NOTA EDITORIAL

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NOTA EDITORIAL
A OBSTINAÇÃO DE PENSAR
No vórtice da velha querela pensamento/ação, e abalançando-se a diagnosticar
a “miséria da filosofia”, a conhecida undécima tese sobre Feuerbach – “os filósofos
limitaram-se a interpretar o mundo, agora é preciso transformá-lo” –, pretendendo
(1845) anunciar um novo tempo e uma nova tenção para a nossa disciplina, ressoa
ainda como palavra esperançosa por fazer, embora talvez reduzida ao mínimo da
esfera individual, neste tempo de narcisismos pregnantes mas vazios, assistente de
frustrações de ideais que se criam consolidados. Usurpando o seu horizonte, ou
talvez mesmo desprezando-o com a arrogância da estupidez, o tempo miserável
em que vivemos parece continuar cativo (na acepção verbal e adjetiva ética que
este vocábulo tem no nosso idioma) por personagens sem memória e sem passado
que, obedecendo à imposição das mais desumanas mudanças, se encontram sempre
e embriagadamente a transformar o mundo, levando-o à consumada destruição,
pura e simplesmente porque nunca foram capazes de pensar. Ou outro tanto pior,
incapazes de se transformarem a si mesmos, desprezam a actividade transformadora
do pensamento acoutados numa fantástica e soberba técnica, aqueles que na
sua exterioridade sem interioridade se esqueceram, pelo menos, da missão e
do desígnio de pensar, da ética de pensar, da urgência de pensar, da exigência
do pensar, obstinadamente, antes que a desenfreada aceleração da cacopraxia
não só provoque ou agudize o retrocesso civilizacional mas também escave a
mais deletéria desumanização, o esquecimento do Homem, do Humano, da sua
finitude, fragilidades e abertura aos horizontes que só o transcendem caso ele
se saiba manter com os pés incondicionalmente enterrados no solo que habita.
Nestes tempos miseráveis em que o pensamento é substituído por eufemismos
que escondem a pandemia de uma ação a qualquer custo, sem razão, ou custe o
que custar, é inestimável sinal de coragem que a Revista Filosófica de Coimbra
persiga, insista, teimosamente, na obstinação de pensar. Há precisamente quarenta
e quatro números, isto é, há já milhares de páginas que a Revista Filosófica de
Coimbra assinala o serviço do pensamento, ou da meditação mais implicada, como
via régia para contribuir para o afastamento da miséria. E fá-lo, como sempre, da
forma mais plural, como agora: quer em vigorosas notas de investigação, também
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Mário Santiago de Carvalho
elas de diverso pendor: sobre a política precisamente (Jean-Luc Nancy, aqui
tempestivamente oferecido por F. Bernardo); sobre a história da ciência (Carlos
A. do Nascimento); ou em insistência sobre a nossa memória filosófica manuscrita
(Maria da C. Camps). Quer, depois, em mais amplos artigos a partir dos quais se
podem divisar múltiplas veredas, expressões ou análises enxertadas num pensar
maduro e reivindicativo, que nunca perdem, antes nos ajudam a aprofundar,
obstinadamente, repetimos, horizontes do solo Humano: seja sobre a fecundidade
da relação bioética e hermenêutica filosófica (Maria L. Portocarrero), a valorização
política da desconstrução derridaniana (Julián Santos), a solidão como fenómeno
fundamental da filosofia (Paulo A. Lima), a experiência da reciprocidade ou
festa do reconhecimento (Fernando M. Saldanha), a tripla singularidade do
idealismo crítico de Fichte (J. Porée), seja, enfim, o devir europeu da nossa mais
internacional história da filosofia (Mário S. de Carvalho). Por último, o presente
fascículo conclui a publicação da tradução e edição latina da obra retórica de
Alfonso de Alprão (séc. XIV-XV), graças ao empenho de Manuel Lázaro e José F.
Alvarez, sendo também da mais elementar justiça e gratidão deixar registado que
a produção de todo o volume pôde de novo contar com a colaboração empenhada
das Senhoras Maria Inês Almeida e Eugénia Gonçalves.
Mário Santiago de Carvalho
julho de 2013
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