Resenha 03v01

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BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”, Paris: Vrin,
“Conférences Pierre Abélard”, 2008, 192p.
Ana Rieger Schmidt*
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Em 7 de março de 1277, o bispo de Paris, Étienne Tempier, proibiu o ensino de
219 teses filosóficas que eram objeto de discussão nas universidades parisienses.
Essa condenação tem recebido grande atenção dos historiadores a muitos
séculos, os quais investigam as motivações e os efeitos para a prática filosófica na
Idade média. No prólogo de seu texto, Tempier acusa os mestres da faculdade
das artes de camuflarem teses heréticas recorrendo à doutrina da “dupla
verdade”, a qual sustentaria que existem dois tipos de verdades incompatíveis: a
verdade da razão, ou dos filósofos, obtida através de raciocínio e argumentação;
e a verdade da fé, obtida por revelação. Luca Bianchi pretende investigar a
presença da expressão duplex veritas nesse texto que tanto marcou o ensino e a
prática da filosofia durante a Idade Média.
Os primeiros dois capítulos procuram traçar as referências textuais que
evocam a doutrina da dupla verdade. O ponto de partida do A. está em apreciar
a afirmação feita por dois historiadores, Daniel Hoffmann no final do século XVII,
e Pierre Bayle no século XVIII, a qual atribui a doutrina a Lutero. Segundo Bayle,
Lutero, na disputa de 1539, sustentaria que uma mesma tese pode ser verdadeira
e falsa – verdadeira em Teologia e falsa em Filosofia, ou mesmo verdadeira em
Moral e falsa em Física. Seria necessário evitar a identidade entre verdade
teológica e verdade filosófica, sob o risco de submeter a primeira à segunda. Em
sua tese n. 41, Lutero faz alusão à universidade parisiense, dizendo que seu meio
teria alimentado o erro de identificar as duas verdades, chamando em
consequência a Sorbonne de mater errorum, ou “mãe dos erros”.
*
Doutoranda na Université de Paris I, bolsista CAPES.
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BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité” Com efeito, em seu primeiro capítulo o A. propõe explicitar os motivos
que teriam levado Lutero a considerar essa tese como uma marca da
Universidade de Paris. Para tanto prefere, ao invés de resgatar as fontes precisas
de Lutero, esclarecer como o princípio segundo o qual “a mesma coisa é
verdadeira em filosofia e em teologia” se difundiu em Paris. Isso leva o autor a
explorar a concepção de Henrique de Gand sobre as relações entre fé e razão.
Em sua Suma, questão 13 artigo 7, Henrique pretende sustentar a coexistência
da teologia e da filosofia. Para tanto, vale-se da autoridade aristotélica e da tese
segundo a qual os princípios do ser e os princípios do conhecimento são os
mesmos (Metafísica, 993b 30-31), bem como do princípio de não contradição,
segundo o qual uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o
mesmo aspecto (Metafísica, Gama 4). Somado a isso, observa que a razão natural,
se é reta e não pretende ultrapassar as suas limitações, não pode emitir juízos
contrários à teologia. As teses filosóficas são fixadas por seres falíveis e não
devem ser identificadas com a própria disciplina. Isso permite a Henrique
concluir que os “verdadeiros filósofos, cujas teses são realmente constatadas nas
coisas”, jamais poderiam contradizer a revelação divina. A “duplicidade” de
verdades é assim evitada. A verdade é una. Henrique de Gand e tantos outros
procuraram harmonizar o saber advindo da razão com o advindo da palavra
divina recorrendo ao caráter limitado do primeiro. O A. refere-se ainda aos
esforços de Marsílio de Inghen, Boécio de Dácia e Gilherme de Baudin em
suprimir o mesmo conflito. Boécio, por exemplo, teria feito uma distinção entre
aquilo que é verdadeiro absolutamente, segundo os ensinamentos da revelação, e
aquilo que é verdadeiro relativamente, no domínio das ciências particulares.
A intervenção do bispo Tempier tinha como objetivo frear a autonomia da
pesquisa filosófica e submetê-la à soberania da teologia. No entanto, é bem
verdade que havia duas maneiras de conceber essa relação. Por um lado, a
soberania da teologia foi tomada como excludente, de modo que haveria uma
alteridade entre a razão mundana e a fé cristã. Essa posição, sublinha o A., exclui
definitivamente a possibilidade da “dupla verdade”. Por outro lado, uma posição
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BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité” menos radical tomava os domínios da fé e da ciência como inclusivos e era
marcada pelo esforço em compatibilizar os resultados de uma com os da outra.
Apesar da dura censura representada pela condenação de 1277, esses dois
modelos coexistiam nos meios acadêmicos. Lendo tanto a oposição dramática
entre filosofia e teologia, quanto as posições análogas à de Henrique de Gand,
percebemos por que Lutero endereçou o erro de identificar a verdade cristã
com a verdade racional à Universidade de Paris.
Após apresentar a hipótese de Bayer e Hoffmann e identificar a origem da
crítica de Lutero aos “parisienses”, o A. permite-se indagar se é possível traçar
as origens da doutrina da dupla verdade até a Idade Média, tema que nos conduz
ao segundo capítulo. O A. adverte, de início, que procurar sinais da doutrina da
dupla verdade através da pesquisa das ocorrências da expressão duplex veritas é
inútil, pois a expressão, além de pouquíssimo frequente, é muitas vezes
empregada com propósitos completamente diferentes ao da doutrina em
questão. Tal é o caso, por exemplo, de Boaventura e Tomás de Aquino, ambos
defensores da unicide da verdade. A única ocorrência da expressão duplex veritas
em um sentido próximo ao da doutrina ocorre no contexto das disputas entre
Pedro de Rivo e Henrique de Zomeren acerca do problema dos futuros
contingentes. Segundo o célebre problema herdado de Aristóteles, se uma
proposição que descreve um evento futuro contingente – seja, por exemplo,
uma batalha naval - é verdadeira antes que o evento se realize, parece seguir-se
que esse evento não pode não ocorrer e que, portanto, ocorrerá
necessariamente; se falso, tal evento não pode ocorrer, isto é, necessariamente
não ocorrerá. Assim, os eventos futuros já estão logicamente determinados, pois
estão determinados quanto ao seu valor de verdade – o que elimina a
contingência dos eventos futuros. Tal resultado é incompatível com a evidência
de contingência no mundo, notadamente das ações livres dos homens. Uma
estratégia visada pelos comentadores do De Interpretatione era a de suspender os
valores de verdade para proposições desse tipo “problemático”. Proposições
futuras em matéria contingente seriam, nesse sentido, indeterminadas. Contudo,
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BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité” essa solução cria claros problemas aos teólogos: por um lado, eles têm de
explicar como Deus possui conhecimento de proposições sem valor de verdade;
por outro lado, como as profecias podem ser admitidas como verdadeiras,
mesmo que não tenham sido ainda atualizadas.
O A. faz então referência ao trabalho de Chris Schabel1 sobre a solução de
Pedro Aureoli ao problema mencionado e sua repercussão entre os teólogos
parisienses do século XIV, cujo epílogo trata da recepção da disputa em Louvain.
Rivo sustenta que é possível harmonizar a solução que ele atribui a Aristóteles e
a Epicuro (e mesma de Aureoli), segundo a qual as proposições futuras em
matéria contingente são indeterminadas, à tese segundo a qual as profecias são
verdadeiras. As profecias seriam verdadeiras segunda a verdade não-criada;
enquanto que as proposições que descrevem eventos futuros contingentes não
podem ser verdadeiras segundo a verdade criada. A ocorrência que interessa ao
A. está na crítica que Guilherme Baudin endereça à posição de Rivo. Segundo
ele, Rivo teria submetido seu intelecto aos gentios ao afirmar que certas
proposições não são verdadeiras segundo a filosofia pagã, ainda que sejam
verdadeiras segundo a fé.
Encontramos finalmente aqui um teólogo acusado de sustentar a doutrina
da dupla verdade dois séculos depois da condenação de 1277 e de endereçá-la
aos que aderiram a teses anti-crsitãs aristotélicas e averroístas. Baseando-se
nesse achado, o A. ataca a afirmação feita por Van Steenberghen em seu artigo
sobre o tema da dupla verdade2, segundo a qual ninguém teria sustentado a
duplex veritas durante a Idade Média.
Tendo finalmente encontrado uma fonte medieval para doutrina da dupla
verdade, o A. passa a estudar como as autoridades eclesiásticas procuraram
1
SCHABEL, C. Theology at Paris -­‐ 1316-­‐1345: Peter Auriol and the problem of divine foreknowledge and future contingents, Hants: Ashgate Publishing Press, “Ashgate Studies in Medieval Philosophy “, 2000. 2
VAN STEENBERGHEN, F. “Une Légende tenace: la théorie de la double vérité”. In: Introduction à l’étude de la philosophie médiévale. Louvain/Paris: Publication Universitaires/Béatrice-­‐
Nauwelaerts, 1974. Traditio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN: 2176-­‐8765 Vol. 1 (2009) 13
BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité” “supervisionar” as posições dos principais filósofos diante dos argumentos cujas
conclusões são contrárias aos artigos de fé - os argumentos contra fidem. Os dois
últimos capítulos são dedicados aos estatutos de 1272 e 1513 e seus efeitos nas
universidades européias.
Tomás de Aquino sustenta, em seu comentário ao De Trinitate de Boécio,
que opiniões filosóficas contrárias à fé cristã não pertencem à verdadeira filosofia
e podem ser refutadas pelos próprios instrumentos da filosofia, mostrando que
as conclusão de tais argumentos não são necessárias, mas apenas resultados
possíveis ou prováveis. Dado que as premissas dos argumentos contra fidem são
frutos da razão humana, elas têm um alcance limitado. Entretanto, haveria uma
diferença, (sustentada, dentre outros, por Caetano), entre saber que os
argumentos contrários à fé são errôneos e saber efetivamente refutá-los.
Muito menos sutis são as diretrizes do estatuto de 1272: antes ainda da
condenação das teses que ameaçavam a fé cristã em 1277, foi elaborado em 1º
de abril de 1272 o Estatuto Parisiense, o qual oferecia diretrizes específicas de
como tratar as questões que envolviam artigos de fé e argumentos filosóficos. Os
teólogos, durante o estudo de um texto em classe, eram convidados a refutar
todos os argumentos que ameaçassem a fé. Como tal tarefa nem sempre era
fácil, eles estariam autorizados a simplesmente declarar falsas as suas conclusões.
O A. insiste sobre a importância histórica deste estatuto no ensino de filosofia na
Universidade de Paris e seu papel na vida intelectual da Idade Média tardia. Não
se dedica, porém, a examinar o conteúdo das condenações, mas apenas a relação
da verdade com a filosofia e as obrigações dos teólogos para com os preceitos
cristãos, cuja validade era inquestionável. O efeito esperado da censura de 1272
era de neutralizar as opiniões filosóficas incompatíveis com a fé cristã. No
entanto, o resultado foi consideravelmente abrandado e no início XVI já não era
mais respeitado em Paris. É impossível negar, todavia, a marcante influência do
estatuto nos séculos XIV e XV, não somente em Paris, mas em outras
universidades européias (como Viena e Heidelberg).
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BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité” O quarto e último capítulo leva-nos a considerar o caso - não menos
importante - das universidades italianas, nas quais a questão das relações entre
verdade filosófica e verdade revelada tomou um rumo muito diferente do
francês. Na Itália dos séculos XV e XVI, o problema da refutação dos
argumentos contra fidem toma uma dimensão mais acentuada. É neste momento,
diz o A., que a atenção das autoridades eclesiásticas será especialmente atraída e
que medidas rigorosas serão tomadas para limitar a liberdade do ensinamento
filosófico, “retomando e desenvolvendo a política iniciada em Paris com o
estatuto de 1272”.
Em 19 de dezembro de 1513 e no contexto da problemática ao redor da
imortalidade da alma, o concílio de Latrão V aprova a constituição Apostolici
Regiminis, a qual afirma que a alma do homem é verdadeiramente e por ela
mesma forma do corpo, condenando simultaneamente as interpretações
averroísta e alexandrista. O ponto que interessa ao A. diz respeito à proibição
expressa de ensinar a unidade e a mortalidade da alma seguindo os argumentos
dos filósofos, valendo-se do princípio segundo o qual “uma verdade não pode
contradizer outra verdade”, ou seja, não pode haver uma verdade incompatível
às verdades adquiridas pela fé. Todas as afirmações contrárias deveriam ser
imediatamente declaradas falsas e aquele que as difundisse seria declarado
herege. As diferentes seções do Apostolici Regiminis detalhavam as medidas a
serem tomadas com relação ao ensino de filosofia a mesmo à organização dos
estudos. No que toca aos professores universitários, quando ensinassem os
argumentos filosóficos contra fidem, deveriam se esforçar em mostrar as suas
falhas, tomando uma posição claramente pro fidem e manifestar a verdade cristã.
Tais decretos constituem uma grande mudança se comparados aos de
1272: não se trata de um conjunto de indicações de “autolimitação” dos
teólogos, mas de um conjunto de regras precisas e rígidas impostas às
universidades. Um professor que não as respeitasse corria sérios riscos. Mesmo
assim, nota o A., a falta de instrumentos eficazes de controle possibilitou que
estas regras fossem frequentemente contrariadas. É um consenso entre os
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BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité” historiadores que o Apostolici Regiminis não foi bem sucedido ao impor a
concórdia entre filosofia e teologia, assim como barrar a difusão das teses não
ortodoxas nas universidades italianas, exceto por efetivamente levar muitos
teólogos a não revelarem ou mesmo a mudarem suas opiniões em público.
Vimos que Tomás defende a unicide da verdade e a limitação da razão
diante da fé, assim como a possibilidade de refutar os argumentos filosóficos
cujas conclusões são contrárias à fé, reconhecendo seu próprio erro. Segundo
Bianchi, a constituição Apostolici Regiminis reflete uma concepção de verdade
escolástica e tomista. Ela endossa a relação entre razão e fé tal como formulada
por Tomás e largamente difundida na renascença.
O A. encerra seu texto mostrando a influência da temática na condenação
de 1633, cuja vítima foi Galileu quando submetido ao tribunal da inquisição.
Melchior Inchofer teria sido o então responsável pela legitimação doutrinal da
condenação de Galileu afirmando que em toda discussão filosófica deve-se
observar as disposições do decreto de 1513, a saber, proclamar a verdade
ensinada pela fé e refutar os argumentos dos filósofos. Ele acusa Galileu de
distinguir entre verdade filosófica e verdade teológica com vistas a defender o
sistema astronômico de Copérnico – considerado, sabe-se bem, incompatível
com a religião, sendo o geocentrismo considerado um artigo de fé.
Ao final da leitura dessa obra, somos levados a concluir pelo ganho de
informações acerca da origem de uma noção que por tempos dividiu os
especialistas. O mérito do A. está em trazer à tona textos não antes
considerados e que apontam para os mecanismos de formação e difusão de uma
idéia central em tantos debates históricos.
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