ensaio[1] - Gustavo Brun

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ENSAIO
Mundo virtual e memória
Gustavo Héctor Brun1
Há muitos, muitos anos, antes da história, no tempo em que os seres humanos
não conheciam as letras e podiam lembrar somente a partir do que tinham escutado ou
vivido pela própria experiência, o demônio Toth, que os egípcios simbolizaram na
figura de uma garça, descobriu o cálculo pelos números, a geometria, os dados e a
escritura. Toth, com estes inventos, apresentou-se a Zamus, que na época reinava na
cidade de Tebas, no Egito, cujo deus supremo era Ammón. O demônio Toth apresentoulhe seus inventos e expressou seu desejo de levar as novidades para que o povo egípcio
as conhecesse. Mas antes disso, o rei Zamus começou a perguntar pela utilidade de cada
uma das coisas que Toth lhe mostrava. Conforme as explicações fossem boas ou más,
ele reprovava ou elogiava os inventos. Essa conversa sobre as artes levou muito tempo,
e tanto dialogaram, que ficou impossível lembrar tudo o que a respeito delas tinham
dito. Nesse momento chegou a hora de descrever os caracteres da escritura: Eis, meu
rei – falou Toth – um conhecimento que terá por efeito fazer os egípcios mais instruídos
e capazes para lembrar. Assim, a memória, como a instrução, acharam na escrita um
remédio, uma droga.
Desde então a escritura é uma droga que quando bem utilizada auxilia a
memória, mas ao tempo que é um apêndice para lembrar, prejudica um antigo hábito, o
de reter na memória tudo o que é considerado importante para o homem no convívio
com seu povo. Com o passar do tempo, por séculos, o ato de escrever esteve reservado
para uns poucos, mas a memória foi uma capacidade que o homem desenvolveu com
cuidado, como se desenvolve a força dos braços, das pernas. Assim como a função faz o
órgão, a capacidade de memória dependia do hábito de fortalecê-la pelos exercícios
mnemotécnicos de recordação.
O mito da origem da escritura foi registrado por Platão no século V a.C. no
diálogo Fedro, e por séculos os sábios filósofos se espantaram com a idéia daquele
grego que se aventurou a questionar as bondades absolutas do ato de escrever. Tivemos
que esperar até meados do século passado para que Derrida reconhecesse seu valor de
fármaco, ou seja, de droga. Uma droga é um suplemento ambivalente, já que escrever
pode ajudar a lembrar, mas também pode acabar com a necessidade de “fazer
memória”.
Na antiguidade, assim como ainda hoje em algumas culturas tradicionais, a
palavra falada tinha seu valor de documento, herança constitutiva do psíquico que
passava de geração em geração, usufruindo da atemporalidade da língua e assegurando,
com sua sincronia, o caráter perene das experiências mais significativas do homem. Por
séculos o homem cultivou a memória repetindo versos, relatos míticos e rituais que
escreviam sua subjetividade, mas aquela virtude de traços mnémicos culturalmente
garantidos foi esmagada pela escritura fonológica. Em compensação essa escrita
ofereceu ilimitadas experiências a disposição do leitor, coleções de dados, informações,
que ainda deixando suspenso o sustento pulsional de todo fato vivido, tem valor de
registro.
Passaram centenas de anos e a engenhosa imprensa mecânica de Gutemberg
ficou à sombra da informática. Nos últimos vinte anos a escritura fica independente da
corporeidade do papel, pois as representações que outrora se ancoravam na palavra
gráfica passam agora navegando pelo mundo virtual. Torrentes de informação brilham a
frente de nossos olhos criando um espaço ideal com consistência imaginária para
sustentar o reflexo do ego. Assim como o demônio Toth, estamos com o instrumento
capaz de tornar o homem mais instruído e capaz de lembrar com sua nova memória
virtual sem os limites humanos. A questão é inevitável: será que a informática, como a
escrita no começo da historia, tem a ambigüidade da farmacéia? É uma droga?
Num espaço reduzido, um vidro retangular luminoso capaz de situar-se como
mundo virtual oferece informação e comunicação constante. Mas esse universo é virtual
somente na medida desejada, já que nele também os objetos podem se intercambiar com
efetividade. Em grandes números, no ano de 2008, um cálculo do IBOPE mostrou que
no Brasil, cada usuário ficou em média 24 horas por mês, informando-se, relacionandose, comprando, amando, distraindo-se ou trabalhando. O usuário ideal está conectado na
rede que lhe permite o intercâmbio de informação e também a reserva em memória
virtual de tudo aquilo que ache conveniente.
Embora a conexão na rede permita ao homem tolerar a angústia - porque as
representações fluem constantemente como informação disponível para quase todas as
atividades humanas - o encontro com o semelhante continua se tornando difícil; a
pulsão não pode ser informatizada (por enquanto, dizem) e o corpo libidinal começa a
se queixar da vacuidade dos vínculos virtuais. O vazio insiste, mais uma vez parece
crescer e se alimentar com o mesmo objeto que começou cobrindo-o. Mas isso não
deveria nos surpreender, já que a virtualidade nasceu próxima da alienação, no sentido
de deixar o sujeito alheio ao mundo corpóreo, afastando-se e apartando-se do seu
próximo.
Por definição, informação seria uma comunicação ou a aquisição de
conhecimentos que permitem ampliar ou precisar os que já possuímos sobre alguma
coisa; ou seja, a informação tem como pressuposto uma formação que seja continente.
Sem a formação que situa os limites exteriores do corpo e do psíquico, sem essa
configuração que é o reconhecimento de alguma coisa de si mesmo no outro, a
informática cresce em quantidade e seus efeitos são alienantes, fazem navegar, mas sem
reservar momentos de apropriação. Nessa perspectiva não demoraríamos em julgar,
reeditando as razões do demônio Toth, que mais uma vez estamos ante um fármaco,
uma droga, quando os traços de informação não se inscrevem como experiência, nem
chega a ser memória cultural, é só memória virtual.
Referências Bibliográficas:
DERRIDA, J. (1984) La Farmacia de Platón in La Diceminación. Buenos Aires, Ed.
Paidós.
FREUD, S. (1892-1899) Carta 52. In: Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. Trad.
J Salomão. Ed. Standard Brasilera. Rio de Janeiro, Imago, 1988.
FOUCAULT, M. (1971) A arqueologia do saber Trad. L.F. Baeta Neves. Rio de janeiro
Editora Vozes.
PLATÃO. Fedro. In: diálogos. Vol. I. Madrid, Ed. Gredos, 1987.
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Professor do Curso de Psicologia. DFP. Unijuí
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