quem escreveu “guerra dos judeus? - NEA

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TITUS FLAVIUS JOSEPHUS POR YOSSEF BEN MATITIAHU HA-COHEN: QUEM
ESCREVEU “GUERRA DOS JUDEUS?1
Prof. Junio Cesar Rodrigues Limai - NEA-UERJ
Os escritos de Flávio Josefo ii constituem, com os textos neotestamentários, uma das
principais documentações sobre a história judaica do século I d.C. Por causa da sua explícita
ambigüidade, por se tratar praticamente de um documento não cristão que relata a história
judaica contemporâneo ao início do cristianismo, por seus exageros e estilo literário influenciado
por outros escritores conhecidos do seu tempo, Josefo tem despertado o interesse e servido como
documentação para diversos segmentos historiográficos.
Na literatura cristã encontramos citações e interpretações sobre sua obra. Orígenes (184254 d.C.), Euzébio de Cesaréia (265-340 d.C.) e Jerônimo (342-420 d.C.) foram os grandes
responsáveis pela preservação dos seus escritos na história da igreja (PAUL, 1981, p.29). Na
Idade Média, Josefo chegou a ser um dos autores mais lidos. Seus escritos foram inúmeras vezes
copiados, traduzidos e revisadosiii. Seu relato sobre a destruição do templo e queda de Jerusalém
em 70 d.C. chegou a figurar em algumas bíblias siríacas com o título de “Macabeus”. Durante as
cruzadas seus escritos também foram utilizados como guias de viagem na Palestina (1981: p.30).
Em 1963, A. Jaubert, ao analisar os escritos de Josefo, identificou o historiador hebreu
como um “(...) caloroso defensor da lei identificado com a religião judaica (...)”, situação que
pôde ser inferida do discurso que emerge de suas obras, principalmente, sua autobiografia (“Vida
de Josefo”). Analisando os mesmos discursos, Rocha afirma que “Flávio Josefo representa a
corrente moderada dos judeus, aliada aos romanos, e descreve os inimigos de Roma como seus
inimigos (...)” (Rocha, 2004, p.242). Martin Goodman parece concordar com ele ao afirmar que
Josefo “tinha orgulho de sua carreira e do sucesso social em Roma após 70 que o separava do
resto da classe dirigente judaica da qual se originara”.
Hadas-Lebel afirma que para o judaísmo, Josefo, embora nunca tenha negado a fé
judaica, trata-se de um filho perdido – “Perdido por ter sido suspeito de traição; perdido, por
ter ido viver em Roma, no palácio do vencedor; perdido, por ter difundido, ou mesmo escrito,
sua obra em grego; perdido, por ter sido recuperado pelo cristianismo desde os primórdios da
igreja, como um outro judeu, o filósofo Fílon de Alexandria” (LEBEL, 1992, p.12). Entretanto,
segundo ela, Flávio Josefo “tem direito ao lugar que reivindicava para si mesmo com justo
1
Texto publicado no I Encontro Nacional de Estudos Sobre o Mediterrâneo Antigo, promovido pelo NEA/UERJ em
outubro de 2009.
orgulho: ‘o historiador digno de louvores’, escreve em seu prefácio ao relato da guerra, ‘é
aquele que registra os fatos cuja história nunca foi escrita e que faz a crônica de seu tempo para
as gerações futuras’” (1992: p.14).
A história romana reservou para Flávio Josefo o papel de “cronista dos assuntos da
Judéia”, visto que para abordar os acontecimentos do primeiro século os historiadores romanos
sempre deram prioridade a escritores latinos como Tácito e Suetônio, autores que muitas vezes
discordavam de Flávio Josefo quanto à ordem e valor dos fatos (1992: p.13).
Luis Eduardo Lobianco afirma que o historiador hebreu trata-se um personagem
ambíguo. Lobianco descreve quatro ambigüidades que emergem do discurso de Josefo: a)
ambigüidade no título da obra; b) ambigüidade no conteúdo; c) ambigüidade na origem; d)
ambigüidade na estrutura (LOBIANCO, 1999).
Como se pode observar, Flávio Josefo e seus escritos vêm despertando as mais variadas
interpretações e análises historiográficas. Tais circunstâncias nos conduzem aos seguintes
questionamentos: Como pensar e situar Flávio Josefo? Qual a visão que tinha de si mesmo e do
seu lugar social? Ele realmente aderiu à cultura romana construindo nova identidade? Seu
discurso representa o pensamento de parte da sociedade judaica ou expressa uma visão singular
da derrota? O que há por trás de seus discursos? Quem realmente está discursando, um general
da Galiléia, um sacerdote judeu ligado a realeza, um fariseu, um aristocrata judaico ou um
cidadão romano amigo dos imperadores? Quem são seus caluniadores? Quais eram as calúnias?
Que tipo de associação Josefo faz entre seus escritos e os textos proféticos judaicos? Por que faz
questão de mostrar que seus filhos possuem nomes hebraicos? Por que enfatiza sua passagem
pela seita dos essênios, saduceus e fariseus? Sua visão sobre a derrota judaica está atrelada a
algum tipo de tradição? Todas essas questões nos ajudam a desvendar o pensamento e objetivos
de Flávio Josefo permeados em seu discurso na autobiografia, identificando seu lugar socialiv.
Assim sendo, a presente comunicação tem como objetivos analisar o discurso polêmico
de Flávio Josefo, identificar provável intencionalidade em seu discurso e descrever seu lugar
antropológico quando da produção de sua autobiografia.
A historiografia contemporânea, além de firmar a ligação indissolúvel entre presente e
passado, relativiza a documentação e enfatiza a análise das condições sociais para investigar e
compreender os fatos, dialogando com outras áreas de conhecimento e mantendo “(...) o contato
e o debate permanentes com outras ciências sociais, incluindo a importação de problemáticas,
métodos e técnicas de tais ciências (...)” (CARDOSO, 2007, p.42-43). Com isso utilizaremos
conceitos próprios da Antropologia direcionando o foco para as relações sociais e para a visão de
mundo expressa pelos comportamentos, mitos, rituais, técnicas, saberes e práticas sociais.
Segundo Marc Augé, a existência do “eu - individual” só é permitida mediante o contato
com o outro. A experiência do fato social é aquela de uma sociedade localizada no tempo e no
espaço, mas também a de um indivíduo qualquer da sociedade. Entretanto tal indivíduo, apesar
de não passar de uma expressão dessa sociedade, torna-se significativo porque com ela se
identifica (AUGÉ, 2007, p.25). A pesquisa antropológica, segundo ele, “(...) tem por objetivo
interpretar a interpretação que outros se fazem da categoria do outro nos diferentes níveis que
situam o lugar dele e impõem sua necessidade: a etnia, a tribo, a aldeia, a linhagem ou qualquer
outro modo de agrupamento até o átomo elementar de parentesco, do qual se sabe que submete
a identidade da filiação à necessidade da aliança (...)” (2007: p.27).
Augé ainda afirma que toda etnia deve ser considerada como uma ilha, eventualmente
ligada a outras, mas diferente de qualquer outra, e que cada ilhéu deve ser visto como homólogo
do seu vizinho. Assim, além de trabalhar as interações culturais entre indivíduos na sociedade,
propõe ainda o estudo do contato entre os mais variados grupos sociais no quais os indivíduos
estão inseridos.
Tais conceitos indicam que os discursos de Flávio Josefo são expressões de valores das
sociedades judaica e romana, de lugares antropológicosv e não-lugaresvi, de valores culturais no
tempo e no espaço, que não podem ser desprezados pelo pesquisador ao se debruçar sobre a
documentação. Assim, Flávio Josefo, apesar de pertencer a um segmento da sociedade,
possibilita através de seu discurso uma identificação polifônica oriunda da interação cultural
entre as sociedades judaica e romana.
Outro enfoque dessa comunicação está ligado à compreensão de que estudos literários e
historiográficos estão em proximidade. Nesse ponto começamos a nos aproximar da lingüística
para analisar e compreender o teor da documentação. A Profª. Drª. Zeloí Santos parece concordar
com este postulado ao dizer que “o discurso literário resulta de uma reflexão e se constitui em
uma mediação social, tal como o discurso histórico. Daí ser possível através das técnicas de
expressão literária tais como os modos de narrar e construir pontos de vista, poder-se revelar a
história” (SANTOS, 2007). Entretanto, as formações discursivas devem ser vistas dentro do
espaço discursivo. Ao operar um documento precisamos ordenar e identificar seus elementos,
construindo sua unidade e fazendo perguntas pertinentes à pesquisa.
Michel Foucault afirma que analisar o discurso seria dar conta das relações históricas e
práticas que estão vivas nele, explorando ao máximo os materiais, entendendo que são produções
históricas e políticas, que suas palavras são construções e que a linguagem também é constitutiva
de práticas. O discurso, segundo ele, ainda se produz em razão de relações de poder e traz
consigo inúmeros saberes (FOUCAULT, 1986, p. 133).
Para Eni Orlandi, todo dizer é ideologicamente marcado – “não há discurso sem sujeito e
não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a
língua faz sentido”. É na língua que a ideologia se materializa, por isso, “o discurso trata-se de
um objeto sócio-histórico em que o lingüístico intervém como pressuposto” (ORLANDI, 2003,
p. 17). Assim, o lugar a partir do qual o sujeito fala é constitutivo do que ele diz, pois o sujeito
discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia.
Orlandi nos permite remeter o dizer de Josefo a toda uma filiação de dizeres, a uma
memória, a sua historicidade e significância, mostrando seus compromissos políticos e
ideológicos:
“(...) Os sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas na
relação com a exterioridade, nas condições em que eles são
produzidos e que não dependem só das intenções dos sujeitos (...).
Os dizeres não são, como dissemos, apenas mensagens a serem
decodificadas. São efeitos de sentidos que são produzidos em
condições determinadas e que estão de alguma forma presentes no
modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso
tem de apreender. São pistas que ele aprende a seguir para
compreender os sentidos aí produzidos, pondo em relação o dizer
com sua exterioridade, suas condições de produção. Esse sentido
tem a ver com o que é dito ali mas também em outros lugares,
assim como com o que não é dito, e com o que poderia ser dito e
não foi. Desse modo as margens do dizer, do texto, também fazem
parte dele” (2003: p.30).
A partir dessa compreensão, em vez de utilizarmos os métodos focalizados em Análise do
Conteúdo que enfatizam o teor literal da documentação e se ocupam com o que o texto quer
dizer, optamos por aplicar Análise do Discurso a fim de compreender o que ela significa em sua
materialidade considerando o processo de identificação, condições de produção, processo
discursivo, ilusão referencial e objetividade.
O objeto de nossa análise trata-se da autobiografia de Flávio Josefo, mais conhecida
como The Life. O processo de identificação da documentação nos permite qualificar nosso
sujeito interlocutor como sendo Yossef Ben Matitiahu ha-Cohen ou Titus Flavius Josephusvii; e,
os interlocutores, como a aristocracia judaica que circulava na Galiléia, Judéia e Roma,
influenciada pela obra de Justo de Tiberíades que juntamente com ele questionava a posição de
Josefo e atacava a honra de sua família caracterizando assim o elemento desencadeador do
discursoviii. O material simbólico trata-se de circulação de documento escrito e, a natureza da
linguagem, biografia pública.
Segundo Hadas-Lebel, “Flávio Josefo” trata-se de um nome híbrido de que a tradição o
dotou e que de certa forma reflete todas as suas ambigüidades. Yossef (Josephus) trata-se do
prenome que o pai o deu ao nascerix. Ao ser adotado pelo imperador Vespasiano e tornar-se
cidadão romano, seu nome hebraico passou a ser um cognomen associado ao nome dos Flavius.
Segundo Kippenberg, “o estado de parentesco é determinante de direitos, obrigações,
capacidades e diretiva proveniente do comportamento em todos os setores” (KIPPENBERG,
1988, P.15). O nome Yossef Ben Matitiahu ha-Cohen, para a sociedade judaica do primeiro
século, já correspondia a um papel social, direitos e deveres políticos, sociais e religiosos
previamente definidos. Embora fosse comum ter um nome híbrido entre aqueles que tinham
dupla cidadania, para a sociedade judaica do primeiro século tal circunstância poderia significar
associação aos povos incircuncisos, o que não era muito bem visto para um bom judeu,
principalmente um Cohen. No caso de Josefo, seria o mesmo que se associar ao inimigo
opressor, àquele que tinha destruído o lugar social mais relevante da sociedade judaica, o
Templo de Jerusalém.
O discurso de Josefo indica que o papel social desempenhado durante a guerra foi
objeto das mais variadas interpretações. Por isso, ele utiliza o status social de sua família
conforme registros públicos, sua formação, capacidade de persuasão, posição social, obediência
a Torá, seu altruísmo, o apoio popular ao seu governo, a posição de Justo na guerra e o bom
relacionamento com a aristocracia romana para argumentar contra as afirmações de seus
inimigos.
O discurso aponta ainda para a concepção de justiça e nobreza da comunidade judaica;
ressalta a valorização do ofício sacerdotal e prestígio social e influência do sacerdote; aponta
para estima da comunidade pelos asmoneus; evidencia o respeito pelos antepassados, o valor da
linhagem genealógica, obediência a Torá e a relevância de se conhecer suas origens para
fortalecer a identidade evidenciando a relação de sentido na condição de produção do discurso.
Interagindo com os sujeitos interlocutores, Josefo faz uso de mecanismos de
antecipação para conquistar a confiança do seu público-alvo utilizando palavras como: família
sacerdotal, antepassados, nobreza, coisas santas, dignidade, asmoneus, mãe, filhos, registros
públicos, calúnias e inimigos.
Segundo Marc Augé, todo discurso é resultado de interações sociais e se situa no tempo e
no espaço. A experiência do fato social, além de ser aquela de uma sociedade localizada no
tempo e no espaço, é a de um indivíduo qualquer da sociedade. Tal indivíduo, apesar de não
passar de uma expressão dessa sociedade, torna-se significativo porque com ela se identifica
(2007: p.25).
Flávio Josefo (sujeito locutor) é hebreu, sacerdote, aristocrata judaico, cidadão romano
também ligado a aristocracia e aos imperadores Vespasiano, Tito e Domiciano, o que situa o
lugar de sua fala entre a elite judaica e a romana, entre dominados e dominadores, entre
derrotados e vencedores. Parte dos sujeitos interlocutores estava associada aos vencedores e a
outra subjugada e insatisfeita com a derrota. Assim, pode se identificar no discurso de Josefo a
disputa entre duas forças: aqueles que saíram beneficiados após a guerra, se associando aos
romanos, mas preservando valores religiosos judaicos – na qual ele se situava, e aqueles que
continuavam subjugados na própria Província, pagando impostos, sem o templo, com poderes
fragmentados e insatisfeitos com o desfecho do confronto. Josefo argumenta que pela sua
posição social mais elevada seu discurso merece mais crédito que os demais relatos. Assim
defende seus interesses apresentando um “discurso polêmico”.
Ao defender que o lugar e o papel sociais de uma família são suficientes para dar
crédito às palavras de um indivíduo, Flávio Josefo se aproxima da Torá que valoriza o bom nome
como símbolo de honra, justiça, ética e religiosidade. Além disso, ainda apresenta valores
estimáveis para o bom judeu (justo) como a piedade, tolerância, bem-aventurança, obediência a
Lei, respeito aos antepassados, cuidado com os pobres e pacificação (NEUSNER, 2002, p.132153). Josefo procura legitimar suas ações e lançar seus opositores no descrédito, acusando-os de
visar apenas seus próprios interesses, enquanto se apresenta em sua autobiografia como oficial
coerente, piedoso, pacificador, tolerante, bem-aventurado, perseguido, obediente a Torah, filho
zeloso, defensor dos fracos e um homem justo, exaltando assim valores éticos e morais da
comunidade judaica do seu tempo. Josefo justifica suas posses e seu papel social como sendo
uma recompensa divina por suas ações evidenciando o imaginário judaico quanto ao sucesso e a
prosperidade.
Apesar de descrever suas origens judaicas e evocar valores próprios dessa sociedade,
Flávio Josefo, ao citar o nome de seus descendentes, os associa temporalmente ao reinado de
Vespasiano, indicando uma forma romana de contar o tempo. Isto significaria uma evidência de
ruptura. São rupturas como essa que nos impulsionam a identificar o lugar antropológico de
Josefo e desvendar se as interações entre as sociedades judaica e romana que emergem do seu
discurso foram suficientemente intensas para fazer Josefo transformar um antigo não-lugar em
um novo lugar antropológico, partindo da ilusão referencial e da objetividade do texto.
Josefo afirma em sua autobiografia:
(...) “Eu poderia vangloriar-me da nobreza do meu nascimento,
pois cada nação, estabelecendo a grandeza de uma família, em
certos sinais de honra que a acompanham, entre nós uma das mais
notáveis, é ter-se a administração das coisas santas. Mas eu não
sou somente oriundo da família de sacrificadores, eu sou também
da primeira das vinte e quatro linhas que a compõem e cuja
dignidade está acima de todas (...). A isso posso acrescentar que,
do lado de minha mãe eu tenho reis, entre meus antepassados. O
ramo dos asmoneus, de que ela é proveniente, possuiu durante um
longo tempo, entre os hebreus, o reino e a suprema sacrificatura
(...). Eis minha descendência como está escrita nos registros
públicos e que eu julguei dever relatar aqui a fim de desmanchar
as calúnias de meus inimigos”.
Fica subentendido que no lugar antropológico do sujeito locutor (Flávio Josefo) havia
hierarquia, relação de poder entre realeza e sacerdócio, valorização do bom nome, estreita
relação entre a aristocracia judaica e os imperadores romanos, bem como a importância de se
reconhecer a paternidade e dar prosseguimento a linhagem. Josefo silencia quanto ao nome de
seus inimigos, o teor das calúnias sofridas e seu ofício militar na Galiléia. Também dispensa
esclarecimentos sobre sua relação com os Flavius e seus casamentos.
Josefo ainda diz em sua autobiografia:
“Meu pai não foi somente conhecido em toda a cidade de
Jerusalém pela nobreza de sua origem; ele o foi ainda mais, pela
sua virtude e por seu amor à justiça, que tornaram seu nome
célebre” (...). Deus deu-me bastante memória e inteligência e eu fiz
tão grande progresso que tendo então só catorze anos, os
sacrificadores e os mais importantes de Jerusalém se dignaram
perguntar minha opinião sobre o que se referia à interpretação das
leis (...). Quando fiz treze anos desejei aprender as diversas
opiniões dos fariseus, e dos saduceus e dos essênios, três seitas que
existem entre nós, a fim de, conhecendo-as, eu pudesse adotar a
que melhor me parecesse. (...) Iniciei-me então nos trabalhos da
vida civil e abracei a seita dos fariseus, que se aproxima mais que
qualquer outra da dos estóicos, entre os gregos”.
Nesta perícope pode se identificar o valor dado a linhagem familiar, a justiça e ao bom
nome no lugar antropológico de Josefo. Identifica-se ainda a relevância social de uma boa
formação religiosa através do estudo da Torá e adesão a algum segmento do judaísmo com
devoção e austeridade, dentre os quais os essênios, saduceus e fariseus parecem ter maior
projeção. No entanto, Josefo silencia quanto ao fato de tais circunstâncias serem comuns para a
aristocracia judaica, principalmente aquela ligada ao templo. Também silencia quanto aos
motivos que o levaram a aderir à seita dos fariseus e o status dela na comunidade.
Flávio Josefo ainda afirma:
“Na idade de 26 anos fiz uma viagem a Roma, por esta razão.
Félix, governador da Judéia, mandou por um motivo qualquer
alguns sacrificadores, homens de bem e meus amigos particulares,
para se justificarem perante o imperador; eu desejei, com muito
entusiasmo ajudá-los, quando soube que sua infelicidade em nada
havia diminuído sua piedade e eles se contentavam em viver, com
nozes e figos. (...) O navio (...) naufragou no Mar Adriático. (...)
Deus permitiu que ao nascer do dia, nós encontrássemos um navio
de Cirene (...). Esse homem levou-me até a imperatriz Popéa e eu
obtive sem dificuldade a absolvição e a liberdade daqueles
sacrificadores por intermédio dessa princesa, que me deu grandes
presentes (...). Mas, como eu já narrei estas coisas, na minha
História da Guerra dos Judeus, basta-me dizer isto de passagem, a
fim de que o leitor saiba que não foi voluntariamente, mas
obrigada, que nossa nação travou guerra contra os romanos”.
Nesta parte de sua autobiografia pode-se identificar o valor da piedade para o lugar
antropológico de Flávio Josefo, a concepção de que a vida humana, suas venturas e desventuras,
estão diretamente relacionadas ao divino (Providência). Identifica-se ainda a idéia de que o Deus
de Israel (Javé) escolhe homens de bem para cumprir seus propósitos e facilita a ação deles
seduzindo seus inimigos. Identifica-se também a prática judaica de não comer carne sacrificada a
outros deuses e que apenas parte da comunidade era favorável a uma revolta contra os romanos.
Josefo, a princípio era contra a guerra.
Josefo silencia quanto aos motivos que levaram o governador a se justificar, o porquê de
se enviar sacrificadores e não outro segmento social, o tipo de batalha de sabedoria que liberou
seu acesso a Popéa, o porquê de se dirigir a ela e não ao imperador, o tipo de negociação feita e
as condições impostas para a libertação, além dos motivos que o levaram a ser contra a revolta.
Em sua autobiografia Josefo tem objetivos bem definidos. As perícopes supracitadas
mostram que ele objetivava se identificar com a honra, nobreza e justiça de seus antepassados;
ressaltar a relevância do papel social de sua família; recuperar a credibilidade do seu relato sobre
a guerra; relacionar sua descendência com a comunidade judaica; demonstrar sua estima por
valores familiares e relações de parentesco; identificar-se como bom judeu desmanchando as
calúnias de seus inimigos; ressaltar sua formação privilegiada, conhecimento das tradições
judaicas e boa relação com parte da aristocracia desde a infância; demonstrar sua visão teológica,
influência política, experiência e conhecimento dos principais segmentos do judaísmo; isentar a
nação quanto sua responsabilidade no conflito; dentre outros objetivos que emergem de sua
autobiografia.
Não se pode desconsiderar a possibilidade de que, ao descrever a história, Josefo estaria
se eximindo de qualquer responsabilidade na derrota dos judeus. Tanto ele como os romanos
poderiam ser encarados como agentes usados por Javé para que se cumprissem seus propósitos.
Em alguns momentos chega a comparar a destruição do templo, em 70 d.C., com eventos
registrados em escritos proféticos anteriores (Guerra dos Judeus, Livro VI, Capítulo XXVI – 73
ou 74 d.C.). Em seu prefácio sobre “Guerras dos Judeus”, Josefo faz questão de afirmar que seu
livro trata-se da continuidade dos escritos proféticos, quase arrogando para si autoridade divina “(...) Assim, começarei minha história por onde seus autores [escritores da Tora] e nossos
profetas terminaram as suas. Referirei particularmente, com toda a exatidão que me for
possível, a guerra que se travou no meu tempo e contentar-me-ei em tocar brevemente no que se
passou nos séculos precedentes”.
Nos escritos de Flávio Josefo também transparece uma Judéia dividida social, política e
religiosamente. Ao ler seus escritos temos dificuldades em apontar homogeneidade. Ora seu
discurso parece ser contrário aos romanos, ora favorável a eles. Ora se apresenta como sendo
considerado traidor, ora como herói. Josefo ainda apresenta narrativas diferenciadas para a
derrota judaica em “Guerra dos Judeus”.
Geralmente os escritos de Josefo têm sido utilizados para a investigação do contato
cultural entre judeus e romanos resultando numa discussão sobre a romanização da Judéia ou
sobre as causas da guerra. Josefo vem sendo tratado como um judeu romanizado, rejeitado por
seus compatriotas devido a seu estreito relacionamento com os romanos. Entretanto, seu discurso
parece indicar que ele representa o pensamento e a postura de parte da sociedade judaica. Esse
seria seu lugar antropológico. Embora estivesse residindo em Roma quando da produção de sua
autobiografia, a Urbe, para ele tratava-se do não-lugar definido por Marc Augé. O que se
percebe é que Titus Flavius Josephus faz um grande esforço em sua autobiografia para ser
Yossef Mattiahu ha-Cohen, um judeu em Roma. Entretanto, a interação de Josefo com as duas
sociedades poderá ser desenvolvida numa próxima oportunidade
Documentação Textual
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Notas
i
Licenciatura Plena em História no Centro Universitário Augusto Motta; pesquisador do Núcleo
de Estudos da Antiguidade – UERJ; Linha de Pesquisa: Discurso, Narrativas e Representação;
Projeto de Pesquisa Atual: O lugar Social de Flávio Josefo; Orientadora: Profª. Drª. Maria
Regina Candido; E-mail: [email protected].
ii
Os principais escritos de Josefo sobre o assunto são: “Guerra dos Judeus”, “Antiguidades
Judaicas” e “Vida de Josefo”. Neles Josefo faz questão de ressaltar que a desgraça de Jerusalém
foi resultado da degradação política e religiosa da casta sacerdotal. As desventuras judaicas e a
sorte romana são interpretadas como sendo ordenadas pelo próprio Javé que parecia estar
disciplinando mais uma vez o seu povo por causa dos seus pecados (Guerra dos Judeus, Livro
VI, Capítulo XXXI – 73 ou 74 d.C.).
iii
Hadas-Lebel afirma que “ouve um tempo em que, na França, Holanda e Inglaterra, cada
família possuía seu Flávio Josefo, assim como possuía sua Bíblia, e a guarda de um in-fólio que
continha a Guerra ou as Antiguidades tinha tanto direito quanto a um Evangelho a receber os
nomes dos filhos recém-nascidos” (1992, P.11).
iv
Optamos pelo termo lugar social por se tratar de um termo mais abrangente que engloba tanto
os lugares antropológicos como os não-lugares citados por Marc Augé em sua obra
“Antropologia da Supermodernidade”.
v
Marc Augé chama de lugar antropológico a construção concreta e simbólica do espaço que é
simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade
para quem os observa. Os lugares antropológicos pretendem ser identitários, relacionais e
históricos. O habitante do lugar antropológico não faz história, vive a história (AUGÉ: 2007,
p.51-53).
vi
Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não se
possa definir assim, segundo Augé, definirá um não-lugar. Os não-lugares são tanto as
instalações necessárias à circulação acelerada de pessoas e bens quanto os próprios meios de
transporte ou grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado (2007:
p.36).
vii
Nascido em 37 ou 38 d.C. (segundo ele no primeiro ano do reinado de Calígula, o imperador
Caio César que reinou de 37 a 41 d.C.), de rica família da aristocracia sacerdotal (pelo lado
paterno) asmonéia (pelo lado materno), filho de Matias, de educação sofisticada, fariseu (apesar
de ter experimentado a seita dos saduceus, dos essênios e de ter seguido Bane, um eremita do seu
tempo), governador militar da Galiléia, líder da resistência judaica contra os romanos, cidadão
romano, adotou o nome dos Flavius (Vespasiano), beneficiado com terras da Judéia após a
derrota, morador de Roma, escreveu a maior parte das suas obras com o patrocínio de
Vespasiano, Tito e Domiciano, homenageado com uma estátua em Roma (segundo Euzébio de
Cezaréia), criticado por Justo de Tiberíades e Apion.
viii
Josefo incorpora sua autobiografia como apêndice à segunda edição de “Antiguidades
Judaicas” a fim de se defender, utiliza a história da trajetória de sua família para demonstrar que
o discurso de acusação de Justo não passava de calúnia. Justo de Tiberíades, por volta de 96 d.C.,
escreveu uma obra aonde o mesmo apresenta uma leitura alternativa da guerra, questiona a
posição de Josefo, ataca a honra de sua família e o apresenta como traidor culpado pela guerra e
conseqüente derrota. A obra de Justo se perdeu. O sabemos dessa obra são inferências dos
escritos de Josefo.
ix
Segundo a tradição judaica, Josefo recebeu ao nascer o prenome de seu avô paterno, assim
como seu pai Matias ou Matatias. Pode dizer então que seu nome traria também sua relação de
parentesco – filho de Matatias, sua posição e função social – o sacerdote ou sacrificador (haCohen).
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