Anemia na Doença Renal Crônica Anemia in Chronic Kidney Disease Rachel Bregman Disciplina de Nefrologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. RESUMO A anemia é uma alteração comum e pode ocorrer precocemente na evolução da doença renal crônica (DRC). Está diretamente correlacionada com desfechos e qualidade de vida dos pacientes com DRC. Os valores ideais de hemoglobina para esta população tem sido alvo de inúmeros estudos, especialmente a partir do advento dos agentes estimuladores da eritropoiese (AEEs). Muitas controvérsias ainda permanecem sobre o tema, e um resumo apontando o conhecimento existente até o momento será apresentado. Descritores: anemia, doença renal crônica, pré-diálise ABSTRACT Anemia appears almost universally in the course of chronic kidney disease (CKD). It is directly linked to outcome and quality of life of the patients. Defining target level for hemoglobin for this population is still a challenge, particularly in view of the many options of treatment with erythropoiesis-stimulating agents. Many controversies still exist about this issue, and this review aims to present the most current available data. Keywords: anemia, chronic kidney disease, pre-dialysis INTRODUÇÃO A doença renal crônica (DRC) foi classificada por estágios em 2002 para incentivar seu diagnóstico mais precoce, retardar sua progressão e evitar suas complicações 1 . Até o momento, são poucos os estudos que avaliaram a prevalência dos diferentes estágios de DRC nas populações. A anemia é uma das complicações comuns na evolução da DRC 2,3 e sabemos que seu aparecimento é quase universal em pacientes em hemodiálise, porém desconhecemos sua história ao longo da evolução da DRC 4. O tratamento da anemia parece ser realizado em menor escala do que o necessário na prédiálise; provavelmente porque esta é assintomática nos estágios iniciais. Entretanto a anemia precoce é associada a maior hospitalização e morte 2. O Que é Anemia? O diagnóstico da anemia é fundamental. Para isso, a hemoglobina (Hb) deve ser avaliada em todos os pacientes portadores de DRC. Preconiza-se que a Hb deve ser avaliada pelo menos uma vez ao ano. A definição de normalidade para hemoglobina é de 13,5g/dL para homens e de 12g/dL para mulheres 5. Valores abaixo destes representam anemia, porém não implicam necessidade de tratamento no caso de indivíduos com DRC. Chamamos a atenção para o fato de que todos os pacientes devem ser avaliados e não somente aqueles que estejam sendo tratados com agentes estimuladores da eritropoiese (AEE). No decorrer da evolução da DRC, a anemia deve ser avaliada periodicamente, uma vez que esta se correlaciona com o valor da filtração glomerular (FG) 2 .Pequenas diminuições da FG levam a leves variações da Hb que não são valorizadas, especialmente por outras especialidades, e, nestes estágios, são outros especialistas que acompanham a maioria dos pacientes com DRC, especialmente aqueles no estágio 3. O NHANES III mostra uma diminuição da Hb em homens já com FG < 70mL/min e em mulheres < 50mL/min 2. Quando a FG atinge valores abaixo de 30mL/min, o aparecimento da anemia é mais comum. Mostrou também que anemia é subdiagnosticada e, consequentemente, subtratada, embora a anemia precoce esteja associada a maior hospitalização e mortes. No entanto os estudos que avaliaram a normalização da Hb não foram capazes de demonstrar seu efeito benéfico 6,7. Salientamos que a população idosa merece atenção especial, uma vez que a FG pode estar diminuída com níveis quase normais da creatinina, e a anemia pode não ser diagnosticada 8. Outro grupo de indivíduos que desenvolve anemia mais precoce na DRC é o de diabéticos, e esta tende a ser mais severa, além de tornar estes indivíduos mais suscetíveis à doença vascular 9,10. Vários mecanismos que agem através do estresse oxidativo e inflamação causam anemia nos portadores de DRC e podem levar à diminuição da meia vida dos eritrócitos, aumentar a produção de hepcidina (hormônio que inibe a absorção de ferro no intestino e mobilização dos estoques de ferro) 11, diminuir a produção 37 da proteína transportadora de ferro, a transferrina e seu receptor e, finalmente, induzir a resistência à eritropoiese 12 . ESTOQUES DE FERRO O status de ferro é fundamental e muito se aprendeu a este respeito nos últimos anos. As avaliações dos estoques de ferro são mandatórias e os valores de referência são os apresentados nas diretrizes para tratamento de anemia 13. Na pré-diálise, a necessidade de ferro é sempre menor 14. Nesta fase da DRC, a suplementação oral de 100 a 200mg/dia pode ser suficiente. Caso não haja melhora dos parâmetros que analisam a cinética do ferro, o tratamento deve ser realizado com ferro venoso. Os níveis de ferro recomendados estão diretamente relacionados ao alvo de Hb que se pretende atingir e à otimização do uso dos AEEs. O status de ferro deve ser sempre lembrado quando houver hiporresponsividade aos AEEs. NÍVEL DE HEMOGLOBINA Anemia é um achado comum em pacientes portadores de DRC, no entanto, sempre que nos referimos a esta entidade, correlacionamos com pacientes em tratamento por terapia renal substitutiva (TRS), a maioria dos estudos disponíveis sobre o assunto analisou efeitos e causas de anemia e tratamento de pacientes em hemodiálise. Nos últimos dez anos, atenção especial passou a ser dada a portadores de DRC em estágios mais precoces, especialmente 3 e 4, quanto à prevenção secundária das complicações, e a anemia é uma das principais. Vários fatores contribuem para a patogênese da anemia da DRC, e associa-se a este fato a correlação da anemia com a doença cardiovascular (DCV) e, consequentemente, com maior risco de morbidade e mortalidade. Esta hipótese tem implicado a anemia como responsável por vários desfechos que ocorrem em portadores de DRC. Respostas definitivas para as questões da anemia não estão disponíveis. Muitos estudos são observacionais, com poucos pacientes e com diferentes alvos a serem atingidos quanto ao tratamento da anemia. A discussão visando ao nível de hemoglobina que se pretende atingir utilizando-se AEE é pertinente devido à necessidade de se manter um balanço entre seus benefícios e seus riscos, além de se considerar o seu custo 15 . As diretrizes se baseiam em benefícios e riscos, levando em conta dados da literatura. Os alvos de hemoglobina foram alterados ao longo dos últimos dez anos. As primeiras diretrizes de anemia do K/DOQI de 1997 16 e a subsequente atualizada em 2001 17 propõem a faixa de 11–12g/ dL. Em 2006, houve uma mudança para 11–13g /dL 5. No entanto, curiosamente e contrariando as expectativas, os grandes “trials” realizados revelaram que a elevação da Hb quando próxima de valores normais aumentou a morbidade e mortalidade destes pacientes 6,7. Com estes dados, assumiu-se que a correção da anemia poderia ocasionar desfechos indesejáveis, e assim, em 2007, o K/DOQI retornou à indicação dos valores de 11–12g/dL. 18 Estudos avaliando o uso de AEE em fase precoce da DRC são poucos e pequenos, não controlados e geralmente avaliam elevação da Hb a partir de níveis muito baixos, atingindo assim modesta correção. Porém, os resultados destes estudos mostram benefícios para os pacientes, especialmente no que diz respeito à qualidade de vida e diminuição de transfusões 19. O interesse científico assim rapidamente se voltou para corrigir a Hb para níveis mais elevados, ou até mesmo para os níveis de normalidade. Muitos estudos observacionais foram publicados, tentando correlacionar nível de Hb com ou sem uso de AEE com desfechos como mortalidade e risco de hospitalização 20-22. Salienta-se que a maioria dos estudos é realizada em pacientes em tratamento por TRS e os resultados são utilizados para todos os estágios da DRC, o que pode não ser adequado. Os estudos disponíveis mostram que níveis mais baixos de hemoglobina estão associados com maior mortalidade e maior risco de hospitalização 2. Porém, mais uma vez, comparam-se estudos que utilizam metodologias e alvos distintos entre si. Um destes estudos mostra que a Hb < 11,5–12,0g /dL acarreta maior número de desfechos. Entretanto não se observa, por outro lado, nenhum benefício com a Hb > 13,0g /dL.19. Em resumo, os dados disponíveis sugerem que com Hb variando entre 9,5 e 11,5g/dl, a evolução é melhor do que com aqueles mantidos entre 13,5-15g/dL. Entretanto a faixa intermediária permanece sem resposta, e é este ponto que se mantém como a grande controvérsia sobre o tratamento da anemia. VARIABILIDADE DA HEMOGLOBINA A manutenção da Hb na faixa de 11-12g/dL mostra que existe dificuldade em se manter este estreito patamar. A flutuação dos valores da hemoglobina tem sido apontada J Bras Nefrol 2009;31 (Supl 1):36-41 38 como maléfica 23 e se relaciona com os desfechos dos pacientes. Há tentativas de se instituir algoritmos para atingir as metas desejadas com o uso de AEE, mas isso não é simples. O sistema não é estático, os AEEs agem como qualquer outro fator biológico, com variações que podem ser grandes, e assim temos indivíduos que não permanecem na estreita faixa de normalidade. Entretanto a variabilidade da Hb não parece ser um fator determinante de problemas no tratamento conservador da pré-diálise ANEMIA E REMODELAMENTO CARDÍACO Alterações cardíacas são correlacionadas com a anemia. A DCV é a maior causa de morte em portadores de DRC, logo qualquer fator que agrave a doença cardíaca é sempre de grande impacto para esta população 24. A diminuição da concentração de Hb acarreta maior trabalho cardíaco, em curto prazo, esta estratégia compensa a oxigenação tecidual, em longo prazo, este mecanismo ocasiona hipertrofia do ventrículo esquerdo (HVE) e provável doença isquêmica, com consequente insuficiência cardíaca e possível infarto do miocárdio. Estudos observacionais sugerem que estes mecanismos são frequentes, apesar desta correlação ainda não estar totalmente clara na DRC. Dados disponíveis não mostraram benefício quanto à DCV em pacientes tratados para anemia 25. Sabemos que a HVE está presente em cerca de 75% daqueles que iniciam TRS 26. A prevenção desta deve ser perseguida em fases mais precoces da doença. Entretanto o papel da anemia permanece não definido como um fator modificável para a DCV nos estágios mais precoces da DRC. Sabemos apenas que concentrações de Hb <12g/dL se relacionam com maior incidência de HVE. A presença de hipertensão arterial é muito comum nesta população, associada à anemia, participa da HVE e ambas parecem não ser tratadas adequadamente nesta população. Levin e cols 24 mostraram que o risco para HVE foi igual se a pressão sistólica aumentasse 15mmHg ou se hemoglobina diminuísse 0,5g/dL. O NHANES III mostrou que a anemia é subdiagnosticada e subtratada 2. Porém, estudos que avaliaram a normalização da Hb não demonstraram seu efeito benéfico na HVE 19. Este dado aparentemente contraditório pode indicar que talvez seja necessário que haja um controle pressórico rigoroso associado, ou que o tratamento da anemia deva ser instituído mais precocemente. Estas são questões que permanecem sem respostas. J Bras Nefrol 2009;31 (Supl 1):36-41 AGENTES ESTIMULADORES DA ERITROPOIESE O uso dos AEEs revolucionou o tratamento da anemia na DRC, reduziu as transfusões de sangue e complicações como sobrecarga de ferro. No início do uso destes, o objetivo era de correção parcial da anemia, porém estudos observacionais correlacionavam maiores valores de Hb com maior sobrevida. Apesar da revolução que os AEEs introduziram na prática clínica, muitas questões permanecem até hoje, duas décadas após, sem repostas. Tais como quando iniciar o uso dos AEEs? Qual o alvo que deve ser atingido? E quais os desfechos que devem ser considerados para avaliar os benefícios e malefícios dos AEEs? O debate inicial se limitava ao uso dos AEEs em pacientes em TRS, porém foi ampliado para o tratamento na pré-diálise em todos os seus estágios. As diretrizes publicadas até o momento foram de grande ajuda no tratamento da anemia, no entanto várias lacunas permanecem sem respostas. O limite superior da Hb é objeto de discussão intensa desde a primeira diretriz, que se baseou em estudos observacionais que mostravam redução da hospitalização e mortalidade 19,20,27. Dois fatores que contribuem para os desfechos não serem melhores com maiores níveis de Hb são: dificuldade de se atingir o nível de Hb e necessidade de altas doses de AEE 6,7. Em um estudo observacional, menor resposta à terapia, bem como altas doses de AEE, foi associada a aumento da mortalidade 28. Revisão recente do estudo CHOIR 29, um dos mais importantes na definição do alvo de Hb no tratamento conservador, sugere que o nível de Hb não seria responsável pelos efeitos deletérios encontrados quando da normalização da Hb, mas sim a dose de AEE que foi necessária para atingir o alvo do estudo. Esta nova análise mostra que aqueles que deveriam atingir níveis mais elevados de Hb utilizaram maior dose e, mesmo no grupo que deveria atingir o alvo menos elevado, os que apresentavam hiporresponsividade e que necessitaram de doses maiores também apresentaram mais complicações. Em resumo, esta reanálise sugere que altas doses de AEE, seja devido à baixa resposta ou para elevar o nível de Hb, estão associadas ao aumento da mortalidade. QUANDO INICIAR O TRATAMENTO COM AEE? A clínica do paciente é a indicação mais precisa. Números rígidos nem sempre contemplam esta situação. Conforme mencionado no K/DOQI 18, o alvo esperado para Hb, no qual devemos iniciar o uso de AEE, deve sempre levar em conta benefícios ao paciente, tais 39 como melhorar a qualidade de vida e evitar transfusões, além de evitar eventos adversos decorrentes do próprio uso dos AEEs. No tratamento conservador pré-diálise, este momento é ainda mais impreciso. Pacientes em TRS quase que na sua totalidade apresentam anemia, o que ocorre de forma não uniforme na população em tratamento conservador. Assim sendo, é fundamental que haja atenção ao diagnóstico da anemia, se esta estiver presente, a cinética de ferro deve ser avaliada e o paciente deve ser mantido com estoques de ferro dentro da normalidade, excluídas outras causas, os AEEs devem ser iniciados se a Hb se mantiver em níveis inferiores a 11g/dL 30. HIPORRESPONSIVIDADE AOS AEES Não existe uma definição padrão para a hiporresponsividade a AEE. Uma maneira de se defini-la é quando o alvo preconizado de 11-12g/dL não é atingido, apesar do tratamento adequado com ferro e utilização de altas doses de AEE. Se, ainda assim, o nível de Hb se mantiver abaixo de 11g/dL, este paciente pode ser denominado de hiporresponsivo. ANEMIA NO PÓS-TRANSPLANTE (APT) População que apresenta características especiais e que deve ser considerada como portadora de DRC em tratamento conservador são os indivíduos com transplante (Tx) renal. Estes já foram portadores de DRC terminal e, assim, se encontram no grupo de risco para desenvolver a doença “de novo”. Paralelamente, um grande número de pacientes com enxerto renal apresenta FG < 60mL/min, caracterizando a DRC. Estes indivíduos normalmente são avaliados de forma mais cuidadosa quanto à imunossupressão e menos frequentes são as avaliações referentes às demais complicações da DRC como hiperparatiroidismo, anemia e outras. Anemia no pós-transplante (APT) renal é um problema comum. A principal causa associada a esta é reconhecidamente a variação da função do enxerto e, consequentemente, da FG 31. Alguns estudos apontam os agentes imunossupressores como responsáveis pela anemia 32, a qual contribui para a mortalidade e morbidade em portadores de DRC de qualquer etiologia e não é diferente para aqueles com transplante 33. A prevalência e incidência da APT tem sido pouco investigada, apesar de se estimar que esta ocorra em 30% a 60% dos pacientes transplantados 34,35. Após um Tx de sucesso, a FG se recupera, porém a anemia persiste em alguns pacientes e as principais causas são as deficiências de ferro e de eritropoetina. Estudos mostram que a anemia aumenta sua prevalência ao longo do tempo, tanto em homens quanto em mulheres, fortalecendo a teoria de que a diminuição da FG se correlaciona com a anemia 34,36. Entretanto, como mostrado em estudo recente, apesar de a prevalência de APT ser elevada, a maioria dos pacientes não recebe tratamento com suplementação de ferro e/ou AEE, sendo somente 18% destes tratados 31. Em estudo europeu que analisou a APT, mostrou-se que apenas 5% dos pacientes anêmicos estavam sendo tratados adequadamente 4. Alguns estudos apontam os agentes imunossupressores como causa da anemia, entretanto outros não mostram correlação da APT com estas drogas, bem como estudo publicado recentemente que também não evidenciou essa relação 31. Ao contrário, a APT se correlacionou somente com o clearance de creatinina, redução da produção e resistência à eritropoetina. Em resumo, até o momento, os dados disponíveis são escassos, porém sugerem que a anemia é uma complicação frequente no pós-transplante. A sua correção melhora a qualidade de vida e diminui a morbidade e mortalidade desta população. Sugerimos que a APT deve ser investigada rotineiramente e, quando presente, deve ser tratada com suplementação de ferro e AEE, tal como em portadores de DRC sem enxerto renal. CONCLUSÕES: Diante deste panorama, fica claro que muito temos a esclarecer nesta área, especialmente no que diz respeito aos pacientes em tratamento conservador. Os dados disponíveis sugerem que pacientes com DRC, quando mantidos com valores de Hb variando entre 9,5 e 12g/dL, apresentam menos complicações e número reduzido de desfechos, comparados com valores entre 13,5-15g/dL, incluindo as complicações cardiovasculares. No entanto a faixa intermediária permanece sem resposta, e é este ponto que se mantém como a grande controvérsia sobre o tratamento da anemia, especialmente nos estágios iniciais da DRC. REFERÊNCIAS: 1. K/DOQI clinical practice guidelines for chronic kidney disease: evaluation, classification, and stratification. Kidney disease outcome quality initiative. Am J Kidney Dis 2002; 39:S1-246. 2. Astor BC, Muntner P, Levin A, Eustace JA, Coresh J. Association of kidney function with anemia: the Third National Health and Nutrition Examination Survey (1988-1994). 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