Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas: aproximando agendas e agentes 23 a 25 de abril de 2013, UNESP, Araraquara (SP) Controle social sobre a política socioeducativa: A atuação institucional do movimento DCA em São Paulo Autora: Profa. Dra. Maria do Carmo Alves de Albuquerque Uniban – Universidade Bandeirante Anhanguera Mestrado Profissional “Adolescente em Conflito com a Lei” Controle social sobre a política socioeducativa: A atuação institucional do movimento DCA em São Paulo Maria do Carmo A. Albuquerque Introdução Os movimentos sociais foram saudados por sua espontaneidade contrastante com a organização formal de outros atores (Kowarick, 1987), por sua lógica do mundo da vida, contrastante com a lógica sistêmica, postuladas por Habermas (Costa, 1994), especialmente no período da reconstrução das democracias na América Latina. Como aponta Paoli (1995:27) os novos movimentos “não se referenciavam diretamente às estruturas institucionais de poder e representação política – partidos, governo, Estado – nem aos atores ‘clássicos’”, mas sua originalidade, sua novidade, estava na “aspiração de um poder civil e cidadão”, estava em “escapar de uma institucionalidade estatal” que era “tutelar, autoritária e burocrática” (idem:32). A autora destaca que, neste período do final da ditadura militar, quando os “caminhos da democratização” eram procurados estritamente na restauração do Estado de Direito e do sistema democrático formal”, os movimentos “pareciam estar falando de outra coisa” (idem). Mas a este “deslumbramento” com a “espontaneidade” dos movimentos, seguiu-se a compreensão de que os novos movimentos não se pautavam necessariamente por estes paradigmas. Muitos dos “intérpretes” de então decretaram assim o fim do tema ou de sua importância (idem:28). Temos assim, na literatura sobre os movimentos sociais, um foco superlativado na sua dimensão disruptiva e de protesto, deixando sem estudo e mesmo desconfiando das suas referências e relações com as “estruturas institucionais de poder e representação política” como os partidos, os governos e o Estado. 2 Estas relações, no entanto, sempre foram presentes na ação dos movimentos. Especialmente no Brasil1, desde o momento da restauração do sistema democrático formal, os movimentos sociais vêm se engajando na conquista de direitos sociais e das políticas públicas que podem garantir estes direitos. A conquista e a criação de espaços institucionalizados de participação e controle da sociedade civil sobre as políticas sociais vêm intensificar sobremaneira a ação institucional dos movimentos sociais brasileiros. Uma nova literatura sobre movimentos sociais no Brasil começa a enfocar a chamada “institucionalização” dos movimentos, que vem se intensificando desde a criação de espaços institucionais de controle social como os Conselhos e Conferências de políticas públicas. Esta literatura pode ser representada pelas obras de Sherrer-Warren e Lüchmann (2011), Tatagiba (2011), Almeida (2011), Carlos (2011) e Dowbor (2012 e 2013) que analisam a diversificação de atores e de modalidades de ação na sociedade civil quando os movimentos sociais se relacionam e integram as instituições participativas. Um dos problemas tematizados é a possível descaracterização dos movimentos pela sua institucionalização, a possibilidade de que se reduzam às rotinas institucionais e mesmo de que sejam cooptados pelas instituições estatais e partidárias com as quais passam a conviver mais intensamente. Este artigo quer somar-se aos esforços atuais por compreender de forma mais ampla a ação institucional de movimentos sociais na sua incidência na conquista de direitos e de políticas de direitos. Enfoca o papel do movimento social pelos direitos da criança e adolescente (aqui chamado movimento DCA) na construção de uma política de direitos do adolescente em conflito com a lei em São Paulo2. O movimento DCA no Brasil atua em espaços institucionais desde as lutas em prol da legislação garantista expressa no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). Desde a criação dos novos espaços participativos de controle social, como as Conferências e Conselhos, a atuação institucional ganhou destaque, aliada à participação de entidades 1 A tese de doutorado da autora indica uma maior envolvimento dos movimentos sociais e outros atores da sociedade civil brasileira na conquista e formulação de propostas de políticas sociais, em relação aos atores sociais de outros países do Cone Sul da América Latina. Ver Albuquerque, 2007. 2 O artigo fundamenta-se em pesquisa docente realizada pela autora no período 2011-2012, cuja pesquisa de campo foi constituída de acompanhamento sistemático do Fórum Municipal DCA de São Paulo, da Articulação de Serviços de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto e de entrevistas semiestruturadas com integrantes destes dois espaços. 3 integrantes do movimento na execução de novas políticas de direitos através de convênios com o poder público. Estas duas formas de atuação presentes no movimento vêm sendo alvo de polêmica, tanto entre os ativistas, que as apontam como formas menos vigorosas e autônomas de ação, como entre analistas, fundados em concepções sobre movimentos sociais focadas no protesto como a forma de ação que os caracterizam. Este artigo focaliza o controle social sobre a política socioeducativa, examinando uma parcela da atuação do movimento DCA, referente aos direitos do adolescente em conflito com a lei – na cidade de São Paulo. A atuação no controle social está instituída pela legislação (ECA e Sinase3) como competência das Conferências e do Conselho Municipal4 e está ainda mais “institucionalizada” pelo conveniamento de entidades integrantes do movimento para a execução dos programas municipais de medidas socioeducativas em meio aberto (MSE-MA). 1. Repertórios de ação e ciclos de mobilização no movimento DCA Para analisar com mais cuidado a chamada “institucionalização” do movimento, desagregando-a em dimensões que envolvem seus atores, as modalidades ou formas, momentos e lugares de ação, dialogamos com algumas concepções desenvolvidas pelos autores Sidney Tarrow, Charles Tilly e Mario Diani, que buscaram analisar movimentos sociais na sua relação com o que chamam a 'política de confronto' (contentious politics) (Tarrow, 2009). Quando aqui nos referimos ao movimento DCA, tomamos como base a definição de Diani (1992:1) de que “movimentos sociais são definidos como redes de interação informal entre uma pluralidade de indivíduos, grupos e/ou organizações, engajadas em conflitos políticos ou culturais, com base em identidades coletivas compartilhadas”. O movimento DCA se constitui numa pluralidade de grupos, organizações e indivíduos que se engajam em lutas políticas e culturais pela construção de um paradigma de direitos da Criança e Adolescente denominado “paradigma garantista”, ou “doutrina da 3 O Sinase - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo foi instituído pela Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012 e define que o controle social será exercido pelos Conselhos DCA. 4 CMDCA – Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente da cidade de São Paulo. 4 proteção integral”. É na construção destas concepções que constroem sua identidade. A heterogeneidade é muitas vezes argumento que coloca em questão se existe um movimento DCA ou apenas um conjunto fragmentado de atores e ações. No entanto ele é reconhecido por muitos dos atores sociais ligados à luta pelos direitos da criança, que se identificam como ativistas deste movimento. Estas vozes5 identificam o surgimento do movimento com as mobilizações em torno da Constituinte e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A construção de sua identidade ocorre em torno da afirmação dos direitos da criança e adolescente em oposição a antigas concepções de “menores” como seres tutelados e não portadores de direitos. Sua principal forma de organização são os fóruns, que agregam atores diversos. O Fórum Nacional de Defesa da Criança e do Adolescente (FNDCA) foi criado em março de 1988 e conta desde então com vários segmentos organizados de defesa da criança e do adolescente6. Entre os filiados há organizações formalizadas juridicamente e aquelas que não possuem este grau de institucionalização7. Esta forma de organização se repete nos Estados e Municípios. Em São Paulo temos um Fórum Estadual DCA, que atua com uma certa regularidade desde os anos 80. O mesmo ocorre na capital, onde existem também diversos fóruns regionais8. Os Fóruns são integrados por organizações da sociedade civil e, em muitos casos, por ativistas não vinculados formalmente a elas. Organizações estatais não integram os fóruns, embora a relação com elas seja intensa em todos os momentos da trajetória do movimento DCA, como veremos. Os fóruns são redes que articulam ações de diversos atores com uma 5 Citamos alguns exemplos de autores-atores do movimento: militantes que o estudaram e escreveram sobre ele: Carvalho e Pereira (1998) - O protagonismo do Movimento Social de luta pela criança; Heringer (1992) - Movimentos de Defesa da Criança e do Adolescente no Brasil; Pereira (1996) - Movimento de defesa dos direitos da criança e do adolescente: do alternativo ao alterativo e Pini (2006) - Fóruns DCA: fios que tecem o movimento da infância e da adolescência na construção de caminhos para a democracia participativa. 6 Segundo consta em sua página web, “atualmente representa aproximadamente mil entidades, entre organizações filiadas, Fóruns e Frentes Estaduais (com suas ONGs filiadas)”. A página registra 27 fóruns estaduais e 53 entidades filiadas. Disponível em www.forumdca.org.br> Acesso em 27/7/2011. 7 Neste trabalho vamos usar a palavra entidade com o sentido de uma organização social formalizada juridicamente. As organizações sociais serão entendidas como aquelas que não necessariamente possuem este grau de institucionalização, podendo apresentar apenas uma organização interna como, por exemplo, a definição de uma coordenação. 8 O Fórum estadual possui um blog: http://forumestadualdcasp.blogspot.com.br/ e o Fórum da capital possui uma página web, http://www.forummunicipaldcasp.org.br/. Não foi possível a identificação de todos os fóruns regionais na capital, uma vez que seu funcionamento é irregular. 5 identidade compartilhada e construída em confrontos culturais e políticos ao longo dos anos. Tarrow (2009:18) por sua vez, reserva o nome de movimento social para a “ação sustentada”, ou continuada, ou seja uma sequência de ações, que são apoiadas em “redes sociais”, que “desenvolvem a capacidade de manter” e sustentar disputas com opositores. Assinala a transição entre as ações isoladas e o surgimento do movimento como algo que ocorre com a medição de “líderes” que, com sua “experiência de luta (…) transformam confrontos em movimentos e sustentam os conflitos com opositores” (idem: 159). O autor situa os movimentos sociais no universo do “confronto” (2009: 18), o que ele denomina “contentious politics” e que pode ser traduzido como ações contenciosas, disputas, litígios, ou lutas sociais. Tarrow pensa os movimentos como atores que se confrontam com opositores situados no universo estatal. Com sua concepção de “ciclos” de protesto, o autor identifica momentos de “pico do ciclo”, em que “novas formas de ação coletiva são inventadas” (idem: 220) e momentos de “calmaria” (idem: 257) em que “elas se tornam formas convencionais de atividade”. Para analisar as estratégias, modalidades ou formas de ação do movimento utilizamos o conceito de repertório desenvolvido por Charles Tilly, que se refere ao “repertório disponível de ações coletivas para uma população” (1978:151) ou às “maneiras através das quais as pessoas agem juntas em busca de interesses compartilhados” (Tilly, 1995:41 ambas citadas por Tarrow, 2009:51). Tilly considera que os movimentos escolhem e aprendem formas de ação legitimadas por outros movimentos como por exemplo as marchas e as petições. Estas escolhas se dão dentre o repertório já conhecido e também pela experimentação e combinação de práticas diversas em novas formas de se organizar, mobilizar apoio e articular demandas (Tilly, 1992; Tarrow, 2009). O conceito está muitas vezes associado a “repertório de confronto”, embora os movimentos sociais no Brasil, como nos exemplos acima, não escolham apenas o confronto como modalidade, forma ou estratégia de ação. É neste sentido que Abers, Serafim e Tatagiba (2011:4) apresentam o conceito de “repertório de interação”, buscando incluir diversas formas, práticas e estratégias de interação com o Estado entre aquelas escolhidas pelos movimentos para integrar o seu repertório. 6 Aqui optamos por utilizar o conceito de repertório de ações, incluindo tanto as ações de confronto como as interações mais propositivas e colaborativas com o Estado. Dentro da noção de repertório, queremos ainda distinguir lugares e momentos da ação. A ação do movimento pode ocorrer em lugares societais, e também institucionais – aqueles lugares formalizados dentro da institucionalidade estatal. Podem ainda ocorrer momentos mais conflitivos e menos conflitivos, mais “pacíficos”, propositivos ou colaborativos. A partir destas concepções buscamos a seguir analisar a ação do movimento social DCA identificando atores sociais e estatais, formas, momentos e lugares de ação societais e institucionais. 2. O movimento DCA e a construção de direitos O movimento DCA se constitui no Brasil no período constituinte e nas lutas pelo Estatuto da Criança e Adolescente. Engajou-se pela adoção, na legislação brasileira, de uma nova doutrina de garantia de direitos e “proteção integral à criança e ao adolescente” em substituição à velha doutrina da “situação irregular” e suas práticas menoristas. A nova doutrina garantista é, no entanto, uma construção muito anterior e internacional. As lutas pela proteção a crianças e adolescentes são antigas, na medida em que são um segmento extremamente frágil a vicissitudes sociais como o abandono, a exploração, a escravidão, o abuso sexual. A caridade religiosa e a benemerência filantrópica são os primeiros a atendê-los. Após as grandes guerras mundiais estas questões, assim como a questão social em seu todo, emergem para o patamar da construção de instrumentos estatais de proteção social. São as próprias instituições de atendimento à infância e juventude9 quem capitaneia o debate com a Liga das Nações e em seguida a ONU. Desta forma nasce a primeira declaração dos direitos da infância, a Declaração de Genebra, em 1924 e, a seguir, as legislações da OIT sobre o trabalho infantil, e os ordenamentos da ONU, que culminam com a Convenção pelos Direitos da Criança (CDC), em 1989. Desde então se pode notar a ação de atores societais – as entidades de atenção e proteção à criança e sua atuação junto a instituições estatais como a ONU e a OIT, na 9 A Declaração foi elaborada e proposta por duas organizações sociais - Save the Children e União Internacional de Auxílio à Criança - para o Comitê de Proteção da Infância da Liga das Nações, criada em 1919, antecedendo a criação da ONU. 7 busca da construção e garantia de direitos. Destacam-se momentos e lugares de ação institucional e de ação societal, como as Assembleias da ONU, por um lado e por outro as grandes campanhas contra o trabalho infantil. Essa trajetória se desenvolve nos diversos países de forma muito desigual, como desigual foi o reconhecimento de outros direitos humanos e a criação de instrumentos de proteção social. O Brasil não se destaca pela precocidade10 na garantia de direitos, e as lutas contra a ditadura militar que se inicia em 1964 originam movimentos vigorosos por direitos sociais. O movimento DCA emerge no Brasil nos anos 70, no bojo do movimento pelos Direitos Humanos. Neste período se agudizam problemas sociais nas novas periferias das cidades brasileiras, emergindo o fenômeno dos “meninos de rua”, que dá origem, em 1985, ao Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua. Este movimento se apoia nos demais movimentos que se organizam desde a década de 70, especialmente as Comunidades Eclesiais de Base e as pastorais sociais das Igrejas progressistas, com sua metodologia fundada no diálogo entre sujeitos. No caso das crianças de rua, esta metodologia foi protagonizada pelos educadores de rua e pela Pastoral do Menor, que se somaram às lutas já antigas contra a “institucionalização” de crianças e jovens em orfanatos e reformatórios. Esta chamada 'doutrina da situação irregular', ou menorista, apelidava ‘menores’ àquelas crianças carentes ou delinquentes, indistintamente. A nova 'doutrina garantista', que se consolida na Convenção internacional de 1989, recusa o conceito de “menor em situação irregular”, e reconhece crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Neste caso o Brasil foi pioneiro pois em 1988 instituiu estes princípios na chamada Constituição Cidadã, construída no contexto de grande pressão de movimentos sociais que participaram também da elaboração das propostas das novas leis sociais. O Movimento DCA emerge neste grande ciclo de mobilizações, elabora e coleta milhares de assinaturas para a Emenda Popular que originou o artigo 227 da Constituição, afirmando os direitos da criança e do adolescente. Ainda durante este ciclo de mobilizações o movimento elabora e negocia a aprovação do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). 10 Uruguai, Argentina e Chile constroem sistemas de proteção social e legislação voltada à infância anteriores e mais amplos que no Brasil (Albuquerque, 2007). 8 O movimento se organiza em Fóruns, nacionais, estaduais, municipais e locais, em que estão presentes entidades formais e organizações informais de crianças e jovens, de educadores, pediatras, advogados, assistentes sociais, defensores públicos, juízes, entidades religiosas, entidades de atendimento, entidades de defesa dos direitos das Crianças e Adolescentes. Os Fóruns, ainda atuantes em todo o país, são compostos por entidades e pessoas, situando-se no espaço da sociedade civil11. Assim como nos seus primórdios, o movimento que conquista os direitos da Criança e Adolescente é constituído de uma diversidade de atores sociais, que agem na mobilização social e também na relação com atores institucionais no Estado. Suas ações são societais como as campanhas de mobilização e institucionais, eles atuam em espaços societais e institucionais, pois buscam a garantia de direitos. Fazendo uma analogia com a concepção de “ciclos” de protesto, de Tarrow, podemos identificar um grande ciclo de mobilizações na construção do paradigma garantista, que culmina com a aprovação do ECA. O “pico do ciclo”, em que “novas formas de ação coletiva são inventadas” (idem: 220) está na grande mobilização pró Constituinte e pró ECA. Inventaram-se novas formas de ação pedagógica, como a educação de rua e os seminários de estudo e “grupos de trabalho” da sociedade que elaboraram os anteprojetos de lei. Articularam-se grupos de trabalho incluindo atores societais (como o MNMMR e a Pastoral do Menor) e atores institucionais como o UNICEF, juízes, promotores, gestores públicos e parlamentares. Houve entre eles fortes momentos de confronto e momentos de colaboração. A partir da promulgação do ECA, seguem-se ainda muitos momentos de confronto, pois a constituição dos novos espaços participativos de controle social sobre a política e dos Fundos Estaduais e Municipais de Direitos da Criança e adolescência encontrou muitas resistências políticas. Seguem-se no entanto, ainda neste ciclo de mobilizações, uma crescente presença de ações institucionais. São cada vez mais numerosos os momentos de ação que ocorrem nos novos lugares institucionais: os Conselhos e as Conferências de Direitos nos três níveis da federação. Esta ação institucional pode-se parecer muitas vezes, com momentos de “calmaria” do ciclo, e muitas vezes se pode identificar nela o 11 Ver sites do FNDCA, FEDDCA, FMDCA 9 retorno de atores sociais a “formas convencionais de atividade” (Tarrow, 2009:257), como veremos a seguir. 3. Controle social na política DCA A participação do movimento DCA, com seus diversos e heterogêneos atores sociais na elaboração e na aprovação da nova política DCA expressa no ECA, significou a criação de um Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, descentralizado e participativo12. Este sistema é integrado por Conselhos de Direitos nos três níveis da federação, bem como por Conselhos Tutelares e Conferências de Direitos. Os Conselhos de Direitos e as conferências convocadas por eles são compostos paritariamente por representantes do Estado e da sociedade civil, estes escolhidos entre organizações de atendimento e de defesa dos direitos da Criança e Adolescente. Entre as primeiras, as tradicionais instituições de atendimento, religiosas ou filantrópicas. Entre as segundas, sindicatos e Cedecas – Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, que se criam em muitos lugares do país e se voltam à defesa jurídica e política dos direitos da criança e adolescente. Elas se diferenciam por seus objetivos iniciais. As primeiras são inicialmente assistenciais, mas em muitos casos se engajam nas lutas pelos direitos da infância, como é o caso da precursora Save the Children, que atua na conquista da primeira Declaração de Direitos, de 1924. Ao lado da diferença, estas organizações se assemelham pela adoção, cada vez maior, de um estatuto institucional, que as converte em entidades capazes de firmar convênios com o Estado para a execução de Programas integrantes das novas Políticas públicas de direitos. Essa institucionalização, melhor chamada de formalização, das organizações sociais, é decorrente, por um lado, da maior institucionalização da política de direitos, que exige sua articulação de sua ação com políticas de Estado, e sua fiscalização em função dos recursos públicos que recebem e da função pública que exercem. Por outro lado, nas entidades mais formalizadas, diminui a lógica do “mundo da vida” e acentua-se a lógica da sobrevivência institucional, uma perspectiva corporativa, que 12 Ver as Resoluções do Conselho Nacional (Conanda) que criam este sistema, especialmente as Resoluções 113 e 119 (Brasil, 2006 a e b). 10 absorve esforços voltados à sobrevivência da instituição. Acentua-se fortemente também a dependência econômica do Estado, principalmente do governo municipal. Este fato, aliado à diminuição do financiamento vindo da cooperação internacional, provoca maior dependência política dos governos. Como sugere (Tarrow, 2009:257), pode-se notar então a volta a antigas “formas convencionais de atividade” – a prevalência da atuação filantrópico assistencial em detrimento dos repertórios de luta pelos direitos da infância. O controle social, incidência da sociedade na elaboração, formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas públicas, provoca o aumento significativo da ação institucional do movimento. Os fóruns voltam-se a negociações de regras eleitorais, à criação do Fundo Municipal (FUMCAD), à criação dos Conselhos de Direitos e Tutelares, à conquista de condições de funcionamento destes espaços. Inicialmente estas negociações são extremamente conflitivas, mas diversos fatores conduzem a uma “burocratização” das ações, presas à lógica corporativa das entidades e ao retorno a “formas convencionais de atividade”. Em São Paulo este conflito inicial ocorre na transição entre o governo de Luiza Erundina (1989-1992), quando são eleitos os conselheiros para os primeiros 20 conselhos tutelares, e o governo de Paulo Maluf (1993-1996, PP), quando se torna extremamente difícil implementar estes Conselhos e criar o Conselho e o Fundo Municipal dos direitos da Criança e Adolescente. Conflitos importantes ocorrem ainda durante o governo de Marta Suplicy (2001-2005, PT) quando o CMDCA renuncia alegando ingerência política. Por outro lado, a lógica corporativa de diversos atores do movimento que assumem formatos institucionais e vínculos de conveniamento com os governos, tornando-se financeiramente dependentes destes, aliados a restrições importas pelos governos, provocam uma retração na ação crítica e de luta de muitos destes atores, que voltam a se limitar a modalidades assistenciais de ação. Estes limites à luta e ao controle social serão reexaminados adiante. 4. A política socioeducativa No paradigma da garantia de direitos e proteção integral à criança e ao adolescente, os direitos do adolescente em conflito com a lei são o aspecto que encontra maior resistência, tanto na opinião pública como entre os chamados operadores do direito, 11 profissionais das políticas menoristas e de segurança pública. Logo após a promulgação do ECA se iniciam as mobilizações pró restrição de direitos especialmente a redução da maioridade penal (Palheta, 2010). Desta forma, os conflitos em torno da política socioeducativa iniciam um novo “ciclo” de lutas, cujo “pico” são os fortes confrontos em torno das rebeliões na Febem de São Paulo, nos anos 1999 a 2006 (Palheta, 2006). Neste ciclo também se combina a ação societal com a ação institucional. Observa-se a presença de atores societais, desde as ONGs nacionais até a Anistia Internacional, os Fóruns Estadual, municipais, regionais, a AMAR (associação de mães) bem como a atuação na forma de repertórios societais de confronto, especialmente a atuação na mídia (Martins, 2011). O movimento DCA se mostra fortemente presente. Por outro lado há também forte ação institucional onde se combinam atores societais e estatais, como na CPI e CEIS13 da Febem e na intervenção da Corte de Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), em 2005 (Palheta, 2010). Atores sociais também utilizam novos repertórios de ação institucional com a utilização de instrumentos judiciais, como a Ação civil pública e outros, através da Promotoria da Infância e Juventude e do Ministério Público. A este “pico” de confrontos se segue a descentralização e o fechamento da Febem, e se inicia o processo de municipalização das medidas socioeducativas14. Este processo iniciase através do conveniamento da Febem São Paulo com municípios e entidades de atendimento ao adolescente no interior do Estado e na cidade de São Paulo. As entidades conveniadas na capital constituem no ano 2000 uma articulação que vem a discutir e participar da implementação de projetos piloto de medidas em meio aberto no governo de Marta Suplicy. As Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (MSE-MA) – Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) são executadas dentro do Sistema Único de Assistência Social, através da Política de Proteção Social Especial (Gomes, 2012), após aplicadas pelo Juiz da vara da Infância. Em 2012 funcionavam em São Paulo 55 Serviços de MSE-MA, atendendo uma média de 5900 adolescentes, todos eles através de 13 Houve uma CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito, nacional, e diversas CEIs, Comissões Estaduais de Inquérito. Ver Palheta, 2010. 14 Sobre a descentralização da Febem e criação dos “Polos de Liberdade Assistida” ver CASA, 2010 e sobre a municipalização no Estado e município de São Paulo ver Albuquerque, Botelho e Oliveira, 2012. 12 entidades sociais executoras. Algumas destas entidades estiveram presentes no movimento ao longo de sua trajetória.. 5. Controle social na política socioeducativa O controle social sobre a política socioeducativa é atribuição dos Conselhos, das Conferências e Fóruns DCA, conforme definem o ECA, as resoluções do Conanda e a Lei do Sinase (Brasil, 1990, 2006 a, b e c, e 2012). No entanto, após as crises da Febem e criação da Fundação CASA é pequeno o debate sobre a política socioeducativa e a presença das entidades executoras de MSE-MA nestes espaços. Nenhuma destas entidades integra o atual Conselho municipal. No entanto, algumas das entidades executoras estiveram presentes no movimento DCA ao longo de sua trajetória. É o caso de alguns Cedecas e entidades ligadas à Pastoral do Menor, que atuaram fortemente nas lutas durante a Constituinte e processo de aprovação do ECA. Estas entidades relatam dificuldades para a sua participação nos espaços de controle social: - é grande o esforço dedicado à execução das medidas, boa parte dele tarefas burocráticas como a elaboração de relatórios aos juízes que aplicaram as medidas e prestações de contas dos recursos públicos recebidos. - Durante os governos municipais do PSDB em São Paulo houve muitos relatos de medo frente a ameaças frente a participações das conveniadas em espaços do movimento e de controle social. Os relatórios foram censurados quando eram críticos ou propositivos. No entanto, apesar destes entraves e da pouca participação das entidades executoras nos espaços de controle social percebemos a vitalidade de um novo espaço participativo informal: a Articulação de entidades que executam medidas socioeducativas, nascida no ano 2000, permanece viva e atuante. Hoje se denomina Articulação dos Serviços de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto da Cidade de São Paulo, e reúne mensalmente cerca de 30 dos 55 Serviços. Ela debate problemas enfrentados no cotidiano dos Serviços, fortalece a defesa dos direitos dos adolescentes, debate a política socioeducativa, e se considera um espaço de controle social. 13 A Articulação é capitaneada por entidades que integraram o movimento DCA desde as lutas pelo ECA e pelo fechamento da Febem. As entidades apontam o medo de atuar no controle social, denunciam represálias e ameaças vindas do governo. Relatam censuras aos seus relatórios, quando críticos e propositivos, mas refletem “os nossos relatórios são um instrumento de controle social”, na medida em que apontam avaliações e propostas de mudança na política socioeducativa. Apontam a dependência dos recursos públicos como principal restrição à uma ação social mais ativa. A não dependência financeira e a participação em fóruns movimentistas surgem como fatores que favorecem o controle social. Esta participação permite ainda uma articulação entre repertórios de ação societal e institucional A Articulação surge como possibilidade de dedicar recursos humanos, o capital social constituído pela expertise técnica e política, e recursos financeiros (seu tempo de trabalho) para a reflexão, avaliação e incidência na política pública. A extrema absorção nas atividades burocráticas, o esforço dedicado a à construção de instrumentos necessários à implementação, aparece assim como um indicativo de que este momento inicial na implementação de novas políticas e programas seria o que Tarrow chamou de momento de calmaria deste ciclo. Parece ser um momento em que se sente, após a percepção das “solidariedades inebriantes e a retórica do pico do ciclo” o que o autor denuncia como o “ritmo glacial da mudança social” (Tarrow, 2009: 220). 6. Reflexões: o controle social e a ação institucional dos movimentos Duas linhas de reflexão emergem ao final deste estudo: pensar os dilemas e oportunidades presentes na participação de entidades conveniadas no controle social sobre a política pública, em espacial a política socioeducativa; e pensar a ação institucional como constitutiva dos movimentos sociais que lutam pela garantia de direitos. Em primeiro lugar podemos identificar dilemas importantes que, se não são novos, pois presentes em toda a trajetória de atuação dos movimentos, crescem no seu peso e importância. As entidades conveniadas apontam o medo de atuar de forma crítica no controle social, denunciando represálias e ameaças realizadas pelos representantes do governo municipal supervisores dos convênios. Além destes fatores, identificam a dependência dos recursos municipais como causa de uma atuação menos vigorosa no 14 controle social. Algumas delas buscam outras fontes de recursos e atuam em movimentos sociais como o Movimento pelos Direitos Humanos, o que lhes possibilita manter uma atuação decidida no controle social. Assim, a não dependência financeira e a participação em fóruns movimentistas aparecem como fatores que possibilitam o exercício do controle social. Esta participação permite ainda uma articulação entre repertórios de protesto e de ação societal com a ação institucional O estudo mostra que a política socioeducativa é hoje pouco presente na atuação do movimento DCA, sendo raramente citada nos debates do Fórum Municipal acompanhados. Sua atuação neste período focou-se em denúncias e protestos contra a atuação do governo municipal, especialmente na realização da Conferência Municipal, e na eleição de conselheiros tutelares e do novo Conselho Municipal. A mesma ausência ocorre nos espaços formais de controle social, o Conselho e a Conferência Municipal. No entanto, foi identificado um espaço de controle social não previsto pelo ordenamento institucional: uma Articulação de entidades executoras de medidas socioeducativas em meio aberto, conveniadas com a prefeitura municipal. Esta organização informal debate problemas da política socioeducativa e busca fortalecer a atuação das entidades participantes na defesa dos direitos dos adolescentes atendidos. Esta atuação é reconhecida por seus integrantes como um exercício de controle social. A partir do final de 2012 inicia-se uma aproximação entre a Articulação entre a Articulação e o Conselho Municipal DCA, para a elaboração conjunta do Plano Municipal Socioeducativo. O outro aspecto se refere à importância de analisar o movimento social evitando a idealização de que ele se moveria no “mundo da vida”. Assim como outros movimentos que lutam por direitos sociais, como o movimento sanitarista (Dowbor, 2013), a atuação institucional integra o repertório de ações do movimento DCA desde o início e mesmo em seus primórdios internacionais, visto que a conquista de direitos e de políticas públicas que os garantam é seu foco principal. Identificaram-se dois ciclos de luta, um deles focado na construção de um paradigma e política garantista, e outro focado na construção de políticas de direitos para o adolescente em conflito com a lei. Iluminar diferentes aspectos da ação institucional do movimento, como seus atores, seu repertório de ações, seus momentos e lugares de ação institucionais e societais, de confronto e de colaboração permite pensar os ciclos de luta como articulação entre estes 15 repertórios, momentos e lugares de ação. Permite ver a ação institucional como constitutiva de movimentos que visam conquistar e garantir direitos, uma vez que garantir direitos exige construir política de direitos. Demonstra-se assim a importância de fugir de análises que focam o controle social ou os movimentos em si mesmos, e de analisar o movimento e o controle social articulados com os resultados pretendidos: (neste caso) a política que querem construir. Neste caso também se destacam novos desafios, como os limites e oportunidades gerados pelo formato mais institucionalizado de diversos dos atores constitutivos do movimento e a relação mais intensa e tensa com os atores da chamada sociedade política como os partidos, grupos políticos e governos, nos diversos matizes do espectro político. Resta assim o desafio de desenvolver análises e avaliações dos resultados obtidos na garantia de direitos, construção da política de direitos. 16 Bibliografia ALBUQUERQUE.. A participação da sociedade na redefinição de políticas de direitos. Os direitos da Infância e o direito à moradia em países do Cone Sul na virada para o século XX. Tese de doutorado apresentada ao PROLAM/USP em dezembro de 2007. _____________ . A participação da sociedade civil na construção de uma política de direitos da criança e adolescente no Cone Sul da América Latina. In Liberati, W. Gestão da Política de Direitos ao adolescente em conflito com a Lei. 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