ideia de um momento de “indisponibilidade”
(unverfügbar) que a razão teria perdido com a secularização do jusnaturalismo no
período pré-moderno; hoje também nos falta, argumenta Habermas em seu debate com
os jesuítas, algo que não está neste mundo, isto é, que nos foi indisponível pelo seu
caráter divino, mas que hoje permanece desta forma por designar uma falta que certas
coisas, que estão além da razão, fazem ao mundo.
Se para uns este é o mistério, para outros é o motivo de preocupação. Para os
interlocutores jesuítas de Habermas, falta fé aos homens, sem prejuízo ao império da
razão na adjudicação de tudo que cai sobre seu juízo. Falta compreender, ademais, que
nem tudo está sob o jugo da razão, a começar (e terminar) pela fé. Para Habermas,
porém, a fé que falta, falta ao mundo, não aos fiéis, e quando Habermas faz referência
àquilo que está indisponível e a uma (cons)ciência desta falta, resta saber, como com
provocou Stanley Fish na sua resenha do livro para o “New York Times”, se a razão
pode conhecer o que falta a ela.
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