DEVERES CONFLITANTES E A NEGAÇÃO RACIONALISTA 1 PINHEIRO, Félix2; 1 Trabalho de Pesquisa _FAPERGS Curso de Licenciatura em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil E-mail: [email protected] 2 RESUMO As discussões sobre a possibilidade de deveres morais poderem conflitar em determinadas situações vem se tornando cada vez mais importante na filosofia moral. Dessa forma, o presente trabalho abarca a negação racionalista da tese dos dilemas, recorrendo a princípios da ética kantiana e do utilitarismo. Partindo da defesa dos dilemas morais, tentase mapear a discussão a partir de filósofos contemporâneos a fim de obter um pensamento crítico em relação ao assunto evidênciando a real importância de se considerar esta possibilidade para a deliberação moral. Palavras-chave: Filosofia; Ética; Conflitos Morais. 1. INTRODUÇÃO Muitas vezes no cotidiano somos postos frente a certas situações onde não sabemos o que devemos fazer, esses eventos nos fazem pensar sobre um conjunto de julgamentos e de ações que levadas à prática mudariam o nosso futuro. Um modelo dessas situações são os dilemas morais. Um dilema moral constitui uma ocasião onde um agente se encontra em uma determinada situação em que forçosamente deve escolher entre duas ações possíveis que acredita serem corretas, mas que não podem ser efetuadas ao mesmo tempo. Quando analisadas de modo teórico essas situações constituiriam uma espécie de conflito entre deveres morais, pois o agente se encontra diante de circunstâncias nas quais tem o dever moral de fazer A e o dever moral de fazer B ao mesmo tempo, não podendo fazer ambos. A existência de tais conflitos poderia evidenciar falhas nos sistemas morais teorizados por diversos filósofos. Diante disso, o tema vem sendo abordado de diversas maneiras por filósofos contemporâneos, como por exemplo, Brink (1994), Willians (1965) e Gowans (1994), na tentativa de afirmar ou negar que deveres possam conflitar em especial 1 na ética kantiana. Sobretudo, esta discussão que envolve não só o campo da ética, mas também se caracteriza como um problema metaético, tem sido tratado como ponto chave para definir a consistência de uma teoria moral, abarcando principalmente a concepção de dever moral, sendo esse um conceito fundamental para qualquer visão da moralidade, visto que ele determina em essência as razões pelas quais devemos agir moralmente. A discussão a cerca dos dilemas morais inicia com uma separação entre os tipos de conflitos que podemos vivenciar, distinguindo-os principalmente em solúveis ou insolúveis. Os dilemas solúveis constituem as situações onde um agente se encontra num conflito entre deveres de menor e maior importância, sendo possível abandonar o de menor importância sem maiores problemas. Já os dilemas insolúveis são vivenciados quando necessitamos escolher entre ações de igual importância, sendo chamados de dilemas genuínos. Analisando a literatura da área encontramos principalmente duas teses. A primeira é conhecida como tese das opções, constituindo a defesa racionalista de que diante de dois deveres que não podem ser efetuados ao mesmo não temos necessidade de fazer ambas as opções, mas apenas escolher entre uma delas. A segunda defesa é a tese do “erro moral inevitável”, onde se afirma que não fazer um dever causa algum tipo de arrependimento onde o agente se sente mal por ter escolhido uma das opções, independente da opção que tenha escolhido, incorrendo assim em um erro moral que não pode evitar. Neste trabalho será investigada a solução racionalista do problema dos deveres morais a partir da afirmação de Willians (1964) de que existem dilemas morais e nesses casos incorreríamos em um erro moral inevitável, iniciando com uma caracterização do problema levantado por Willians (1964) em comparação com a argumentação racionalista. 2. DILEMAS MORAIS E O ERRO MORAL INEVITÁVEL Willians (1964) adentra a questão dos dilemas morais diferenciando-os principalmente em duas situações. Segundo o autor, estamos em um dilema quando não sabemos se fizer algo é certo ou errado, apresentando apenas um dever moral que não sabemos qual é, por exemplo, não sei se devo ou não dar esmolas. Outro tipo de dilema moral constitui dois deveres morais que não podem ser levados a prática ao mesmo tempo. Neste tipo de dilema, temos duas obrigações que necessitam serem feitas, mas que se fizermos uma não estaremos cumprindo com a outra. Na literatura, nas artes e nos textos religiosos encontramos diversos exemplos de situações como essa. Esse segundo tipo de dilema, poderia evidenciar a existência de um erro moral inevitável nessas situações, na medida em que ao termos a obrigação de fazer A e B ao 2 mesmo tempo, e não efetuamos uma delas estamos incorrendo em um erro moral, como não podemos fazer as duas de forma alguma, este erro seria inevitável. Dessa forma, o agente não teria como solucionar os dilemas. É importante considerar ainda que se isto for verdade, o erro moral inevitável se estende também para os conflitos solúveis, visto que abandonar um dever mais fraco é, ainda assim, abandonar um dever, uma obrigação que necessitava ser cumprida. Essa concepção dos dilemas ficou conhecida como o “principio de aglomeração”, base da argumentação a favor dos dilemas morais. Ao analisarmos mais a fundo as experiências onde ocorrem dilemas morais, Willians (1964) afirma que tais experiências são abarcadas tanto por um campo racional quanto por um campo sentimental. Neste sentido, o autor analisa os sentimentos envolvidos nos agentes no decorrer de um dilema moral e argumenta que após a tomada da ação os agentes sofrem de arrependimento. Neste argumento, que analisarei mais a frente, o filósofo apresenta esses sentimentos que sobram após a situação conflitante, chamados de sentimentos residuais, são resíduos que evidenciam o erro moral inevitável, pois independentemente de qual ação o agente pratica, por serem dois deveres morais, a não efetuação de um deles levará ao arrependimento. Esta tese se torna preocupante para os defensores do racionalismo, pois admitir a existência de tal problema incorreria em aceitar a inconsistência das teorias morais. Sendo assim, a objeção dessa tese deve estar presente nos dois campos, tanto no conceitual quanto no sentimental. 3. METODOLOGIA Tomando como ponto de partida exemplos de dilemas morais vivenciados no cotidiano, esta pesquisa caracterizou-se por ser um estudo bibliográfico de cunho filosófico, com vistas à problematização conceitual de questões a cerca da afirmação e da negação dos conflitos de deveres e suas diversas abordagens, visando adentrar a questão do resquício moral e do erro moral inevitável. Para isso, fez-se necessário inicialmente um estudo a cerca da teoria moral kantiana buscando compreende-la e ao mesmo tempo identificar possibilidades de conflitos morais, a partir da analise da obra “Metafísica dos Costumes” onde Kant (2003) descreve, em algumas passagens, sobre essa possibilidade, apresentando central importância na discussão por apresentar um dos princípios que servem de base para negar os dilemas morais. Após isso se efetuou a leitura de textos contemporâneos que defendem uma posição contrária à existência dos dilemas, analisando 3 as obras de Brink (1994) e Hare (1981) no intuito de compreender essa abordagem do problema. Efetuou-se ainda uma investigação a cerca do argumento fenomenológico a favor dos dilemas morais iniciada por Willians (1964) no artigo ”Ethical Consistency” a fim de compreender o principio da argumentação a cerca do resquício moral, constituindo a principal defesa dos dilemas que será alvo deste artigo, para então investigar a abordagem realizada por Foot (1994) no artigo “Moral Dilemmas Revisited“, identificando as objeções em relação ao argumento de Willians não só no campo racional, mas adentrando a discussão envolvendo os sentimentos dos agentes. Dessa forma, fez-se possível adentrar a questão com referenciais teóricos suficientes para compreender de forma crítica a abordagem racionalista a cerca dos dilemas morais. 4. RESULTADOS E DISCUSSÕES Além das nossas próprias vivências encontramos exemplos de dilemas morais na literatura, na religião, no cinema, enfim, em diversos lugares. Essas situações sempre vêm acompanhadas de um imenso envolvimento afetivo com quem as vivencia, fazendo com que negá-las envolveria complicações não só no nível do pensamento moral, mas também na tentativa de explicar os sentimentos que acompanham essas situações. De forma geral, conflitos morais constituem situações de difícil resolução, sendo alguns chamados até mesmo de dilemas insolúveis. Para alguns autores, apenas esses últimos são conflitos morais verdadeiros, chamando-os de genuínos, enquanto que os outros seriam apenas conflitos aparentes. Essa distinção se tornou necessária a partir da diferença relevância entre as obrigações conflitantes, classificadas em fracas ou fortes. Sendo apenas no conflito de obrigações fortes é que existiria o conflito moral. A literatura que trabalha esse problema apresenta uma visão inicial que afirma a existência de um dilema moral como conclusão correta de uma deliberação racional a cerca do que devemos fazer. Isso significa que podemos concluir a partir dos princípios morais que devemos fazer A e B ao mesmo tempo, sem poder fazê-los ao mesmo tempo, levando obviamente ao não cumprimento de uma delas, incorrendo em um erro moral inevitável. Essa visão é conhecida como tese dos dilemas. Entretanto essa concepção foi amplamente criticada pela tradição racionalista da moralidade, onde se afirma que defender essa conclusão é inconsistente. Fazendo uso das obras Kantianas, sendo tomada como principal exemplo de afirmação e negação da existência dos dilemas morais, a tradição racionalista apresenta argumentos que negam a possibilidade de uma conclusão correta desse tipo. Se concluirmos dessa forma, estaremos 4 sendo inconsistentes. Utilizando-se do principio que ficou conhecido como “principio Kant” e do “principio de aglomeração” com algumas modificações, construiu-se uma tese, que nega a tese dos dilemas, a tese das opções. O “principio de Kant” é apresentado pelos Kantianos como sendo a afirmação de que o dever moral implica o poder agir moralmente, sendo assim só temos o dever de agir moralmente quando podemos agir moralmente. É a partir deste principio que se evidencia a inconsistência da tese dos dilemas, pois se concluo que devo fazer A e B, mas A impede que eu faça B e vice versa, não temos dois deveres, pois não podemos fazer as duas ações ao mesmo tempo. Dessa forma, o principio “deve implica pode”, ou “principio de Kant”, se torna inconsistente com a tese dos dilemas. Podemos observar o tal principio na seguinte passagem de Kant na Metafísica dos Costumes (2003, p. 224): Impulsos da natureza, consequentemente, envolvem obstáculos na alma do ser humano ao seu cumprimento do dever e forças (por vezes poderosas)que a ele se opõe, ao que ele precisa avaliar que é capaz de resistir e subjugar pela razão, não em alguma ocasião no futuro, mas imediatamente(no momento em que pensa no dever): ele tem que considerar que pode fazer o que a lei lhe diz incondicionalmente que ele deve fazer.” Tal evidência legada de Kant (2003) possibilita a refutação da tese dos dilemas, na medida em que não se adapta ao “principio de aglomeração”, sendo assim precisa-se mostrar ainda como esse princípio se relaciona com o “princípio de aglomeração”. O “principio de aglomeração” conclui que se temos dever de fazer A e dever de fazer B, temos o dever de fazer A e B. Brink (1994) contribuiu para a tese das opções modificando esse principio, adequando-o ao “principio de Kant”, fazendo com que se conclua a partir da obrigação de fazer A e da obrigação de fazer B, termos a obrigação de fazer A ou B. Dessa forma, o erro moral passa a ser não fazer uma dessas opções, e não fazer apenas uma delas. A tese das opções se torna uma alternativa válida de deliberação racional da moralidade, pois não apresenta uma conclusão inconsistente. Entretanto, como foi afirmado anteriormente, negar os dilemas morais se mostra complicado não só por empecilhos no campo da deliberação, mas também pela presença de diversos sentimentos que influenciam a posição dos agentes. 5 Alguns sentimentos costumeiros dessas situações são a porta de entrada para outra abordagem a favor do erro moral inevitável, são os chamados sentimentos residuais. Após a vivência de um dilema moral nota-se que o agente pode sofrer por um forte arrependimento, como se tivesse cometido um erro ao não fazer uma determinada ação, este arrependimento ou remorso é algo que sobra após a resolução do problema. Willians (1965) promove um pensamento sobre o que esses resíduos são e o que eles evidenciam através do que ficou conhecido como o argumento fenomenológico. O argumento fenomenológico defende que os resíduos oferecem um bom material de análise podendo indicar que um erro moral inevitável aconteceu. Apesar de Willians (1965) ser o precursor desse argumento, ele não estabelece de forma satisfatória a relação entre esses sentimentos e o erro inevitável, entretanto, seu pensamento reabre a discussão que parecia estar solucionada através da tese das opções. Willians (1965) faz uma comparação entre os conflitos morais com conflitos de crenças e conflitos de desejos. Dessa forma ele identifica os conflitos morais como sendo comparáveis aos conflitos de desejos, mas não de crenças, pois apresentariam a mesma estrutura. Em um conflito de desejos, ao se abandonar algo que se desejaria fazer, ainda resta o desejo de fazer esse algo. Da mesma forma em um conflito moral, resta algo, um sentimento, da ação que não foi levada a prática. O que não ocorre em um conflito de crenças. Partindo do pressuposto de que “um conflito entre dois julgamentos morais que um homem está disposto a tornar relevantes para decidir o que fazer” (WILLIAMS, 1965, p. 108), o autor conclui que após a decisão tomada em umconflito moral, o dever que não for cumprido pode “permanecer” da mesma formaque o desejo não satisfeito no conflito de desejos permanece, de forma com que negar estes sentimentos é deixar de lado evidências morais envolvidas nos agentes. Filósofos como Hare (1981) solucionaram os conflitos no campo deliberativo afirmando que em caso de conflito deve-se apenas abandonar um dever, entretanto isso para Willians (1981) não basta, pois, desconsidera os sentimentos que ajudaram o agente a entrar em conflito, não tratando de maneira adequada os sentimentos residuais. Dessa forma Willians (1965) defende a existência de resquícios nos dilemas morais, sendo estes evidências de que o dilema moral não foi solucionado, pois as ações que não foram efetuadas permaneceram na forma deste resquício, podendo se concluir então que um erro foi cometido. É neste ponto que a filósofa Foot (2002) adentra a questão de maneira a evidenciar um erro no argumento de Willians. Não há dúvidas de que esses sentimentos 6 demonstram algo importante, mas dizer que esses sentimentos evidenciam um erro é um salto muito grande em relação ao que eles realmente evidenciam. Foot (2002) explica que apenas sentir que algo ruim aconteceu não comprova que algo realmente ruim tenha acontecido, pois é impossível passar da simples existência de um sentimento para a verdade da proposição formulada a partir dele. Muitas vezes nossos sentimentos não correspondem a realidade, é necessário então investigar até que ponto esses sentimentos são o parametro para designar se algum ruim realmente aconteceu. 5. CONCLUSÃO O estudo mostrou que será necessário para os defensores dos dilemas refutarem os argumentos até então válidos da abordagem racionalista. Ao tomar como certo que os setimentos de culpa e de arrependimento evidenciam que um erro aconteceu, Willians (1981) deixa a desejar na sua abordagem, enquanto que filosófos como Hare (1981), Brink (1994) e Foot (2002) demonstram e refutam os argumentos da tese dos dilemas de forma clara, deixando como única conclusão possível o argumento de que até então os sentimentos não evidenciam de forma suficiente que um erro tenha ocorrido. REFERÊNCIAS ABAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BRINK, D, O. Moral Dilemmas and its Structure. The Philosophical Review, n. 2, 1994, p. 215-247. FOOT, P. Moral Dilemmas Revisited. In:_______. Moral Dilemmas, Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 175-187. HARE, R, M. Moral Conflicts. In: _________. Moral Thinking: Its Levels, Method and Point. Oxford: Oxford University Press, p. 25-35, 1981. KANT, I. A metafísica dos costumes. Trad. de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003. WILLIAMS, B. Ethical Consistency. Proceedings of the Aristotelian Society, n. 39, 1965, p. 103-124. 7