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Cenários, Porto Alegre, n.7, 1° semestre 2013
AS INTERAÇÕES ENTRE LINGUAGEM E CULTURA
NOS DISCURSOS DO COTIDIANO
INTERACTIONS BETWEEN LANGUAGE AND
CULTURE IN THE EVERYDAY SPEECHES
Vera Lúcia Pires7
Viviane Roduit de Souza8
Anelise Verlaine9
Juliana Bressan10
Resumo
Este trabalho tem como objetivo investigar e discutir as interações entre linguagem e cultura ocorridas
nos discursos do cotidiano, além de compreender como esses discursos são produzidos e consumidos
pela sociedade e de que forma afetam-na. Concebida como elemento constitutivo dos processos sociais
e dos sujeitos (HALL, 1997), a cultura opera em todas as instâncias da vida humana, definindo e
redefinindo práticas discursivas e sociais. A cultura é tratada em sua pluralidade, como “o processo
global por meio do qual as significações são social e historicamente construídas” (MATTELART e
MATTELART, 1999, p. 105). Desse modo, há um dialogismo entre os discursos do cotidiano,
entendendo-se o discurso como uma prática social historicamente situada, enquanto no que se refere à
cultura, define-se como o conjunto das significações provenientes da atividade humana que perpassam
e constituem esses discursos. Como efeito, parte-se da perspectiva de que a identidade social é
construída a partir do momento em que se interage com diferentes experiências, criando novos
conceitos de mundo, de como entendê-lo, e de nele encontrar o seu lugar. É por essa razão que a
linguagem é a fonte mais importante de representações coletivas. A atividade publicitária produz
elementos que, com o decorrer do tempo, são integrados à cultura popular. Essa incorporação conferelhe novos significados, constituindo-se, desse modo, uma prática de intertextualidade.
Palavras- chave
Linguagem. Interação. Cultura. Intertextualidade.
Abstract
This paper aims to investigate and to discuss the interactions between language and culture occurred in
the everyday speeches, and to understand how these discourses are produced and consumed by society
and how they affect it. Conceived as a constitutive element of social processes and subjects (Hall,
1997), culture operates at all levels of human life, defining and redefining discursive and social
practices. The culture is treated in its plurality, as "the overall process by which the meanings are
socially and historically constructed" (MATTELART and MATTELART, 1999, p. 105). Thus, there is
a dialogism between the everyday discourses, understanding the discourse as a social practice
historically situated, while in relation to culture, defined as the set of meanings from human activity
that underlie and constitute these discourses . In effect, we start from the perspective that social identity
is constructed from the moment that interacts with different experiences, creating new concepts of the
world, how to understand it, and find their place in it. It is for this reason that language is the most
important source of collective representations. The advertising activity produces elements that, over
7
Doutora em Letras, professora adjunto da UniRitter e colaboradora voluntária do PPGLetras da UFSM
Bolsista de IC da FAPERGS.
9
Bolsista de IC da UniRitter.
10
Bolsista de IC da UniRitter.
8
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time, are integrated into the popular culture. This merger gives it new meaning, becoming thus a
practice of intertextuality.
Keywords
Language.Interaction. Culture. Intertextuality.
INTRODUÇÃO
As interações entre linguagem e cultura, que perpassam as práticas sociais
cotidianas, produzem efeitos nas relações sociais, como reflexo do uso da linguagem. O
indiscutível alcance sociocultural dos discursos produzidos pela mídia contemporânea
torna o estudo dessas práticas discursivas uma questão fundamental para a pesquisa
acadêmica. Além disso, a investigação de tais discursos, embora voltada à análise
linguística, favorece o exercício da interdisciplinaridade, tema que desperta o interesse
de pesquisadores pertencentes às diversas áreas das Humanidades que se ocupam da
discussão a respeito da interação entre linguagem, cultura e sociedade, tais como:
Comunicação Social, Psicologia, Sociologia, Educação, etc.
Linguagem e sociedade se encontram em relação dialética, o que pressupões a
ação dos sujeitos por meio de discursos e das demais práticas sociais. Tal dinâmica
converge para as questões linguísticas, que devem ser consideradas lado a lado com os
problemas de ordem social. Devido à natureza social e não individual da linguagem, a
língua, bem como os indivíduos que a usam, deve estar situada em um contexto sóciohistórico. “A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam”
(BAKHTIN, 1997: 282), da mesma forma que, por meio deles, a vida penetra nela.
A atividade publicitária como prática de interação social midiatizada,
materializada em textos geralmente polissêmicos, apresenta um propósito bem definido,
qual seja, o de persuadir. Assim, o uso de textos verbais e/ou visuais, constituintes de
determinada esfera cultural, os quais são reconhecíveis pelos leitores, consiste em uma
estratégia de criação publicitária que se utiliza de meios multimodais para convencer os
seus leitores-consumidores a adquirirem determinados produtos e/ou serviços.
No que concerne à cultura, enquanto elemento constitutivo dos processos sociais
e dos sujeitos (HALL, 1997), entende-se que ela opera em todas as instâncias da vida
humana, definindo e redefinindo práticas discursivas e sociais. A cultura, tanto constitui
os discursos, quanto é por eles constituída nos mais diversos usos da linguagem, como
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as práticas discursivas publicitárias, as quais produzem elementos que, no decorrer do
tempo, tanto incorporam como geram novos significados à cultura.
Assim, este trabalho propõe-se a realizar uma reflexão teórica e uma incursão de
ordem prática voltada às representações sociais identificadas nos discursos publicitários
e, desse modo, investigar como elas produzem sentidos nas práticas sociais. O aporte
analítico deste estudo volta-se às formas significativas, visuais e discursivas,
relacionadas às práticas discursivas da mídia publicitária.
Vinculado a este aporte teórico, adota-se como procedimento metodológico
aquele baseado na análise dialógica do discurso, abrangendo as duas esferas da
enunciação, a dimensão social e a verbal. Na dimensão social, em que se considera o
sujeito como histórico e social, é levado em conta o contexto no qual ele se desenvolve.
Com relação à esfera verbal, compreendemos a análise propriamente dita. São
verificadas, assim, ocorrências linguísticas e visuais em textos publicitários
multimodais, além de descrevê-las. Por fim, são realizadas interpretações das
representações sociais, discursivas e de imagens, verificadas nesses textos.
LINGUAGEM, CULTURA E DISCURSOS: INTERAÇÕES
Faz parte da experiência de qualquer falante nativo a noção de que a sua língua
não é falada de maneira uniforme por todos os membros da comunidade. Não é
necessário um senso de observação muito apurado para se perceber que, ao sul Brasil,
no Rio Grande do Sul, por exemplo, fala-se um português (regionalmente chamado de
gauchês) repleto de diferenças em relação ao idioma falado em outras regiões do país.
Sendo assim, a linguagem é a fonte mais importante de representações coletivas.
Jovchelovitch (2000, p. 65) acrescenta que, por meio dela os seres humanos “lutam para
dar sentido ao mundo, entendê-lo e nele encontrar o seu lugar, através de uma
identidade social”. Tal forma de identidade é construída por meio de vivências e de
experiências plurais e diversificadas; de encontros da vida pública que produzem “uma
realidade plural e tem sua base no diálogo e na conversação”. (JOVCHELOVITCH,
2000, p. 68).
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Linguagem
Integrando o enfoque da linguagem como uma representação social, inclui-se a
teoria dialógica da enunciação de Mikhail Bakhtin, a qual propõe um processo de
intersubjetividade, cujo suporte é a relação sujeito-linguagem-história-sociedade. Na
instituição desse processo, a identidade decorre do reconhecimento desse sujeito
histórico por meio da alteridade, ou seja, de outros seres sociais.
A experiência do cotidiano e a manifestação dialógica são pontos capitais para
os estudos bakhtinianos da linguagem. A relevância do estudo dos gêneros discursivos
cotidianos é enfatizada no conjunto da obra do autor, pois é devido à dimensão dos
gêneros que a natureza social da linguagem é diretamente percebida por meio da relação
entre o enunciado e o meio social circundante.
Como possibilidade de demonstrar o processo relacional de intersubjetividade, é
analisada a questão da intertextualidade, a qual aparece nos textos publicitários, como
um relevante e criativo recurso de linguagem, evidenciando o caráter multifacetado e
dialógico do discurso.
Para se pensar em intertextualidade, é necessário retomar o conceito de
dialogismo, conceito basilar do pensamento bakhtiniano, princípio constitutivo da
linguagem do qual se derivam, em síntese, duas noções: o diálogo entre interlocutores e
o diálogo entre textos. Bakhtin (1997, p.35-36) propõe o dialogismo como propriedade
fundamental da linguagem (seja como língua, seja como discurso), princípio que se
estende à sua concepção de mundo e de sujeito. Há uma dialogização interna da
linguagem, que se dá por via da interação entre as palavras dos sujeitos.
Além disso, como já foi salientado, é possível verificar que a linguagem e a
sociedade constituem-se em relação dialética. Por tal fator, entende-se que os sujeitos
agem por meio de discursos e das demais práticas sociais. Definir a linguagem como
prática social significa compreender que, além de um modo de representação, ela é,
também, um modo de ação das pessoas sobre o mundo e sobre outras pessoas, bem
como uma prática de significação.
No momento em que bordões, jogos de palavras e slogans inventivos passam a
integrar as esferas cotidianas de uso da linguagem, isto é, as conversas informais, a
cultura midiática torna-se, em parte, cultura popular, no sentido de que passa a integrar
a fala de pessoas comuns, fazendo do discurso publicitário um material de pesquisa
promissor, razão pela qual será o foco das análises apresentadas neste artigo.
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Cultura
Hoje diversos conceitos são atribuídos ao termo cultura. Essa palavra se origina
do latim, colere, e significa cultivar. Com os romanos, pela primeira vez o termo foi
empregado no sentido de destacar a educação aprimorada de uma pessoa, o seu interesse
pelas artes, pela ciência, pela filosofia, em resumo, por tudo o que o homem produziu ao
longo da história. A partir de novos estudos na área, cultura passa a ser tratada, em sua
pluralidade, como "o processo global por meio do qual as significações são social e
historicamente construídas" (MATTELART e MATTELART, 1999: 105).
No Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque (1999), a quarta
acepção do termo cultura indica que essa trata do complexo dos padrões de
comportamento, das crenças, das instituições e dos valores espirituais e materiais
transmitidos coletivamente, os quais são característicos de uma sociedade. Nesse
mesmo sentido, Caldas (2008) afirma que existe uma cultura regional com traços
diversificados em todos os estados brasileiros. Geertz (1989) enfatiza, entretanto, que
além das características locais, a cultura envolve um conjunto de mecanismos de
controle – planos, receitas, regras, instruções - para governar o comportamento.
Observa-se, também, um estreito vínculo entre linguagem e cultura: uma é
expressão da outra. Essas duas entidades possuem uma relação tão ampla e complexa,
que abrange desde a consideração de que as estruturas linguísticas podem se edificar, a
partir de uma situação cultural, até a afirmação, em sentido contrário, de que os
costumes linguísticos, de determinados grupos, tenham moldado, fundamentalmente, a
cultura desses povos. Ou seja, dialeticamente, a linguagem modifica a cultura e esta
modifica aquela. As interações entre linguagem e cultura nos discursos do cotidiano têm
seus efeitos sobre as relações sociais como reflexo do uso da linguagem. Deduz-se,
dessa maneira, que há um dialogismo entre os discursos do cotidiano e a cultura.
Concebida como elemento constitutivo dos processos sociais e dos sujeitos
(HALL, 1997), a cultura por operar em todas as instâncias da vida humana, define e
redefine práticas discursivas e sociais. Os estudos midiáticos do cotidiano surgem como
significativos materiais para o estudo das interações entre linguagem e cultura, para a
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compreensão de como esses discursos são produzidos e consumidos, e quais são os seus
reflexos na sociedade.
Visto que a sociedade é formada por um grupo organizado de pessoas regidas
pelo mesmo conjunto de normas e de leis, cujo objetivo é a manutenção do que constitui
essa sociedade, é preciso levar em conta que esse conjunto de regras encontra-se em
constante processo de transformação. Segundo Hall (1997), as sociedades modernas são
sociedades de mudança constante, rápida e permanente, sendo possível afirmar que as
diferentes construções sociais encontram-se na base da produção das diversas
sociedades.
Os comportamentos de uma família são distintos dos de outras, as manifestações
socioculturais de diferentes cidades são distintas entre si, a formação de cada país é
específica e não se repete. Stuart Hall também ensina que falar uma língua não significa
apenas expressar pensamentos mais interiores e originais. Significa também ativar a
imensa gama de significados que já estão ‘embutidos’ em nossa língua e em nossos
sistemas culturais.
Apesar da inter-relação cultura e sociedade, e apesar de uma ser imprescindível
à outra, deve-se levar em conta o aspecto de que ambas são distintas e de que, assim,
apresentam dinâmicas diferentes. A dinâmica da cultura permite que, ao longo do curso
da História, ela adquira novos elementos e que abandone outros, devido ao desuso. Os
padrões culturais, sob essa perspectiva, podem ser vistos como resultantes de distintas
formas de interação social e têm como finalidade conservar determinada organização
social.
Portanto, ao analisar a relação dialógica entre linguagem e cultura contida nos
discursos do cotidiano é imprescindível levar em conta os padrões culturais da
sociedade na qual esses discursos foram produzidos. Cada sociedade ou grupo possui
valores e padrões que dinamizam, a todo o momento, a cultura vivida no cotidiano.
Discursos
Compreendidos como práticas sociais, os discursos produzidos nas esferas
cotidianas ajudam a construir o pensamento médio. Em consequência, os gêneros da
mídia publicitária, por exemplo, funcionam como representações sociais e refletem o
pensamento do senso comum. Além disso, devido a sua presença constante na vida das
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pessoas, esses contribuem para a naturalização de crenças e de papéis sociais, de
preconceitos e de relações de poder.
Entretanto, definir o discurso como prática social significa compreender que,
além de um modo de representação, ele é um modo de ação das pessoas sobre o mundo
e sobre outras pessoas, bem como uma prática de significação, pois, uma vez que a
relação entre discurso e estrutura social é dialética, o discurso é, ao mesmo tempo,
moldado pela estrutura social e constitutivo de tal estrutura. O discurso também é uma
prática especificamente discursiva, ao materializar-se em textos. Logo, toda prática
discursiva carrega uma dimensão social (a prática social) e uma dimensão material ou
materialidade linguística (o texto).
Os sujeitos agem por meio de discursos e das demais práticas sociais que
constroem suas identidades sociais, a partir do momento em que se interage com
diferentes experiências, criando-se, assim, novos conceitos de mundo e novas maneiras
de entendê-lo e de habitá-lo.
As práticas sociais, originando-se das interações entre linguagem e cultura,
desenvolvem relações sociais por meio do seu principal meio, a linguagem. A
publicidade, por exemplo, ao operar com textos verbais e/ou visuais, tem a capacidade
de produzir subsídios que com o passar do tempo, juntam-se à cultura popular
propriamente dita, originando-se, a partir desse processo, um exercício de
intertextualidade.
Os discursos midiáticos presentes no cotidiano constituem-se, em vista disso, em
materiais de interesse para o estudo das interações entre linguagem e cultura, para a
compreensão de como esses discursos são historicamente produzidos e consumidos e,
além disso, oferecem suporte para a identificação e análise de seus reflexos na
sociedade.
METODOLOGIA
O encaminhamento metodológico desta pesquisa tem cunho qualitativo, pois a
pesquisa realizada teve como fonte os discursos de variadas formas midiáticas do
cotidiano. A explicação, compreensão e interpretação dos dados coletados centram-se
na análise dinâmica de aspectos das relações sociais.
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As informações colhidas são de caráter descritivo, analítico e interpretativo:
conforme os resultados parciais obtidos, os anúncios publicitários foram descritos,
analisados e interpretados.
A seleção do corpus de análise desta pesquisa foi realizada por meio da escolha
de material publicitário, envolvendo conteúdo identitário e cultural. Foram escolhidos
três exemplares: a) vídeo publicitário Bah da cerveja Polar, veiculado pela TV aberta no
ano de 2011; b) Coisas que Porto Alegre fala, vídeo veiculado pelo YouTube a partir
de março de 2012; e c) Comercial intitulado “Problema” da montadora Renault,
veiculado pela mídia televisa no ano de 2012.
Procedimentos metodológicos
O procedimento metodológico adotado tem na análise dialógica do discurso seu
suporte analítico, procurando demonstrar que nos textos publicitários inscrevem-se
movimentos heterogêneos tanto de aceitação como de repúdio a determinados sentidos,
arraigados ao meio social.
Conforme a “ordem metodológica” proposta por Bakhtin (1986), é focalizada,
primeiramente, a esfera social ou o domínio discursivo de interação, assim como as
condições concretas em que os anúncios foram produzidos, ou seja, focaliza-se a esfera
publicitária que tem uma função de sedução e convencimento em relação ao leitor,
orientando-o à aquisição de um determinado produto e/ou à adesão a determinada
marca.
O segundo passo volta-se aos gêneros discursivos e às ideologias (horizonte
axiológico) ali formalizadas: são peças publicitárias que têm como portadores (suportes)
de texto, revistas, televisão e sites da Internet. O terceiro passo descreve as sequências
linguísticas e, no caso desta pesquisa, ampliando para uma análise semiótica, serão
também consideradas as sequências de imagens das peças selecionadas.
Por fim, é realizada a interpretação do material, com base nas categorias teóricas
estudadas. As análises em questão passam a ser desenvolvidas a seguir.
ANÁLISE DAS PEÇAS PUBLICITÁRIAS
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Antes de as análises serem iniciadas, mais uma vez, salienta-se que o objetivo
desta pesquisa é, além de analisar, também investigar as interações entre linguagem e
cultura identificadas nos discursos midiáticos do cotidiano, além de discutir quais são os
seus reflexos na sociedade. De forma alguma, pretende-se, com este artigo, encerrar a
discussão a respeito do assunto tratado, pois esta pesquisa prossegue em andamento.
BAH
A marca de cerveja Polar veiculou pela TV aberta um vídeo publicitário
relacionado à determinada expressão empregada no Rio Grande do Sul: “bah”. O
comercial apresenta vários usos dessa interjeição, característica da fala dos gaúchos,
firmando a ideia de que "bah" se encaixa em situações totalmente adversas por ser "a
expressão mais polivalente do mundo".
Ao observar este comercial, veem-se dois amigos, que “dialogam” em uma mesa
de bar, empregando apenas a expressão “bah”, em diferentes acepções, as quais marcam
a diversidade de situações em que é possível usar essa expressão.
Segundo o Dicionário Houaiss (2001, p. 378), “bah” é uma interjeição, definida
como “exprime surpresa, admiração, espanto [...]”. Em referência à etimologia da
palavra, mesmo com origem duvidosa, "poderia ser a interjeição platina bah ou redução
de barbaridade!”. Já o “Portal Amigos da Tradição” informa que o termo é uma
“Abreviação de barbaridade, expressão usada para demonstrar surpresa, indignação”.
Analisando o vídeo deste comercial, pode-se perceber os diferentes significados
da interjeição: o primeiro “bah” surge quando os dois amigos estão esperando pela
cerveja. É emitido um “bah” entusiasmado. Já o segundo, é um “bah” de
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desapontamento, pois um dos personagens derrama a cerveja na mesa ao servi-la para o
amigo, desperdiçando o “líquido precioso”. Já o terceiro “bah” revela um momento de
comemoração e de alegria dos personagens ao brindarem, batendo os copos. Por sua
vez, o quarto “bah” surge por conta da entrada de uma bela moça. Os amigos
demonstram admiração, empregando a expressão “bah”. Em seguida, porém, são
surpreendidos, pois a bela moça se aproxima de um rapaz forte e tatuado que parece
estar a sua espera. Ao notarem que se trata de um casal, enunciam o último “bah”, com
o qual expressam espanto e decepção.
Pode-se inferir que a palavra “bah” pode ser empregada em diversas acepções.
Como visto anteriormente, trata-se da mesma palavra, mas evocada para denotar
sentidos diferentes. Desse modo, como afirma Jovchelovitch (2000, p. 65), a linguagem
é a fonte mais importante de representações coletivas, acrescentando que, por meio dela,
os seres humanos “lutam para dar sentido ao mundo, entendê-lo e nele encontrar o seu
lugar, através de uma identidade social”.
A cerveja Polar, com o comercial em questão, permite um estudo de caso
interessante, pois ela se afirma, por meio de suas campanhas publicitárias, não só como
uma cerveja de muita aceitação no Rio Grande do Sul como produto de consumo, mas
também ganha a característica de um produto cultural gaúcho.
Sendo assim, considera-se que a mídia publicitária pode ser tratada como um
objeto simbólico de representação, além de refletir o pensamento do senso comum,
reproduzindo elementos que se integram à cultura popular, como também incorpora e
ressignifica elementos da própria cultura que o perpassa.
Coisas Que Porto Alegre Fala
Um vídeo bem humorado, lançado no site Youtube, como parte de um projeto
em comemoração ao aniversário de Porto Alegre, a publicidade mostra o cotidiano da
cidade, com imagens que apresentam amigos comentando certas situações corriqueiras
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que têm lugar na capital gaúcha. Para tanto, eles empregam expressões características
dos porto-alegrenses, termos compreensíveis, via de regra, apenas para os que habitam a
cidade gaúcha.
Na sequência, observam-se algumas dessas expressões:
Velho: substantivo com valor de vocativo, “denota afetividade e
sem qualquer conotação negativa” (Fischer, 2000, p. 259): Tu não
tá com calor, velho?
Mormaço: termo que diz respeito a um dia muito quente,
normalmente sem sol, sem vento, o que gera a sensação de se
estar praticamente sem ar para respirar: Tá abafado. Esse
mormaço que não passa nunca.
Guria: substantivo que corresponde a menina, a moça: Ai, guria,
não olha agora.
Cigano Igor: alusão ao ator Ricardo Macchi, que participou de
uma novela com esse personagem: Aquele ali não é o cigano
Igor?
A fu: expressão que “designa aquilo que é muito bom, de alta
qualidade, tanto uma situação quanto um sujeito” (Fischer, 2000,
p.23): Aquele ali, ó, a fu!
Parque Farroupilha: designação da maior área verde de Porto
Alegre: Entrar no Parque Farroupilha.
Bienal: denominação da Bienal do Mercosul, uma mostra
internacional de arte contemporânea que ocorre em Porto Alegre,
reunindo obras de arte do Brasil e dos países do Prata: Mas Bienal
não é todo ano?
Aeromóvel: um projeto de transporte alternativo, realizado nos
anos 80, mas que nunca foi colocado em funcionamento: Parece
que este ano sai o aeromóvel.Gasômetro: antiga usina de geração
de energia, a partir de carvão, situada à margem do Guaíba.
Atualmente, encontra-se desativada, mas tornou-se um conhecido
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centro de cultura e de lazer da cidade: Pra que que serve o
gasômetro?
Três pra casar (imagem e som de duas moças se beijando): em
Porto Alegre é costume as pessoas se cumprimentarem com três
beijos no rosto.
T1, T2, T3, T4, T5 e demais Ts: nomes de linhas de ônibus
transversais que circulam pela cidade: T1, T2, T3, T4, T5...
Capão: refere-se ao município de Capão da Canoa, um dos mais
conhecidos balneários do litoral do Rio Grande do Sul; ao
solicitar passagem de ônibus para essa praia, ocorre a redução do
enunciado: Duas prá Capão.
Goethe: conhecida avenida da cidade, que concentra bares e
restaurantes, e que costuma ser o local para onde acorrem os
torcedores
do
Grêmio
e
do
Internacional
durante
as
comemorações de vitória de seus times: Toca pra Goethe,
rapidinho.
Celso Roth: nome do treinador de futebol gaúcho. Atuou em
vários times brasileiros, dentre os quais o Grêmio e o
Internacional, os dois mais expressivos times do RS: Ah, Celso
Roth de novo, não!
Roncar
o
mate
(somente
imagem
e
som):
um
dos
“mandamentos” para se tomar o chimarrão é fazer a “bomba
roncar" ao final do mate.
Gesto de estender o braço com a mão espalmada (imagem): o
ator faz um gesto com o braço estendido e a mão aberta para
tentar atravessar a rua. Foi uma campanha realizada na cidade, na
qual os pedestres deveriam fazer esse sinal para que os motoristas
parassem na faixa de segurança, deixando-os atravessar a rua em
segurança. Contudo, como se assiste, nem sempre o pedestre tem
sucesso nessa empreitada.
Como é possível comprovar nesse exemplar de publicidade, os diálogos que
acontecem no cotidiano de uma cidade constituem material de estudo vivo e
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privilegiado para se observar as interações entre linguagem e cultura, bem como para se
compreender os reflexos dessas interações sobre as comunicações de uma comunidade.
PROBLEMA
O material selecionado para esta análise é o comercial criado pela agência
Neogama/BBH para a montadora de veículos Renault do Brasil intitulado “Problema".
A esfera social publicitária, por meio da qual a peça foi veiculada em rede nacional, foi
a mídia televisiva, que tem como função seduzir e convencer o telespectador
orientando-o à aquisição de determinado produto.
O motivo pelo qual ocorreu o
interesse nesse vídeo envolve o fato de se identificar nele marcas da interação entre
linguagem e cultura. Observam-se aqui expressões idiomáticas brasileiras amplamente
reconhecidas pelo público.
As imagens dessa campanha iniciam com um vendedor de uma concessionária
de automóveis, oferecendo um carro, em formato de pepino, a um casal. Após, outro
vendedor mostra aos colegas um carro, em forma de abacaxi, citando as suas inúmeras
qualidades. Por fim, um manobrista pergunta, em voz alta, de quem é a “batata quente”,
referindo-se a um carro no estacionamento, que alude a essa forma.
Como já salientado anteriormente, a produção de peças da mídia publicitária
busca refletir o pensamento do senso comum, ao mesmo tempo em que tenta atribuir,
até mesmo, novas significações a elementos pertencentes à cultura popular. A campanha
analisada usa expressões idiomáticas compreensíveis, pela sociedade, no contexto social
na qual estão inseridas. Mediante as imagens, no final do comercial, a peça é avaliada,
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por meio de uma dessas expressões verbalizada: “batata quente”.
Uma análise semiótica também é considerada: as duas primeiras expressões que
integram os vídeos – pepino e abacaxi - possuem sentidos construídos a partir das
próprias imagens. Segundo o dicionário de expressões populares, uma expressão
idiomática ou expressão popular é um conjunto de palavras que se caracteriza por não
ser possível identificar seu significado, mediante o sentido literal dos termos analisados
individualmente. Dessa forma, em geral, torna-se muito difícil ou mesmo impossível
traduzi-las para outras línguas.
Possíveis consumidores são persuadidos a adquirirem determinados produtos
e/ou serviços, por meio do uso de marcas visuais e/ou verbais reconhecíveis, por
fazerem parte de sua esfera cultural (nesse caso, as expressões idiomáticas), as quais
constituem uma estratégia de criação a partir da intertextualidade.
A peça publicitária apresenta, com bom humor, o que seriam os “veículos
abacaxi”, “pepino” e “batata quente”, ou seja, um carro novo que pode se tornar um
grande aborrecimento por não pertencer à linha de fabrica confiável. As imagens do
comercial enfatizam que o comprador pode ficar despreocupado ao adquirir um Renault,
já que a montadora oferece ao consumidor três anos de garantia e que o principal
elemento da venda – a questão da confiança - dever ser um item de série de um carro.
No comercial da Renault, é possível observar o uso de expressões idiomáticas
com significados conhecidos pela população brasileira. Descascar um pepino, um
abacaxi ou segurar uma batata quente são sinônimos de resolver um problema ou uma
situação complicada, segundo o mesmo dicionário de expressões populares. Portanto, a
agência criadora da campanha, ao fazer uso dessas expressões, pretende menosprezar o
produto concorrente, insinuando que a compra do mesmo poderia acarretar em
problemas. Já a aquisição de um automóvel Renault, não acarretaria riscos ao
consumidor de enfrentar tais dificuldades.
As
mídias
alcançaram
uma
relevância
considerável
na
sociedade
contemporânea, uma vez que refletem o pensamento decorrente do senso comum.
Assim, constituem, mediante essa modalidade, uma das mais expressivas formas de
persuasão. O emprego da intertextualidade na publicidade, por meio de expressões
populares conhecidas, tem como intuito dialogar com o público telespectador de uma
forma mais próxima, ensejando que o consumidor se identifique com determinadas
marcas, que correspondem a sua própria cultura, vendo-se assim, representado.
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CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
Este artigo focalizou as interações entre linguagem e práticas socioculturais ao
abordar as representações sociais situadas no âmbito publicitário. Tais representações,
construídas pelos leitores, e em grande parte influenciadas pela publicidade que
costumam ler ou assistir, podem redirecionar ou até alterar sua visão de mundo, uma
vez que essas peças refletem a ideologia e também o conjunto de mudanças que tem
lugar no conhecimento da sociedade.
Com base na teoria das representações sociais, pode-se afirmar que a linguagem
é a fonte principal de representações sociais, responsável pela formação de imagens,
conceitos e de preconceitos construídos pela sociedade. Assim, linguagem e
representações sociais são indissociáveis.
Ao mesmo tempo, como destacou Bakhtin (1986), uma mesma língua é
coabitada por “linguagens sociais”, dinâmicas, que se cruzam e que são atravessadas
pelo plano social e pela História. São linguagens do “plurilinguismo”, nas quais se
inscrevem pontos de vista inseparáveis das transformações da experiência cotidiana.
A mídia publicitária não é uma instituição impermeável ou resistente à quebra de
tabus tradicionais, uma vez que toda a esfera discursiva é constituinte e constitutiva da
sociedade. Como explica Fairclough (2001: 66), “neste período de transformação social
rápida e profunda, há uma tensão entre pressões pela estabilização, parte da
consolidação da nova ordem social, e pressões pela fluidez e pela mudança”.
A inscrição, no texto publicitário, de visões de mundo diversas, circulantes no
meio social e reconhecíveis por parte de seus leitores-consumidores, fornece aos estudos
da linguagem um amplo material para análise e interpretação de discursos e práticas
sociais, contribuindo para a reflexão, além de propiciar a construção de um mapa da
resistência e da pluralidade cultural em todos os momentos históricos.
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