o enigma da economia

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SOCIOECONOMIA SOLIDÁRIA, UMA CIÊNCIA DAS RIQUEZAS
Armando de Melo Lisboa
A medida em que a Economia se afirmou como disciplina científica, a noção de riqueza,
inicialmente confundida com o valor e preço, foi sendo progressivamente abandonada e
por estas substituída. De modo geral as teorias econômicas se jubilam com esta
evolução da idéia de riqueza para sua forma valor. A economia política estabelecida é
pura ciência do valor.
A confusão entre riqueza e valor gera armadilhas: se o valor é expressão da riqueza,
toda ação econômica que acrescenta valor é, por definição, criadora de riqueza. Mas, se
existe produção de valores que efetivamente resultam em riquezas, elas sempre exigem
algum grau de destruição de riquezas e podem, inclusive, apenas se efetivar desta forma
trágica.
Isto levou os economistas a formular raciocínios paradoxais, a construírem absurdos
lógicos, a afirmar que algo (a riqueza) existe tanto mais quanto … ele não existe (se
torna raro). Vejamos Menger em seu “Princípios de economia política”:
“aumentando continuamente os bens econômicos disponíveis dos indivíduos,
esses bens deveriam, ao final, perder necessariamente sua característica
econômica (...). O aumento contínuo dos objetos de riqueza resultaria
necessariamente, no final, na diminuição dos objetos de riqueza”.
Esta confusão também faz os economistas formular raciocínios loucos (como elogiar o
terremoto que destruiu Kobe no Japão, ou os atentados do 11.09 porque iriam contribuir
para a superação da recessão econômica). Nesta perspectiva, se qualquer forma de
crescimento do valor é boa, então o crescimento do crime é desejável.
Por outro lado, tudo que é abundante e gratuito deixou de ser considerado riqueza, pois
para os economistas riqueza é só aquilo que tem valor. É o que faz Mill (“Princípios de
economia política”), com outro raciocínio ilógico:
“Constitui parte da riqueza tudo aquilo que tem poder de compra. (...) Coisas
pelas quais nada se pode adquirir em troca, por mais úteis ou necessárias que
possam ser, não constituem riqueza (...). Contudo, embora o ar não seja riqueza,
a humanidade é muito mais rica obtendo-o gratuitamente, já que se pode
dedicar a outras finalidades o tempo e o trabalho que de outra forma seriam
necessários para atender à mais urgente de todas as necessidades.”
Deixemos esta enigmática formulação na qual uma não-riqueza torna mais rico seus
possuidores, e vamos a uma célebre passagem de Marx em “O Capital”:
De modo algum segue-se que o solo mais fértil é o solo mais apropriado para o
crescimento do modo de produção capitalista. Este supõe o domínio do homem
sobre a natureza. Uma natureza demasiado pródiga “segura o homem pela mão
como uma criança”*. Ela não faz de seu próprio desenvolvimento uma
necessidade natural. Não é o clima tropical com sua exuberante vegetação, mas
a zona temperada, a pátria do capital.
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* “Também não posso imaginar nenhuma maldição pior para o conjunto de um
povo, do que ser posto sobre uma mancha de terra em que a produção dos
meios de subsistência e alimentação ocorra em grande parte espontaneamente,
e o clima exiga ou permita pouco cuidado com vestimenta e moradia.” N.
Forster.
Aqui Marx, manifestando uma clara incompreensão para com as possibilidades
econômicas nos trópicos, inacreditavelmente condena o paraíso que a humanidade
sempre almejou.
Marx, Menger, Mill são vítimas da falácia econômica indicada por Polanyi: não
compreendemos outras economias pois identificamos toda a economia humana com sua
forma de mercado. Disto resulta a confusão entre riqueza e valor.
Numa sociedade de mercadorias, a riqueza se manifesta socialmente sob a forma de
valor de troca, e nela conta apenas a forma mercantil da riqueza social. Este mundo é
governado pelo valor de troca, ou, como designam os economistas, pelo VALOR.
Como sociedade mercantil, a sociedade está organizada para acumular valores de troca.
Porém, valor não é riqueza.
A riqueza não depende do valor. Riqueza não é aquilo que tem valor, mas a
disponibilidade de coisas necessárias e desejáveis. Ricardo, o único dos clássicos a
compreender satisfatoriamente a questão, definiu: “O valor difere essencialmente da
riqueza porque o valor depende não da abundância, mas da facilidade ou dificuldade
de produção”. Valor é riqueza apenas se considerarmos que estamos designando é a
riqueza privada das pessoas. Porém, a riqueza social não resulta do somatório da riqueza
das pessoas.
Para os economistas (menos Ricardo) nunca ficou claro a duplicidade de problemas que
significa ora trabalhar com questões relativas ao valor das coisas, ora com as coisas em
si.
Este imbróglio entre riqueza e valor é alimentado por simultâneas ambigüidades:
a) Entre moeda (signo da riqueza) e riqueza;
b) Entre capital (valor acumulado) e capital (instrumento físico de produção);
c) A riqueza (potencial) de um indivíduo é tanto maior quanto maior for o valor de
troca dos seus bens (problema da relação entre riqueza social e riqueza privada).
A economia política, por se basear no valor-custo, é uma ciência ao avesso, é um
oxímero pois se baseia numa tautologia elementar que a obriga a reproduzir a escassez e
não a conseguir a abundância, onde ela é tanto mais econômica quanto menos for
econômica. Ou seja, ela se alia ao inimigo que procura combater: aquilo que ela
persegue (o valor) é exatamente aquilo que a detém. A teoria, ao definir a riqueza por
meio do valor, acaba por encobrir o obstáculo (Bastiat), pois o aumento contínuo de
valor faz diminuir os objetos de riqueza.
O erro reside em tomar o valor como índice de riqueza social. O PIB não é expressão de
riqueza que se traduza em bem estar, distorcendo a realidade (confunde custos com
benefícios, atividades produtivas com destrutivas), sendo uma fórmula de fazer
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dinheiro, não um instrumento para orientar a reprodução ampliada da vida com
qualidade.
O valor, originalmente, é um reflexo da riqueza, é a desmaterialização da mesma, é a
sua expressão virtual. Com a autonomização do valor própria da sociedade capitalista,
suprimem-se os laços sociais e naturais (a solidariedade) intrínsecos à toda riqueza, e ele
passa a ser processado conforme a lógica da máxima valorização. O problema é que
existe um descolamento da lógica financeira (que se rege por leis matemáticas dos
juros) da lógica da riqueza (a qual tanto obedece a princípios relativos à organização do
social, quanto depende da capacidade técnico-energética de transformação da natureza),
originando um fenômeno de transferência de riqueza de quem a produz para quem tem
títulos de dívidas. Uma expansão em espiral do valor apenas se sustenta materialmente
enquanto for possível uma dilapidação voraz do ser humano e da natureza.
A riqueza cresce em função de condicionamentos termodinâmicos e sociais. O valor
segue uma lógica puramente matemática. Não é possível simplesmente emparelhar
ambas lógicas de uma forma permanente. Alertou F. Soddy que “se a riqueza social não
acompanhar a progressão geométrica das dívidas, determinadas pelas taxas de juros,
não será a riqueza que será aumentada nos valores capitalizados, mas as dívidas”.
É o valor que cresce com a escassez, não a riqueza. Um aumento no valor da terra
ocorre sobretudo pelo fato de que sua escassez aumentou, pela maior dificuldade de
produzir alimentos. Este valor indica, assim, necessidades maiores, e não maiores
quantidades de recursos para satisfazer as necessidades.
A economia moderna é um processo colossal de produção de riquezas que não pode
gerar a abundância plena. É o que se constata através dos conceitos de “crise de
realização, crise de superprodução”.
A ciência econômica moderna se tornou ciência dos valores. A ciência das riquezas
continuou a se desenvolver dispersamente ora no campo da agronomia, ora na ecologia,
na permacultura, na geografia, no urbanismo ...
Cabe recuperar a antiga idéia da Economia enquanto ciência da riqueza social, da
reprodução social. Assim, a teoria econômica estabelecida restringe-se à perspectiva
crematística, à uma teoria das trocas em regime de escassez, definindo-se a Crematística
como ciência (da produção) do(s) valor(es) (de troca) para serem capitalizados.
A socioeconomia solidária é uma ciência das riquezas, uma teoria da produção e gestão
visando à abundância social de recursos, permitindo fluir para todos (e não para poucos,
gerando riqueza de um lado, e pobreza de outro) a abundância universal propiciada seja
pelos renováveis fluxos da natureza, seja pela potência gerada nas novas tecnologias.
Por fazer da análise do valor o único objeto, o paradigma dominante despreza as forças
produtivas geradoras de riqueza presentes na natureza, nas instituições ou nas atividades
imateriais, as quais, se não produzem valores imediatos, criam forças produtivas.
Para explicar os fenômenos econômicos é necessário considerar, além da teoria dos
valores, a da força produtiva. As causas da riqueza são diferentes do valor da mesma.
Apesar da força produtiva da riqueza ser infinitamente mais importante que o valor
gerado, a reflexão sobre a mesma está depreciada e subdesenvolvida.
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Ao invés de estar restrito à ação de maximizar valor através da lógica da produção
destrutiva (destruição de riquezas), da exploração do trabalho e da dilapidação da
natureza que configuram o metabolismo do capital (valor que se valoriza); ao invés de
nos apropriarmos do mundo mediante relações de valor, uma verdadeira “ciência da
riqueza” busca a multiplicação das riquezas, com conseqüente diminuição do valor e
não o seu aumento. Aqui um outro metabolismo econômico emerge, fundado na
permanência dos desejáveis, no uso da tecnologia para de fato abreviar trabalho, na
sinergia do compartilhamento dos recursos; e na sanidade dos desejos (“quem quer
muito, carece muito” – Platão), uma vez que as decisões instrumentais são fundadas em
julgamentos de valor.
A racionalidade instrumental não desaparece, mas fica submetida à substantiva. Não se
trata de contrapor a economia solidária à economia mercantil, mas de delimitar esta
última e submete-la ao interesse social. É impossível substituir a totalidade do sistema
econômico mercantil dominante por um outro sistema solidário, substantivo, pois são
âmbitos diferenciados e complementares de atuação. É impossível a transparência
absoluta da vida, algum grau de alienação é inevitável ... Se sempre estaremos presos a
algum grau de trabalho heterônomo, ao reino das necessidades, se sempre haverão
alguns recursos escassos que economizar eficientemente; cabe ampliar o espaço das
liberdades e do trabalho autônomo (Gorz) através da descolonização do imaginário
economicista que infesta nossas mentes, bloqueando o “mercado total” que nos ameaça
– impedindo que os mercados funcionem à preços variáveis autoregulados.
Numa economia reinserida (reincrustada) na natureza e na sociedade (uma
ECOSOCIONOMIA) – que se caracteriza por não fazer da terra, do homem e do
dinheiro mercadoria (superando a sociabilidade mercantil) – o indivíduo não atua
economicamente pela compulsão da fome, nem pelo apetite do lucro. Como a
sociabilidade não se reduz ao intercâmbio, o cidadão não defende meramente seu
interesse pessoal uma vez que ele não se encontra alienado em relação a si mesmo, a
sociedade e ao ecossistema, mas participa da sinergia de um jogo cooperativo onde
todos ganham.
Uma mudança paradigmática é necessária para enfrentarmos os graves problemas
contemporâneos e para usufruirmos dos novos padrões tecnológicos que permitem um
novo salto civilizatório na direção duma sociedade justa e solidária. Se o Planeta tem o
suficiente para uma vida plena de todos, se a miséria resulta da cobiça de poucos,
estamos diante de um problema de solidariedade, de aprender a viver em comum,
compartilhar recursos, pois estes, se compartidos, são abundantes e suficientes para a
nossa felicidade, e não escassos!
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