PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Priscila Caneparo dos Anjos Organizações Internacionais e Direitos Humanos Uma Análise dos Casos Brasileiros na Organização dos Estados Americanos MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2011 Priscila Caneparo dos Anjos Organizações Internacionais e Direitos Humanos Uma Análise dos Casos Brasileiros na Organização dos Estados Americanos MESTRADO EM DIREITO Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial à obtenção do título de MESTRE em Direito das Relações Econômicas Internacionais, sob a orientação do Professor Doutor Carlos Roberto Husek. SÃO PAULO 2011 Banca Examinadora _________________________________ _________________________________ _________________________________ AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Prof. Carlos Roberto Husek, pela orientação precisa, por sua consideração, paciência, amizade e permanente dinamismo na busca pela consolidação do Direito Internacional. Aos Prof. Vladmir Oliveira da Silveira, por compartilhar seu conhecimento de maneira decisiva nessa etapa de minha vida e por me fazer crer na minha capacidade. Ao Prof. Wagner Menezes, por ter me introduzido a esse fascinante mundo do Direito Internacional, pela amizade e por todo incentivo, concedido desde sempre. À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialmente aos colegas da Pós-Graduação de Direito das Relações Econômicas Internacionais, pelo apoio e incentivo nessa importante etapa de aperfeiçoamento pessoal, teórico e técnico. Aos funcionários Rafael e Rui, pela paciência e prontidão para resolver todos os meus problemas e sanar minhas dúvidas nessa etapa que aqui se encerra. Aos colegas e professores do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Internacional, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pelas constantes e proveitosas discussões para a consolidação e efetivação do Direito Internacional. Aos meus familiares – meus pais, minha avó e irmã –, que contribuem diariamente, cada um a seu modo, para que eu aperfeiçoe todo o conhecimento adquirido. Agradeço-lhes, também, pela bagagem cultural transmitida, por intermédio do incentivo ao novo e ao diferente, fazendo-me crer que o estudo dignifica e possibilita que cheguemos a lugares outrora considerados impossíveis. Por fim, agradeço todos os demais que, gentilmente, contribuíram para a realização deste trabalho. [...] Tal vez sería deseable emprender un proceso amplio de reflexión compartida, en el que concurrieran --cada quien desde su propia perspectiva-- los órganos de la OEA, la Corte y la Comisión, los Estados, el Instituto Interamericano de Derechos Humanos, instituciones y grupos de la sociedad civil, observadores externos y académicos. [...] Sergio García Ramírez RESUMO ANJOS, Priscila Caneparo dos. Organizações internacionais e direitos humanos: uma análise dos casos brasileiros na organização dos Estados Americanos. O presente trabalho tem por objetivo o estudo dos principais casos de violações de direitos humanos, envolvendo o Estado brasileiro, levados ao âmbito do sistema interamericano de proteção de direitos humanos. Em última análise, destina-se esse estudo à investigação das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos nas referidas questões. Para a correta compreensão do tema, debateu-se sobre a necessidade do exame de alguns institutos de Direito Internacional, especificamente das organizações internacionais e dos direitos humanos. Nesse sentido, no que tange às organizações internacionais, examinou-se seus principais pontos, englobando seu desenrolar histórico, seu conceito, suas modificações de acordo com os reclames da sociedade e, por fim, sua correlação para com a proteção e efetivação dos direitos humanos. No que tange a esses últimos, viu-se a necessidade de discorrer sobre suas exponenciais questões, envolvendo seu desenvolvimento histórico, suas determinações conceituais, a necessidade de uma proteção a nível internacional e, em concordância com essa, seus sistemas de proteção, tanto universais (presente no quadro das Organizações das Nações Unidas), como regionais (sistema europeu, africano, árabe e interamericano). Por ali se encontrarem as questões cruciais do estudo, o sistema de proteção de maior valia fora o interamericano, consagrado na Organização dos Estados Americanos, mais especificamente em sua Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos. A jurisdicionalização do referido sistema encontra-se materializada em sua Corte, sendo que, para que um caso de violação chegue ao seu conhecimento, necessário se faz o crivo anterior da Comissão. Assim, de acordo com a pesquisa, entendeu-se ter o Brasil um papel crucial no desenvolvimento do sistema interamericano, mas, paradoxalmente, constitui-se como um grande violador dos direitos humanos. O Estado brasileiro, nesse sentido, fora demandado por cinco vezes na Corte Interamericana – nos casos Damião Ximenes Lopes (Caso 12.237); Gilson Nogueira de Carvalho (Caso 12.058); Arley José Escher e Outros (Caso 12.353); Sétimo Garibaldi (Caso 12.478); e Julia Gomes Lund e Outros (Caso 11.552) -, tendo sido condenado em todos eles, à exceção do caso Gilson Nogueira de Carvalho. Chegou-se à conclusão que, na internalização e cumprimento das referidas sentenças, o Brasil não se demonstrou um fervoroso defensor e protetor dos direitos humanos, pois veio cumprir apenas parte dos dispositivos das referidas sentenças. Finalmente, pôde-se concluir, com esse trabalho, que o sistema interamericano, obstante seu caráter de extrema importância na proteção dos direitos humanos, necessita aprimorar-se para que a efetivação se torne uma realidade nos Estados que dele fazem parte e, no caso brasileiro, deverá o Brasil tratar suas condenações com mais seriedade para que, de fato, venha a ser um Estado comprometido não apenas ao sistema interamericano, mas igualmente à proteção e efetivação dos direitos humanos de seus cidadãos. Palavras-chave: Organizações internacionais. Direitos humanos. Sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Casos brasileiros na Corte Interamericana de Direitos Humanos. ABSTRACT ANJOS, Priscila Caneparo dos. International organizations and human rights: an analysis of brazilian cases in the organization of American States. This research aims to study the main cases of human rights violations involving the Brazilian state, driven to within the American system of protection of human rights. Ultimately, this study intended to investigate the decisions of the Inter-American Court of Human Rights on these issues. For the correct understanding of the issue, it was discussed the need to analyze some institutes of International Law, specifically international organizations and human rights. Accordingly, with respect to international organizations, the study examined its main points, covering its development history, its concept, its modifications according to the claims of society and, finally, its correlation to the protection and realization of human rights. Regarding the latter, the research needed to elaborate on their exponential issues involving its historical development, its conceptual determinations, the need for international protection and, in agreement with this, their systems of protection, both universal (present within the United Nations Organization) and regional (European, African, Arab and interAmerican). Because of the main points of the study, the protection system of greater value was the inter-American system, enshrined in the Organization of American States, specifically in their Commission and Inter-American Court of Human Rights. The jurisdictionalization of this system is embodied in his Court, and, for a case of violation come to its attention, the Commission needs to understand that the Court’s decision is essential. Thus, according to the survey, it was considered Brazil has a crucial role in the development of inter-American system, but, paradoxically, it is a major violator of human rights. The Brazilian state, in this sense, was sued by five times in the Inter-American Court - Damião Ximenes Lopes (Case 12237); Gilson Nogueira de Carvalho (Case 12058); Arley Joseph Escher and others (Case 12353), Garibaldi (Case 12478), and Julia Gomes Lund and others (Case 11552). Just in case of Gilson Nogueira de Carvalho it has not demonstrated that Brazil violated human rights.The conclusion was that Brazil was not a strong supporter and protector of human rights in the internalization and enforcement of these sentences. Brazil has only fulfilled part of the sentences. Finally, the study concluded that the inter-American system needs to enhance, despite its character of extreme importance in the protection of human rights. In the Brazilian case, it should treat their sentences more seriously to become a committed state not only to inter-American system, but also to the protection and realization of human rights of its citizens. Keywords: International organizations. Human rights. Inter-american human rights system. Brazilian cases in the Inter-American Court of Human Rights. LISTA DE SIGLAS CADH - Pacto de São José da Costa Rica CAT - Comitê contra a Tortura CCPR - Comitê de Direitos Humanos CDH - Comissão de Direitos Humanos CDI - Comissão de Direito Internacional CEDAW - Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher CEMDP - Comissão Especial sobre Mortos de Desaparecidos Políticos CERD - Comitê para a Eliminação de Discriminação Racial CESCR - Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais CIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos CIJ - Corte Internacional de Justiça CJG - Centro de Justiça Global CMW - Comitê sobre Trabalhadores Migrantes COE - Conselho da Europa CPIJ - Corte Permanente Internacional de Justiça CPT - Comissão Pastoral da Terra CRC - Comitê dos Direitos das Crianças CRPD - Comitê sobre os Direitos dos Deficientes DAW - Divisão para o Status da Mulher DESA - Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos ECOSOC - Conselho Econômico e Social das Nações Únicas FAO - Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação GRIC - Grupo de Revisão da Implementação de Cúpulas IASC - Comitê Permanente entre Organismos IEVE - Instituto da Violência do Estado INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MEM - Mecanismo de Avaliação Multilateral MESECVI - Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará MESICIC - Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana Contra Corrupção MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra OAB - Ordem dos Advogados do Brasil OCHA - Escritório das Nações Unidas de Assistência Humanitária OEA - Organização dos Estados Americanos OI - Organização Internacional OIT - Organização Internacional do Trabalho OMS - Organização Mundial da Saúde ONG - Organização não governamental ONU - Organização das Nações Unidas OSAGI - Escritório da Assessoria Especial em Questões de Gênero e Melhoria da Mulher OUA - Organização da Unidade Africanos PCB - Partido Comunista Brasileiro PCdoB - Partido Comunista do Brasil PMDs - Países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos RENAAP - Rede Nacional de Advogados Autônomos Populares SISCA - Sistema de Acompanhamento das Cúpulas das Américas STF - Supremo Tribunal Federal STJ - Superior Tribunal de Justiça SUS - Sistema Único de Saúde TELEPAR - Empresa de Telecomunicações do Paraná TPI - Tribunal Penal Internacional UA - União Africana UNAIDS - Programa conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids UNDP - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura UNFPA - Fundo de População das Nações Unidas UNHCR - Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância UNIFEM - Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 13 CAPÍTULO 1 - ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS ........................................ 17 1 HISTÓRICO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS............................. 17 2 CONCEITO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS.............................. 26 3 A CRIAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS FRENTE À SOBERANIA ESTATAL ............................. 35 3.1 AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL........................................................................................ 40 3.2 AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS INTERGOVERNAMENTAIS E SUPRANACIONAIS ................................................................................. 43 O PROCESSO DECISÓRIO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS ... 45 4.1 OS ÓRGÃOS JURISDICIONAIS INTERNACIONAIS .................................. 51 4.2 SENTENÇAS INTERNACIONAIS X SENTENÇAS ESTRANGEIRAS ........ 52 CAPÍTULO 2 - DIREITOS HUMANOS ................................................................ 57 1 CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS......................................................... 57 2 EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ......................... 62 4 2.1 OS DIREITOS HUMANOS NA ANTIGUIDADE - MOMENTOS PRÉAXIAL E AXIAL ............................................................................................ 63 2.2 OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE MÉDIA ............................................ 66 2.3 OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE MODERNA ..................................... 69 2.4 OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE CONTEMPORÂNEA....................... 74 2.5 O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS................................................................................................... 78 2.5.1 Primeiro momento do processo de internacionalização – da metade do século XIX à 2.a Guerra Mundial........................................................... 78 2.5.2 O processo de internacionalização dos direitos humanos no pós-guerra...... 80 2.5.3 Globalização e direitos humanos............................................................... 87 3 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITO HUMANOS..................... 89 3.1 A PROTEÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS .......................... 97 3.1.1 Formação e evolução do sistema de proteção universal ........................... 98 3.1.2 Mecanismos convencionais de proteção dos direitos humanos ................ 102 3.1.3 Mecanismos não-convencionais de proteção dos direitos humanos ......... 104 3.1.3.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos ...................................... 104 3.1.3.2 A Comissão de Direitos Humanos .......................................................... 105 3.1.3.3 O Conselho de Direitos Humanos........................................................... 109 3.1.3.4 A Subcomissão para a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos ... 111 3.1.3.5 O Comitê Consultivo de Direitos Humanos............................................. 112 3.1.4 Outros institutos da Organização das Nações Unidas envolvidos na proteção dos direitos humanos.................................................................. 112 3.1.4.1 A Assembleia Geral ................................................................................ 113 3.1.4.2 O Conselho Econômico e Social (ECOSOC).......................................... 114 3.1.4.3 A Corte Internacional de Justiça ............................................................. 115 3.1.4.4 Agências e parceiros .............................................................................. 116 3.2 A PROTEÇÃO REGIONAL DOS DIREITOS HUMANOS ............................ 116 3.2.1 O Sistema Regional Europeu .................................................................... 118 3.2.1.1 O Conselho da Europa ........................................................................... 118 3.2.1.2 A Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950....................... 120 3.2.1.3 O Tribunal Europeu de Direitos Humanos .............................................. 123 3.2.2 O Sistema Regional Africano..................................................................... 126 3.2.2.1 Formação e evolução ............................................................................. 127 3.2.2.2 Principais objetivos da União Africana.................................................... 129 3.2.2.3 Principais órgãos do Sistema Africano ................................................... 130 3.2.2.4 Principais problemas na efetividade dos direitos humanos na África ..... 131 3.2.3 O Sistema Regional Árabe ........................................................................ 132 4 O SISTEMA REGIONAL INTERAMERICANO.............................................. 133 4.1 FORMAÇÃO E EVOLUÇÃO ........................................................................ 134 4.2 A CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS (PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA - CADH) E SEU PROTOCOLO ADICIONAL (PROTOCOLO DE SÃO SALVADOR) .................................... 137 4.3 IMPORTÂNCIA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS....... 142 4.4 AS OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS DOS ESTADOS MEMBROS DA OEA EM MATÉRIA DE DIREITOS HUMANOS ........................................... 143 4.5 PRINCIPAIS ÓRGÃOS DO SISTEMA INTERAMERICANO ....................... 144 4.5.1 Comissão Interamericana de Direitos Humanos........................................ 145 4.5.2 A Corte Interamericana de Direitos Humanos ........................................... 151 CAPÍTULO 3 - O BRASIL NA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS: PRINCIPAIS CASOS ENVOLVENDO OS DIREITOS HUMANOS................................................................ 158 1 O BRASIL NO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS................................................................................... 158 2 CASO DAMIÃO XIMENES LOPES – CASO 12.237..................................... 162 2.1 HISTÓRICO DO CASO ............................................................................... 162 2.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS................................................................................................... 165 2.3 A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS................................................................................................... 167 2.4 O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL ..... 169 3 CASO GILSON NOGUEIRA DE CARVALHO – CASO 12.058 .................... 171 3.1 HISTÓRICO DO CASO ............................................................................... 171 3.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS................................................................................................... 175 3.3 O CASO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS ....... 177 3.4 REPERCUSSÃO DA DECISÃO NO BRASIL .............................................. 178 4 CASO ARLEY JOSÉ ESCHER E OUTROS – CASO 12.353 ....................... 179 4.1 HISTÓRICO DO CASO ............................................................................... 180 4.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS................................................................................................... 184 4.3 A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS................................................................................................... 187 4.4 O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL ..... 190 5 CASO SÉTIMO GARIBALDI – CASO 12.478............................................... 191 5.1 HISTÓRICO DO CASO ............................................................................... 192 5.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS................................................................................................... 195 5.3 A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS................................................................................................... 197 5.4 O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL ..... 200 6 CASO JULIA GOMES LUND E OUTROS (GUERRILHA DO ARAGUAIA) – CASO 11.552 ........................................................................ 201 6.1 HISTÓRICO DO CASO ............................................................................... 202 6.1.1 A Lei de Anistia (Lei n.o 6.683/79) ............................................................. 208 6.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS................................................................................................... 212 6.3 O CASO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS ....... 218 6.4 REPERCUSSÕES DA SENTENÇA INTERNACIONAL EM SOLOS BRASILEIROS ............................................................................................. 224 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 227 CONCLUSÃO ...................................................................................................... 232 REFERÊNCIAS.................................................................................................... 242 ANEXO A - INVESTIGAÇÃO IN LOCO – COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS - OUT 1961-JAN 2010........................... 252 ANEXO B - CARTOGRAMA DE LOCALIZAÇÃO DA GUERRILHA DO ARAGUAIA....................................................................................... 255 13 INTRODUÇÃO O Direito Internacional que hoje se conhece traduz a complexidade, particularidade e interdependência que a sociedade apresenta, uma vez que seus conceitos e delimitações amplificam-se de acordo com as necessidades humanas. Nesse sentido, torna-se impossível, quando se pretende a investigação de uma realidade social fática, o exame isolado de determinados temas de Direito Internacional, necessitando-se considerar as interligações que da situação advém, sob um prisma de multidisciplinaridade. Debate-se, então, que esse trabalho – focando os casos de violações de direitos humanos, envolvendo o Estado brasileiro, na Organização dos Estados Americanos – debruçou-se na iminência do estudo de alguns institutos, para que o aporte da estrutura conceitual possibilitasse o encontro de delimitações, conclusões e possíveis soluções à realidade supramencionada. Dois deles demonstram-se essenciais na busca pelo real entendimento dessa pesquisa, quais sejam: as organizações internacionais e os direitos humanos. Visando, em última análise, à posição brasileira nas violações de direitos humanos, frente à Organização dos Estados Americanos e sua resposta definitiva (por intermédio de sua Corte), imprescindível se julga a avaliação das organizações internacionais. Em decorrência, esse estudo tende a discutir alguns pontos primordiais relacionados às organizações internacionais, que permitam entender suas particularidades e sua interligação para com o objetivo final desse estudo. Além dessa, seleciona-se, igualmente, o tema de direitos humanos. Uma vez que o cerne dessa pesquisa repousa em um tipo específico de violações, os direitos humanos abarcam quase que a totalidade de entendimentos que aqui deverão ser desenvolvidos. Acredita-se, igualmente, que quando um estudo versa sobre Direito Internacional Público – tal como este –, torna-se impossível não vir a tratar, em um dado momento, sobre os direitos humanos. Com efeito, ainda prevê-se a necessidade de avaliar a interligação entre ambos os institutos, valorizando, de modo especial, os sistemas de proteção dos direitos humanos e as responsabilizações internacionais dos Estados, decorrentes de suas violações dos direitos humanos, materializadas nas sentenças internacionais. 14 Adentrando à investigação final que se pretende, qual seja, dos casos brasileiros de violações dos direitos humanos levados ao conhecimento da Corte Interamericana, imprescindível se demonstra um levantamento dos dados constantes, no sistema interamericano, sobre a questão e, igualmente, a posição brasileira no que tange ao cumprimento das determinações da Corte em plano interno. Delimitados os pontos a serem tratados nesse estudo, expõe-se, brevemente, sua importância, sendo que a pretensão de analisar as supracitadas questões, acerca do Brasil e suas condenações em âmbito interamericano, adquire contornos essenciais no debate do referido Estado ser, de fato, um real defensor dos direitos humanos, a partir de sua posição no cumprimento de suas condenações nesse sistema. Investiga-se, ainda, a real exigência na implementação de métodos para o cumprimento das condenações brasileiras em campo interamericano, tendo em vista que, reconhecida a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo Brasil desde 1998, o aludido cumprimento, em solos internos, torna-se, ao Estado, obrigação internacional. Discute-se a necessidade do exame das questões brasileiras levadas a conhecimento da Corte, com o consequente debate crítico se de fato, hoje, o Brasil tem cumprido com suas obrigações internacionais e, mais ainda, se tem feito valer sua titulação de Estado Democrático de Direito. Na prática, as situações brasileiras que aqui pretendem serem julgadas, apontam, sobremaneira, ao entendimento de como o Estado brasileiro, quando condenado, tem cumprido as determinações em âmbito interno. Avalia-se, ainda, se esse cumprimento tem se demonstrado eficaz, estabelecendo, de acordo com os dados levantados, formas de como deveria o Brasil ter se posicionado em cada um dos casos finalizados pela Corte e se seria o momento de alterar sua legislação para fazer cumprir, mais facilmente e rapidamente, suas obrigações internacionais. Para isso, utilizar-se-á do exame das cinco queixas de violações1, levadas ao conhecimento da Corte, contra o Estado brasileiro, contando com o suporte dos relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da decisão da Corte Interamericana, das repercussões dessa última em solos nacionais e das atitudes do governo para a efetivação de suas disposições. Identificam-se algumas dificuldades 1 São elas: Damião Ximenes Lopes (Caso 12.237); Gilson Nogueira de Carvalho (Caso 12.058); Arley José Escher e Outros (Caso 12.353); Sétimo Garibaldi (Caso 12.478); e Julia Gomes Lund e Outros (Caso 11.552). 15 no acesso às atitudes governamentais, especialmente pela falta de publicidade elucidativa sobre tais. Para ser possível a delimitação de algumas conclusões no sentido de aprimorar as ações brasileiras no quadro acima exposto, mostra-se latente a exigência de uma releitura, em conjunto com seu arcabouço jurídico, das realidades política e social em que o Brasil se encontra, tendo em mente que, quando condenado, o Estado brasileiro obriga-se em alterar sua realidade em termos gerais, e não apenas um de seus aspectos. Adentrando à escolha da metodologia e da delimitação do tema, sublinha-se a proposta de julgar a interligação entre as organizações internacionais e os direitos humanos na proteção e efetivação desses últimos em solos nacionais. De encontro com tais alusões, essa dissertação desenvolve-se mediante três pontos de estudos, quais sejam: (i) as organizações internacionais e suas particularidades; (ii) os direitos humanos e todo seu arcabouço teórico; e (iii) a influência Brasileira no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, a posição em suas demandas no âmbito interamericano e os esforços em internalizar e efetivar suas condenações advindas da Corte Interamericana. Aborda-se, ainda, a utilização tanto do método dedutivo, como do indutivo (quando possível). O método dedutivo – cuja lógica caminha do particular para o geral, pesquisando-se diversas vezes algum fato e percebendo a repetição do mesmo resultado, podendo ser suspeitado como verdadeiro – será o de maior valia, pois se desenvolverá um raciocínio base, partindo da proteção internacional dos direitos humanos (especificamente, do caso brasileiro no sistema interamericano), para serem relacionados todos os outros pontos conexos ao entendimento de tal cerne conceitual. Quando se demonstrar possível a utilização de procedimentos de generalização das situações, então, paralelamente, operar-se-á com o método indutivo – caminhando do geral para o particular, considerando que se um fenômeno ocorre tal como vários os outros que acarretaram num mesmo resultado, então esse terá o mesmo resultado já descrito. Ainda, para embasar o acervo teórico dos temas pertinentes às organizações internacionais e aos direitos humanos, utilizar-se-á legislação e doutrinas brasileiras, além de doutrinas estrangeiras que tratam sobre o tema. Busca-se, de fato, o aporte teórico que dê suporte aos entendimentos clássicos e, também, doutrinas que possibilitem o entendimento da evolução desses institutos, chegando até as questões 16 mais atuais de ambos. Infere-se, nesse sentido, a sustentação basilar ao conteúdo central do estudo: violações de direitos humanos, cometidas pelo Estado brasileiro, levadas ao sistema interamericano. Pretende-se demonstrar que a correlação entre as organizações internacionais e os direitos humanos materializa-se na proteção e efetivação desses referidos direitos, abrindo uma via jurisdicional internacional subsidiária aos cidadãos, caso os Estados, em plano interno, não respondam satisfatoriamente às violações de direitos humanos. E, finalmente, considerando o interesse extremo ao caso brasileiro, estima-se elencar as principais dificuldades e possíveis soluções no cumprimento das obrigações internacionais (elencadas, aqui, nas sentenças internacionais, frutos do sistema interamericano) do Brasil e, igualmente, identificar, em plano interno, quais as principais barreiras que impossibilitam, hoje, que o Estado tenha capacidade e estrutura para internalizar e efetivar os termos de suas condenações. De fato, não se pretende desenvolver um trabalho idealista e pouco prático. Planeja-se que os estudos aqui iniciados possam, realmente, ser continuados e implementados para que, caso haja futuras condenações, o Brasil conte, ao menos, com um suporte doutrinário suficiente para auxiliar, em solos nacionais, a efetivação não apenas das condenações, mas sim dos próprios direitos humanos, não deixando margens para sequer novas demandas internacionais. 17 CAPÍTULO 1 ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS 1 HISTÓRICO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS O início da análise das organizações internacionais coincide com o seu histórico, uma vez que é a partir deste que se pode adentrar ao seu conceito, âmbito de atuação e papel atual de tais. Assim sendo, faz-se relevante dizer que as organizações internacionais – tais como hoje são conhecidas – surgem, basicamente, quando se amplia o âmbito dos sujeitos de Direito Internacional Público.2 Em outras palavras, pode ser entendido que a origem das organizações internacionais coincide com a abertura dos sujeitos de direito internacional público para além dos Estados. O que se pretende dizer é que, em um primeiro momento, apenas os Estados possuíam personalidade jurídica internacional, sendo que, apenas após sua consolidação e o alargamento do conceito de solidariedade é que as organizações internacionais foram passíveis de serem criadas. No que tange aos sujeitos de direito internacional público, diz Francisco Rezek: Pessoas jurídicas de direito internacional público são os Estados soberanos (aos quais se equipara, por razões singulares, a Santa Sé) e as organizações internacionais em sentido estrito. Aí não vai uma verdade eterna, mas uma dedução segura daquilo que nos mostra a cena internacional contemporânea. Não faz muito tempo, essa qualidade era própria dos Estados, e de exclusiva. Hoje é certo que outras entidades, carentes de base territorial e de dimensão geográfica, ostentam também a personalidade jurídica de direito das gentes, porque habilitadas à titularidade de direitos e deveres internacionais, numa relação imediata e direta com aquele corpo de normas. A era das organizações internacionais trouxe à mente dos operadores dessa disciplina uma reflexão já experimentada noutras áreas: os sujeitos de direito, em determinado sistema jurídico, não precisam ser idênticos quanto à natureza ou às potencialidades.3 2 3 Entendem-se sujeitos de direito internacional público, neste trabalho, como sendo aqueles entes capazes de possuírem direitos e obrigações no plano internacional, características, inequivocamente, dos Estados e das organizações internacionais. REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p.151. 18 Deduz-se que a história dos organismos internacionais acompanha, basicamente, a história da própria cooperação e da solidariedade4 realizadas pelos grupos humanos e, em última análise, pelos próprios Estados além de suas fronteiras nacionais. Essa noção leva em conta que, na conjuntura atual, tais organismos só podem vir a ser criados quando então essa for a vontade dos Estados, sendo que, para serem efetivos, necessitam do apoio e da concordância de três ou mais Estados5 ou outras organizações internacionais que criam e submetem-se, no plano internacional, às regras previstas dessas organizações. A necessidade de três ou mais Estados faz alusão, especialmente, à noção de multilateralismo6, quando então se leva em conta a opinião e a vontade de três ou mais entes, sendo que: [...] um patamar superior de cooperação internacional foi alcançado quando três ou mais Estados decidiram trabalhar para atingir fins comuns. Passamos então do bilateralismo para o multilateralismo. Este vem a ser o traço fundamental da organização internacional contemporânea.7 Chega-se à conclusão, então, que os Estados necessitam de uma interação, no plano internacional, para o alcance de objetivos comuns e para a própria regulação, a partir do multilateralismo, da própria sociedade internacional, por intermédio do direito internacional que busca, a partir da sua institucionalização, a criação de regras de caráter universais, como bem ilustra Cançado Trindade: 4 5 6 7 Como bem pontua Menezes, há uma diferença entre solidariedade e cooperação, sendo que "a solidariedade passa a fundamentar todo o sistema normativo internacional dentro de uma perspectiva que vai além da que era praticada até então, de mera cooperação, e os Estados passam a agir pautados por uma aliança mais profunda, com relações normativas mais vigorosas, o que desencadeia a intensificação das relações internacionais em foros de participação política dos Estados, e a construção de uma sociedade internacional, mais voltada ao multilateralismo". (MENEZES, Wagner. Direito internacional na América Latina. Curitiba: Juruá, 2007. p.259). As relações bilaterais não mais atendiam às necessidades contemporâneas dos Estados, como se refere Cretella Neto: "Quando as relações bilaterais baseadas na existência de relações diplomáticas ou missões se revelaram inadequadas para lidar com situações mais complexas, derivadas de problemas que afetavam não apenas dois, mas muitos Estados, uma solução precisava ser encontrada para representar, no mesmo foro, os interesses comuns de todos os Estados". (CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais. São Paulo: Saraiva, 2007. p.18). Segundo Keohane, o multilateralismo é a "ação coletiva institucionalizada empreendida por um conjunto de Estados independentes estabelecidos de maneira inclusiva". (KEOHANE, Robert; MILNER, Helen (Eds.). Internationalization and Domestic Politics. Cambridge: Cambridge University Presse, 1996. p.56). SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p.23. 19 A atuação e o dinamismo das organizações internacionais têm contribuído decisivamente para modificar a própria estrutura do ordenamento jurídico internacional. As organizações internacionais, além de impulsionar o multilateralismo, têm em muito contribuído à regulamentação internacional de novas áreas da atividade humana, e, por conseguinte, a fortiori, à gradual institucionalização e "constitucionalização" do ordenamento jurídico internacional. As organizações internacionais têm se ocupado de temas e questões que os Estados individualmente não teriam condições de tratar ou resolver satisfatoriamente, e que dizem respeito à humanidade como um todo; têm elas, por conseguinte, contribuído ademais à universalização do direito internacional contemporâneo.8 Apesar de toda essa explanação sobre a presença da cooperação e da solidariedade na sociedade moderna, entende-se que tais institutos, com altos e baixos, acompanham a humanidade em toda a sua história9, como bem pontua Seitenfus: Sinais de solidariedade entre grupos humanos já se manifestam desde a antiga Grécia. Num primeiro momento, foram estabelecidas regras de arbitragem entre as cidades. Em seguida, no século V, surge a aplicação do princípio confederativo, segundo o qual cada cidade fazia-se representar no Conselho segundo um peso ponderado calculado através da importância de cada um de seus membros. Todavia as rivalidades entre as cidades, a predominância de Atenas e as guerras com os Persas e Macedônicos demonstram os limites da solidariedade no mundo helênico. A Idade Média fez surgir, de fato, uma comunidade cristã. Mas não se trata de organizar as relações dentro do mundo cristão. Ao contrário, impõe-se a vontade de Roma. Neste sentido, não se busca uma organização internacional, mas somente procura-se estender o imperialismo romano para dominar o conjunto dos cristãos do Ocidente. A primazia do Papado é contestada e o final da Idade Média assiste ao surgimento de monarquias nacionais e de Estados laicos, colocando um ponto final às tentativas de cooperação.10 Argumenta-se que, mesmo estando presentes, a partir da Idade Média as tentativas de cooperação e solidariedade entre os povos começaram a falhar e já no século XVI, suas faltas colocaram em xeque a segurança e a possibilidade de permanência da paz. Neste mesmo momento, muitos filósofos e teóricos, tais como 8 9 10 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito das organizações internacionais. 4.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p.534. O primeiro organismo que pode ser comparado a uma organização internacional, na história humana, fora a associação das cidades estados helênicas da Grécia Antiga, chamada de Anfictitiónias Gregas. SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.31. 20 Pierre Dubois, questionaram-se sobre projetos para a manutenção da paz11, mas, ainda, os ideais eram pouco representativos e o Estado soberano, com suas concepções nacionalistas e individualistas, ainda imperava. Com o passar dos tempos e com a crescente necessidade dos Estados formarem alianças para defesa de interesses comuns, então, fora se criando um terreno favorável ao desenvolvimento dos organismos internacionais tais como hoje são concebidos. Discute-se que fora no século XIX que essas organizações, baseadas na cooperação e solidariedade entre os Estados, encontraram condições para seu florescer, uma vez que "o sentimento de solidariedade dos países vencedores de Napoleão fez surgir um processo de entendimento na Europa, baseado no princípio da monarquia legitimado no direito divino e do equilíbrio de poder entre seus integrantes"12. Assim, no contexto europeu, já no ano de 1804, há o surgimento da primeira organização em moldes modernos, sendo ela a Administração Geral de Concessão de Navegação do Reno. O contexto histórico que lhe possibilitou fora o seguinte: A primeira entidade que pode ser enquadrada na noção contemporânea de organização internacional de que se tem notícia foi a Administração Geral de Concessão da Navegação do Reno, criada pelo tratado celebrado entre a França e o Santo Império Romano-Germânico em 15.08.1804. Portanto, na origem das organizações internacionais pode-se situar um movimento histórico bastante preciso, constituído por um longo período de (relativa) paz, que se seguiu à queda de Napoleão (1815-1914), bem como de um progresso tecnológico e científico sem precedentes, além de avanços incomparáveis nos meios de comunicação.13 Outro importante evento para o nascimento das organizações internacionais aos moldes de hoje, na Europa, fora o Congresso de Viena, que ocorrera entre os anos de 1814 e 1815, advindo da solidariedade dos países vencedores das guerras napoleônicas. Mesmo não possuindo as características e nem o formato de uma organização propriamente dita, fora essencial ao continente, uma vez que ali, traçaram-se ideias sobre um Concerto Europeu, onde os Estados realizariam consultas 11 12 13 Entende-se que uma alternativa para a guerra seria a união dos Estados na forma de um Império universal. Historicamente, a mais extensa e duradoura aproximação com esse Império fora o Império Romano, que existiu durante alguns séculos. Dante Alighieri disse ter sido essa a "época do ouro", considerando que a restauração de um Império aos moldes do Império Romano representaria a mais esperançosa aproximação para com a paz universal. SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.34. CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.20. 21 diplomáticas e esforços para dirimir seus conflitos de forma pacífica, não se socorrendo da guerra para tal. Do outro lado do Atlântico, nas Américas, o clima também propiciou ao surgimento dos organismos internacionais, uma vez que os Estados, na iminência de uma reconquista espanhola de suas colônias, objetivando resguardarem sua atual independência, viram-se na necessidade de reunirem-se, em 1826, no Panamá. Em outras palavras: Nas Américas, alguns eventos são dignos de nota, embora algo diverso do sistema europeu, como o sistema pan-americano, que organizou conferências em nível regional já em 1826, apesar de somente ter alcançado resultados mais significativos em 1885, com a Conferência de Washington. Essas conferências passaram a ser dotadas de um caráter periódico após essa data, e culminaram, muito mais tarde, com a criação da Organização dos Estados Americanos – OEA.14 Demonstra-se, em um enquadramento mais didático, que essas organizações, surgidas anteriormente aos movimentos consequentes da Primeira Guerra Mundial, são consideradas como sendo organizações internacionais de primeira geração, tendo as seguintes principais características: a) sua criação resultou principalmente da necessidade lógica de superar obstáculos materiais e/ou políticos que dificultavam a realização em comum daquilo que Hauriou denominou "idéia de obra", projetada para o futuro, de construção de uma comunidade internacional onde reinasse a paz e a prosperidade socioeconômicas; b) limitavam suas competências a compôs técnicos ou administrativos estreitos por transposição, ao plano internacional, do conceito rígido do direito interno de empresa pública; c) não eram expressamente dotadas de personalidade jurídica internacional, ou seja, não tinham capacidade postulatória reconhecida perante as ainda embrionárias jurisdições internacionais; d) dispunham de recursos financeiros e de pessoal bastante modestos, limitados, em regra, a um diretos e a uma pequena equipe de funcionários, que administravam um escritório central, realizando o que hoje seriam tarefas próprias da secretaria de uma organização internacional.15 14 15 CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.20. Ibid., p.25. 22 Percebe-se que, mesmo sendo um grande salto para o surgimento e aprimoramento dos organismos internacionais, sua primeira geração guarda falhas que impossibilitaram o real alcance dos objetivos de tais instituições. Mais do que isso: critica-se que o atraso do desenvolvimento do internacionalismo, de modo geral, presenciado pelos séculos anteriores ao XIX, fora resultado da falta de empenho dos Estados em colaborarem entre si, objetivando, apenas, a consolidação de sua soberania. Demonstra-se, nesse quadro, que as organizações internacionais – aqui chamadas de organizações de primeira geração – enquadravam-se muito mais como uniões administrativas que organismos internacionais propriamente ditos, como se revela no seguinte trecho: Surgidas a partir da primeira metade do século XIX, as primeiras organizações internacionais tiveram como finalidade criar condições favoráveis para a cooperação na solução de problemas comuns a mais de um Estado, como assegurar a liberdade de navegação nos rios Reno e Danúbio. Eram, em verdade, uniões administrativas, possuindo organização incipiente, em geral restrita a uma secretaria, e não tinham objetivos políticos. O procedimento decisório interno fundava-se no princípio da unanimidade, o que muitas vezes levava à morosidade administrativa, limitando sua eficácia.16 Para a correção de tal quadro, fora necessário que a humanidade passasse pela Primeira Guerra Mundial, onde se presenciou, mais do que nunca, o empenho de toda a sociedade civil para com a solidariedade entre os povos para o fim das atrocidades que ali se viveu. Impulsionou-se, em outros termos, a criação de organismos internacionais que pudessem, de maneira efetiva e imparcial, assegurar a solução de controvérsias de maneira pacífica, sem a presença de uma nova guerra, mas, contando ainda, com o nacionalismo exacerbado dos Estados. Surgiram, então, as organizações internacionais de segunda geração. O maior exemplo fora a Liga das Nações que, mesmo tendo falhado no alcance de seus objetivos, teve sua importância na consolidação das organizações internacionais. Assim melhor explica-se esse período: Antes da 2.a Guerra Mundial, portanto, pode-se falar dessas entidades então estabelecidas como "organizações internacionais de segunda geração", as quais surgiram em momento histórico pouco propício, caracterizado, de um lado, pelo desenvolvimento de modos diplomáticos de solução de controvérsias 16 AMARAL JR., Alberto do. Introdução ao direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2008. p.167. 23 e por um renovado interesse na arbitragem interestatal, mas, de outro, pela continuidade do domínio das relações internacionais por uma concepção de soberania absoluta do Estado, repousando, em conseqüência, não em normas jurídicas internacionais, mas no equilíbrio militar entre as potências. Essa época foi cunhada como a do período do "nacionalismo do Direito Internacional", no qual as soberanias estatais estavam hiperatrofiadas, não deixando muito espaço para atividades de organizações internacionais, cujas funções poderiam desbordar os limites estreitos de uma cooperação técnica ou científica especializada.17 Com o advento da Segunda Guerra Mundial, presenciando-se as maiores perdas humanas e a maior devastação já sentida pela sociedade, numa situação de mais puro caos, a humanidade – e consequentemente os Estados – chegou ao maior nível de cooperação e solidariedade que já se teve registros. Relativamente a este quadro, desenvolveram-se, de forma mais complexa, sensata e definitiva, os organismos internacionais, vindo a serem chamados, tais como hoje se conhecem, de organizações internacionais de terceira geração.18 A principal característica dessa classe é a divisão, agora, das organizações segundo suas especialidades, ou seja, segundo os interesses comuns e as imputações dadas, pelos Estados, a tais organismos. De acordo com os ensinamentos de Cretella Neto: Depois de 1945, o insucesso político da Sociedade das Nações em evitar a guerra fez brotar a consciência da absoluta necessidade de mais profunda cooperação internacional, cujo teste de eficácia fosse prevenir a ocorrência de novos conflitos em escala mundial, criando uma colaboração duradoura entre os Estados. Do ponto de vista doutrinário, confirmou-se a necessidade de uma evolução do princípio da especialidade das organizações internacionais, pelo qual as competências dessas instituições deveriam ser exercidas em detrimento da exclusividade das soberanias nacionais e, em conseqüência, de uma revisão do conceito, ainda fortemente arraigado, da soberania estatal absoluta. Parece claro que até a metade do século XIX os Estados se mostravam relutantes em autorizar essa evolução.19 17 18 19 CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.30. Aponta-se que, a partir do século XX, em decorrência da necessidade funcional, as organizações internacionais multiplicaram-se. Os Estados reconheceram que, por si só, não suportariam a obrigação de preservar as gerações futuras do flagelo das guerras, não podendo, ainda, exercerem determinadas funções públicas individualmente. CRETELLA NETO, José, op. cit., p.31. 24 Sublinha-se que, além da especialidade, as organizações internacionais contam, hoje, com uma postura de maior comprometimento dos Estados para com a suas normas e ditames, sendo que, tal caráter, só se demonstrou possível com a flexibilização do conceito de soberania estatal, pautada, especialmente, na paz e na soberania dos povos.20 Assim sendo, para concretizar seu papel no mundo contemporâneo, transcrevem-se os ensinamentos de Jónatas Machado, que assim entende: Paralelamente, as OI's têm contribuído para a edificação de uma "res publica" internacional, por via da identificação de bens e interesses da comunidade internacional, no seu estatuto de civitas máxima, oponíveis aos próprios Estados, e da dinamização do diálogo e da deliberação à escala global, numa perspectiva de "autogoverno mundial". Deste modo, as OI's deram um contributo incontornável para a reconfiguração, alteração qualitativa e limitação quantitativa das prerrogativas da soberania estadual na sua acepção tradicional. Não obstante, as OI's revestem-se de uma importância fundamental para a vida dos Estados. Com efeito, a já assinalada dimensão transfronteiriça e mesmo planetária dos problemas humanos requer, mais do que nunca, a existência de plataformas internacionais para a sua discussão e resolução concertada. Além disso, as OI's, com particular relevo para aquelas que integram a vasta família das Nações Unidas, contribuem para atenuar as consequências negativas resultantes da impossibilidade fática, por parte da generalidade dos Estados, de manter relações diplomáticas bilaterais com todos os demais Estados. Acresce que as organizações internacionais asseguram uma consistência normativa e decisória nos domínios político e jurídico internacional, favorecendo a igualdade dos Estados, sendo que estes permanecem atores principais mesmo num mundo caracterizado pela proliferação de OI's.21 Para finalizar o histórico acerca das organizações internacionais, cabe ressaltar que muito de seu presente desenvolvimento guarda relações com a assinatura – e consequente comprometimento dos Estados, no plano internacional – da Carta das Nações Unidas, datada de 26 de junho de1945, em São Francisco, dando origem ao maior e mais representativo organismo internacional, qual seja, a Organização das Nações Unidas (ONU), a qual será tratada em um momento posterior desse estudo. A partir de sua criação é que o desenvolvimento dos organismos internacionais se 20 21 Nos dizeres de Ferrajoli: "O paradigma, em todo caso, não pode ser senão aquele do Estado constitucional de direito, que nos foi consignado pela experiência das democracias modernas: ou seja, o da sujeição à lei dos organismos da ONU, de sua reforma em sentindo democrático e representativo, enfim, da instauração de garantias idôneas que visem a tornar efetivos o princípio da paz e os direitos fundamentais, tanto dos indivíduos quanto dos povos em seu relacionamento com os Estados". (FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.52). MACHADO, Jónatas E. M. Direito internacional do paradigma clássico ao pos 11 de setembro. 3.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.246. 25 efetivou e trouxe consigo vastas mudanças no próprio direito internacional, como assim se analisa: Em suma, as organizações internacionais, de índole e características as mais diversas, têm efetivamente modificado a estrutura do direito internacional: puseram fim ao monopólio estatal da personalidade jurídica internacional e dos privilégios e imunidades, expandiram a capacidade de celebrar tratados, alteraram as regras da sua própria composição, passaram a participar em procedimentos judiciais internacionais, e ampliaram consideravelmente as vias de cooperação internacional e da integração regional e sub-regional. Este fenômeno, que já era notado nas décadas de sessenta e setenta, pode ser hoje adequadamente apreciado, em perspectiva histórica, no âmbito do direito das organizações internacionais.22 Não se pode perder de vista, numa análise inicial da representatividade da ONU, que tal organismo internacional trouxe para seu âmbito de atuação algumas responsabilidades que, somente os Estados, não estavam suportando – vise as duas guerras –, tais como as questões envolvendo a paz e a segurança Internacional. Segundo os ensinamentos de Wagner Menezes: Este órgão avocou para si a responsabilidade de ser um foro conjunto de discussão dos problemas mundiais, com o propósito de manter a paz e a segurança internacionais, desenvolver relações amistosas entre as nações, augariar a cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e ser um centro destinado a harmonizar as ações dos Estados para a consecução desses objetivos comuns.23 Assim tendo sido estudado, diz-se, de maneira conclusiva, que por mais que as organizações internacionais tenham pilares estruturais anteriores24, fora no século XIX que seu desenvolvimento se dera de maneira mais efetiva e, mais tarde, no século XX, que sua consolidação se demonstrou uma realidade na sociedade moderna. Hoje, 22 23 24 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito das organizações internacionais, p.536. MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade. Ijuí: Editora Unijuí, 2005. p.44. Os pilares estruturais aos quais se faz referência, podem ser exemplificados de tal modo: a diplomacia, os tratados, as conferências, as regras de bem estar, o direito internacional, o comércio internacional, o relacionamento entre culturas variadas, a comunicação global, o cosmopolitanismo, o universalismo, os movimentos de paz, a formação de ligas e federações, a administração internacional, a segurança coletiva e os movimentos para um governo global. 26 pode-se entender que elas são um fenômeno já corriqueiro e seu número, de acordo com os interesses da sociedade – representados pelo comprometimento dos Estados em um plano internacional – não pára de crescer, sendo que uma delimitação real seria impossível, uma vez que o amanhã guarda necessidades distintas e, consequentemente, uma nova organização internacional surgirá. 2 CONCEITO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS Tendo sido analisado todo o seu desenrolar histórico, passa-se, nesse momento, à análise do próprio conceito acerca das organizações internacionais. O mais amplo e aceito conceito de organização internacional refere-se ao fato de caracterizá-la como uma livre associação entre Estados, por intermédio de um tratado internacional, em concordância com as normas de Direito Internacional. Além disso, diz-se ser ela uma entidade de caráter estável, com personalidade jurídica, ordenamento jurídico e órgãos próprios, com fins comuns aos seus membros, conferindo-lhe, em seu pacto constitutivo, a realização de certas funções e determinados exercícios.25 Entende-se, também, de acordo com os ensinamentos de Carlos Roberto Husek, que os organismos internacionais "são criados por meio de tratados e passam a ter personalidade internacional independentemente de seus membros"26. Mas, para entender seu conceito e todas as suas variáveis, necessário se demonstra que alguns aspectos sejam, previamente, abordados. Dessa maneira, é importante pontuar que o sistema internacional, como um todo, é composto, basicamente, de Estados nações – e das consequentes interações entre esses –, das organizações internacionais e dos seus atores privados – hoje, 25 26 REUTER, Paul. Institutions Internationales. 8.ed. Paris: Thémis-Puf, 1975. HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público. 3.ed. São Paulo: LTr, 2000. p.42. 27 com uma atenção especial voltada às organizações não governamentais (ONGs) e às empresas transnacionais.27 Nessa gama de relações, exprimem, as organizações internacionais, uma função primordial, uma vez que são elas quem proporcionam, de maneira mais enérgica, a busca pela paz, preservação da segurança e estabilidade mundial.28 Argumenta-se, ainda, que as organizações são imprescindíveis para o atendimento dos problemas mundiais em um mundo globalizado, os quais, de maneira exemplificativa, podem ser assim descritos: As organizações internacionais são imprescindíveis para resolver alguns dos principais problemas que a humanidade enfrenta. A paz e a segurança, a equidade nas relações comerciais, o auxílio financeiro às nações pobres, a preservação do meio ambiente e a previsão de regimes internacionais que promovam o desenvolvimento, distribuam a riqueza mundial e eliminem as enormes desigualdades de poder estão entre os temas que demandam a atuação das organizações internacionais. Numa época de enorme complexidade, jamais vista em outro momento histórico, em que os destinos humanos parecem estar indissoluvelmente entrelaçados, elas se tornaram essenciais para manter a ordem, assegurar a paz e obter a justiça.29 Também, segundo a compreensão de Wagner Menezes, relatam-se as seguintes características de tais organismos: As organizações internacionais passam a desempenhar o papel de legisladoras globais, propondo normas e regras que passam a ser adotadas pelos Estados e, transcendendo a eles, a outros sujeitos do Direito Internacional e até mesmo aos indivíduos.30 Apesar do desempenho primordial nas relações internacionais, não se pode perder de vista que tais organizações são criadas a partir da vontade suprema dos 27 28 29 30 Investiga-se o conceito de empresas transnacionais por intermédio dos ensinamentos de Husek: "inexistem definições sobre empresa transnacional. Apontam-se critérios – as capazes de influenciar na economia de diversos países ou as sociedades comerciais cujo poder está disperso nas subsidiárias, ou, ainda, aquelas que atuam no estrangeiro por meio de subsidiárias ou filiais –, bem como se apontam características – grande empresa e enorme potencial financeiro ou administração internacionalizada, ou, ainda, unidade econômica e diversidade jurídica. A ONU consagrou a expressão empresa 'transnacional': empresa que atua além das fronteiras – mas se entende que as expressões 'transnacional' e 'multinacional' se equivalem". (HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público, p.227). GAMA, Ricardo Rodrigues. Introdução ao direito internacional. Campinas: Bookseller, 2002. AMARAL JR., Alberto do. Introdução ao direito internacional público, p.169. MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade, p.53. 28 Estados em atingir objetivos conexos – daí porque serem chamadas, também, de organizações intergovernamentais. Em outras palavras, as organizações internacionais são vistas, de um lado, como a emergência de um governo global e, por outro, como resultado do exercício de cooperação entre os Estados soberanos.31 Segundo entendimento doutrinário, a referência à terminologia "organização internacional", em concordância com seu emprego após o século XIX, objetiva uma alusão à situação de relações ordenadas entre as nações. Deduz-se, então que, como sujeitos clássicos de Direito Internacional, os Estados e as organizações internacionais diferem-se em muito em seu surgimento e, consequentemente, em seus conceitos. Primeiramente, no que condiz ao Estado, este depende apenas de certos fatores para ser assim classificado – e não da vontade de outros sujeitos. Tais fatores, primordialmente, abarcam seus elementos constitutivos, quais sejam: seu território, sua esfera temporal de validade, seu povo, seu poder (traduzido em sua composição governamental) e, por último, sua soberania.32 Além disso, como muito bem esclarece Carlos Roberto Husek, os Estados não dependem de um tratado constitutivo para que surjam no cenário mundial, sendo que sua criação é, de fato, um ato unilateral. Em suas palavras, traduz-se: Os Estados são sujeitos primários da ordem internacional, sendo seu nascimento um fato histórico. O reconhecimento do Estado é ato unilateral pelo qual um Estado declara ter tomado conhecimento da existência do outro, como membro da comunidade internacional. Assim, por ser, o nascimento do Estado, um fato, o reconhecimento não passa de um simples ato de constatação – teoria declarativa.33 Igualmente, diferentemente dos Estados, as organizações internacionais, para serem criadas e possuíram capacidade jurídica internacional, necessitam, primordialmente, da vontade dos Estados, segundo pilares de cooperação e solidariedade, em se 31 32 33 BENNETT, Alvin Leroy. International Organizations: principles and issues. 6th ed. New Jersey: Prentice Hall, 1995. p.2. Utiliza-se, aqui, a concepção desenvolvida por Hans Kelsen sobre o Estado. Outros autores podem adicionar mais elementos para com o reconhecimento de um Estado como tal, mas a visão clássica reduz-se a tais elementos aqui transcritos. HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público, p.64. 29 unirem em torno de um instituto comum, sendo tal, a organização internacional. Assim, esse organismo não depende apenas de fatores intrínsecos a sua estrutura, mas também da vontade dos Estados para sua criação, como se confirma no seguinte trecho: Diferentemente dos Estados, cada um dos quais deve sua existência apenas a si próprio, a organização internacional é uma "criatura", na medida em que somente passa a existir quando Estados se reúnem com o propósito de estabelecer uma entidade à qual são confiadas uma ou mais funções específicas, descritas em seu ato constitutivo, ou "constituição". Desse particular resulta que suas atividades são estabelecidas por forças exteriores, sobre as quais não exercem controle.34 Para composição do conceito de organizações internacionais, então, deve ser entendido que elas decorrem da vontade dos Estados, como muito bem exposto acima. Precisa-se, então, que os Estados manifestam sua vontade na criação e no desenvolvimento de uma organização internacional através da ratificação de um tratado, que é, ao mesmo tempo, para uma organização internacional, seu motor de criação e sua própria "constituição" por assim dizer. Traça-se, dessa forma, que o tratado constitutivo de uma organização internacional pretende expor quais são as delimitações, a especificidade e o papel dessa e, ao mesmo tempo, comprometer, num misto de limitação e compartilhamento de soberania, os Estados à submissão internacional, segundo o disposto em tal tratado. Como bem escreve Seitenfus: O tratado constitutivo de uma organização internacional objetiva estabelecer os direitos e obrigações dos Estados membros com a organização internacional e, muitas vezes, entre os Estados membros. Portanto, a criação e o funcionamento de uma organização internacional depende do tratado constitutivo, como dele também depende o respeito aos direitos e deveres dos Estados membros em suas relações recíprocas.35 Outro ponto que merece ressalva é que, ao contrário dos Estados, sua criação está sujeita à existência de um tratado, devendo respeitar aquilo que já fora acordado, 34 35 CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.39. SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.27. 30 em âmbito internacional, acerca de tais instrumentos. Em outros dizeres, o tratado constitutivo de uma organização internacional deve submeter-se à Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969, sempre ressalvados os objetivos da organização, sejam eles de caráter universal ou específico. Demonstrado o papel relevante do Estado no surgimento de uma organização internacional, julga-se esta última como sendo sujeito de direito internacional mediato, secundário ou derivado.36 Estabelecida a criação de uma organização internacional através da conjunção de Estados em torno de um tratado, vale, agora, discorrer sobre algumas de suas características para delimitação de seu conceito. Em suma, do ponto de vista jurídico, três são suas principais, quais sejam: institucionalização, permanência e multilateralidade. Adentrando ao que condiz à institucionalização, pressupõe-se, por sua vez, a existência de três elementos primordiais, sendo eles a jurisdicionalização das relações internacionais (o que pressupõe um fórum para discussão e solução de controvérsias dos Estados), dimensão coletiva de certos aspectos que, anteriormente, eram ligados exclusivamente à soberania dos Estados (o que, aqui, caracteriza-se como sendo o compartilhamento de soberanias) e a existência de um secretariado administrativo, o qual pode vir a ser interestatal (prevalecendo, ainda, a rotatividade dos Estados membros da organização) ou, ainda, em moldes mais recentes, supranacional (impondo decisões aos Estados e monitorando o seu cumprimento).37 Esse processo decisório das organizações internacionais foi evoluindo ao longo dos tempos e, cada vez mais os Estados percebem que sua submissão – ou até mesmo a concordância – aos órgãos decisórios de tais organismos merecem ser levados a sério, como bem explica Cretella Neto: Uma característica marcante do desenvolvimento das organizações internacionais desde 1945 foi a mudança do lócus dos processos de decisão relativos a um amplo espectro de matérias, antes exclusivamente governamentais, de governos nacionais para organizações internacionais. Essa mudança foi gradual e pouco notada no início, pois as organizações agiam de forma cautelosa no exercício de seus limitados poderes, e, quando adotavam decisões que pudessem vincular os Estados-membros, procuravam primeiro obter consentimento dos Estados para assumir as obrigações. Contudo, esse panorama institucional está evoluindo bastante rapidamente, pois as organizações, 36 37 Para Cretella Neto, esse caráter transitório das organizações internacionais se traduz como sendo elas uma solução transitória na busca de uma hipotética integração política entre os Estados. SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.25-26. 31 cada vez mais, interpretam seus poderes – inclusive de forma vinculante – e os aumentam, fazendo com que o consentimento prévio e individual dos Estados perca importância. O processo apresenta-se como uma via de mão dupla: os Estados também, de forma crescente, vêm conferindo cada vez mais amplos poderes de governança às organizações internacionais.38 No que concerne à permanência, diz-se que uma determinada organização é criada com o objetivo de durar indefinidamente e, também, conta com um secretariado permanente, com sede fixa e dotado de personalidade jurídica própria. Mais precisamente, assim sintetiza-se o caráter permanente das organizações internacionais: Estrutura organizada estável, sede fixa, serviços de apoio permanente (marcas de estabilidade). Órgãos próprios no quadro de uma estrutura institucional mais ou menos complexa, estabelecidas em sede permanente localizada no território de um Estado (geralmente, mas não necessariamente, de um Estado-membro) e dispondo dos meios de ação indispensáveis à prossecução, numa base de continuidade, das respectivas finalidades estatutárias.39 Já o conceito de multilateralidade merece um pouco mais de atenção, uma vez que delimita o âmbito de atuação de uma organização, podendo ser ela universal ou regional. A especial diferença entre ambas é que enquanto as organizações de âmbito regional guardam certas delimitações comuns em seus membros – sejam elas físicas, geográficas, desenvolvimentistas, entre outras –, as universais não estabelecem parâmetros para a adesão de um Estado. Nesse ponto, uma ressalva merece ser feita: os compromissos assumidos pelos Estados em âmbito regional não podem ser incompatíveis com os firmados na organização universal. Portanto, esta condiciona tanto os acordos regionais passados quanto os futuros à estrita observância dos termos do tratado de âmbito universal.40 Ainda dentro do debate da multilateralidade, pode ser entendido o caráter de especialidade dos organismos internacionais, quando sua criação debruça-se na busca de um objetivo comum entre os países. Acontece que, nas organizações de caráter universal, tal especialidade é mais difícil de ser observada, uma vez que – como a 38 39 40 CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.40. CAMPOS, João Mota de. Organizações internacionais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. p.38. SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.24. 32 Organização das Nações Unidas – acaba por abarcar muitos assuntos, mas sempre focada da manutenção da paz, segurança e estabilidade das relações internacionais. Há diversas maneiras de se classificar as organizações internacionais, mas, neste trabalho, elege-se a classificação proposta por Carlos Roberto Husek, que delimita-as entre seu objeto, sua estrutura jurídica e seu âmbito territorial de ação ou de participação, sendo da seguinte maneira explicadas: As organizações internacionais podem ser classificadas da seguinte forma: a) quanto ao seu objeto; b) quanto à sua estrutura jurídica; e c) quanto ao seu âmbito territorial de ação ou de participação. a) Quanto ao seu objeto – Atende ao objetivo social de cada organização e está dividido em organizações de fins gerais e organizações de fins especiais. [...] b) Quanto à sua estrutura jurídica – Atende à estrutura jurídica das organizações. Duas espécies devem ser consideradas: organizações intergovernamentais e organizações supranacionais. [...] c) Quanto ao âmbito de sua participação – Atende ao critério de maior ou menor dimensão no âmbito de sua atuação e, assim, temos: as organizações parauniversais e as organizações regionais, estas últimas segundo critério geográfico e segundo critério ideológico ou geopolítico.41 Do ponto de vista político, o conceito de organização internacional fora desenvolvido a partir de três blocos: o primeiro deles formado pelos países ocidentais (mais Japão, Austrália e Nova Zelândia); o segundo composto pelos países que compunham a antiga URSS; e o terceiro, pelos países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos (PMDs).42 O primeiro bloco tratou logo de conceituar e desenvolver as organizações de cunho universalista, onde com a crescente onda de descolonização, os países mais influentes modificaram o sistema de votação no interior de tais organismos, passando da maioria absoluta para o sistema de consenso, garantindo seu direito de veto. Com isso, também, desenvolveram-se organizações regionais entre esses Estados. O segundo grupo, em sentido contrário, viram as organizações internacionais com desconfiança e criaram um sistema intrabloco, vindo, após a desintegração da URSS, abrir-se às organizações (como bem se observa, mais tardiamente que o primeiro bloco de países). 41 42 HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público, p.111-113. CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.45-47. 33 Finalmente, os Estados que compunham o terceiro grupo, logo aderiram às organizações universais desenvolvidas por aqueles do primeiro bloco, numa tentativa frustrada de mudança, do vertical para o horizontal43, dos poderes dos Estados na sociedade internacional. Em realidade, tal desenvolvimento político do conceito das organizações internacionais serviu para consolidar seus principais componentes, quais sejam: caráter de permanência, constituição por ato jurídico internacional próprio (tratado), realização de objetivos comuns aos seus membros (especialidade), órgãos próprios (especialmente seu secretariado permanente) e vontade, também, própria (por mais que seja, em realidade, uma concepção teórica, a organização internacional possui independência para com a vontade governamental interna de seus membros). Entendidos tais aspectos conceituais das organizações internacionais, faz-se de extrema relevância, também, diferenciá-las das organizações não governamentais (ONGs).44 Em uma breve comparação, pode ser dito que enquanto as organizações internacionais contam com estrutura e normas próprias, as ONGs se valem de regras internas de um Estado, desempenhando um papel representativo na sociedade internacional, não configurando – tal como os organismos internacionais – como sujeitos de direito internacional.45 Confirma-se o contraste entre tais na seguinte passagem: Distinguem-se, habitualmente, as organizações internacionais governamentais das não governamentais – ONGs, estas últimas sujeitas às normas jurídicas de um único Estado, segundo seu local de constituição ou funcionamento, e que não se confundem com as primeiras, objeto de nosso estudo. Em regra, as ONGs não possuem finalidade lucrativa, e exercem suas atividades tanto no plano interno quanto no internacional.46 É relevante entender também, que ambas as organizações, tanto internacionais, quanto não governamentais, guardam importantes papeis no desempenho de funções 43 44 45 46 Esclarece-se nesse ponto, que poderes verticais seriam aqueles encabeçados por um ente superior, numa escala de hierarquia de poder, enquanto que poderes horizontais contariam com a igualdade entre os poderes de determinados entes. Como bem explica Husek, "as ONGs, de certa forma, cristalizam o novo paradigma centrado no ser humano e no meio ambiente e são foros de realização da 'cidadania internacional'". (HUSEK, Carlos Roberto. A nova (des)ordem Internacional ONU: uma vocação para a paz. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004. p.113). Avalia-se que, classicamente, sujeitos de direito internacional são as organizações internacionais e os Estados, ambos sendo destinatários de normas de direito internacional, com direitos e obrigações em âmbito internacional. CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.44. 34 no âmbito internacional. Acontece que, sendo um sujeito de direito internacional, a organização internacional atua de forma mais enérgica e tende a possuir um papel de relevância, talvez, tão acentuada quanto a de um Estado soberano, mas nunca tomando o papel desse. Para confirmar tais afirmações, cita-se Cretella Neto: O fenômeno da organização internacional representa um processo de institucionalização da sociedade internacional, embora esse processo não tenha tomado o lugar do Estado soberano, já que a sociedade internacional não perdeu seus princípios constitutivos de liberdade, igualdade e independência das entidades políticas autônomas que se situam na base, os Estados soberanos, nem seu caráter predominantemente descentralizado e paritário. Um amplo processo histórico de mais de cem anos trouxe consigo vasto leque de organizações internacionais nas quais a soberania dos Estados parece haver cedido em muitos campos não políticos; convém, no entanto, não superestimar estes resultados, parciais e fragmentários, enquanto permanece ausente, na vida internacional, uma instância de autoridade política internacional, superior aos Estados. E na falta dessa autoridade política internacional superior aos Estados, as organizações internacionais colocam à disposição do Direito Internacional amplo leque de positividade e de transformação, pois permitem maior efetividade das normas jurídicas. Sua atuação provoca amplo processo de mudanças e de alcance de suas funções e finalidades na ordem internacional.47 Estudadas todas as características estruturais do conceito das organizações internacionais, diz-se que elas são segundo sua perspectiva jurídica, uma coletividade de Estados, estabelecidas mediante tratados, dotadas de órgãos comuns e com competências atribuídas para o alcance de seus objetivos e fins.48 Por fim, combinados todos os elementos terminológicos que compõem o conceito das organizações internacionais, precisam-se as características primordiais de tais organismos, sendo que, sem sua presença, está-se diante de outro fenômeno que não o presente estudado. Assim, tais características são assim arroladas: Destas definições depreendem-se características essenciais de uma organização internacional, assim consideradas: 1) são associações livres entre Estados; 2) surgem a partir de uma convenção internacional; 3) dispõem de personalidade jurídica internacional; 4) possuem um objeto de trabalho próprio de definido; 5) têm um ordenamento jurídico próprio que regula a sociedade de Estados; 6) possuem órgãos próprios para executar seus objetivos; 7) são dotadas de uma estrutura que se distingue da estrutura dos Estados-membros.49 47 48 49 CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.51. CARRIÓN, Alejandro J. Rodríguez. Lecciones de Derecho Internacional Público. 4.ed. Madrid: Tecnos, 2002. p.103. MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade, p.46. 35 Identificados tais elementos, prova-se a existência das organizações internacionais como sujeitos autônomos de Direito Internacional Público. 3 A CRIAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS FRENTE À SOBERANIA ESTATAL Como já fora julgado anteriormente, os sujeitos clássicos de Direito Internacional são os Estados soberanos – considerados como sendo sujeitos primários de Direito Internacional – e as organizações internacionais – sujeitos secundários de Direito Internacional.50 Mais uma vez, não se pode perder de vista que a principal característica, quando então da criação de uma organização internacional, é a necessidade dos Estados, mediante sua livre vontade, compartilharem parcela de sua soberania em prol de um objetivo comum, materializado no tratado constitutivo de uma organização internacional. Dessa forma, acaba por ser impossível desassociar a criação de uma determinada organização internacional da soberania estatal, sendo essa última assim conceituada: A noção de soberania está intimamente ligada ao Estado, à plenitude do Poder Público, ao exercício do mando. Vem do latim superomnia, ou superanus, ou, ainda, de supremitas, caráter dos domínios que não dependem senão de Deus [...]. [...] Intimamente ligada ao Estado, a soberania e este formam um binômio – Estado/soberania – que está na origem dos grandes acontecimentos mundiais.51 O que se pode entender, em um primeiro momento, é que os Estados se viram na necessidade de cooperarem e coordenarem-se entre si para atingirem fins e objetivos comuns, não sendo mais possível a atitude individual de cada qual. Nesse sentido, necessitou-se o compartilhamento de sua soberania para a criação 50 51 A distinção básica entre os sujeitos de Direito Internacional é que as organizações internacionais, criadas por intermédio de tratados constitutivos, não são pessoas primárias de Direito Internacional, enquanto que os Estados caracterizam-se justamente por serem pessoas primárias de Direito Internacional. HUSEK, Carlos Roberto. A nova (des)ordem Internacional ONU..., p.104-105. 36 de organismos internacionais, para que, de fato, os Estados venham a exercê-la, conjuntamente, no plano internacional, como bem se refere Cançado Trindade: O chamado "domínio reservado dos Estados" (ou "competência nacional exclusiva"), particularização do velho dogma da soberania estatal, foi superado pela prática das organizações internacionais, que desvendou sua inadequação ao plano das relações internacionais. Aquele dogma havia sido concebido em outra época, tendo em mente o Estado in abstracto (e não em suas relações com outros Estados e organizações internacionais e outros sujeitos de Direito Internacional), e como expressão de um poder interno (tampouco absoluto), próprio de um ordenamento jurídico internacional, de coordenação e cooperação, em que os Estados são, ademais de independentes, juridicamente iguais.52 Antes da análise pontual sobre a criação e o desenvolvimento das organizações internacionais, cabe mais uma consideração acerca da importância da soberania estatal em sua criação: não se pode perder de vista que os Estados, voluntariamente, compartilham parcela de sua soberania53, exercendo-a no plano das organizações internacionais. Mas a parcela compartilhada acaba por ser apenas aquela que tange ao objetivo central da organização internacional, sendo que nunca os Estados compartilharão ou exercerão, conjuntamente, em um plano internacional, a totalidade de sua soberania, pois se assim o fizer, estar-se-á diante de um novo arranjo global, não mais com a existência de Estados – uma vez que a soberania, em ambos aspectos, interno e externo54, acaba por ser característica essencial à própria existência de um Estado como tal. Sabe-se, então, que o que se pretende é um compartilhamento de soberanias em prol de um exercício comum, entre os Estados, no âmbito de uma determinada organização internacional, onde os Estados podem, de melhor maneira, encontrar soluções e diretivas para todas as questões que lhes envolvam, seja em âmbito interno, seja no campo internacional. Evocando os ensinamentos de Carlos Alberto Husek, descreve-se: 52 53 54 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito das organizações internacionais, p.528-529. Como bem determina Husek, "quanto mais os Estados abdicarem daquela concepção absolutista da soberania, melhores condições terão de sobreviver na sociedade internacional, que exige cooperação e solidariedade". (HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público, p.107). Segundo a tese defendida por Hans Kelsen, a soberania estatal, no seu âmbito conceitual e prático, pode ser entendida de duas maneiras: soberania externa e soberania interna. (KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998). 37 Contudo, é certo que, com o Direito Internacional, o Estado viu-se obrigado a certas adaptações, uma vez que nem sempre pode dar, em todos os assuntos, a última palavra, premido que está por necessidades políticas, econômicas e sociais, compensadas pela ordem internacional, independentemente de ser um Estado de pequeno território ou de imensa massa de terra.55 Adentrando ao primeiro ponto acerca da criação de uma organização internacional, do seu ponto de vista externo, precisa-se que tal instituto é fruto da vontade livre dos Estados soberanos, manifestada em um plano internacional, sendo indispensável sua concordância para a criação, como estima a seguinte passagem: Os Estados são criadores das organizações internacionais, cujo nascimento expressa uma vontade estatal coletiva, portanto de caráter internacional. Esta vontade representa o encontro de interesses e aspirações da comunidade de Estados que compõem a organização. Ao longo de sua existência, as organizações internacionais continuarão a depender estreitamente do entusiasmo ou da apatia, do respeito ou da má-fé que seus membros lhe dedicam. Em definitivo, a sua evolução e a eficácia de suas ações vinculamse a atitudes individuais ou de grupos de Estados.56 Investiga-se, então, que a criação de uma organização internacional depende do desenvolvimento de seu tratado constitutivo, que será o marco inicial de seus trabalhos, determinando seus objetivos, seu âmbito de atuação, seus órgãos internos e mais todos os elementos necessários para a sua criação e desenvolvimento. Além de todos esses enfoques, sua carta constitutiva irá delimitar, ainda, a relação da organização internacional para com a ordem jurídica interna dos Estados que lhe fazem parte. As delimitações e características de seu tratado constitutivo podem, brevemente, serem assim descritas: Tais Tratados, entre outras coisas, enunciam normalmente os grandes objectivos, finalidades ou missões da OI: definem as competências ou poderes que a OI pode exercer para alcançar tais objectivos; instituem os órgãos competentes para formar e exprimir a vontade da OI, para a representar e agir em seu nome; regulam as condições de admissão dos Estados-membros e, por vezes, de exclusão daqueles que deixem de preencher os requisitos de permanência na organização; estabelecem o sistema de financiamento das 55 56 HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público, p.107. SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.51. 38 actividades da Organização, fixando a contribuição de cada Estado-membro – salvo se a OI for dotada de recursos próprios, o que só excepcionalmente acontece (caso das Comunidades Européias); regulam em suma, com maior ou menor pormenor, os mais relevantes aspectos da vida interna e do estatuto internacional da OI internacional.57 Relatada a criação de uma organização internacional a partir da vontade livre e soberana dos Estados em instituírem um tratado constitutivo de tais organismos, propõe-se, ainda, a possibilidade de certas pessoas jurídicas de Direito Internacional fazerem parte de sua órbita, sendo que, em tais casos, esses determinados entes, reconhecidos no referido plano – tais como certos territórios além-mar, frações de Estados, coletividades territoriais dependentes de Estados descentralizados, coletividades locais58 –, além de outras organizações internacionais – desde que possível sua participação59 – podem, tais como os Estados, integrarem o tratado constitutivo de uma organização internacional. Adentrando no campo de admissão de novos membros na organização internacional, precisa-se que deverá ser analisado o tratado constitutivo da organização para a admissão de tais, além da aceitação, pelos então membros da organização, dos novos membros em questão, levando em conta sua discricionariedade e, também, alguns elementos objetivos, advindos do próprio regulamento da organização internacional. Apesar da admissão de novos membros na organização internacional ser prática constante, no mundo presente, dois problemas vislumbram-se iminentes, necessitando serem resolvidos para o bom funcionamento da admissão e da própria instituição, quais sejam: a) estabelecimento da data do início da produção dos efeitos jurídicos da entrada na organização, com a concordância e assimilação de direitos e obrigações – já presentes aos membros anteriores – pelos novos membros; e b) estabelecimento dos direitos e obrigações em relação ao que já fora realizado pela organização, desde sua criação, ao novo membro.60 57 58 59 60 CAMPOS, João Mota de. Organizações internacionais, p.58. CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.108. Para que uma organização internacional possa ser membro de outra organização há de se ter autorização por intermédio de seu próprio tratado constitutivo, seja daquela que pretende ingressar ou daquela na qual se pretende o ingresso. CRETELLA NETO, José, op. cit., p.119. 39 Contrasta-se que, apesar da constância na prática, existem organizações internacionais que, pelas mais diversas razões, não estão abertas à entrada de novos membros, ou, então, limitam a entrada a certas características, sejam elas regionais, políticas, etc. Aponta-se, ainda, que há diversos mecanismos para a aceitação de um novo membro, sendo que, dessa forma, uma nova classificação para tais surge, segundo a sua disposição em aceitar novos membros, sendo assim esquematizada: Pode-se, assim, agrupar as organizações internacionais em três categorias, conforme sua disposição de aceitar novos membros: as completamente fechadas, nas quais novos membros simplesmente não são aceitos; as preponderantemente abertas, nas quais a entrada de novos membros está sujeita a regras mais flexíveis, e não está sujeita a quorum de aprovação, por parte dos Estados-membros, mas apenas uma declaração formal de aceitação do estatuto por parte do candidato a novo membro; e, finalmente, as relativamente fechadas, nas quais o procedimento para a adesão de novos membros está sujeito a regras rígidas, como, por exemplo, a unanimidade na votação, ou, ao menos, maioria qualificada significativa, às vezes difícil de ser conseguida, dado que os votantes sofrem influências políticas e desenvolvem análises mais subjetivas do que objetivas sobre a entrada de novos associados.61 Tal como a vontade de um determinado ente de Direito Internacional em aderir a uma organização internacional, sua retirada acaba por ser produto, igualmente, de sua vontade, sendo que nenhum membro está adstrito, ad eternum, a uma organização internacional, caso essa não seja sua vontade livre e soberana. Constata-se que, apesar de muitas organizações não preverem, em seu tratado constitutivo, cláusula expressa de retirada62, sempre se demonstra possível, se essa for a vontade de um de seus membros.63 61 62 63 CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.120. Em consonância com o entendimento da doutrina, expressamente sintetizado por Cretella Neto, as organizações internacionais abstêm-se de prever cláusula expressa de retirada por entenderem que essa seria causa de enfraquecimento da própria organização internacional. Acontece que, como a retirada de um membro de uma determinada organização internacional é um ato extremamente marcante e drástico, seja para o membro, ou para a própria organização, em geral, os Estados acabam por tomarem uma postura de abster-se de praticar alguns atos no seio da organização internacional, demonstrando-se sua insatisfação com alguma postura da instituição por essa via, ao invés de retirar-se de tal. 40 Acontece que a retirada deve obedecer a certos trâmites, que, em geral, assim se desenrolam: O procedimento de retirada se desenvolve segundo algumas normas. A primeira é que a retirada deverá ser precedida de um aviso prévio, dirigido à organização, normalmente de dois anos antes da efetiva saída. Outra condição de retirada é a de que o membro que deseja denunciar o tratado deve cumprir certas obrigações vis-à-vis à organização, tais como a de pagar as contribuições financeiras passadas e devidas, ou até o final do prazo em que permanecerá na organização, bem como as obrigações financeiras que tiver eventualmente contraído na qualidade de membro, junto a determinadas organizações de caráter econômico.64 Por último, no ato de criação de uma organização internacional, prevê-se, igualmente, a possibilidade de sanções a seus membros, em caráter gradual de severidade, de acordo com a infração cometida, sendo a mais grave de todas elas a possibilidade de expulsão65 de um de seus membros. Apesar de serem previstas, as organizações internacionais sempre tendem a evitar as sanções e priorizam os canais de comunicação para eliminação de eventuais problemas para com seus membros. 3.1 AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL Adentrando ao âmbito da responsabilidade internacional, pode ser deduzido claramente que, sendo as organizações internacionais sujeitos secundários de Direito Internacional, implicam-se a elas certos direitos e obrigações que, caso venham a serem descumpridas, incorrem em responsabilidades internacionais de tais instituições. Esquematiza-se que as organizações internacionais respondem pelo exercício irregular de suas competências, tendo em vista sua personalidade jurídica internacional, de tal forma que a expansão dessa personalidade além dos Estados resultou, igualmente, na expansão da própria responsabilidade internacional, como bem se analisa: 64 65 CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.135. A expulsão, de maneira geral, será necessária quando um dos membros da organização internacional vier a violar normas fundamentais da própria organização ou infringir normas e princípios do Direito Internacional geral. 41 A expansão da personalidade jurídica internacional, abarcando a das organizações internacionais, faz-se hoje inelutavelmente acompanhar a expansão da responsabilidade internacional, incluída igualmente a das organizações internacionais. Enquanto o domínio do direito da responsabilidade internacional concentrava-se, até recentemente, sobretudo na responsabilidade internacional dos Estados, em nada surpreende que, em nossos dias, nesta primeira década do século XXI, passe a voltar suas atenções também à responsabilidade internacional das organizações internacionais. Estas últimas, ao superar, em seu labor, a antiga objeção do "domínio reservado" do Estado (compétence nationale exclusive), contribuíram, elas próprias, à notável expansão de outros capítulos do Direito Internacional, como, e.g., os atinentes à jurisdição, e à responsabilidade internacional.66 O principal instituto que cuidou de delimitar a responsabilidade internacional das organizações internacionais fora a Comissão de Direito Internacional (CDI)67 das Organizações das Nações Unidas que, em 2003, emitiu um primeiro relatório acerca do tema, quando determinou que uma organização internacional estaria incorrendo em um ilícito internacional quando, em face de sua ação ou omissão, descumprisse uma obrigação internacional vinculante a ela. Em seu segundo relatório, entendeu-se que a "conduta de um órgão ou funcionário de uma organização internacional, no exercício das funções desta última, deve ser considerado como ato da própria organização (para efeitos de configuração de sua responsabilidade)"68. Já no seu terceiro relatório, a Comissão entendeu que a própria organização, em suas regras, pode vir a tratar das violações e, no quarto e quinto relatórios, fora entendido que as normas de jus cogens de Direito Internacional que vinculam os Estados, fazem-no, igualmente, às organizações internacionais, como bem analisa Cançado Trindade: Significativamente – e como não poderia deixar de ser – o quarto relatório reconhece que as normas peremptórias do direito internacional (jus cogens) vinculam as organizações internacionais da mesma forma que os Estados. Segundo o projeto de artigo 23, nenhuma das circunstâncias eximentes de responsabilidade aqui contempladas terá validade se o ilícito perpetrado 66 67 68 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direito das organizações internacionais, p.612. Examina-se que, já em 1980, quando então a CDI veio a emitir um Parecer, sobre a Interpretação do Acordo de 1951 entre a OMS e o Egito, previu, de maneira indireta, a responsabilidade internacional das organizações internacionais, determinando que "as organizações internacionais são sujeitos de Direito Internacional e, como tais, estão vinculadas por quaisquer obrigações que lhe imponham as regras gerais do Direito Internacional, suas cartas constitutivas ou os acordos internacionais em que sejam partes". CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p.615. 42 violar uma norma peremptória do Direito Internacional. Em suma, o jus cogens vincula todos os sujeitos do Direito Internacional, sejam eles os Estados, ou as organizações internacionais, ou outros.69 Discute-se que, apesar de todos os esforços na busca de uma coesão e regras eficazes e claras acerca da responsabilidade internacional, seja dos Estados – quando então do contencioso em tribunais internacionais –, seja das organizações internacionais, pode ser entendido que os trabalhos nesse âmbito encontram-se em fases primárias, necessitando de mais estudos e empenhos, como assim transcreve-se: Ademais, o contencioso diante dos tribunais internacionais contemporâneos revela que ainda há muito o que avançar, por parte destes últimos, na aplicação do direito da responsabilidade internacional dos Estados. Já no Direito das Organizações Internacionais encontra-se ainda, neste particular, em sua infância, com o trabalho em curso da CDI. Na medida em que os trabalhos da CDI avancem, se estará buscando suprir uma lacuna no Direito das Organizações Internacionais, e no Direito Internacional Público em geral.70 Apesar desse entendimento, deve-se deixar claro, desde logo, que a responsabilidade internacional do Estado, no que tange aos direitos humanos, difere-se de todas as suas outras responsabilidades internacionais advindas de outros documentos legais, justamente pelo fato da valorização intrinsecamente ressaltada – já consolidada e aceita – dos instrumentos que tratam sobre o tema dos direitos humanos. Nessa linha de raciocínio, combina-se o entendimento de André de Carvalho Ramos: [...] esses tratados de direitos humanos são diferentes dos tratados que normatizam vantagens mútuas aos Estados contratantes. Com efeito, o objetivo dos tratados de direitos humanos é a proteção de direitos de seres humanos diante do Estado de origem ou diante de outro Estado contratante, sem levar em consideração a nacionalidade do indivíduo-tema. Assim, um Estado, frente a um tratado multilateral de direitos humanos, assume várias obrigações para com os indivíduos sob sua jurisdição, independentemente da nacionalidade, e não para com outro Estado contratante, criando o chamado regime objetivo das normas de direitos humanos. Esse regime objetivo é o conjunto de normas protelaras de um interesse coletivo dos Estados, em contraposição aos regimes de reciprocidade, nos quais impera o caráter quid pró nas relações entre os Estados. Logo, os tratados de direitos humanos estabelecem obrigações objetivas, entendendo estas como obrigações cujo objeto e fim são a proteção de direitos fundamentais da pessoa humana.71 69 70 71 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direito das organizações internacionais, p.615. Ibid., p.619. RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.27-32. 43 3.2 AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS INTERGOVERNAMENTAIS E SUPRANACIONAIS Para o entendimento do tópico em questão, necessário se faz ter em mente que o poder de qualquer organização internacional decorre, necessariamente, da outorga de competências, previstas em seu tratado constitutivo, pelos sujeitos de Direito Internacional que a constituem. Igualmente, exprime-se que não há uma classificação única sobre as organizações internacionais, e, de tal maneira, seria desnecessário elencar um amplo rol de classificações, uma vez que, para esse estudo em específico, utilizar-se-á apenas a diferenciação entre organizações intergovernamentais e supranacionais. Prova da situação em tela é o trecho elencado a seguir: É de se advertir para o fato de que, pela sua diversidade e, ao mesmo tempo, pelas semelhanças estruturais, certas organizações possuem características múltiplas, podendo ser inseridas em uma classificação, e que a presente ordenação leva em conta o objeto principal de cada organização internacional, segundo a configuração jurídica dada por seu estatuto jurídico.72 Assim, as organizações internacionais intergovernamentais recorrem às bases de cooperação e coordenação entre seus membros, sendo que suas decisões dependem do aceite desses para que entrem em vigor, não possuindo qualquer órgão ou poder que esteja acima dos órgãos internos de seus membros. Fala-se, aqui, de uma situação horizontal entre os órgãos internos de seus membros e dos órgãos das organizações internacionais. Já no condizente às organizações internacionais supranacionais, pode ser dito que estas atingiram graus elevadíssimos de cooperação e coordenação, com uma outorga cada vez maior de poderes. Nesse sentido, de acordo com a necessidade do mundo globalizado e com as pretensões dos sujeitos de Direito Internacional que lhes integram, surgiram, então, as organizações internacionais supranacionais, 72 MENEZES, Wagner, Ordem global e transnormatividade, p.47. 44 materializando-se no próprio Direito Comunitário73 e tendo, como sua expressão máxima, a União Europeia. Brevemente, pode-se dizer que as organizações internacionais supranacionais é que gozam de competências além da própria cooperação e coordenação entre os Estados, vindo, em seus seios, desenvolverem regras cogentes para seus membros, possuindo órgãos próprios, desvinculados dos interesses e poderes de seus membros. Combinados a esses entendimentos, necessário se demonstra elencar, brevemente, algumas das principais diferenças entre as organizações internacionais supranacionais e as organizações internacionais intergovernamentais. O primeiro grande ponto diferenciador diz respeito ao grau de capacidade do exercício autônomo das competências recebidas pelas organizações, tendo em vista que as organizações internacionais supranacionais, diferentemente das intergovernamentais, possuem uma elevada efetividade para exercício autônomo de tais competências, sendo que um exemplo exponencial de tal é que as decisões judiciais de seus órgãos legislativos são aplicáveis de imediato no interior de seus membros, não necessitando nem mesmo do exequatur.74 Além disso, as organizações internacionais supranacionais, ainda, diferem-se por contar com órgãos, com poder de decisão, que representam a própria organização, e não qualquer um de seus membros e, ainda, que suas decisões sejam adotadas por maioria na maior parte das vezes.75 Por fim, discute-se que as organizações internacionais supranacionais contam com uma flexibilidade muito maior da soberania de seus membros do que as organizações internacionais intergovernamentais, uma vez que, nas primeiras, seus membros cedem, de maneira efetiva, parcela de sua soberania, abrindo mão de seu controle, no âmbito interno, de vários assuntos para vir, em um poder supranacional, com interesses próprios e desvinculados de seus membros, delimitarem limites e diretrizes comuns àqueles que dela fazem parte. 73 74 75 Não se pretende, nesse momento, enfocar de maneira precisa o Direito Comunitário, tendo em vista todos os seus aspectos peculiares. Visa-se, apenas, elencar algumas das principais diferenças entre as organizações internacionais supranacionais – fenômeno recentíssimo no mundo globalizado – e as organizações internacionais intergovernamentais. VASCONCELLOS, Ricardo Rocha de. O poder das organizações internacionais. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. p.26 D'ARCY, François. União Européia: instituições políticas e desafios. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stifting, 2002. 45 4 O PROCESSO DECISÓRIO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS Um ponto de extrema relevância no estudo e entendimento das organizações internacionais é o aspecto de seu processo decisório, uma vez que é, através dele, que as organizações internacionais materializam-se seus atos internacionais. Assim sendo, cabe fazer algumas ressalvas antes de se adentrar ao processo de tomada de decisão propriamente dito das organizações internacionais. Um primeiro ponto de extrema relevância é a questão de que a tomada de decisão no interior da organização internacional sobrepõe-se à questão puramente técnica, alcançando o próprio jogo de poder, entre seus Estados-membros, presente nas relações internacionais. Ou seja, apesar do ideal das organizações internacionais ser, em tese, claramente diferenciado e independente dos presentes em seus membros, é impossível não haver uma determinada influência, no processo decisório, daqueles que detêm o poderio e a ideologia predominante num contexto internacional. Como a imensa maioria das organizações internacionais encontra-se no plano intergovernamental, acaba por ser indiscutível a presença de maior relevância das opiniões e ideologias daqueles Estados que possuem maior influência no campo internacional. Ou seja, o processo de tomada de decisão, apesar de querer ser independente e neutro, insere-se na realidade ideológica dominante em seu momento. Em outras palavras, pode-se dizer: Torna-se imprescindível distinguir claramente a ideologia da organização internacional como sujeito da decisão e a ideologia dos atores, particularmente os Estados membros. Contudo esta distinção não pode afastar a organização internacional do meio onde ela atua. Caso contrário, estaríamos admitindo a existência de uma ideologia supranacional, dominadora do conjunto do sistema das relações internacionais. Ora, mesmo a unidade ideológica que atualmente impera em grande parte do sistema internacional é mais aparente do que real; os conflitos interestatais prosseguem, somente se sustentando com menos vigor no discurso ideológico, mas não afastando o seu conteúdo. Portanto, para identificação dos contornos reais, além dos institucionais, eles devem ser inseridos no âmbito das relações internacionais e dos embates que aí ocorrem.76 76 SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.43. 46 Precisa-se, ainda, que o processo decisório, no interior de uma organização internacional, contou com a presença da influência desse jogo de forças entre os seus membros, até mesmo, no processo de votação, quando interferiu na passagem do princípio da unanimidade para a maioria, incluindo, aí, a passagem da importância do bilateralismo para o multilateralismo no jogo internacional, como bem explica Cançado Trindade: O processo de tomada de decisões nos organismos internacionais está longe de ser uma questão meramente técnica. Pode refletir ou influenciar o próprio jogo de forçar prevalecente no sistema internacional ou regional. Assim por exemplo a evolução do princípio da unanimidade da política dor grandes poderes à regra da maioria – própria aos sistemas da ONU e da OEA – realçou o papel também dos pequenos Estados nos procedimentos de votação, contribuiu ao policentrismo e, de certo modo mitigou a importância da bipolaridade; e, por sua vez, a emergência e fluidez de novos grupos de votação, acentuaram a flexibilidade e o âmbito de interesses manifestados, por exemplo, nos órgãos da ONU, "sem transformar drasticamente os limites impostos pelo sistema internacional".77 Adentrando ao procedimento de tomada de decisões nas organizações internacionais, pode-se dizer, em um primeiro momento, que tais decisões materializam-se através de atos de naturezas diversificadas, podendo ser classificados como regulamentos, recomendações, resoluções, decisões, pareceres ou quaisquer outros atos que estejam determinados no seu pacto constitutivo. Deve-se ter em mente que todos os atos produzidos, em caráter geral78, através do processo decisório previsto na organização, tem caráter internacional e obrigatório para seus membros – especialmente aos Estados – sendo que, alguns – no que tange a temas pertinentes à paz e à segurança internacional – podem obrigar, até mesmo, Estados não participantes da própria organização, tendo em vista a sua indiscutível relevância no plano internacional. Mas para que uma organização internacional tenha como legítimo seu processo decisório, é necessária a votação de seus membros, sendo que, ao longo de seu 77 78 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direito das organizações internacionais, p.235. Segundo o entendimento doutrinário majoritário, diz-se que os atos de caráter geral de uma organização internacional são aqueles que preveem a obrigatoriedade a todos os Estados-membros da própria organização, uma vez que alguns dos atos tomados por esta última têm alcance individual, ou seja, visam apenas um Estado ou uma categoria de Estados previamente identificados. 47 histórico, a forma de votação e adoção de decisões fora sofrendo alterações, adequando-se à realidade em que se encontrava. Observa-se que a primeira forma de votação fora instituída por unanimidade, ou seja, todos os membros da organização internacional deveriam estar de acordo com os termos do processo e da própria decisão. Uma vez que, com o passar dos tempos, especialmente após 1945 – que significou o surgimento das Organizações das Nações Unidas –, as organizações internacionais vieram a se desenvolver de forma estrondosa, com a consequente adesão de inúmeros Estados, o modo unânime de adoção de decisões se demonstrou um entrave ao seu desenvolvimento e, então, adotou-se o modo de votação por maioria, onde bastava que um número maior que a metade dos Estados-membros estivesse de acordo com o processo de tomada de decisão para que essa se demonstrasse legítima. Fica claro que alguns processos decisórios guardam resquícios da adoção por unanimidade, como é o caso do Conselho de Segurança, que só pode vir a adotar uma decisão caso os seus cinco membros permanentes – Estados Unidos, China, Rússia, França e Reino Unido – concordem com seus termos. Em um momento mais presente o que se observa é a adoção da decisão por intermédio do consenso entre os Estados-membros, o que se traduz na busca por uma maior flexibilidade e na aplicação da negociação no processo de tomada de decisões no interior das organizações internacionais. Não se pode perder de vista que o processo de tomada de decisões, no âmbito das organizações internacionais, acompanhou o seu próprio histórico e, também, todos os movimentos da sociedade internacional, visando, ultimamente, a maior efetividade na tomada e efetividade das decisões, como bem se observa na seguinte passagem: No desenvolvimento histórico das organizações internacionais, foi particularmente significativa a passagem da regra da unanimidade à da maioria. A primeira, vigente na Liga das Nações, foi abandonada pelas Nações Unidas em face da paralisia que acarretara e por se ter mostrado inviável para foros multilaterais amplos [...]. O sistema de veto, no Conselho de Segurança da ONU, pode ser tido como um resquício da regra da unanimidade: reduzindo esta unanimidade dos "cinco grandes" para garantir a ação coletiva do Conselho, tornou-se nova fonte de paralisia institucional. 48 Em matéria de processo decisório, a evolução recente mais significativa, no entanto, é a gradual utilização da técnica do consenso [...]. O que aqui se busca é a solução global, negociada, não raro mediante acordos e acomodações de posições de blocos, como parte de um processo flexível e sem excessivo formalismo, levando à adoção de textos que refletem tão somente as soluções que se lograram alcançar e não fórmulas ideais.79 Evoca-se no processo decisório de uma organização internacional o princípio da máxima eficácia, o qual refere-se à questão que um Estado deverá, para fazer parte de uma organização, necessariamente, ter o mínimo de influência em seu processo decisório, não podendo, nesse ponto, ser discriminado.80 Acontece que, em alguns organizações internacionais, há a previsão da adoção de certas decisões sem uma votação formal, sendo determinadas pelo Secretário, Presidente ou Diretor Geral da organização, levando, sempre, em conta os aspectos, a importância e as convicções dos Estados-membros. Essas decisões sem votações decorrem de três fatores: formal, material e funcional. No que condiz ao aspecto formal, observa-se a previsão de adoção de decisões, sem votação, no próprio estatuto da organização. Já segundo o fator material, leva-se em conta a assimetria das forças dos membros da organização, prevendo que fica impossibilitada a adoção de determinadas decisões caso alguns membros – considerados de relevância extrema no plano internacional – não concordem com tal. Por fim, no que tange ao aspecto funcional, diz-se que as organizações, por tomarem muitas decisões de cunho político, evitam sobremaneira o confronto entre seus membros quando adotam decisões sem a necessidade de votação, priorizando, então, o debate e a negociação sobre tais temas.81 Seja com ou sem votação, o processo decisório nas organizações internacionais tende a percorrer, teoricamente, cinco etapas, sendo assim descritas: 1) o nascimento propriamente dito da decisão, quando então os membros da organização acordam em discutir um determinado tema e solucioná-lo; 2) o surgimento do consenso entre esses mesmos membros; 3) a edição de um texto formal, respeitando o disposto na carta constitutiva da organização; 4) a consequente aplicação do texto da decisão entre os membros e, caso o tema seja de extrema importância – tangente, especialmente, 79 80 81 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direito das organizações internacionais, p.236-237. CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.234. Ibid., p.237-238. 49 à paz e segurança internacional –, em toda a sociedade internacional; e 5) a eficácia fática da decisão.82 Apesar de toda essa trajetória estipulada, pode ocorrer a supressão ou acréscimo de alguma etapa, mas fica evidente que necessário se faz, respeitando os objetivos da organização internacional, a implementação da decisão pelos membros dela. Acontece que, muitas vezes, os membros de uma organização internacional – nesse caso, especialmente, os Estados – acabam por não respeitarem os termos de uma decisão e, dessa forma, ficam sujeitos às medidas previstas, para tal atitude, na carta constitutiva da organização internacional. Argumenta-se que essa atitude dos membros faz-se tornar possível, por parte dos órgãos da organização internacional, a suspensão de certos direitos àqueles que não respeitarem a decisão em questão. Tais suspensões podem materializar-se na suspensão do direito de voto, por exemplo, na suspensão de certas vantagens de caráter financeiro, ou a suspensão do direito de participação na organização e, até mesmo, a expulsão do membro que não acolher a decisão. O problema que se vislumbra, na comunidade internacional, é que, muitas vezes, tais sanções previstas, quando do não acolhimento de uma decisão de uma organização internacional por um de seus membros, tornam-se difíceis de serem implementadas, sendo necessária, claramente, a participação e a pressão de todos os outros membros para que a sanção cumpra a sua devida finalidade. Para melhor esclarecer o tema, refere-se ao seguinte ponto descrito por Cançado Trindade: As sanções no plano internacional têm sido examinadas à luz de distintos métodos de classificação. Exemplo de sanção direta ou imediatamente aplicada é fornecido pela suspensão geral de um Estado-membro de uma Organização internacional. Têm-se distinguido as sanções econômicas seletivas e globais, e, mais amplamente, as sanções voluntárias (recomendadas por órgãos internacionais) e mandatórias (a exemplo das ditadas pelo Conselho de Segurança da ONU sob o capítulo VII da Carta para lidar com uma ameaça à paz). Quaisquer que sejam, porém a função e o grau de intensidade de atuação de uma Organização internacional, as sanções não são selfexecuting, e sua aplicação ou implementação – como o demonstram claramente, e.g., as sanções sob o capítulo VII da Carta da ONU – conta em última análise com o indispensável concurso dos Estados; surgem aqui 82 SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais, p.47. 50 prontamente dificuldades práticas, dados os distintos graus de resposta ou disposição em cumprir as sanções por parte dos Estados individualmente, a possibilidade de tentarem evitar ou adiar decisões quanto à implementação face aos riscos e custos envolvidos e possíveis desacordos quanto aos próprios métodos de implementação das decisões.83 Apesar de não ser medida corrente, por conta da pressão internacional, o Estado-membro que não concordar com a decisão, tomada de forma legal e prevista pela organização, e não querer adotá-la poderá, como meio legítimo para descumpri-la, retirar-se da organização internacional, como bem estima a seguinte passagem: A única escapatória que resta a um Estado-membro que não queira conformar-se com o carácter obrigatório do acto regulamentar adoptado por maioria é a de se retirar da Organização. Mas esta escapatória é em geral pouco praticável no caso da OI que como verdadeiros serviços públicos internacionais asseguram a cooperação nos múltiplos domínios em que, na época actual, um Estado não pode dispensar sob pena de se ver posto à margem da convivência internacional. Cada organização está em geral dotada dos meios de pressão indispensáveis para impor o respeito das normas que dita, nomeadamente através de sanções de natureza disciplinar (suspensão ou mesmo, eventualmente, exclusão do Estado prevaricador da sua participação na Organização).84 Finalmente, o que se prevê, no processo decisório de uma organização internacional, é a eficácia final de suas decisões, conformando-se com toda a sua regulamentação e, especialmente, com os demandes de todo o contexto internacional. Para que isso seja possível, indispensável se demonstra que seus membros – em especial, os Estados – estejam aptos a entender a importância extrema de uma organização internacional e, por consequência, de suas decisões, no contexto do mundo globalizado que demanda, cada vez mais, a credibilidade de tais instituições para a manutenção da ordem nos mais variados campos da vida em sociedade – especialmente, da sociedade internacional. 83 84 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direito das organizações internacionais, p.388-389. CAMPOS, João Mota de. Organizações internacionais, p.141. 51 4.1 OS ÓRGÃOS JURISDICIONAIS INTERNACIONAIS Pretende-se, aqui, discorrer, genericamente, sobre os órgãos jurisdicionais internacionais, uma vez que são eles quem detêm a competência para obrigar os Estados, mediante suas decisões, em um plano internacional e, igualmente, obrigarlhes a produzir a eficácia esperada em seu âmbito interno. Nesse sentido, pode-se dizer que, quando do seu surgimento, pretendeu-se instituir métodos do direito interno para os órgãos jurisdicionais internacionais. Acontece que há diferenças incontornáveis entre a sociedade interna e a sociedade internacional e, consequentemente, entre o direito interno e o próprio direito internacional, o que acarreta na necessidade das jurisdições internacionais terem que trilhar caminhos próprios para garantia da eficácia de suas decisões. Em tal aspecto, ilustram-se os entendimentos de Cretella Neto: Isso ocorre porque a fisionomia das jurisdições internacionais assume contornos próprios, mas a maioria não chega a satisfazer os padrões ideais do Direito interno. Além disso, as profundas e incontornáveis diferenças entre a sociedade internacional e as sociedades internas dificultam a adoção de critérios universais identificadores de uma "jurisdição internacional". Inegável que o juiz deva ser alguém que represente um organismo que inspire confiança nas partes, por atuar não de forma casuística, mas sistemática e com razoável previsibilidade. Adicionalmente, identifica-se, na sociedade internacional, uma quase onipresente ausência de hierarquia entre as instâncias jurisdicionais, o que enfraquece a análise da matéria recursal como indício seguro para classificar uma jurisdição como internacional [...]. De fato, parece incontestável que as jurisdições internacionais guardam apenas pálida semelhança com as jurisdições nacionais.85 O problema que se vislumbra é que, até hoje, a doutrina majoritária não conseguiu, ainda, instituir um conceito sobre os órgãos jurisdicionais internacionais. Em outras palavras, pode ser dito que o conceito de tribunais internacionais encontra-se, hoje, passível de complementação. 85 CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais, p.171. 52 Avalia-se que essa lacuna no Direito Internacional torna-se um problema aos Estados que são sentenciados em tais cortes internacionais, uma vez que a eficácia da decisão acaba por encontrar-se comprometida por dois motivos: primeiro, por não se saber exatamente a amplitude do conceito dos órgãos jurisdicionais internacionais; segundo, os organismos internos da grande maioria dos Estados que compõem a sociedade internacional encontram-se, ainda, em fase embrionária de como internalizar e dar eficácia a tais decisões. Especialmente no âmbito dos direitos humanos, quando um Estado é condenado por um tribunal internacional acerca de uma violação ocorrida e não reparada em seu interior, é necessária e urgente e automática a internalização e a consequente eficácia da sentença advindas das cortes internacionais – chamadas, aqui, de sentenças internacionais –, não devendo ser alegada a referida lacuna como escusa para o seu não cumprimento, tendo em vista o caráter relevante e imprescindível da decisão para a proteção do próprio direito. 4.2 SENTENÇAS INTERNACIONAIS X SENTENÇAS ESTRANGEIRAS Há muito se tem debatido sobre sentenças internacionais e sentenças estrangeiras, sendo que, em alguns casos, erroneamente, utilizam-se ambas as nomenclaturas como sinônimos. Primeiramente, não se deve confundir Direito Internacional com o direito estrangeiro. Enquanto o primeiro trata da regulamentação jurídica da própria sociedade internacional, o segundo trata das jurisdições e leis advindas do interior de um determinado Estado. Valério Mazzuoli esclarece tal distinção no seguinte trecho: Ora, sabe-se que o direito internacional não se confunde com o chamado direito estrangeiro. Aquele diz respeito à regulamentação jurídica da sociedade internacional, na maioria dos casos feita por normas internacionais. O direito internacional disciplina, pois, a atuação dos Estados, das Organizações Internacionais e também dos indivíduos no cenário internacional. Já o direito estrangeiro é aquele afeto à jurisdição de determinado Estado, como o direito italiano, o francês, o alemão e assim por diante.86 86 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O tribunal penal internacional e o direito brasileiro. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.92. 53 Adentrando às sentenças estrangeiras, deve-se dizer que elas vêm a ser prolatadas em um Estado diferente daquele que terá que produzir sua eficácia, dependendo de homologação no Estado em que deverá produzir seus efeitos. Também, atém-se ao fato de que as sentenças estrangeiras são prolatadas pelo judiciário de um Estado, cabendo à cooperação horizontal87 determinar seu cumprimento na jurisdição de outro Estado, por intermédio, como acima referida, da homologação de sentenças estrangeiras. Elucida-se tal entendimento com as palavras de Vladmir Silveira: Cada Estado dispõe de poder jurisdicional nos limites de seu território, competindo às autoridades judiciárias nacionais conhecerem das causas que nele tenham seguido. Assim sendo, o julgamento proferido no estrangeiro, via de regra, não tem eficácia em território diverso do que fora prolatado. No entanto, em decorrência da necessidade de coexistência entre os Estados soberanos, bem como para exigências de ordem prática, a maioria dos sistemas de direito positivo confere eficácia, nos territórios dos Estados quais emanam, às sentenças proferidas no exterior, seja pela extensão dos efeitos da sentença ao território, seja pela atribuição à sentença de efeitos idênticos aos quais teria uma decisão nacional de conteúdo igual.88 Nesse sentido, a referida homologação de sentença é uma aplicação indireta da lei estrangeira, uma vez que a aplicação do direito estrangeiro se deu na própria jurisdição do local, e não internamente, onde se pretende fazer executar a sentença – lembra-se que a aplicação do direito estrangeiro pode ser empregada pelo juiz do foro, na composição da lide de outro país (aplicação direta) ou pela execução de sentença proferida pela justiça estrangeira, pendente de homologação no primeiro (aplicação indireta).89 Assim sendo, deduz-se que as sentenças estrangeiras não guardam estrita relação com qualquer órgão internacional, dependendo, apenas, do relacionamento direto entre os órgãos jurisdicionais dos Estados em que foram prolatadas e 87 88 89 Diz-se ser a homologação de sentenças estrangeiras decorrente de uma cooperação horizontal uma vez que, entre os judiciários dos Estados, não há uma sobreposição de poderes e/ou valores, estando todos eles em um mesmo patamar. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. O Tribunal Penal Internacional e a garantia dos direitos humanos. Revista Diálogo & Debates da Escola Paulista da Magistratura (EPM), São Paulo, v.7, n.1, p.20-21, 2006. DEL'OLMO, Florisbal de Souza. Direito internacional privado. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.69. 54 daqueles que dependem para a sua eficácia. Segundo sua conceituação, avaliam-se as sentenças estrangeiras90: A sentença estrangeira é considerada apenas como fato perante sistemas jurídicos que não lhe admitem qualquer efeito enquanto manifestação jurisdicional, sendo, portanto, inútil um procedimento judicial destinado a sua homologação. Por outro lado, em face daqueles sistemas jurídicos nacionais em que a revisão de mérito é condição de validade para a sentença estrangeira ou ainda quando sua aceitação e reconhecimento dependem de reciprocidade, a decisão estrangeira é ato jurisdicional de eficácia reduzida, na medida em que seus efeitos dependerão diretamente de uma nova sentença a ser prolatada no foro nacional. Já naqueles sistemas jurídicos em que a sentença está sujeita a uma revisão parcial ou a um mero procedimento delibatório, a decisão estrangeira é ato jurisdicional, ou um equivalente jurisdicional, como define Carneluti, pois atinge fim idêntico ao objetivado pela função jurisdicional.91 Diz-se, ainda, que a homologação tende a solver e amparar as relações privadas e respeitar a ordem pública, a soberania e os bons costumes do Estado em que se requer essa primeira. Diferentemente das sentenças estrangeiras, as sentenças internacionais advêm de Cortes internacionais, cujas quais um Estado submete-se, em plano internacional, materializando, de tal forma, uma cooperação vertical.92 De tal maneira, as sentenças internacionais podem assim ser conceituadas: Sentenças internacionais são atos judiciais emanados de organismos judiciários internacionais de cuja formação o Estado participou com o produto de sua vontade, seja porque aceitou a sua jurisdição obrigatória, como é o caso do TPI, seja porque, mediante acordo especial, concordou em submeter a solução de determinada controvérsia a um organismo internacional, como a Corte Internacional de Justiça. O Estado tem a faculdade de aceitar ou não a jurisdição de um tribunal internacional, mas se aceitou, mediante declaração formal, como se verifica com o caso do TPI, o país está obrigado a dar cumprimento à decisão que vier ser proferida, sob pena de responsabilidade internacional.93 90 91 92 93 Outra conceituação é aquela proposta por José Carlos Barbosa Moreira, a qual diz que a sentença estrangeira seria toda decisão, seja qual for sua natureza (declaratória, constitutiva, condenatória ou outra porventura doutrinariamente admitida), que tenha conteúdo de julgamento. HUCK, Hermes Marcelo. Sentenças estrangeiras e "lex mercatoria": horizontes do comércio internacional. São Paulo: Saraiva, 1994. p.23. A cooperação vertical é determinada segundo um quadro onde um Estado compartilha parte de sua soberania e submete-se a um organismo internacional em prol de um bem comum, sendo que, quase que na totalidade dos casos, em prol da proteção e efetivação dos direitos humanos. MAZZUOLI, Valério de Oliveira, O tribunal penal internacional e o direito brasileiro, p.92-93. 55 Nesse momento, importante vem a ser entendido que tais organismos internacionais, capazes de condenarem os Estados no referido plano, propõem seus entendimentos por intermédio de sentenças internacionais que, além de sua denominação, não guardam qualquer semelhança com sentenças estrangeiras, a não ser pelo fato de ambas serem o instrumento de uma decisão, ou seja, uma sentença. No que tange ao comprometimento dos Estados em plano internacional, precisa-se que: Ressalta-se que o exercício desta jurisdição internacional baseia-se em ato de liberdade do Estado aderente em relação a sua soberania, pois a jurisdição é um atributo da soberania e o Estado aderente, manifestando-se soberanamente no âmbito internacional, passa uma parcela dessa soberania para a entidade supranacional, que passa a dispor de jurisdição sobre o próprio Estado, mas não deixa de exercer sua vontade de aplicar a lei e de julgar de acordo com o conjunto de leis acordadas.94 De acordo com o que se prevê sobre sentenças internacionais, cabe ressaltar que o procedimento não depende de homologação95, uma vez que os organismos internacionais detêm jurisdição sobre o próprio Estado – segundo a vontade expressa deste –, sendo que, este último, deve vir a respeitar suas condenações, sob pena de responsabilização internacional. Cabe ressaltar, ainda, que em território nacional, o próprio Superior Tribunal de Justiça já determinou, expressamente, que sentenças estrangeiras não se confundem com sentenças internacionais, quando o então Ministro Francisco Falcão, especificou que: A Corte Internacional não profere decisão que se subsuma ao conceito de "sentença estrangeira", visto que é órgão supranacional. [...] A CPIJ, assim como a Corte Internacional de Justiça, não são cortes ou tribunais estrangeiros, cujos julgamentos não são decisões judiciais ou sentenças estrangeiras que requeiram qualquer tipo de exequatur ou homologação.96 94 95 96 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. O Tribunal Penal Internacional e a garantia dos direitos humanos, p.21. Debate-se que, no caso brasileiro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), não possui compet^neica para homologar sentenças proferidas por tribunais internacionais, uma vez que estes decidem acima das instâncias soberanas estatais, tendo jurisdição sobre o próprio Estado, uma vez que este reconheceu a por liberalidade própria, jurisdição daqueles tribunais internacionais. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. SEC 2707/NL, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, Corte Especial, Julgado em 03/12/2008, DJe 19/02/2009. 56 Documenta-se, ainda, que no que tange a organismos que tendem a condenar os Estados, em plano internacional, quando da violação de um determinado direito do rol dos direitos humanos – caso, obviamente, os Estados tenham reconhecido suas jurisdições –, então se está diante de uma sentença internacional. Especificamente a este trabalho, pontua-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos produz, para efeitos nacionais, sentença internacionais passíveis de responsabilização internacional ao Brasil. Nesse momento, passa-se à análise de alguns aspectos dos direitos humanos para que seja possível o entendimento de seus sistemas de proteção e, para que se compreenda, após, o caso específico brasileiro. 57 CAPÍTULO 2 DIREITOS HUMANOS 1 CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS Inicialmente, para o melhor entendimento do presente capítulo, é de grande valia o estudo dos principais acontecimentos que permitiram o desenvolvimento do conceito de direitos humanos e, consequentemente, a alusão concreta ao seu conceito. Pontua-se que não se pretende aqui esgotar todos os possíveis caminhos que levam ao próprio conceito de direitos humanos e, muito menos, fazer com que tal instituto consolide, de forma taxativa, um único conceito. Busca-se, sim, nesse momento, algum embasamento que permita o desenrolar do presente estudo e, também, venha a dar estrutura sólida e teórica para os próximos capítulos desta obra. Assim sendo, para o início desta análise, é necessário levantar uma polêmica doutrinária: para a investigação de seu conceito, primariamente, é importante saber qual vem a ser a sua natureza, podendo ser ela a de direitos naturais, positivos, históricos ou advinda do sistema moral, segundo o entendimento de Flavia Piovesan.97 Ocorre que os direitos humanos não podem ter, taxativamente, como uma única natureza: são direitos complexos, que se encontram em constante mutação, dependendo de diversos fatores, sendo que, por tal fato, facilmente podem ser encaixados como detentores de diversas naturezas. Não é possível pensar em direitos humanos e não entendê-los como sendo uma condição básica da existência do homem e, também, da sua própria moral; ou, ainda, julgam-se ser os direitos humanos direitos propriamente ditos, tendo uma natureza positivada e, também, histórica, uma vez que todos os direitos acabam por serem influenciados por esta última. Por isso mesmo, neste estudo, entende-se que a natureza dos direitos humanos não é única, sendo sim composição de diversas delas, como bem estima o seguinte trecho: 97 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. 58 Defende este estudo a historicidade dos direitos humanos, na medida em que estes não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos são fruto de um espaço simbólico de luta e ação social, na busca por dignidade humana, o que compõe um construído axiológico emancipatório. Como leciona Norberto Bobbio, os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direitos) para finalmente encontrar a plena realização como direitos positivos universais [...].98 Discute-se sobre a natureza dos direitos humanos em um momento mais presente, quando então a consolidação deste instituto, em seus moldes mais ou menos definidos por toda a sociedade ocidental, já fora reconhecida. Mas, diferentemente do que se imagina a partir da análise de sua natureza, a noção de direitos humanos, mesmo que de maneira primitiva, já viera a ser aludida em tempos remotos, tal como na Grécia antiga, inspirando uma nova dignidade e dando margens ao florescimento das teorias cristãs da lex aeterna e da lex naturalis, as quais vieram basilar o desenvolvimento dos direitos humanos. Nas palavras de Celso Lafer: Na vertente grega da tradição cabe mencionar o estoicismo, que na época helenística, com o fim da democracia e das cidades-estado, atribuiu ao indivíduo que tinha perdido a qualidade de cidadão, para se converter em súdito das grandes monarquias, uma nova dignidade. Esta nova dignidade resultou do significado filosófico conferido ao universalismo de Alexandre. O mundo é uma única cidade – cosmo-polis – da qual todos participam como amigos e iguais. À comunidade universal do gênero humano corresponde também um direito universal, fundado num patrimônio racional comum, daí derivando um dos precedentes da teoria crista da lex aeterna e da lex naturalis, igualmente inspiradora dos direitos humanos.99 Com o decorrer dos tempos, as premissas para a construção dos direitos humanos, tal como hoje se concebe, vieram a sofrer interferências. Já na época medieval, buscou-se a verdade eterna e, mais à frente, os modernos, voltando-se ao mundo interior do indivíduo, questionaram se era possível a verdade eterna, sendo que tal dicotomia veio, de maneira incisiva influenciar a construção dos direitos humanos como hoje se compreendem, uma vez que ambos os entendimentos basearam-se no individualismo, o qual, hoje, baseia as noções de liberdade. Segundo a passagem: 98 99 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.109. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 6.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.119. 59 É neste contexto que importa realçar outra dimensão importante da tradição que ensejou o tema dos direitos humanos, a saber o individualismo na sua acepção mais ampla, ou seja, todas as tendências veem no indivíduo, na sua subjetividade, o dado fundamental da realidade. O individualismo é parte integrante da lógica da modernidade, que concebe a liberdade como a faculdade de autodeterminação de todo ser humano. [...] Isto culminará na elaboração do conceito de direito subjetivo – especificamente, nos poderes de agir atribuídos ao indivíduo [...].100 Mais tarde, quando do surgimento do Estado e das angústias populares por melhores condições de vida, vieram a ocorrer, de fato, as primeiras Declarações, cujas quais, sem sombra de dúvidas, trouxeram importantes consequências ao desenrolar dos direitos humanos, além de cristalizar sua natureza positivista e conferir a tais um teor permanente, seguro e estável.101 Perfeitamente nítido, segundo os entendimentos acima mencionados, é que o desenrolar histórico é indissociável da construção do conceito dos direitos humanos, por mais dificultosa que essa possa parecer. Ainda, pode-se entender perfeitamente que os principais valores – que vão ser tidos como basilares ao conceito – encontram-se em um plano superior ao daquilo previsto na letra do ordenamento jurídico e que o próprio desenrolar histórico permitiu que tais direitos viessem a abarcar um número cada vez maior de indivíduos. É esse o entendimento de Vladmir da Silveira, cujo qual este trabalho acompanha, traduzindo-se de tal maneira: O fato é que a formulação dos direitos humanos obedece às nítidas linhas históricas do pensamento, expressando valores que se encontram acima do ordenamento jurídico. Com efeito, se a expressão "direitos humanos" conforma uma ideologia que surgiu em dado momento histórico, vinculada aos interesses de uma classe particular, isso não implica negar-lhe consenso e validade, para que cada vez mais supere suas determinações históricas, espraiando-se num universo cada vez mais amplo de pessoas e direitos.102 Avaliado este caráter, passa-se, então, ao estudo do conceito propriamente dito, podendo ser concebido, num primeiro momento, o ponto que os direitos humanos, tanto na sua prática, e, especialmente, em sua teoria – que aqui vem a ser analisada – 100 101 102 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos..., p.120. Neste momento, cabe apenas ressaltar o papel das Declarações, em um aspecto geral, no histórico dos direitos humanos, sendo que o papel primordial e específico das principais Declarações será, no momento oportuno, melhor estudado. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010. p.205. 60 são indissociáveis da dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, significa que o instituto da dignidade da pessoa humana tem, necessariamente, que estar presente e se fazer presente quando, então, se trabalha com o termo "direitos humanos". O cerne principal da questão é que é ela, a dignidade da pessoa humana, que, mesmo possuindo diversas significações, ainda assim, traduz a unidade e a permanência dos direitos humanos. Ou seja, quando um determinado ordenamento jurídico diz que suas leis devem ser interpretadas em acordo com a dignidade da pessoa humana, entende-se que os direitos humanos estão inerentes, permanentes e em congruência com o completo aparato de leis, em todas as diretivas que coordenam esse direito, o que pode ser muito bem traduzido na seguinte esquematização: Na busca de tal conceito, previamente devemos observar seu principal fundamento – a dignidade da pessoa humana –, pois é a partir ele que se dá a construção de um significado de direitos humanos válidos para todos. Já antecipamos que a partir do fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, a expressão "direitos humanos" vinculou-se definitivamente ao valor da dignidade da pessoa humana, no viver, no conviver e no porvir dos indivíduos dentro da comunidade. Essa é a ideia máxima dos direitos humanos, seu núcleo valorativo e estável, que concede a estes um sentido de unidade e de permanência.103 Nessa via de entendimento, cabe ressaltar que o conceito de direitos humanos – tal como o conceito de dignidade humana104 – não possui apenas um único condão, podendo, ao longo do tempo e dependendo dos interesses inerentes à sociedade que pretende se analisar, ser flexibilizado ou, até mesmo, transformado. Por isso mesmo, a dificuldade em se estabelecer um conceito único e finalizado para os direitos humanos é infinita. Mesmo assim, procura-se, de maneira coerente e levando em conta aspectos coincidentes na maioria das sociedades e, também, adequando-se às suas particularidades, certas características que possam vir não a definir o conceito de direitos humanos, mas sim ajudar na construção de seu entendimento. 103 104 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.207. Segundo Vladmir Oliveira da Silveira, apesar da dignidade da pessoa humana não ter um conceito pronto e acabado, há alguns valores que não podem ser dissociados dela própria, quais sejam: justiça, vida, liberdade, igualdade, segurança e solidariedade. 61 De tal maneira, podem ser elencadas algumas características essenciais aos direitos humanos – considerando, sempre, peculiaridades históricas105 ao analisá-las – quais sejam: inalienabilidade, irrenunciabilidade, intangibilidade, imutabilidade, imprescritibilidade e inviolabilidade de tais. Referindo-se à inalienabilidade e irrenunciabilidade, pode ser dito que "ambos se voltam à pessoa humana à margem de seu consentimento ou até contrariamente a ele"106. Ou seja, tais direitos não dependem da vontade do ser humano, sendo inerentes à sua condição e incompatíveis com a livre disposição do ser para vender ou renunciá-los. Especificando as outras características supracitadas, combina-se o entendimento de Vladmir Oliveira da Siqueira acerca do tema: Outra característica é imutabilidade, que também se liga ao conteúdo essencial dos direitos humanos no sentido de constituir um âmbito de intangibilidade para o operador jurídico. Finalmente, junto com o caráter intangível – dignidade humana –, a imprescritibilidade e a inviolabilidade são tradicionalmente consideradas características dos direitos humanos, pois eles, respectivamente, não se perdem por decurso do prazo nem podem ser desrespeitadas por indivíduos ou autoridades públicas.107 Tais características, quando da busca de um conceito que englobe a maioria das particularidades dos direitos humanos, acabam por ser indispensáveis. Juntamente com estas, está o caráter dialético dos direitos humanos, traduzindo-se como uma "tensão em todos os planos da realidade social delineada pela teoria desses direitos [...]"108. Neste tópico, cabe apenas ressaltar que o caráter dialético toma conta de boa parte da teoria e da prática dos direitos humanos, quando então pode haver um choque entre dois deles, ou, até mesmo, na sua violação e garantias, previstas tanto em instrumentos nacionais, como internacionais. Por mais paradoxal que soe, o entendimento do caráter dialético acaba por ser imprescindível na busca pelo conceito de direitos 105 106 107 108 Quando se refere às peculiaridades históricas de alguns dos aspectos dos direitos humanos, está se querendo levantar a questão das categorias delimitadas, segundo a doutrina, dos referidos direitos, em determinados momentos históricos, que, usualmente, vêm a ser chamados de gerações – noção que será analisada em momento posterior nesse estudo. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.229. Ibid., p.231. Ibid., p.237. 62 humanos, uma vez que coloca em choque a teoria do poder e a busca pela proteção dos direitos humanos, quando então estes vêm a preponderar e limitar o próprio poder. Finalmente, para que seja possível a passagem para outros tópicos acerca do tema, é imprescindível se ter em mente que esses direitos estão em constante movimento, sendo impossível a consolidação de um conceito que englobe todas as suas particularidades109, mas que, na busca pela sua universalidade e no respeito pelas particularidades culturais, há sempre pontos conexos que permitem não a consolidação de um conceito, mas sim estruturas basilares que tornem possíveis identificá-los, independentemente do período histórico ou da sociedade em que se encontrem. 2 EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Sintetizados alguns dos aspectos essenciais para a conceituação dos direitos humanos, fica indispensável – uma vez que o elemento histórico se faz presente quase que em toda a busca do conceito – determinadas considerações acerca da própria evolução dos direitos humanos. Importante é ter em mente que esboços dos direitos humanos – talvez não como hoje se revelem – já se faziam presentes em um período remoto da história, quando então a igualdade servia como base para a busca de tais direitos. Ocorre que tal igualdade – cuja qual baseava-se no ponto em que todos os homens deveriam ser respeitados, igualmente, pelo fato de sua humanidade em comum – teve seu desenvolvimento atrelado ao nascimento da lei escrita, que possibilitou a evolução de uma regra geral e uniforme, cabível de aplicação a todos, sem quaisquer distinções, além da necessidade da vivência em uma sociedade organizada, como bem aponta Fábio Comparato: 109 Ainda que seja impossível a estruturação de um único conceito, a Organização das Nações Unidas conceitua direitos humanos como sendo "direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de sua nacionalidade, lugar de residência, sexo, nacionalidade ou etnia, cor, religião, língua ou qualquer outro status". (Disponível em: <http://www.ohchr.org/EN/Issues/ Pages/WhatareHumanRights.aspx>. Acesso em: 02 mar. 2011). 63 Ora, essa convicção de que todos os seres humanos têm direito a ser igualmente respeitados pelo simples fato de sua humanidade, nasce vinculada a uma instituição social de capital importância: a lei escrita, como regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que vivem numa sociedade organizada.110 Com o passar dos tempos, outras necessidades humanas, decorrentes de lutas e conflitos, vieram a se fazer presente na vida em sociedade, influenciando, de maneira definitiva e essencial, a evolução dos direitos humanos, tanto em sua teoria, quanto em sua prática. Neste aspecto, descreve-se, como essencial a tal evolução, a democracia e a dignidade humana. Assim sendo, passa-se à análise da evolução dos direitos humanos, segundo cada período da história até que se chegue ao momento atual, quando então da internacionalização dos direitos humanos. 2.1 OS DIREITOS HUMANOS NA ANTIGUIDADE - MOMENTOS PRÉ-AXIAL E AXIAL Antes de se adentrar, de maneira pontual, à evolução dos direitos humanos em um momento bem anterior ao da história recente, importante se faz frisar as considerações de Vladmir Oliveira da Silveira, quando afirma que "em que pese já existir preocupações com tais direitos, eles não possuíam "garantia legal" e eram bastante precários em sua estrutura política, já que respeitá-los dependia de sabedoria dos governantes"111. Documentada tal especificidade, passa-se à análise do momento pré-axial112 da história, identificando-se já na Civilização Egeia113 sinais claros de relativa igualdade social, quando então a mulher cretense desfrutava de uma liberdade única dentre os demais povos daquele momento histórico, registrando-se nesse período, bases concretas, advindas da igualdade, para o desenvolvimento dos direitos humanos. 110 111 112 113 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. p.12. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.114. Utiliza-se neste trabalho o mesmo entendimento e Vladmir Oliveira da Silveira, quando então classifica o período anterior ao século VIII a. C. como período pré-axial. A Civilização Egeia desenvolveu-se a partir da Ilha de Creta, tendo se alastrado por diversos lugares do Mar Ageu, durante os anos de 3.000 a 1.000 a.C. 64 Mas pode-se constatar que o documento de maior importância, neste momento, fora o Código de Hammurabi (1694 a.C.), o qual comportava 282 cláusulas e fora aplicado, territorialmente, nas regiões da Assíria, Judeia e Grécia. Sublinha-se sua importância no desenvolvimento da igualdade entre os seres humanos, mesmo que ainda precária, e, também, ao prever o salário-mínimo em uma de suas cláusulas, abrindo margens ao nascituro do entendimento acerca da dignidade humana. Alguns séculos após, em XI e X a.C., há o surgimento do reino Unificado de Israel, cujo qual influiu para o balizamento do poder do Estado por intermédio da lei, sendo que os direitos, neste momento, são determinados aos cidadãos, e não aos súditos, traduzindo-se em direitos de liberdade, estruturando, de maneira ainda embrionária, a primeira fase dos direitos humanos. Mais tarde, já no momento axial114 da história, em 539 a.C., com a evolução do pensamento humano sobre este tema e uma decorrente mudança na compreensão da condição humana, organizou-se a primeira declaração dos direitos humanos, chamada de Cilindro de Ciro. Tal declaração fora proposta por Ciro II, então rei da Pérsia, quando de sua conquista da Babilônia, no referido ano. Tal documento é considerado como a primeira declaração dos direitos humanos por conter a previsão de permitir o regresso às suas terras de origem dos povos exilados da Babilônia, o que fora um grande avanço aos direitos humanos para a época. Há também que se documentar a importância do Budismo e Confucionismo, nesta época, para o aprimoramento dos direitos humanos. No que tange ao Budismo115 (fundado na Índia, no século V a.C.), as sementes dos direitos humanos já aí se encontravam, quando então, numa sociedade de castas, pregava-se a igualdade indispensável aos homens e a prevalência da virtude nas ações humanas. Além de tais, o Budismo veio a anunciar valores que, em um momento posterior, viriam a incorporar, essencialmente, os direitos humanos, tais como: a supremacia da justiça e do direito; a fraternidade e a generosidade; a equivalência 114 115 O período axial da história, segundo grande parte dos doutrinadores, tais como Fábio Konder Comparato e Karl Jaspers, compreende o eixo de tempo entre os séculos VIII e II a.C. Deve ser pontua que, desde as suas origens, o Budismo condenou veemente o sistema de castas e, talvez por isso, sua influência na Índia, ao longo dos anos, tenha diminuído. Hoje, apenas 2% da população indiana é adepta do Budismo. 65 de direitos e deveres entre homens e mulheres; o reconhecimento de direitos do empregado; e a tentativa de uma organização equânime do corpo social116. Sublinha-se que o Confucionismo, surgindo no mesmo momento histórico que o Budismo, influiu no desenvolvimento dos direitos humanos por ter, em seus preceitos básicos, ensinamentos sobre a fraternidade, o respeito entre as pessoas, o humanismo, a solidariedade, a busca da virtude e da paz. Outro pensamento de grande importância, neste linear histórico, fora o estóico, quando então, a partir do pensamento de Zenão de Cítio, em Atenas, no ano de 321 a.C., desenvolveram-se princípios fundamentais aos direitos humanos. Segundo Fábio Comparato, a influência de tal pensamento na evolução dos direitos humanos é de tal maneira sintetizada: Muito embora não se trate de um pensamento sistemático, o estoicismo organizou-se em torno de algumas ideias centrais, como a unidade moral do ser humano e a dignidade do homem, considerado filho de Zeus e possuidor, em consequência, de direitos inatos e iguais em todas as partes do mundo, não obstante as inúmeras diferenças individuais e grupais.117 Ainda neste momento histórico, desenvolvia-se o Direito Romano, que muito veio a contribuir para o direito de uma forma geral e, também, aos direitos humanos, uma vez que incorporou o conceito de dignidade da pessoa humana ao mundo jurídico, a partir das diginitas, podendo assumir tanto o sentido moral, como o sentido jurídico. Tal conceito tem primordial relevância por sua definição ser "essencial para compreender o conceito desses direitos e a luta constante por sua efetivação como forma de limitar o exercício do poder"118. Além desse caráter, fora no Direito Romano que se encontrou o desenvolvimento de um complexo mecanismo de proteção dos direitos individuais em relação aos árbitros do governo. 116 117 118 Informações disponíveis em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/herkenhoff/livro1/filos1/ budismo.html>. Acesso em: 17 jan. 2011. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.15. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.102. 66 O último aspecto, presente neste momento histórico que merece ser discorrido é o cristianismo. Num primeiro momento, pode-se entender que o preceito básico do cristianismo seria a igualdade, uma vez que todos seriam filhos do mesmo pai, Deus. Acontece que, como bem pontua Fábio Konder Comparato: essa igualdade universal dos filhos de Deus só valia, efetivamente, no plano sobrenatural, pois o cristianismo continuou admitindo, durante muitos séculos, a legitimidade da escravidão, a submissão doméstica da mulher ao homem e a inferioridade natural dos indígenas americanos.119 Esta época, apesar de não guardar coincidências relevantes com os direitos humanos que hoje se concebem, tem fundamental importância por terem sido, aí, aprimorados diversos conceitos que virão, mais tarde, a se tornar basilares para a própria evolução dos direitos humanos. 2.2 OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE MÉDIA A Idade Média120 fora marcada, de forma incisiva, pela dominação da religião em todos os âmbitos da vida em sociedade – que, lá, desenvolvia-se em feudos –, especialmente no pensamento da época. Tal momento histórico pode ser dividido em três momentos: a Alta Idade Média, Idade Média Clássica e a Baixa Idade Média. No que se refere à Alta Idade Média121 e à Idade Média Clássica (período entre 476 até 1300 d.C.), relata-se a fragmentação política, o poder dos senhores feudais na vida em sociedade e a grande influência da Igreja em todos os aspectos da sociedade, sem qualquer avanço significativo na evolução dos direitos humanos. 119 120 121 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.17. Recorda-se que a análise que pretende ser estabelecida, neste trabalho, é sobre o mundo ocidental, mesmo que, para tal, muitas vezes, recorra-se a alguns aspectos do pensamento e da histórica oriental que vieram a marcar, indiscutivelmente, tais âmbitos ocidentais. Apenas cabe ressaltar que fora na Alta Idade Média que surgiram condições para a formulação da concepção de direito subjetivo natural, a partir do reconhecimento do direito subjetivo do indivíduo. 67 Já na Baixa Idade Média (após o ano 1300 até 1450 d.C.), pode-se localizar o cerne embrionário dos direitos humanos na história ocidental, uma vez que ocorrera, neste momento histórico, as primeiras reivindicações para que o poder dos governantes fosse limitado em prol da igualdade de direitos entre os diversos estamentos da sociedade da época. Sintetizando tal ideia, transcreve-se: A proto-história dos direitos humanos começa na Baixa Idade Média, mais exatamente na passagem do século XII ao século XIII. Não se trata, ainda, de uma afirmação de direitos inerentes à própria condição humana, mas sim do início do movimento para a instituição de limites ao poder dos governantes, o que representou uma grande novidade histórica. Foi o primeiro passo em direção ao acolhimento generalizado da ideia de que havia direitos comuns a todos os indivíduos, qualquer que fosse o estamento social – clero, nobreza e o povo – no qual eles se encontrassem.122 Documenta-se, ainda neste período, a existência de diversos documentos que marcaram, de modo incisivo, o contexto de lutas e manifestações de rebeldia contra o poder até então instaurado. A primeira grande declaração fora a Declaração das Cortes de Leão, datada de 1188, advinda do Reino da Espanha. No ano de 1215, na Inglaterra, veio a surgir, talvez, o mais importante dos documentos deste período: a Carta Magna. Considerada, por muitos doutrinadores, o primeiro precedente teórico das declarações de direitos humanos, tal documento veio a limitar o poder do soberano, além de ter servido como referência a alguns direitos e liberdades civis clássicas, imposta por bispos e barões. Nesse sentido, destacam-se os seguintes dispositivos da referida Carta: 1) reconhecimento da inviolabilidade dos "direitos e liberdades" da Igreja na Inglaterra; 2) o compromisso de não lançar tributos sem o consentimento do Conselho Geral do reino; 3) o estabelecimento da regra de proporcionalidade entre as multas e a gravidade dos delitos; 4) a proibição do confisco de bens por parte de xerifes e bailios; 5) a afirmação de que nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com as leis do país: 6) a admissão da liberdade de entrar e sair do reino, "em paz e segurança", exceto em tempo de guerra.123 122 123 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.33. HUSEK, Carlos Roberto, A nova (des)ordem Internacional ONU..., p.207. 68 Ambos os documentos acima citados são retratados como embrionários de certos direitos, uma vez que na medida em que representam e valorizam o direito à liberdade, um dos princípios orientadores do moderno conceito de direitos humanos, esses dois documentos são considerados por alguns autores o embrião desses direitos.124 Uma década mais tarde, com os preceitos desenvolvidos por São Tomás de Aquino, esquematizam-se os primeiros princípios que possibilitaram o desenvolvimento do ius naturalis. Edgar Bodenheimer125 entende que as opiniões de São Tomás de Aquino sobre questões jurídicas e políticas mostram especialmente a influência do pensamento aristotélico adaptado às doutrinas do Evangelho e dos Padres da Igreja integrado em um importante sistema de pensamento. Fora com São Tomas de Aquino que se delimitou os alcances do direito natural, desenvolvido na Idade Média, segundo os preceitos de direito e justiça que, naquela época, imperavam. Dessa maneira, evoca-se tal passagem: A Summa teologica de São Tomás de Aquino é peça essencial na definição e alcance do direito natural medieval, que se estabelece como modelo da lei humana. A partir daí Aquino desenvolveu a doutrina teórica e política que fundamentaria a limitação do poder, sustentando que a submissão às autoridades seculares implicava, por parte destas, o respeito às regras da Justiça e a promoção do bem comum.126 Finalmente, pode-se julgar que fora neste período que surgiu o embrião dos direitos humanos, na acepção do valor de liberdades específicas aos estamentos, especialmente ao clero, à nobreza e algumas ao povo. Fora nesta época, também, em que ocorrera "a primeira experiência histórica de sociedade de classes, onde a desigualdade social já não é determinada pelo direito, mas resulta principalmente das diferenças de situação patrimonial de famílias e indivíduos"127. 124 125 126 127 FICO, Carlos. Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. São Paulo: FGV, 2008. p.18. BODENHEIMER, Edgar. Teoria General de los Derechos Humanos. México: Fondo de Cultura México, 1942. p.145. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.120. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.34. 69 2.3 OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE MODERNA A Idade Moderna, localizada entre os anos de 1453 e 1789, trouxe consigo uma grande crise da consciência europeia, o que viera a resultar, em todas as áreas do conhecimento humano, o Renascimento. Como não poderia deixar de ser, o direito sofreu influências diretas deste novo modo de pensar, sendo que os privilégios medievais vieram a ser superados e os direitos humanos começaram a ser localizados acima do poder ou de qualquer estrato social. Indispensável para este processo foram as Declarações Inglesas deste período, cujas quais eram verdadeiros textos legais, vindo a limitar o poder dos governantes e, consequentemente, garantir mais direitos à população. Ainda, formaram, definitivamente, o embrião da democracia, essencial para a construção e efetivação dos direitos humanos. Segundo os dizeres de Vladmir Oliveira da Silveira: Uma das novidades mais importantes das declarações inglesas é a ampliação da titularidade dos direitos, consagrados agora aos homens livres e não mais apenas à nobreza, como na Idade Média. Assim emergem na cena política os primeiros vestígios de democracia, de poder representativo e de garantias institucionais, no momento que o poder real e todos os demais poderes se submetem à lei emanada pelo Parlamento. As declarações insulares também se destacam por algumas características peculiares, em grande medida relacionadas à origem e estrutura do seu direito. Elas foram concebidas como textos legais – isto é, normas jurídicopositivas que podiam ser exigidas pelos cidadãos diante dos tribunais – e não como meras declarações em sentido estrito.128 O primeiro dos documentos fora a Petição de Direitos (Petition of Right), de 1628, imposta pelo Parlamento, requerendo, de maneira expressa, o reconhecimento de direitos e liberdades para os súditos do Rei. Em 1688, então, prolatou-se o documento de maior importância para o período, sendo ele a Declaração de Direitos (Bill of Rights). Esta Declaração definiu e fortaleceu as atribuições legislativas do Parlamento, além de proclamar a liberdade de escolha 128 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.133. 70 de seus membros. Ainda, consagrou algumas garantias individuais ao povo e "a partir do Bill of Rights britânico, a ideia de um governo representativo, ainda que não a todo povo, mas pelo menos de suas camadas superiores, começa a firmar-se como uma garantia institucional indispensável das liberdades civis"129. Além de tais documentos, ainda houve outros instrumentos legais ingleses que contribuíram para as limitações dos poderes soberanos e para a evolução dos direitos humanos no âmbito inglês, sendo eles: Act of Settlement (1707) e Habeas Corpus Amendment Act (1769). Passando-se, neste momento, às declarações norte-americanas, datadas do século XVIII – mais especificamente dos anos de 1776, 1787 e 1791 –, precisa-se que fora neste período histórico que se deu, segundo o entendimento majoritário da doutrina, a real delineação do conceito moderno de direitos humanos. Também se consolidaram, de melhor maneira – e sem os vícios dos documentos europeus –, a democracia essencial para a efetivação de tais direitos, como bem explica tal passagem: Pode-se considerar as declarações anglo-americanas como as primeiras formulações modernas dos direitos humanos, evidenciando um significativo avanço teórico na concretização do Estado democrático. [...] Inspirados nas declarações inglesas, esses documentos do Novo Mundo souberam, no entanto, evitar antigos problemas europeus – um deles o que envolvia a liberdade religiosa, expressão concreta do livre-arbítrio individual e uma das liberdades mais importantes, ao lado da igualdade e da tolerância. Em síntese, nas declarações norte-americanas se expressa o modelo liberal no sentido moderno, influenciado pelo jusnaturalismo racionalista, o qual pressupõe a afirmação da autonomia individual e dos direitos naturais, bem como limites ao poder político do Estado – o que se justifica pela teoria** contratualista do pacto entre governantes e governados.130 O primeiro grande documento norte-americano, de 1776, fora, a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, cujo qual, de fato, em seu artigo primeiro131, constitui o registro do nascimento dos direitos humanos, como tal hoje se concebe, na histórica da humanidade, reconhecendo, teoricamente, a condição de igualdade entre os seres humanos. 129 130 131 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.37. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.135-136. Segundo os preceitos do art. I da referida Declaração: "Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posterioridade: tais são os direitos de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter felicidade e segurança". 71 Alguns anos mais tarde, em 1787, na Filadélfia, há a promulgação da Constituição Americana que, na verdade, não continha uma declaração de direitos. Só após uma votação, em 1789, pelos estados norte-americanos é que foi incorporada, explicitamente, em 1791, uma declaração de direitos, formulada por James Madison, trazendo as primeiras dez emendas à Constituição, vindo a formar, então, o Bill of Rights norte-americano. Nesta mesma época, do outro lado do Atlântico, emergiram, na França, diversas declarações que vieram a tratar sobre os direitos humanos. Atina-se ao fato de que tais declarações foram resultado de um processo revolucionário que lá estava a ocorrer, entre os anos de 1789 e 1799: a revolução burguesa, a Primeira República (Ditadura Jacobina), o Diretório e, em 1799, o golpe de Estado de Napoleão. De tal forma, cabe apontar como o primeiro documento relevante aos direitos humanos, resultante dessa época, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. A Declaração fora resultado de toda a referida conjuntura, como bem sintetiza a seguinte passagem: Na primeira etapa, o Terceiro Estado – representado por grande parte da sociedade, inclusiva a burguesia, sendo o Primeiro Estado a nobreza e o Segundo Estado o clero – declarou-se em Assembléia Nacional Constituinte e debateu sobre a oportunidade de elaborar uma declaração de direitos ou uma Constituição. A Assembleia decidiu elaborar o documento, daí se originando a célebre Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, que, a exemplo da Declaração da Virgínia, destacou-se pela solenidade e pela retórica em seus 17 artigos e preâmbulo [...].132 Como referido acima, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em solos franceses, veio a sofrer influências do que fora emanado nos Bill of Rights norte-americanos, servindo estes de modelo para tal Declaração. Além disso, o documento francês guarda peculiaridades no que se refere ao direito humano de liberdade. Para melhores entendimentos, transcreve-se: Os Bills of Rights americanos serviram de modelo para a Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão. A Declaração francesa – promulgada no dia 26 de agosto de 1789 e incluída como preâmbulo na Constituição de 1791 – baseia-se também na convicção de que a liberdade é uma qualidade 132 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.139. 72 pré-política do homem, uma liberdade que é inerente à natureza humana e inalienável dela. Também na concepção francesa, os direitos de liberdade têm, ao que parece, a função negativa de direitos de defesa contra o próprio Estado.133 Correlacionada, ainda, às Declarações norte-americanas, afirma-se que a referida Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão traz à tona, novamente, em seu artigo primeiro134, a igualdade entre os homens. Advindo dos preceitos de tal Declaração francesa, surge o entendimento que o Estado deve, primordialmente, respeitar e garantir os direitos humanos. De maneira mais concreta, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é convertida, em 1791, no preâmbulo da Constituição francesa, tornando ainda mais intensas as obrigações estatais frente aos direitos humanos. Como se pode perceber, imperavam, nas Declarações até aqui estudadas, as garantias de liberdades individuais dos seres humanos. Ou seja, haviam as chamadas liberdades públicas, requerendo uma posição negativa do Estado, onde o indivíduo desfruta de tais direitos sem a necessidade de uma ação estatal. Tais direitos, até então, focavam o âmbito político e civil do indivíduo e, por isso mesmo, são classificados, didaticamente, como direitos de primeira geração135. Acontece que, já na referida Constituição francesa de 1791, tal situação é alargada, quando outros direitos humanos, de cunho social, econômico e cultural, são inseridos em seu âmbito. Tais direitos acabaram por serem classificados como direitos de segunda geração e, desta forma, a declaração de direitos da Constituição de 1791 destaca-se por seu pioneirismo na identificação dos reclames sociais, abrindo porta – pode-se dizer – para a segunda geração de direitos humanos, muito embora os direitos civis e políticos continuassem a preponderar.136 133 134 135 136 MALUSCHKE, Günther. Desenvolvimento histórico dos direitos humanos. Themis: Revista da ESMEC, Fortaleza, v.2, n.1, p.88, 1998. De acordo com os termos do artigo I da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos". Adota-se, neste estudo, o termo "gerações" para designar as diversas etapas de consolidação dos direitos humanos. Para tanto, concorda e segue-se o entendimento de Vladmir Oliveira da Silveira. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.140. 73 Por fim, em solos franceses, desenvolveram-se, ainda, duas outras declarações. A primeira delas, em 1793, significou uma declaração mais elaborada que a de 1789, contando com 35 artigos; e a segunda, de 1795, prevendo os direitos sociais, a soberania popular e a supressão do direito de resistência à opressão. O que se pode perceber, neste momento histórico, tanto no contexto norteamericano, como no contexto europeu, é que a democracia alterou-se de sentindo, vindo a privilegiar determinadas classes sociais. Mesmo que dessa forma, esse regime demonstrava-se, ainda, o mais plausível para o desenvolvimento dos direitos humanos e veio, numa época de reivindicações e revoltas, a reinventar-se para tornar possível sua manutenção e a abertura e desenvolvimento da gama de direitos humanos que a sociedade, no momento histórico, reivindicava. Nas palavras de Fábio Konder Comparato: Em sentindo contrário, a democracia moderna, reinventada quase ao mesmo tempo na América do Norte e na França, foi a fórmula política encontrada pela burguesia para extinguir os antigos privilégios dos dois principais estamentos do ancien regime – o clero e a nobreza – e tornar o governo responsável perante a classe burguesa. O espírito original da democracia moderna não foi, portanto, a defesa do povo pobre contra a minoria rica, mas sim a defesa dos proprietários ricos contra um regime de privilégios estamentais e de governo irresponsável. De qualquer modo, esse feito notável de geração dos primeiros direitos humanos e de reinstituição da legitimidade democrática foi obra de duas "revoluções", ocorridas no espaço de um lustro, em dois continentes.137 Conclusivamente, pode-se dizer que, ao final deste momento histórico, qual seja, a Idade Moderna, constatou-se, a partir das Constituições norte-americana e francesa, um movimento crescente de constitucionalização dos direitos humanos, quando então deixam o seu aspecto universal e tornam-se direitos fundamentais138, subjetivados de acordo com as normas estatais, além dos interesses e das reivindicações da sociedade em que serão aplicados. Segundo os ensinamentos de Vladmir Oliveira da Silveira: 137 138 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.39-40. Consideram-se como direitos fundamentais os direitos humanos que, uma vez internalizados por intermédio das constituições estatais, ganham nova nomenclatura – de direitos humanos, passam a ser fundamentais – e novos contornos para sua efetivação, no interior de um Estado. 74 A história dos direitos fundamentais se liga de forma inequívoca ao surgimento do constitucionalismo no final do século XVIII – o qual herdou da Idade Média a ideia de contenção do poder do Estado em favor do cidadão enquanto construção social e política resultante de lutas sociais. Após a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão iniciou-se um processo de concretização ou de positivação constitucional de direitos. Com origem nos direitos naturais, os direitos humanos foram perdendo a característica universal e genérica, passando a ser positivados como direitos subjetivos estatais – e particularizados, portanto, sob a ótica de cada Estado.139 Sintetizando o estudo da Idade Moderna, pode-se dizer que foi nela que os direitos de primeira geração, quais sejam, os direitos civis e políticos, tornaram-se uma realidade aos povos ocidentais, além de terem surgido as primeiras Declarações de direitos humanos, considerando conceitos que até hoje são aplicados. 2.4 OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE CONTEMPORÂNEA A Idade Contemporânea, tal qual a sua antecessora, fora marcada pela abertura da gama dos direitos humanos. Já no século XIX, percebe-se que os Estados que contavam com o regime democrático concretizavam, cada vez mais, os direitos civis e políticos, chamados de direitos humanos de primeira geração. Entende-se, também, que a referida democracia, nos moldes anteriormente descritos, fora fruto do século passado e estava atrelada, quase que inquestionavelmente, ao desenvolvimento dos direitos humanos. Ocorre que os direitos humanos até então consolidados e existentes não se demonstraram suficientes para o fim dos aclames da sociedade, uma vez que o desenvolvimento da economia de mercado se demonstrava uma constante, trazendo consigo novos problemas estruturais e novos reclames sociais, como se relata no trecho a seguir: 139 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.147. 75 Assim, os primeiros setenta anos do século XIX marcaram a consolidação do Estado Liberal e o fenomenal desenvolvimento da economia capitalista urbano industrial. Por outro lado, a liberdade do mercado, a necessidade de desenvolvimento no processo produtivo para fazer frente à competição, a consolidação dos mercados nacionais nas sociedades da Europa Ocidental – principalmente na Inglaterra, – a formação do proletariado urbano, a progressiva concentração do capital, entre outras coisas, passaram a apresentar os primeiros sinais de crise da nova sociedade capitalista.140 O que ocorreu, na verdade, foi o surgimento de um novo quadro do capitalismo, advindo de uma época pós-Revolução Industrial, quando então a atitude negativa do Estado não mais correspondia às necessidades populares. Ou seja, havia a necessidade do Estado vir a agir, vir a ter uma atitude positiva perante a situação que se desenhava, a qual se demonstrava intolerável perante os valores dos direitos humanos, sendo de tal maneira descrita: A Revolução Industrial, ao mesmo tempo que elevou a patamares nunca vistos na história humana, a capacidade de produção e a produtividade do trabalho, destruiu violentamente o modo de vida tradicional dos trabalhadores e introduziu a rígida disciplina do sistema fabril. As condições da vida dos trabalhadores eram deploráveis, com jornadas de trabalho – inclusive de crianças e mulheres – de cerca de 15 horas diárias, sem leis sociais, trabalhistas ou previdenciárias protetoras, sob condições de completa insegurança. As condições de vida nas cidades também eram terríveis, no que se refere à moradia, ao saneamento básico e à infra-estrutura necessárias para a garantia de condições dignas de vida. O resultado era uma legião de desempregados, miseráveis, e diversos problemas sociais como o alcoolismo, a prostituição, o banditismo, a loucura, etc.141 Em um contexto caótico, onde o próprio ser humano se tornou uma mercadoria quase que descartável para o capitalismo, surgiu a tese defendida por Karl Marx, atacando diretamente o liberalismo capitalista e vindo a propor o socialismo, onde todos seriam materialmente idênticos, sem qualquer distinção advinda do poder do capital. Como fruto das críticas socialistas ao modelo capitalista e como resposta às reivindicações populares, desenvolveram e consolidaram-se, especialmente nos Estados ocidentais que já haviam superado a fase de reivindicações de liberdades individuais, os direitos chamados de segunda geração, quais sejam, os direitos sociais, 140 141 DORNELLES, João Ricardo W. Sobre os direitos humanos, a cidadania e as práticas democráticas no contexto dos movimentos contra-hegemônicos. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Rio de Janeiro, v.6, n.6, p.130, jun. 2005. Ibid., p.131. 76 econômicos e culturais. Estima-se que o desenvolvimento de tais direitos se deu na esteira dos reclames socialistas, como documenta Fábio Konder Comparato: O reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico e social foi o principal benefício que a humanidade recolheu do movimento socialista, iniciado na primeira metade do século XIX. O titular desses direitos, com efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente; é o conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a marginalização. Os socialistas perceberam, desde logo, que esses flagelos sociais não eram cataclismos da natureza nem efeitos necessários da organização racional das atividades econômicas, mas sim verdadeiros dejetos do sistema capitalista de produção, cuja lógica consiste em atribuir aos bens de capital um valor muito superior ao das pessoas.142 Avalia-se, ainda, que tais direitos humanos abandonam o caráter individual, característico dos direitos de primeira geração, para adotarem um caráter coletivo, quase que totalmente estruturada na dimensão da igualdade material, onde o Estado deve ter uma atitude positiva para eliminar quaisquer diferenças e tornar possível a igualdade no plano prático, não mais apenas na teoria. Nas palavras de Uadi Lâmmego Bulos: [...] advinda logo após a Primeira Grande Guerra, compreende os direitos sociais, econômicos e culturais, as quais visam assegurar o bem-estar e a igualdade, impondo ao Estado uma prestação positiva, no sentido de fazer algo de natureza social em favor do homem. Aqui encontramos os direitos relacionados ao trabalho, ao seguro social, à subsistência digna do homem, ao amparo à doença e à velhice.143 No momento em questão, do Constitucionalismo Social, ocorrera o surgimento e a concretização da segunda geração dos direitos humanos, chamados de direitos sociais, sendo que três documentos tiveram uma importância extrema, quais sejam: a Constituição Mexicana de 1917, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado e a Constituição de Weimar de 1919. Correlacionado a este tema, documenta-se o seguinte trecho: Os direitos humanos de segunda geração são aqueles agregados mais tarde à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e elevados à condição de direitos fundamentais. São os direitos econômicos e sociais, do indivíduo 142 143 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.42. BULOS, Uadi Lâmmego. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p.403. 77 como membro da sociedade, no seu trabalhão, em seu lazer, saúde, educação, à cultura e que o Estado tem a obrigação de garantir, pois são "direitos de crédito". Esses direitos vieram consagrados na Constituição alemã de 1919, (Constituição de Weimar), e foram incorporados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1948, nos artigos 22 a 27.144 No que tange ao primeiro dos documentos, a Constituição Mexicana, promulgada em cinco de fevereiro de 1917, teve uma importância primordial, uma vez que fora a primeira Constituição a atribuir, aos direitos trabalhistas, a qualidade de direitos fundamentais, juntamente com as liberdades individuais e os direitos políticos. Estabeleceu, também, a desmercantilização do trabalho, o princípio da igualdade substancial de posição jurídica entre trabalhadores e empresários, criando, em suma, as bases para o moderno Estado Social de Direito.145 A Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, surgida no momento da Revolução Russa, fora adotada em quatro de janeiro de 1918, anteriormente ao término da 1.a Guerra Mundial. Em tal documento, são afirmadas algumas medidas já presentes na Constituição Mexicana de 1917, mas, diferentemente deste último, a Declaração reduz o povo russo à classe trabalhadora e oprimida, garantindo apenas a estes os referidos diretos sociais. Por último, a Constituição de Weimar, que entrou em vigor em 31 de julho de 1919, na Alemanha, contando com diversos aspectos positivos atinentes aos direitos humanos de segunda geração: abolição das classes sociais, igualdade de direitos entre homens e mulheres, liberdade de opinião e liberdade de comércio no Estado alemão. Após, com o advento das duas Guerras Mundiais e com o maior flagelo e destruição humana já registrados, os direitos humanos adquiriram uma nova amplitude e concepção que, agora, passam-se à analise. 144 145 MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade, p.63. COMPARATO, Fábio Konder. A constituição mexicana de 1917. Disponível <http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/anthist/mex1917.htm>. Acesso em: 19 maio 2011. em: 78 2.5 O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS O processo de internacionalização dos direitos humanos pode ser explicado através da evolução histórica da própria humanidade, sendo esse "o segundo pilar da estrutura de uma nova ordem jurídica internacional na comunidade internacional contemporânea [...]"146,147 Tal processo pode ser dividido em dois momentos, quais sejam: da segunda metade do século XIX até a 2.a Guerra Mundial e, um segundo momento, após a 2.a Guerra Mundial, quando então do nascimento das Nações Unidas. 2.5.1 Primeiro momento do processo de internacionalização – da metade do século XIX à 2.a Guerra Mundial Em um primeiro momento, chamado de primeira fase ou primeiros precedentes do processo de internacionalização dos direitos humanos, há o desenvolvimento no espaço de tempo entre a segunda metade do século XIX e a 2.a Guerra Mundial, com o surgimento da Liga das Nações, do Direito Humanitário e da Organização Internacional do Trabalho. Pontua-se que, especialmente neste momento primário do processo de internacionalização, fora necessário, de maneira jamais vista, a redefinição do conceito de soberania estatal, já que os direitos humanos, para passarem de uma esfera de controle interna para o interesse internacional, necessitavam de um entendimento flexibilizado acerca dos contornos da soberania. Ou seja, os direitos humanos não seriam mais apenas objetos de interesse estatal, mas sim algo além e até mesmo maior que o próprio Estado e sua decorrente soberania. 146 147 MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade, p.55. Segundo Wagner Menezes, o primeiro pilar de referida estrutura estaria pautado no surgimento e desenvolvimento das organizações internacionais. 79 Assim entendido, argumenta-se, segundo os julgamentos de Flávia Piovesan, a importância dos três institutos supracitados para o surgimento do processo de internacionalização dos direitos humanos: Nesse sentido, o Direito Humanitário foi a primeira expressão de que, no plano internacional, há limites à liberdade e à autonomia dos Estados, ainda que na hipótese de conflito armado. A Liga das Nações, por sua vez, veio a reforçar essa mesma concepção, apontando para a necessidade de relativizar a soberania dos Estados. Criada após a Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações tinha como finalidade promover a cooperação, paz e segurança internacional, condenando agressões externas contra a integridade territorial e a independência política dos seus membros. [...] Redefinia-se, desse modo, a noção de soberania absoluta do Estado, que passava a incorporar em seu conceito compromissos e obrigações de alcance internacional no que diz respeito aos direitos humanos. Ao lado do Direito Humanitário e da Liga das Nações, a Organização Internacional do Trabalho também contribuiu para o processo de internacionalização dos direitos humanos. Criada após a Primeira Guerra Mundial, a Organização Internacional do Trabalho tinha por finalidade promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem-estar.148 Apenas para reforçar ainda mais o papel de tais institutos, cita-se, no campo do direito humanitário, o surgimento da Comissão Internacional da Cruz Vermelha, em 1880, a partir da Comissão de Genebra, de 1864, e o Ato Geral da Conferência de Bruxelas, de 1890, que trouxe à tona as primeiras regras estatais de supressão à escravidão africana. Lembra-se que esses institutos, como precursores do processo de internacionalização dos direitos humanos e, mais, como limitadores do conceito tradicional e rígido de soberania estatal, trouxeram grandes inovações, especialmente ao que tange à proteção e efetivação dos direitos humanos e, também, ao próprio Direito Internacional. Explica-se: os direitos humanos, que anteriormente eram tratados apenas no âmbito da jurisdição estatal, deixam de ser vistos como meros direitos disponibilizados pelos Estados, mas garantidos em um plano internacional, onde os Estados, caso não os disponibilizem/efetivem, seus cidadãos podem vir a socorrerse na esfera internacional – que, hoje, ocorre segundo os sistemas de proteção global ou regional, a serem estudados em momento posterior neste trabalho. 148 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.112-113. 80 No que tange ao Direito Internacional, este muda seu foco de atuação e sua problemática, não mais lhe interessando apenas o relacionamento Estado – Estado, mas visando agora, e de maneira ainda mais enérgica, a supervisão da efetivação dos direitos humanos pelos Estados a seus cidadãos, passando da esfera que, anteriormente, era tida como interna, para a esfera de atuação do próprio Direito Internacional. Validando esta compreensão, transcreve-se: Vale dizer, o advento da Organização Internacional do Trabalho, da Liga das Nações e do Direito Humanitário registra o fim de uma época em que o Direito Internacional era salvo raras exceções, confinado a regular relações entre Estados, no âmbito estritamente governamental. Por meio desses institutos, não mais se visava proteger arranjos e concessões recíprocas entre os Estados, visava-se, sim, o alcance de obrigações internacionais a serem garantidas ou implementadas coletivamente, que, por sua natureza, transcendiam os interesses exclusivos dos Estados contratantes. Essas obrigações internacionais voltavam-se à salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados. Tais institutos rompem, assim, com o conceito tradicional que situava o Direito Internacional apenas como lei da comunidade internacional dos Estados e que sustentava ser o Estado o único sujeito de Direito Internacional, Rompem ainda com a noção de soberania nacional absoluta, na medida em que admitem intervenções no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos. Prenuncia-se o fim da era em que a fora pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, restrito ao domínio reservado do Estado, decorrência de sua soberania, autonomia e liberdade. Aos poucos, emerge a ideia de que o indivíduo é não apenas objeto, mas também sujeito de Direito Internacional.149 2.5.2 O processo de internacionalização dos direitos humanos no pós-guerra Fora no contexto histórico pós-2.a Guerra Mundial que, definitivamente, ocorrera a internacionalização dos direitos humanos. Lembra-se que ali ocorreram as maiores atrocidades contra a pessoa humana, uma vez que milhões de indivíduos foram assassinados de forma cruel, configurando, de maneira explícita, o desrespeito ao direito mais primordial de todos os direitos, o direito à vida. 149 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.114-116. 81 Deparando-se com esta situação caótica, e não possuindo, de fato, meios eficazes de proteção aos direitos humanos, viu-se necessário o desenvolvimento, no plano internacional, de uma ação que fosse capaz de assegurar tais direitos, avaliando-se como indispensável todo o processo de internacionalização dos direitos humanos, tendo já sido demonstrados ineficazes os métodos de proteção nacional, como bem propõe a seguinte passagem: A internacionalização dos direitos humanos constitui, assim, um movimento extremamente recente na história, que surgiu a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e horrores cometidos durante o nazismo. Apresentado o Estado como grande violador de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, o que resultou no extermínio de onze milhões de pessoas. [...] Nesse contexto, desenha-se o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução. A necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a proteção dos direitos humanos impulsionou o processo de internacionalização desses direitos, culminando na criação da sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a responsabilização do Estado no domínio internacional quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger os direitos humanos.150 Nesse mesmo contexto, por se demonstrar incabível, para a continuidade da espécie humana, uma nova guerra, nos parâmetros da que acabara de ocorrer, surgiu, também nesta época, a Organização das Nações Unidas (ONU), vindo a delimitar, definitivamente, uma nova ordem internacional, com um novo modelo nas relações internacionais, pautado na manutenção da paz e na segurança internacional, além de socorrer-se da cooperação internacional em todos os âmbitos que afetem o desenrolar da humanidade. A Carta das Nações Unidas, datada de 1945, consolida não apenas o próprio movimento de internacionalização dos direitos humanos, mas, também, uma nova geração de tais direitos, pautados, especificamente, na cooperação e na solidariedade entre os povos. Esses novos direitos, surgidos no contexto pós-guerra, ficariam conhecidos como direitos humanos de terceira geração.151 150 151 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.117-119. Com a ascensão dos direitos humanos de terceira geração, conclui-se a associação dos direitos humanos aos ideais da Revolução Francesa, completando o tríplice ideal revolucionário, qual seja: liberdade, igualdade e fraternidade/solidariedade. 82 Os direitos humanos de terceira geração consolidam, ainda mais, aqueles de primeira e segunda geração, além de se fundarem numa nova ordem internacional, surgida a partir do advento da ONU, tal como explica Vladmir Oliveira da Silveira: Mais do que isso, a terceira geração sintetiza os direitos de primeira e da segunda geração sob o viés de solidariedade, adensando-os numa perspectiva de equilíbrio de poder – inclusive ideológico – em favor do ser humano [...]. O fundamento dos direitos de solidariedade está numa nova concepção de Estado, de ordem internacional e de relacionamento entre os povos, mas também – e principalmente – na realização efetiva dos direitos anteriores, a que se somam novos direitos não mais individuais ou coletivos, mas difusos. Nesta ótica, o respeito à soberania de um Estado deve compatibilizar-se com seu dever de cooperar com os demais, o que implica admitir como válidos direitos reconhecidos pela comunidade internacional – leia-se, pela consciência humana.152 Precisa-se, também, que esses direitos caracterizam-se, especialmente, por três fatores, quais sejam: são reclamáveis frente ao Estado, mas, igualmente, a titularidade de tais pode ser estatal; tais direitos requerem prestações positivas e negativas de toda a comunidade internacional, tendo em vista seu principal aspecto, qual seja, a solidariedade; e são direitos que reclamam à paz não somente como ausência da guerra, mas sim como a possibilidade de uma paz integral ao ser humano, que possibilite o seu pleno desenvolvimento.153 Somada a esses novos direitos, a ONU contribui de maneira única para o desenvolvimento dos direitos humanos, quando então veio a criar, como órgão subsidiário à Assembleia Geral, o Conselho de Direitos Humanos154, visando dar prioridade máxima ao tema de direitos humanos no interior da organização. 152 153 154 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.177. PICADO, Sonia. Apuntes sobre los fundamentos filosóficos de los derechos humanos: antologia básica. Costa Rica: IIDH-CAPEL, 1990. p.45. Segundo Flávia Piovesan, cabe a este órgão, exemplificativamente: responder a violações de direitos humanos, incluindo violações graves e sistemáticas, bem como elaborar recomendações; promover a efetiva coordenação das atividades de direitos humanos na ONU e a incorporação da perspectiva dos direitos humanos em todas as atividades da ONU (mainstreaming of human rights within the UN system); estabelecer um diálogo transparente e construtivo com as organizações nãogovernamentais para a promoção e proteção dos direitos humanos; entre outras diversas atribuições. 83 Após três anos do surgimento da ONU, viu-se a necessidade do estabelecimento de uma Declaração que englobasse todos os direitos conquistados ao longo da história recente, além de poder vir a servir como um código moral a ser seguido e internalizado pelas constituições dos Estados integrantes de tais organizações. Então, de tal forma, viera a surgir, no contexto da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, contando com uma universalidade e afirmação ética, uma vez que inexiste qualquer reserva, feita pelos Estados, a seus princípios e nem sequer qualquer voto contrário às suas disposições, levando em conta, de maneira única, as diversidades culturais. Empregando o entendimento de Flávia Piovesan: A Declaração Universal de 1948 objetiva uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos. A universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura com o legado nazista, que condicionava a titularidade de direitos à pertinência à determinada raça (a raça pura ariana). A dignidade humana como fundamento dos direitos humanos e valor intrínseco à condição humana é a concepção que, posteriormente, viria ser incorporada por todos os tratados e declarações de direitos humanos, que passaram a integrar o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos. Além da universalidade dos direitos humanos, a Declaração de 1948 ainda introduz a indivisibilidade desses direitos, ao ineditamente conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o dos direitos econômicos, sociais e culturais.155 Ainda, no tocante à Declaração, pode-se dizer que ela impõe, aos Estados, definitivamente, uma conduta ativa na proteção e efetivação dos direitos humanos, devendo sê-la, internamente, traduzida em preceitos constitucionais e podendo, internacionalmente, influir no surgimento e na elaboração de instrumentos que supervisionem e fiscalizem a conduta dos Estados para com os direitos humanos de seus nacionais. Como detalha Cançado Trindade: Ademais, a Declaração Universal também se projetou no direito interno dos Estados. Suas normas encontraram expressão nas Constituições nacionais de numerosos Estados, e serviram de modelo a disposições das legislações nacionais visando a proteção dos direitos humanos. A Declaração Universal passou a ser invocada ante os tribunais nacionais de numerosos países de modo a interpretar o direito convencional ou interno atinente aos direitos 155 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.137. 84 humanos e a obter decisões. A Declaração Universal, em suma, tem assim contribuído decisivamente para a incidência da dimensão dos direitos humanos no direito tanto internacional como interno. Os direitos humanos fazem abstração da compartimentalização tradicional entre os ordenamentos jurídicos internacional e interno; no presente domínio de proteção, o direito internacional e o direito interno encontram-se em constante interação, em benefício de todos os seres humanos.156 Nesse sentido, pontua-se que apenas os Estados não mais seriam suficientes para a promoção e proteção dos direitos humanos, sendo necessária, de igual maneira, uma ação internacional ainda mais efetiva, podendo, até mesmo, vir a responsabilizá-los neste mesmo nível internacional, quando suas instituições se demonstrarem falhas ou omissas na proteção e efetivação dos direitos humanos para com seus cidadãos. Especifica-se, ainda, que fora tal Declaração que possibilitou o conceito contemporâneo de direitos humanos, quando então atribui a tais direitos as características da universalidade, da indivisibilidade e da interdependência. Nos termos de Joaquín Herrera Flores, os redatores do referido documento objetivavam, de maneira resumida, dois pontos: 1) a descolonização dos países e regiões submetidos ao poder e ao saqueio imperialista das grandes metrópoles; e 2) a consolidação de um regime internacional ajustado à nova configuração de poder surgida depois da terrível experiência das duas guerras mundiais [...].157 Ressalta-se, ainda, que os direitos humanos – incorporados ao constitucionalismo contemporâneo – baseiam-se, sempre, no valor da dignidade humana, chamada, de tal forma, como superprincípio158. Outro ponto bastante importante a ser discorrido é sobre o mundo bipolar que se encontrava na época, onde a Guerra Fria concentrava as duas ideologias dominantes, quais sejam, o capitalismo e o socialismo. 156 157 158 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O direito internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.641. HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p.71. Como elencado por boa parte da doutrina nesse tema, a dignidade da pessoa humana possui um valor primordial, sendo, por isso, justamente chamada de superprincípio constitucional. 85 Desta maneira, dois Pactos de direitos humanos, surgiram, em 1966, pela Resolução 2200A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, quais sejam: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (assinado pelos países capitalistas) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (assinado pelos países socialistas). Nas palavras de Vladmir Oliveira da Silveira: Nos anos seguintes, com o desenrolar da Guerra Fria, esta tentativa de consenso sobre os direitos humanos se revelou crescentemente inócua devido à cada vez mais acirrada disputa entre os dois blocos. Sendo assim, quando se decidiu transformar os princípios declarados em normas jurídicas, a ONU formulou dois pactos distintos. Com efeito, parte dos países socialistas não assinou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, enquanto parte das nações capitalistas não assinou o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – dentre elas destacamos os EUA, que até hoje não reconhecem estes direitos como tais.159 Apesar dos esforços para a manutenção de um único documento que venha a abranger todos os direitos humanos, fora impossível evitar tal divisão entre os dois Pactos. Mesmo assim sendo, o caráter de indivisibilidade e unidade dos direitos humanos continua existindo e sendo característica básica de tais. Investigando o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, pode-se dizer que este teve sua vigência iniciada em 23 de março de 1976, determinando que os Estados signatários têm o dever de "respeitar e assegurar a todos os indivíduos dentro do seu território e sujeitos a sua jurisdição os direitos" que tal instrumento previa, segundo os termos de seu artigo 1.o, parágrafo 1.o. Além disso, o Pacto vislumbra um Comitê de Direitos Humanos, cujo qual é, de fato, o mecanismo de implementação de tal documento, por intermédio da análise de relatórios advindos dos seus Estados signatários e da direta comunicação com Conselho Econômico e Social das Nações Únicas (ECOSOC). Visando a melhor compreensão, transcreve-se: O mecanismo de implementação do Pacto de Direitos Civis e Políticos é o Comitê dos Direitos Humanos, composto por 18 membros eleitos a título pessoal. Os Estados-partes dos Pactos se obrigam a "apresentar relatórios sobre as medidas adotadas para dar efeito aos direitos reconhecidos" no documento 159 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.154. 86 e "sobre os progressos realizados no gozo desses direitos" (Artigo 40, parágrafo 2). O Comitê é incumbido de estudar os relatórios, transmití-los aos Estados-partes com os comentários gerais que considerar apropriados, e de reportar, por sua vez, ao ECOSOC (Artigo 40, parágrafo 4).160 No que concerne ao segundo documento, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sublinha-se que este entrara em vigor em 3 de janeiro de 1976, apontando as diretrizes aos seus Estados signatários segundo os termos de seu artigo 2.o, parágrafo 1.o: "individualmente e através da assistência e cooperação internacionais, especialmente econômicas e técnicas, até o máximo de seus recursos disponíveis, com vistas a alcançarem progressivamente a completa realização dos direitos". Inicialmente, o Pacto previu que a apresentação de relatórios, advindos de seus Estados signatários, sobre os direitos nele previstos, deveria se dar no Conselho Econômico e Social das Nações Únicas (ECOSOC). Mais tarde em 1987, o ECOSOC desenvolveu e atribui tal função ao Comitê para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Finalizando este ponto, debate-se que a Declaração de Viena de 1993 veio comprovar tal conceituação contemporânea dos direitos humanos, quando consagra, em seus preceitos, o alcance universal e o parâmetro indivisível e correlato desses direitos. A Declaração de Viena pode assim ser melhor compreendida: Com um preâmbulo de 17 parágrafos, uma parte operativa conceitual de 39 artigos e um programa de ação com 100 parágrafos recomendatórios, a Declaração de Viena é o documento mais abrangente adotado consensualmente pela comunidade internacional sobre o tema. E, tendo-se em conta que a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 foi adotada por votação (48 a zero com 8 abstenções), quando a Assembleia Geral da ONU contava com apenas 56 membros (a maioria dos Estados atuais tinha ainda status de colônia), é possível dizer que foi a Declaração de Viena que conferiu caráter efetivamente universal aos direitos definidos no primeiro documento.161 Assim, afirma-se, com precisão, que a Declaração de Viena veio, de forma ainda mais necessária, reafirmar os valores universais dos direitos humanos para 160 161 ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p.53. Ibid., p.27. 87 todos os povos da humanidade, independentemente de crença, religião, etnia, credo, cultura, ideologia, sexo ou qualquer outra distinção possível. 2.5.3 Globalização e direitos humanos Outro movimento da história recente da humanidade que vem afetar, diretamente, os direitos humanos, é a globalização, a qual veio a se desenvolver, de maneira mais efetiva, no final do século XX, mais especificamente ao final da década de 80, quando então a Guerra Fria chegou ao fim e, juntamente com ela, a finalização do mundo dividido entre a ideologia, apenas, das duas grandes potências da época (Estados Unidos e a antiga União Soviética). Deve-se deixar claro que o movimento chamado globalização surgiu, especialmente em seu início, com um viés econômico, mas devido à sua complexidade e abrangência – além de outros diversos fatores, tais como geopolítica, cultura, meios econômicos – acabou por vir a atingir todas as esferas da sociedade, tanto local, como internacional. Explica-se: Já nos anos noventa do século XX, a História Mundial apresenta um conjunto de factos que revelam a raiz e o cariz econômico, que motivou e permitiu o desenvolvimento de um conjunto de fenômenos que efectivaram a globalização e que desencadearam uma mudança profunda na vida do Ser Humano na Terra. Ainda que complexo, e de uma certa dificuldade de curta explicação, poder-se-á indicar um conjunto de elementos que funcionaram como "motores" e apoios a toda a sua implementação. Desta forma, entende-se que, a grandeza do fenômeno, deveu-se ao impulso dado por agentes econômicos, meios e geopolíticos, agentes sociais, culturais, ideológicos, à escala nacional, regional e internacional.162 Nesse sentido, entende-se que a globalização veio a afetar a vida de todos os indivíduos, sendo considerada um fenômeno incontornável e irreversível. Acontece que, nos seus primeiros sinais de surgimento, acreditou-se que esta viria, de fato, 162 OLIVAS CABANILLAS, Enrique; ORTÍZ-ARCE de la FUENTE, Antonio; TORRADO, Jesús Lima. Globalización y Derecho: una aproximación desde Europa y América Latina. Madrid: Editorial DILEX, S. L., 2007. p.128. 88 contribuir para o surgimento da "aldeia global"163, onde o ser humano seria colocado em um lugar central e, também, seria considerado o agente primordial. Diferentemente do que se previu, a globalização não trouxe essa unidade almejada, nem possibilitou um maior respeito e efetividade dos direitos humanos, como bem se precisa: E se numa fase inicial se entendeu que a globalização seria uma forma fácil de adaptação a todos os Homens, a todos os regimes, a todas as situações, a todos os sistemas, numa visão baseada na lógica econômica, gerando um "espaço" de respeito dos Direitos do Homem, certo é que essa não foi a consequência que parecia lógica. A abertura de espaços nas mais diferentes áreas é sem dúvida realidade que pode é evidentemente complexa, mas que poderá ser tão positiva como negativa para o desenvolvimento da vida do Homem e dos seus Direitos, sobretudo, os direitos fundamentais.164 O que deve ser levado em consideração, na verdade, é a faceta cruel da globalização, trazendo consequências negativas aos direitos humanos, especialmente quando uma cultura é imposta à outra, ou ainda, de maneira mais radical, quando o poderio econômico, materializado nas empresas transnacionais, volta a tratar o ser humano como uma mercadoria, suprimindo-lhe todos os seus direitos. Ocorre que a globalização não aprimorou apenas o seu lado perverso, vindo, por outro lado, desenvolver novos atores165 no âmbito internacional que iniciaram uma luta constante pelo fim da violação dos direitos humanos. O primeiro deles, as Organizações Não-Governamentais (ONGs), surgiram para a defesa dos direitos humanos e já se tornaram uma constante no plano internacional. Remetendo a questão à análise de Wagner Menezes: As ONGs surgiram no âmbito da defesa dos direitos humanos, como um agente de pressão ou intervenção e concentração sobre regras internacionais assumidas e não cumpridas por seus governos, que representam um instrumento de cidadania mundial à medida que cada vez mais se ocupam 163 164 165 A chamada "aldeia global" seria a integração de todos os seres humanos em apenas uma só realidade, sendo um produto concreto e real do movimento de globalização. OLIVAS CABANILLAS, Enrique; ORTÍZ-ARCE de la FUENTE, Antonio; TORRADO, Jesús Lima. Globalización y Derecho..., p.129. Esclarece-se que atores internacionais diferem-se de sujeitos de Direito Internacional, uma vez que, apesar de atuarem de forma determinante no contexto internacional, os referidos atores não podem, como os sujeitos, adquirirem direitos e obrigações no plano internacional. Ou seja, os atores internacionais não podem firmar tratados. 89 de temas relativos ao futuro da humanidade, como o meio ambiente, direitos humanos, combate à violência de todas as formas, exploração econômica, miséria, epidemias, violação aos direitos humanitários, contra os efeitos da globalização, etc.166 Diferencia-se, então, seu aspecto positivo aos direitos humanos, uma vez que, materializando-se no próprio Direito Internacional e, consequentemente, nas organizações internacionais ou, até mesmo, em suas possibilidades correlatas (como as ONGs), tal instituto pode se tornar um instrumento de respeito aos melhoramentos para integração, defesa, proteção e evolução dos direitos humanos. 3 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITO HUMANOS Tendo sido analisado todo o processo de internacionalização dos direitos humanos, faz-se pertinente, neste momento, o estudo das suas decorrentes consequências, com especial enfoque à concretização de tal internacionalização. Primeiramente, determina-se que a proteção internacional dos direitos humanos é, de fato, o principal instrumento para transpor, à realidade, a própria internacionalização dos direitos humanos, devendo, necessariamente, estruturar o respeito ao próprio ser humano per se em todas as atividades que visem ao desenvolvimento dos instrumentos de proteção. De tal forma, para que a referida configuração acerca dos direitos humanos seja passível de implementação, imprescindível se demonstrou uma nova releitura sobre a soberania estatal, impossibilitando, em outros termos, o arcabouço impenetrável do conceito de soberania quando então do surgimento dos Estados modernos167. A soberania que se apresenta, nos Estados contemporâneos, é fruto de uma continuidade, de uma "evolução semântica", onde se fizera presente, sempre, na relação entre teoria jurídica e teoria do poder. 166 167 MENEZES, Wagner, Ordem global e transnormatividade, p.69-70. Segundo Luigi Ferrajoli, o nascimento dos grandes Estados Nacionais europeus, juntamente com a ideia de um ordenamento jurídico universal, é que veio a motivar o entendimento da soberania. 90 A proteção internacional dos direitos humanos materializa-se, essencialmente de três maneiras principais: pelo sistema de petições (reclamações individuais ou de Estados às jurisdições internacionais), pelo sistema de relatórios (instrumento ex officio, sendo uma supervisão internacional em um determinado Estado, instituído por um tratado), e pelos procedimentos de investigações (são visitas in loco para a coleta de dados, podendo ser permanentes ou ad hoc). Uma vez que a proteção internacional dos direitos humanos necessita, efetivamente, que os Estados venham – caso não possuam instrumentos ou caso a sua demora cause ainda mais danos aos direitos já violados, resultando na não salvaguarda dos direitos mais essenciais de seus cidadãos – a se submeter, em plano internacional, a organismos que lidem com a referida proteção168, mostra-se nítido que o conceito de soberania deva ser flexibilizado ante a importância primordial da proteção dos direitos humanos. Então, com a devida concordância dos Estados, possibilitados por uma soberania que acompanhara as necessidades da sociedade, a proteção internacional dos direitos humanos viera a evocar três categorias de ações, sendo elas: promoção, controle e garantia169. Investigando alguns aspectos do que vem a ser a promoção da proteção internacional dos direitos humanos, diz-se que esta visa, especialmente, fazer com que aqueles Estados que ainda não possuam um sistema jurídico-legal interno à tutela dos direitos humanos venham a desenvolvê-la e, caso já tenha, aperfeiçoá-la ainda mais. Já no que concerne ao controle, tal proteção vem a cobrar dos Estados, que se obrigaram internacionalmente por intermédio de tratados ou aderiram a uma organização internacional que verse sobre direitos humanos, a observância às obrigações contratadas. O sistema atual de proteção dos direitos humanos, encontra-se, ainda, nessa fase, uma vez que há a obrigatoriedade da concordância dos Estados para a implementação de tais instrumentos de proteção dos direitos humanos em plano internacional. 168 169 Na direção do entendimento de Cançado Trindade, os mecanismos de proteção dos direitos humanos podem ser provocados, tal como ocorre no sistema de petições, e podem, igualmente, desenrolarem-se de modo ex officio – tendo, como exemplo clássico, o sistema de relatórios. ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.20. 91 E, finalmente, por garantia entende-se o que se chama de verdadeira tutela internacional, sendo que seria alocada em um plano superior à tutela estatal, quando esta última não seria, por si só, suficiente à proteção dos direitos humanos de seus cidadãos. Esta seria, teoricamente, a maneira mais completa de proteção, pelo fato de não estar submetida ao aceite dos Estados. Infelizmente, o sistema internacional dos direitos humanos ainda não chegou nesta fase. Julga-se que a responsabilidade primária no quesito proteção dos direitos humanos é, sem dúvida, dos Estados, tanto que os próprios tratados que versam sobre o tema referem-se a órgãos estatais no exercício primário da proteção.170 Mas como se deve desenvolver esta proteção vem a ser o cerne da problemática. Primeiro, sublinha-se ser essencial que, após a ratificação de um tratado sobre direitos humanos, as leis nacionais venham a ser compatibilizadas com as obrigações e com os dizeres de tal documento, mesmo que, para isso, seja imprescindível a sua decorrente alteração ou o preenchimento de lacunas. Também, é obrigatório que os Estados, mediante dizeres legais nacionais, possibilitem a proteção em âmbito interno dos direitos assegurados internacionalmente, podendo seus cidadãos evocar tais direitos nos órgãos nacionais.171 Sobre o tema, ainda, é importante registrar que o universalismo172 dos direitos humanos induz a obrigação aos Estados de respeitarem e promoverem os referidos direitos a todos os seus cidadãos, independentemente de credo, religião, etnia, cultura ou de qualquer outra distinção, não sendo aplicada a ideia, nem no plano nacional, nem no plano internacional, de reciprocidade173 para a proteção dos direitos humanos. 170 171 172 173 O sistema de proteção internacional dos direitos humanos é complementar e subsidiário em relação ao sistema de proteção nacional, o qual tem, de fato, a incumbência de proteger os direitos humanos de seus cidadãos. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Consolidação da capacidade processual dos indivíduos na evolução da proteção internacional dos direitos humanos: quadro atual e perspectivas na passagem do século. In: GUIMARÃES, Samuel Pinheiro; PINHEIRO, Paulo Sérgio (Orgs.). Direitos humanos no século XXI (Parte I). Brasília: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – Fundação Alexandre Gusmão, 2002. p.19-49. O universalismo a que se refere leva em conta todas as particularidades dos relativismos culturais, entendendo que universalismo vem a ser a ampla dimensão de aplicação e incidência dos direitos humanos, considerando os indivíduos como cidadãos globais, sendo todos eles sujeitos de direitos humanos. A reciprocidade aqui referida é aquela que leva em conta que um Estado ou qualquer indivíduo só possui deveres e/ou direitos a partir do momento que um terceiro, seja outro Estado ou outro indivíduo, possua, igualmente, deveres e/ou direitos. 92 Infelizmente, a teoria não se traduz tão facilmente na prática, uma vez que os Estados nem sempre concordam, facilmente, com todos os dizeres e com as necessidades advindas da proteção internacional dos direitos humanos. E mais: há Estados que nem sequer chegaram na democracia – considerado o regime político ideal para a implementação dos direitos humanos –, o que tende a impossibilitar quase que totalmente o processo de proteção, tanto nacional, quanto internacional dos direitos humanos. Nessa linha de raciocínio, transcreve-se a passagem de Emerson Garcia: Apesar da disseminação da concepção de que os direitos humanos devem ser imperativamente observados por todos os Estados sua transposição à realidade fenomênica, longe de ser direcionada pela estabilidade e pela universalidade indissociáveis da perspectiva idealístico-formal, tem sido caracterizada por momentos de ruptura e por uma inegável limitação de ordem espacial. Nos Estados de reduzida tradição democrática ou naqueles assolados por constantes conflitos armados, a instabilidade política e a ausência de uma sólida ideologia participativa em muito contribuem para a não-sedimentação do respeito ao ser humano como um valor verdadeiramente fundamental.174 Mesmo que ainda com muitos entraves, não se pode perder de vista que a proteção internacional dos direitos humanos vem avançando, cada vez mais, em seus planos de ação e de modificação das próprias estruturas sociais. A primeira prova de tal argumentação é a multiplicação de instrumentos, organismos e cortes internacionais que visam proteger os direitos humanos em um nível além dos Estados. Cada vez mais, há a existência de um maior número de organismos a que se pode recorrer, caso a proteção nacional não se demonstre eficaz, ou mais perigosamente, ainda não exista. Mas a maior contribuição de tal proteção é, sem dúvidas, o incremento do acesso à justiça internacional, quando, pelo sistema de petições, não mais apenas os Estados possuem tal direito, passando também aos indivíduos, proporcionando uma mudança das próprias estruturas do Direito Internacional, quando então se vê com novos sujeitos além dos Estados e das organizações internacionais – quais sejam, os cidadãos, que ganham lugar no campo internacional, não se limitando mais apenas a sua cidadania nacional. 174 GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos: breves reflexões sobre os sistemas convencional e não-convencional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.48. 93 Decorrência mais do que lógica da proteção internacional dos direitos humanos é a posição do ser humano como sujeito de direitos e obrigações no plano internacional, uma vez que, como bem afirma Cançado Trindade: [...] com o acesso dos indivíduos à justiça em nível internacional, por meio do exercício do direito de petição individual, deu-se enfim expressão concreta ao reconhecimento de que os direitos humanos a ser protegidos são inerentes à pessoa humana e não derivam do Estado.175 Mais do que isso, pode ser dito que a vitória maior dessa referida proteção é a capacidade processual internacional dos indivíduos, por intermédio do seu acesso às instâncias internacionais de proteção, proporcionando, de fato, os dois níveis necessários à proteção dos seus direitos por sua condição humana: um nível primário nacional e um nível não menos importante, mas necessário quando o primeiro não der conta de atender às necessidades, o internacional. Há algumas justificativas para a referida capacidade internacional dos indivíduos, podendo, brevemente, serem assim discorridas: a) não há lógica em apenas dispor, aos indivíduos, direitos humanos em nível internacional, devendo, de igual maneira, capacitá-los, processualmente, para vindicá-los também em nível internacional; b) o princípio da igualdade processual das partes, conclamado quase que na totalidade dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, faz-se indispensável no sistema de proteção internacional dos direitos humanos; c) as vítimas de violações de direitos humanos – e no termo vítimas, entenda-se, também, seus parentes – podem apresentar-se, em um procedimento internacional, no início e no final do procedimento, não tendo cabimento negar-lhes sua participação no curso do processo, uma vez que serão elas próprias quem virão a serem reparadas e indenizadas.176 Além disso, há muitas contradições sobre a posição dos Estados frente à possibilidade dos indivíduos em demandarem tais organismos internacionais e virem a requerer tais direitos, posteriormente, no plano interno. Por mais cristalino que pareça ser o entendimento que os direitos humanos encontram-se, mesmo que ainda teoricamente, em um plano superior aos interesses estatais, há ainda muito que se 175 176 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Consolidação da capacidade processual dos indivíduos na evolução da proteção internacional dos direitos humanos: quadro atual e perspectivas na passagem do século, p.30. Ibid., p.40. 94 fazer e, especialmente, muito que se consolidar para que esta seja a realidade prática nos sistema de proteção internacional dos direitos humanos. Mas, com certeza, um ponto já se demonstra em vias de concordância: Na atual conjuntura, o desenvolvimento progressivo se vê tolhido pela atitude de Estados que julgam conveniente escapar a suas responsabilidades alegando que as decisões dos órgãos não têm valor obrigatório, mesmo em casos nos quais o Estado participou ativamente do procedimento. Tais alegações são impossíveis quando o órgão emitindo a decisão foi criado por um tratado multilateral e cuja competência para emitir tal decisão foi livremente acordada pelo Estado. Isto não assegura o cumprimento da decisão, mas certamente elimina o argumento ilusório para justificar o não cumprimento.177 O principal problema que se vislumbra, na prática, é que os mecanismos existentes que visam o acesso dos indivíduos às instâncias internacionais dependem da própria vontade do Estado, uma vez que é apenas ele próprio quem decide se tal mecanismo vai ou não fazer parte da realidade de seus cidadãos, tendo em vista que é só após a adesão do Estado ao respectivo instrumento internacional que seus cidadãos poderão gozar do direito de petição internacional. Mas a partir do momento que um Estado se obriga internacionalmente e proporciona aos seus cidadãos tal acesso às instâncias internacionais, então, a liberalidade dos Estados demonstra-se diminuta em relação aos casos tradicionais sobre solução pacífica de controvérsias internacionais, justamente pelo fato do sistema de petições abarcarem direitos humanos, diferentemente de outros sistemas de soluções de controvérsias. Cançado Trindade178 valoriza esta linha de raciocínio, quando então diz: [...] Enquanto, por um lado, o capítulo tradicional sobre solução pacífica de controvérsias internacionais tem-se marcado pela ambivalência entre o dever geral de solução pacífica e a liberdade das partes litigantes de escolha dos meios, e tem-se assim mostrado particularmente vulnerável a manifestações do voluntarismo estatal, por outro lado parece claro que não se pode razoavelmente esperar que os Estados reivindiquem, ou contem com o mesmo grau de liberdade de ação na solução de "casos de direitos humanos". 177 178 MENDEZ, Juan E. Proteção internacional dos direitos humanos. In: GUIMARÃES, Samuel Pinheiro; PINHEIRO, Paulo Sérgio (Orgs.). Direitos humanos no século XXI (Parte I). Brasília: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – Fundação Alexandre Gusmão, 2002. p.242-243. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. p.44. 95 Constitui traço próprio ou específico do rationale dos tratados e instrumentos sobre direitos humanos o fato de se dirigirem eles à proteção dos seres humanos e o de a solução de petições ou reclamações neste domínio dever assim ser guiada pelo respeito aos direitos humanos, e neste basear-se.179 O sistema de proteção internacional dos direitos humanos possibilita o maior alcance do clamor público para que a defesa e promoção dos direitos humanos se dê de maneira efetiva, uma vez que "quando um governo fere, ou não protege adequadamente, direitos de seus cidadãos, estabelecidos nos instrumentos internacionais de direitos humanos é, em geral, condenado pela opinião pública, tanto externa quanto interna"180. Neste quadro, precisa-se, ainda, que a compatibilização entre a jurisdição nacional e a internacional é realizável, uma vez que se consagrou, nesse último modo de proteção dos direitos humanos, o princípio do prévio esgotamento dos recursos do direito interno, trazendo à tona a questão de ser primária a responsabilidade estatal nessa proteção e, também, de ser a jurisdição internacional subsidiária neste contexto. Ainda aqui, não se pode perder de vista que, dado o caráter supremo dos direitos humanos, até mesmo tal princípio pode vir a ser flexibilizado em prol da proteção adequada e efetiva de tais direitos.181 A proteção dos direitos humanos encontra-se, além de presente nos principais documentos legais dos Estados, materializada em diversos documentos internacionais sobre o assunto – especialmente em declarações e tratados. Há, ainda, que se considerar que existem aqueles que tratam dos direitos humanos de maneira generalizada e aqueles que se concentram em alguns ou em um único direito humano, especializando-se em conceitos e meios de promoção e proteção de tal. Pontua-se que a maior disseminação desses instrumentos ocorrera em um momento posterior à criação das Nações Unidas.182 179 180 181 182 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos..., p.44. ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.44. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit. VELTEN, Paulo. Introdução aos fundamentos dos direitos humanos nas cortes internacionais. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, RJ, v.3, n.3, out. 2008. Disponível em: <http://www.fdc.br/Arquivos/Revista/8/02.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2011. 96 Para que seja realizável a maior efetividade e para que os devidos alcances regionais sejam alcançados, as atividades de promoção de proteção internacional dos direitos humanos abarcam organismos supranacionais e, também, intergovernamentais, contando com três níveis, quais sejam: universal, regional e sub-regional. Obviamente, há ainda um quarto nível de proteção, sendo o primordial em um sistema escalonado183, qual seja, o nível nacional ou doméstico. Especificando o sistema universal de proteção dos direitos humanos, pode-se dizer, em breves palavras, que este é realizável por intermédio do sistema da Organização das Nações Unidas, contando com instrumentos, agências, fundos, programas, comitês, mecanismos e órgãos próprios. Os mecanismos universais podem, ainda, não ter base em tratados, ou, também, contarem com tratados específicos para a sua implementação. Já os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos encontram-se em número de quatro, sendo eles: o sistema europeu, o interamericano, o africano e o árabe, lembrando que este último ainda não se encontra em fase plena de operação. Cada um desses sistemas – a serem analisados em momento posterior – conta com suas particularidades próprias, atendendo aos reclames e ao desenvolvimento característico da sociedade em que se encontram. Por fim, os sistemas sub-regionais são justificados por finalidades econômicas, mas podem, dependendo das circunstâncias, operarem como sistemas de proteção dos direitos humanos, quando então, indiretamente, proporcionam a mais fácil realização dos direitos humanos em um determinado local – por exemplo, quando, por intermédio da integração econômica, o imposto sobre os alimentos vem a diminuir e o acesso à comida demonstra-se uma realidade a um maior contingente populacional. Realidade impossível de não ser percebida é o ponto que urge quando da análise de todos esses sistemas: não seria, então, possível a ocorrência de dualidade de processos sob uma mesma questão, envolvendo um mesmo ser humano e um mesmo direito humano? Para responder à questão, utilizam-se os ensinamentos de Cançado Trindade, quando precisa que tem ocorrido "a aplicação do critério da primazia da norma mais 183 Utiliza-se tal terminologia uma vez que, para que seja possível a utilização dos sistemas de proteção internacional dos direitos humanos, há a necessidade de se ter esgotados os recursos da jurisdição interna do Estado ou provar que estes não existem. 97 favorável às supostas vítimas", além de evidenciar o caráter complementar dos sistemas de proteção dos direitos humanos. Em suas palavras: Dada a possível interpretação concomitante de dispositivos correspondentes ou equivalentes (um servindo de orientação a outro) de distintos tratados sobre direitos humanos, tem havido espaço para a aplicação do critério da primazia da norma mais favorável às supostas vítimas, critério este que tem encontrado apoio expresso em determinados dispositivos de tratados sobre direitos humanos. A escolha ou primazia do dispositivo mais favorável às supostas vítimas tem relação direta com a questão da coexistência de procedimentos distintos de petições ou reclamações de proteção dos direitos humanos, pois significativamente pode reduzir ou minimizar as possibilidades de conflito normativo; encontra-se, com efeito, em clara consonância com a tendência hodierna a nível internacional de ampliar, ao invés de restringir, a proteção dos direitos humanos. Ademais, evidencia a natureza complementar – do ângulo das supostas vítimas dos mecanismos de proteção dos direitos humanos a níveis global e regional, fenômeno este que, por seu turno, reflete a especificidade do domínio da proteção internacional dos direitos humanos.184 Dado esse panorama geral da proteção internacional dos direitos humanos, importante se apresenta, nesse momento, passar-se à análise dos sistemas de proteção universal e regionais dos direitos humanos, com especial enfoque ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. 3.1 A PROTEÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS A proteção universal dos direitos humanos é operacionada, especialmente, no âmbito da Organização das Nações Unidas185 e seu desenrolar relaciona-se, diretamente, com a própria formação e evolução de tal organização. 184 185 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos..., p.50. O sistema global não se limita, exclusivamente, ao sistema ONU, podendo, ainda, serem citadas outras organizações internacionais, tais como a Organização Mundial do Trabalho e a Organização Mundial da Saúde. Acontece que, para este estudo, o sistema ONU de proteção dos direitos humanos é que o interessa. 98 Além disso, a referida proteção divide-se em dois grandes ramos, quais sejam186: a proteção por intermédio de mecanismos convencionais de proteção dos direitos humanos, criados por convenções específicas, independentes, mas que se encontram no seio da ONU; e a proteção pelos mecanismos não-convencionais de proteção dos direitos humanos, decorrentes de resoluções elaboradas por órgãos das Nações Unidas (com especial enfoque aos dois órgãos especializados na proteção dos direitos humanos: Conselho de Direitos Humanos187 e Alto Comissariado em Direitos Humanos188, sendo o primeiro subsidiário da Assembleia Geral e o segundo, do Secretariado da ONU). Nesse sentido, passa-se à análise da formação, evolução e implementação do sistema de proteção universal dos direitos humanos. 3.1.1 Formação e evolução do sistema de proteção universal Para se entender o desenrolar de todo o sistema de proteção universal é indispensável, também, o entendimento do que representa a Organização das Nações Unidas. A ONU é um órgão basilar do próprio Direito Internacional, uma vez que vem a ser ela o organismo mais influente e com maior número de adesões que até hoje já existiu. Surgida em um contexto pós-2.a Guerra Mundial, a ONU formou-se, inicialmente, por países capitalistas e socialistas, baseando-se em uma democracia internacional, tendo como marco a assinatura da Carta das Nações Unidas, em 26 de junho de 1945, em São Francisco, Estados Unidos. A Organização propriamente dita nasceu, oficialmente, em 24 outubro de 1945 (data da promulgação da Carta das Nações Unidas), sendo, desde seus primórdios, 186 187 188 ALSTON, P. The United Nations and human rights: a critical appraisal. Oxford: Clarendon, 1992. O Conselho de Direitos Humanos viera a substituir o que outrora era a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, a partir de 16 de junho de 2006. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Proteção e a Promoção dos Direitos Humanos fora aprovado pela Resolução n.o 48/141, da Assembleia Geral, em 20 de dezembro de 1993. 99 uma organização internacional de vocação universal, multilateral, de caráter intergovernamental189, cujo objetivo é preservar a paz no mundo. Em síntese: A Organização das Nações Unidas – ONU é um organismo intergovernamental, criado por intermédio de uma associação de Estados, com personalidade jurídica internacional, como se depreende de seus artigos 104 e 105, embora não haja dispositivo especifico, atribuindo-lhe tal personalidade. Na época, evitou-se a idéia de um "super-Estado". Os poderes expressos da ONU estão explícitos e implícitos na Carta. Estes últimos, necessários para a consecução de seus objetivos, como o reconheceu a Corte Internacional de Justiça em um acórdão de 1949, em um processo de "reparação de danos sofridos ao serviço das Nações Unidas" [...].190 Além da manutenção da paz, a ONU tem como seus propósitos, também, o alcance da segurança internacional, o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, a busca por uma cooperação internacional para a resolução de problemas econômicos, sociais, culturais e humanitários, a harmonização da ação das nações para a consecução de objetivos comuns e, ainda, serve como foro aberto para o debate entre os Estados.191 Interessante é observar que a proteção dos direitos humanos não ocupa os objetivos basilares das Nações Unidas, uma vez que a própria Carta não se refere à "proteção" ou "salvaguarda" dos direitos humanos. Apesar disso, é impensável a evolução da proteção dos direitos humanos e, até mesmo, do próprio Direito Internacional, sem contar com a análise dessa organização.192 Assim sendo, pode-se dizer que a ONU, indiscutivelmente, vem criando, desde sua formação, um aparato universal para a proteção dos direitos humanos, baseado em sua Carta, nas Declarações, tratados e além de outras ações voltadas ao desenvolvimento dos direitos humanos.193 189 190 191 192 193 Seu caráter intergovernamental decorre de ser uma organização pautada nas vontades estatais, não tendo poder ou autoridade suficientes para determinar o que os Estados devem ou não fazer, sem o consentimento desses. HUSEK, Carlos Roberto. A nova (des)ordem Internacional ONU..., p.321-322. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br>. Acesso em: 02 fev. 2011. GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos... HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index. php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011. 100 Decorrente de tal comprometimento, já em 1946, apenas um ano após a sua criação, a ONU, por intermédio de seu Conselho Econômico e Social (ECOSOC)194, pela Resolução 5 (I), veio a desenvolver a Comissão de Direitos Humanos (CDH). A primeira grande missão de tal Comissão fora o desenvolvimento do que viera, posteriormente, a ser a Declaração Universal dos Direitos do Homem, cuja qual fora adotada, em 1948, pela Assembleia Geral. Além disso, a Comissão influenciou, definitivamente, os parâmetros internacionais dos direitos humanos para sua decorrente efetivação e proteção. Mais tarde, a Comissão veio centralizar seus esforços para a elaboração de um rol de direitos vinculantes, no intuito de tornar obrigatórios os termos da Declaração de 1948. Nesse sentido, em 1966, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou os dois principais Pactos, no âmbito da ONU, com força obrigatória: Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Recorda-se, mais uma vez, que fora necessária a existência de dois Pactos195 para sua devida adoção, uma vez que muitos países ocidentais contrapunham-se ao desenvolvimento de um único pacto, que abarcasse todos os direitos existentes na Declaração de 1948. No contexto da Guerra Fria, estando o mundo dividido entre ideologias distintas – o capitalismo e o socialismo –, não se sustentou a tese de que os direitos deveriam estar localizados apenas em único Pacto. Assim sendo, com a combinação da Declaração Universal de 1948 e os dois Pactos supracitados, formou-se a Carta Internacional dos Direitos Humanos196 (International Bill of Rights), inaugurando o sistema universal de proteção dos direitos humanos. No desenrolar do próprio Direito Internacional, muitos outros documentos internacionais vieram a integrar, como órgãos autônomos, o sistema das Organizações das Nações Unidas, contendo, cada um deles, um determinado sistema de proteção dos direitos humanos (mecanismo convencional de proteção dos direitos humanos). 194 195 196 O Conselho Econômico e Social tem por dever fazer recomendações à Assembleia Geral sobre questões de direitos humanos, além de revisar relatórios apresentados pela Comissão de Direitos Humanos e submeter as versões com emendas à Assembleia Geral. Não obstante a existência de dois Pactos de direitos humanos, tais direitos continuam indivisíveis, tanto do ponto de vista teórico, quanto do prático. OFFICE OF THE UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. Disponível em: <http://www2.ohchr.org/english/law/>. Acesso em: 05 abr. 2011. 101 Além disso, a tutela de tais direitos, na estrutura da ONU, encontra respaldo – como já anteriormente dito –, em dois órgãos especializados na proteção dos direitos humanos (Conselho de Direitos Humanos e o Alto Comissariado em Direitos Humanos), além de contar com a atuação de três dos seus seis principais órgãos197: (I) Assembleia Geral; (II) Conselho Econômico e Social (ECOSOC); (III) Tribunal Internacional de Justiça. O sistema ONU conta, ainda, com diversos outros órgãos, agências e fundos198 que englobam o tema da proteção e efetivação dos direitos humanos, podendo ser citados: (I) Escritório das Nações Unidas de Assistência Humanitária (OCHA); (II) Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais (DESA) e sua Divisão para o Status da Mulher (DAW); (III) Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (UNHCR); (IV) Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO); (V) Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO); (VI) Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF); (VII) Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM); (VIII) Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).199 Discorrido, brevemente, sobre os principais aspectos da evolução das Nações Unidas e, consequentemente, do próprio sistema universal de proteção dos direitos humanos, passa-se, nesse momento, à análise dos mecanismos de proteção convencionais e não-convencionais no seio da referida organização. 197 198 199 FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos: um estudo da África. 144 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009. p.38. Estima Husek que "os traços fundamentais do sistema das Nações Unidas são: a autonomia, a complementaridade e a coordenação: Autonomia – Cada organização da ONU tem origem num tratado específico e independente, podendo as instituições especializadas, por exemplo, ter membros que não pertençam a ONU. Tais instituições não estão, a ela, atreladas politicamente. Complementaridade – Consiste na reserva, para a instituição ou organismo, de uma esfera de atividade própria, privilegiando-se a especialização. Coordenação – Significa a possibilidade de a ONU estabelecer acordo com uma organização especializada, reconhecendo-se à Organização a coordenação, embora não imponha a sua vontade". (HUSEK, Carlos Roberto. A nova (des)ordem Internacional ONU..., p.326). FEFERBAUM, Marina, op. cit., p.38-39. 102 3.1.2 Mecanismos convencionais de proteção dos direitos humanos Os mecanismos convencionais, como já outrora foram citados, são aqueles previstos em documentos internacionais específicos e autônomos, localizados no seio da Organização das Nações Unidas. Importante vem a ser diferenciá-los, uma vez que, decorrentes de tratados sobre direitos humanos, possuem uma força vinculante aos Estados que aderiram a tais documentos. Tais instrumentos contam, cada um, com uma maneira de proteção específica dos direitos humanos e, quase sempre, contam com a presença de Comitês que irão: (a) receber petições individuais, relatórios e comunicações interestatais; (b) proferir decisões a petições individuais, declarando a violação ou determinando que o Estado repare a violação configurada; (c) requerer informações aos Estados sobre a sua realidade no condizente aos direitos no documento assegurados. Estima-se que a competência dos Comitês restringe-se às comunicações que disponham sobre violações aos direitos presentes nas Convenções que os criaram. Além disso, para o recebimento de petições individuais, há a necessidade de existir, separadamente, uma declaração do Estado, autorizando tal situação ou, ainda, a presença da ratificação de um Protocolo Facultativo que ilustre a anterior questão.200 Não se pode perder de vista que os referidos Comitês, formados por peritos independentes – os quais irão analisar os relatórios enviados pelos Estados signatários do tratado principal – funcionam como órgãos autônomos dentro do sistema ONU, mas localizam-se fora de sua estrutura. Para melhor visualização dos mecanismos convencionais de proteção dos direitos humanos no sistema das Nações Unidas, citam-se os Comitês201: 200 201 O ponto em questão demonstra a principal diferença entre os mecanismos convencionais e os não-convencionais de proteção de direitos humanos, uma vez que, nestes últimos, não há a necessidade de ratificação de protocolos adicionais e nem mesmo de declarações estatais para existir a possibilidade de apresentação de denúncias por indivíduos ou grupos de indivíduos, por intermédio do sistema de petições. FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos..., p.37. 103 (I) Comitê de Direitos Humanos (CCPR), criado pelo Pacto de Direitos Civis e Políticos. É tido como um Comitê modelo a ser seguido pelos outros e suas funções repousam na análise de relatórios para implementação de seus direitos, enviados por seus Estados-membros; estudo das denúncias de um Estado sobre outro, suposto violador dos direitos elencados no tratado; avaliação de denúncias individuais sobre violações por parte de um Estado; revisar os relatórios elaborados pelas organizações nãogovernamentais (ONGs); e escrever e enviar "Observações Gerais". (II) Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CESCR), criado pela Resolução ECOSOC 1985/17; (III) Comitê para a Eliminação de Discriminação Racial (CERD), criado pela Convenção Internacional para Eliminação de Toda Forma de Discriminação Racial; (IV) Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW), criado pela Convenção para a Eliminação de Toda Forma de Discriminação contra a Mulher; (V) Comitê contra a Tortura (CAT), criado pela Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes; (VI) Comitê dos Direitos das Crianças (CRC), criado pela Convenção dos Direitos da Criança. Dada a importância dessa Convenção – e considerando, também, a falta de mecanismos para o tratamento de denúncias individuais no Comitê –, é possível que o Comitê examine os relatórios apresentados pelos Estados e venha fazer recomendações à Assembleia Geral sobre tais para o devido cumprimento da Convenção. (VII) Comitê sobre Trabalhadores Migrantes (CMW), criado pela Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e seus Familiares; (VIII) Comitê sobre os Direitos dos Deficientes (CRPD), criado pela Convenção dos Direitos dos Deficientes. Assim descrito, passa-se, agora, ao estudo dos mecanismos não-convencionais do sistema de proteção dos direitos humanos no âmbito da ONU. 104 3.1.3 Mecanismos não-convencionais de proteção dos direitos humanos Os mecanismos não-convencionais da proteção dos direitos humanos, no âmbito das Nações Unidas, são aqueles decorrentes de sua própria Carta e de resoluções elaboradas por órgãos da própria instituição, sendo que, para melhor entendimento do ponto, devem ser analisados os seguintes institutos: (I) Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH); (II) Comissão de Direitos Humanos (CDH); (III) Conselho de Direitos Humanos; (IV) Subcomissão para a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos; (V) Comitê Consultivo de Direitos Humanos. A seguir, passa-se ao estudo de cada um desses institutos. 3.1.3.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos A Declaração Universal dos Direitos Humanos, como já anteriormente discorrido neste trabalho, foi de importância primordial na proteção e na proteção dos direitos humanos a todos os seres humanos, sem, necessariamente, conter um tom obrigacional. Pode-se dizer que logo nos primórdios do desenvolvimento da ONU, esta tratou, de plano, de desenvolver um documento que expressasse seus valores em relação aos direitos humanos e, de maneira conexa, desenvolveu-se, então, em sua Comissão de Direitos Humanos, a referida Declaração. A adoção da Declaração Universal representou o forte desejo da paz no período pós-Guerra e, além disso, conseguiu unir, em torno de si mesma, objetivos comuns entre os tão distintos Estados-membros da Organização. Como mecanismo não-convencional de proteção dos direitos humanos, a Declaração objetivou, desde seus esboços, o respeito por direitos e liberdades fundamentais, além de propor, como princípios, a não discriminação, direitos civis, políticos, sociais e econômicos, tendo, como especial, um caráter universal. 105 Assim sendo, em 10 de dezembro de 1948, no Palácio de Chaillot, em Paris, 58 Estados-membros da Assembleia Geral da ONU adotaram os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, contando com 48 Estados a favor e oito abstenções (dois Estados não se fizeram representar no momento da votação)202. Apesar da Declaração não ser um documento obrigacional aos Estadosmembros da Organização, ela, sem sombra de dúvidas, funcionou e continua a funcionar como um mecanismo não-convencional de proteção dos direitos humanos, tendo já inspirado mais de 60 instrumentos acerca dos direitos humanos, os quais, conjuntamente, constituem o standard internacional dos direitos humanos. 3.1.3.2 A Comissão de Direitos Humanos Apesar de hoje não mais existir (uma vez que fora substituída pelo Conselho de Direitos Humanos), a Comissão de Direitos Humanos (CDH) desempenhou um papel primordial, tanto dentro, como fora da Organização das Nações Unidas no papel da proteção dos direitos humanos. Desde sua criação, em 1946, no interior do Conselho Econômico e Social, a Comissão foi, então, o principal órgão da ONU com objetivos específicos de promoção e proteção dos direitos humanos, contando com a elaboração de um programa mínimo que os Estados, então membros da organização, deveriam obedecer.203 A CDH tem, nos artigos 55, alínea c, e 56 da Carta das Nações Unidas, sua base jurídica, comprometendo seus Estados-membros à cooperação internacional para a implementação da promoção dos direitos humanos mundo afora.204 Composta, inicialmente, por 53 Estados, fora auxiliada pela Subcomissão de Promoção e Proteção aos Direitos Humanos, por experts na área, representantes e relatores especiais. Reunia-se uma vez por ano, por seis semanas, em Genebra, podendo contar, ainda, com "Sessões Especiais", mediante solicitação. 202 203 204 THE UNIVERSAL DECLARATION OF HUMAN RIGHTS. Disponível em: <http://www.un.org/ rights/50/carta.htm>. Acesso em: 10 jan. 2011. Este seria, de fato, o mecanismo não-convencional de proteção dos direitos humanos da Comissão de Direitos Humanos. ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.74. 106 Seus objetivos eram, essencialmente, em número de três, quais sejam: elaborar e redigir ao Conselho Econômico e Social proposições, recomendações e relatórios sobre a proteção dos direitos humanos, por intermédio da composição de grupos de trabalho; prestar assistência ao ECOSOC na coordenação das atividades de proteção dos direitos humanos, criando o serviço de consultas por especialistas; exercer, diretamente, a proteção dos direitos do homem, recebendo declarações de vítimas ou de seus familiares.205 Deve sempre ser observado o fato da CDH não ter tido competência judicial e, muito menos, capacidade de ação compensatória quando do recebimento das declarações individuais. De tal maneira, para o desenvolvimento de seus trabalhos e o alcance de seus objetivos, a Comissão contava com três métodos: o sistema de petições, de relatórios e o de investigações. O sistema de petições206, como anteriormente citado, era o recurso de que se valiam as vítimas – ou seus familiares – para comunicar as violações de um Estado à Comissão. Ainda, o sistema de petições poderia valer, além de um sistema individual, aos próprios Estados denunciarem violações de terceiros, mas, infelizmente, por questões políticas e diplomáticas, tal recurso não era recorrentemente utilizado. No que tange ao sistema de relatórios, a Comissão viera a determinar, em 1956, a periodicidade de tais, quando então os Estados-membros da ONU deveriam informar os progressos implementados em relação aos direitos humanos em seu próprio território. Com sua sistemática reformulada já no ano de 1965207, os relatórios deveriam se valer de três fases: primeiro ano, deveriam versar sobre direitos civis e políticos; no segundo, sobre os direitos econômicos, sociais e culturais; no terceiro, sobre as liberdades fundamentais. O sistema de investigações poderia decorrer por intermédio de irregularidades apontadas pelo sistema de petições ou pela verificação dos relatórios apresentados 205 206 207 GODINHO, Fabiana de Oliveira. A proteção internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p.25. O sistema de petições deveria obedecer ao previsto na Resolução n.o 728F, de 1959 (ONU). O exame direto de violações de direitos humanos pelas Nações Unidas inicia-se em 1965 e é produto da atuação do Terceiro Mundo diante do apartheid da África do Sul, uma vez que, ao ser advertido pelo Comitê de Descolonização sobre comunicações de torturas e maus tratos aos prisioneiros sul-africanos, o ECOSOC decidiu, na data, recomendar à CDH a consideração urgente sobre o assunto. 107 pelos Estados. Nesses casos, poder-se-ia formar-se comissões ad hoc para verificarem as situações in loco. Além de tais objetivos, a Comissão monitorava a implementação de seus parâmetros estabelecidos, tendo tido, como instrumentos, uma série de procedimentos especiais e permanentes. Os procedimentos especiais foram missões de investigações, mecanismos temáticos e serviços consultivos, enquanto que seus procedimentos permanentes repousavam em dois: Procedimento 1503 e Procedimento 1235. O Procedimento 1503 fora aprovado em 27 de maio de 1970, pelo ECOSOC, intitulado como Procedimento para lidar com comunicações relativas a violações de direitos humanos e liberdades fundamentais, ficando conhecido como "procedimento confidencial". Como bem dito, é um procedimento confidencial, contando com todo cuidado para não infringir a soberania dos Estados, uma vez que não requer a anuência do Estado onde irá atuar. É utilizado quando a Comissão recebe comunicação sobre violações sistemáticas e graves dos direitos humanos208 e tem, por excelência, tal funcionamento: Aplicado pela primeira vez em 1972, o procedimento estabelecido pela Resolução 1503 é extremamente cauteloso com as soberanias nacionais. Funciona através de diversos estágios de filtragem das comunicações recebidas na ONU e de consultas aos Estados envolvidos, executados por grupos de trabalho, que devem decidir se as alegações tendem a revelar um padrão sistemático de violações. Uma vez que se identifique tal tendência, a situação é examinada primeiro pela Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias e, se nesta confirmado o entendimento sobre a gravidade do caso, pela própria Comissão. As deliberações são mantidas em sessões fechadas, sem acesso ao público ou a observadores de qualquer espécie, limitando-se o Presidente da Comissão a anunciar em sessão aberta os países objeto de consideração. A não ser, naturalmente, que se tenha decidido, nas sessões fechadas, "punir" o governo recalcitrante, passando o caso à consideração em sessão ostensiva.209 Acontece que, a partir do momento que o Procedimento 1503 não consegue, de fato, colocar fim à violação de direitos humanos investigada, a Comissão poderia invocar a aplicação do Procedimento 1235. 208 209 Como exemplo, pode citar-se o genocídio, o apartheid, a discriminação étnica e racial, a tortura, a migração em massa forçada, a prisão em massa sem julgamento, entre outras. ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.63. 108 O Procedimento 1235, adotada em 1967, flexibilizou os requerimentos de confidencialidade, tornando possível a realização de um debate público anual sobre as graves violações de direitos humanos. O referido Procedimento trouxe muitos avanços no embate ao fim das violações de direitos humanos, mas, ainda, guarda muitos problemas, especialmente quando "permite aos diplomatas jogar com as palavras com o que podem ser violações maciças dos direitos humanos, mas não 'um padrão', ou um padrão de violações maciças, mas não realmente 'constantes'".210 Mesmo assim, caso ambos os Procedimentos não tragam efeitos à finalização das violações, seria cabível, ainda, a solicitação da Comissão ao ECOSOC para aprovar alguma resolução que condene os infratores, sendo uma condenação pública que poderia por em risco a reputação, tanto nacional, quanto internacional, dos líderes do Estado condenado. Esquematizando os procedimentos especiais211, as missões de investigação, que só poderiam ocorrer com o devido consentimento do Estado a ser analisado, contam com um expert ou grupo de experts para a análise dos direitos humanos, procurando as violações e reunindo informações para os Procedimentos supracitados. Um segundo procedimento especial é o mecanismo temático, composto por relatores e/ou grupos de trabalhos, os quais investigam como violações de direitos humanos podem vir a produzir problemas globais. Igualmente importante era o serviço de consultoria prestado pela Comissão aos Estados-membros que o solicitava. Ainda que com diversos problemas e pontos, especialmente no que condiz à excessiva politização e influências diplomáticas, indubitável foi a relevância da Comissão de Direitos Humanos no desenrolar da proteção dos direitos humanos. 210 211 MENDEZ, Juan E. Proteção internacional dos direitos humanos, p.233. HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index. php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011. 109 3.1.3.3 O Conselho de Direitos Humanos O Conselho de Direitos Humanos é um órgão intergovernamental das Nações Unidas, contando com a contribuição e o empenho de 47 Estados para a promoção e a proteção dos direitos humanos no mundo. O Conselho fora criado pela Assembleia Geral da ONU, em 15 de maio de 2006, no intuito de substituir a Comissão de Direitos Humanos212, tendo entrado em vigor, efetivamente, em 16 de junho de 2006.213 A resolução do Conselho de Direitos Humanos fora aprovada por 170 votos a favor e, apenas, 4 contras (Estados Unidos, Israel, Ilhas Marshall e Palau). Indiscutivelmente, o Conselho trouxe grandes avanços já impossíveis de serem vislumbrados pela antiga Comissão de Direitos Humanos, tais como: status mais importante que o da Comissão na proteção dos direitos humanos (uma vez que será subordinado diretamente à Assembleia Geral); maior número de reuniões para discussão de seus temas214; constituição por representação geográfica. O Conselho será composto por 47 membros, a serem escolhidos pela Assembleia Geral da ONU, e tem, como objetivos primordiais, a localização das principais situações de violações de direitos humanos e fazer recomendações para tais. Um ano após o início de seus trabalhos, em 2007, o Conselho veio a adotar o Institution – building package, cujo qual proveu elementos para guiar os seus futuros trabalhos. Entre os elementos, está o Universal Periodic Review215, mecanismo cujo qual irá proporcionar o acesso à situação dos direitos humanos em todos os 192 Estados-membros da ONU. Outra ferramenta é o novo Advisory Committee, servindo o Conselho de excelência, por intermédio de conhecimentos especializados, na temática acerca dos direitos humanos. Por fim, ainda, prevê o Complaints Procedure, 212 213 214 215 THE HUMAN RIGHTS COUNCIL. Disponível em: <http://www2.ohchr.org/english/bodies/ hrcouncil/index.htm>. Acesso em: 23 fev. 2011. Já em 2005, o então Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Anan, propôs a criação de um novo órgão, visando um mandato mais forte e eficaz que o da então Comissão de Direitos Humanos. O Conselho deverá se reunir não menos que três vezes por ano, por um período total de pelo menos dez semanas, em sua sede em Genebra, Suíça. Com esse mecanismo, o Conselho tentava acabar com a prática de "um peso, duas medidas" no que tange às violações de direitos humanos, fato que tanto viera a prejudicar a Comissão de Direitos Humanos. 110 um mecanismo que permite a submissão de reclamações individuais ou organizacionais sobre violações de direitos humanos ao Conselho.216 Imprescindível é ser descrito o fato do Conselho continuar a empregar, em seus trabalhos, os procedimentos especiais, estabelecidos pela já extinta Comissão de Direitos Humanos. Aqui, os procedimentos especiais poderão ser realizados por intermédio de especialistas (special rapporteur ou independent expert) ou grupos de trabalho, compostos, cada um, por cinco membros. O Conselho ainda pode contar no desenvolvimento de seus trabalhos, tal como existia na Comissão de Direitos Humanos, com os Procedimentos 1503 e 1235. Até o final de 2011, são os seguintes Estados, de acordo com seus grupos regionais, que se encontram formando o Conselho: (I) ESTADOS AFRICANOS: Angola, Burkina Faso, Camarões, Gabão, Gana, Djibouti, Líbia217, Mauritânia, Ilhas Maurícius, Nigéria, Senegal, Uganda e Zâmbia. (II) ESTADOS AMERICANOS: Argentina, Brasil, Chile, Cuba, Equador, Estados Unidos, Guatemala, México e Uruguai. (III) ESTADOS ASIÁTICOS: Bahrem, Bangladesh, China, Japão, Jordânia, Quirguistão, Malásia, Maldivas, Paquistão, Qatar, Coreia do Sul, Arábia Saudita e Tailândia. (IV) ESTADOS EUROPEUS: Bélgica, Eslováquia, Espanha, França, Hungria, Moldova, Noruega, Polônia, Suíça, Reino Unido, Rússia e Ucrânia. Mesmo que conte, ainda, com diversas imperfeições, o Conselho tem se mostrado um ótimo instrumento na promoção e na proteção dos direitos humanos, contando, ainda, com reconhecimento internacional. A suspensão ou expulsão de um Estado do Conselho de Direitos Humanos pode trazer inúmeras consequências negativas, tendo em vista o amplo poder e reconhecimento de tal instituição. 216 217 THE HUMAN RIGHTS COUNCIL. Disponível em: <http://www2.ohchr.org/english/bodies/ hrcouncil/index.htm>. Acesso em: 23 fev. 2011. Em decorrência dos conflitos civis no interior do país, a ONU suspendeu, em 01 de março de 2011, a participação da Líbia no Conselho de Direitos Humanos. 111 3.1.3.4 A Subcomissão para a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos A Subcomissão desenvolveu-se em 1947, como principal órgão subsidiário da então extinta Comissão de Direitos Humanos. Já em sua primeira reunião, nomeou-a como Subcomissão Para a Prevenção da Discriminação e Proteção às Minorias quando então em 1999, por votação, alterou-se para o nome atual.218 Inicialmente, fora composta por 26 membros especialistas, eleitos pela Comissão, respeitando, em sua proporção, a distribuição geográfica. Cada membro possui um suplente e todos eles atuam de maneira independente aos ideais de seus Estados de origem. Reúne-se a cada ano, durante três semanas, em Genebra, contando com a participação, além dos membros especialistas, com representantes de governos, funcionários das agências especializadas da ONU e observadores de ONGs. A tarefa basilar da Subcomissão seria dar assistência à Comissão de Direitos Humanos – hoje, substituída pelo Conselho de Direitos Humanos –, desenvolvendo estudos, com base nos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e fazendo recomendações a tal órgão no que concerne à prevenção de qualquer discriminação relativa aos direitos humanos e às liberdades. Também realiza trabalhos solicitados por outros organismos da ONU, possuindo, para tais, seis grupos de trabalho: Grupo de Trabalho sobre Comunicações (responsável pelo exame de denúncias de violações de direitos humanos), Grupo de Trabalho sobre formas Contemporâneas de Escravidão, Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas, Grupo de Trabalho sobre Minorias, Grupo de Trabalho sobre Administração da Justiça e Grupo de Trabalho sobre Corporações Transnacionais. Com a decorrente substituição da Comissão pelo Conselho de Direitos Humanos ocorrera, também, a substituição da Subcomissão para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos pelo Comitê Consultivo de Direitos Humanos, a ser estudado no ponto a seguir. 218 HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index. php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011. 112 3.1.3.5 O Comitê Consultivo de Direitos Humanos Conjugada à extinção da Comissão dos Direitos Humanos, julgou-se necessária a extinção de seu maior órgão subsidiário, qual seja, a Subcomissão para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos. Acontece que o órgão que viera a substituir à Comissão, o Conselho, necessitava, igualmente, de um instrumento, tal como a extinta Comissão, para o desempenho de suas atividades e funções. Assim sendo, logo que ocorrera a substituição da Comissão pelo Conselho, recomendou-se a criação de um Comitê Consultivo de Direitos Humanos. Logo, em 2007, deu-se a criação, pelo Conselho, do referido Comitê, visando à prestação de aconselhamento especializado. O Comitê conta, hoje, com 18 membros, geograficamente localizados: cinco da África, três da América Latina e Caribe, cinco da Ásia, dois do Leste Europeu e três da Europa Ocidental e outros Estados. 3.1.4 Outros institutos da Organização das Nações Unidas envolvidos na proteção dos direitos humanos Além dos mecanismos não-convencionais mencionados, existem alguns órgãos na estrutura da ONU que, apesar de não terem sido criados especificamente para a proteção dos direitos humanos, desenvolvem trabalhos relevantes nesse ramo. De tal forma, podem ser citados: Assembleia Geral, o Conselho Econômico e Social, a Corte Internacional de Justiça e determinadas Agências/Parceiros. 113 3.1.4.1 A Assembleia Geral A Assembleia Geral219, um dos principais órgãos do sistema das Nações Unidas, guarda variadas funções. Para justificar sua participação na promoção e proteção dos direitos humanos, recorre-se aos termos do parágrafo 3.o, do artigo 1.o da Carta das Nações Unidas, o qual diz ser um dos propósitos da Organização conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. Além desse dispositivo, a Carta, em seu artigo 62, refere-se expressamente à atuação da Assembleia Geral no condizente à proteção dos direitos humanos, quando diz que o Conselho Econômico e Social fará ou iniciará estudos e relatórios a respeito de assuntos internacionais de caráter econômico, social, cultural, educacional, sanitário e conexos e poderá fazer recomendações a respeito de tais assuntos à Assembleia Geral, aos Membros das Nações Unidas e às entidades especializadas interessadas. Para que fosse possível o alcance de tais proposições, especialmente no que diz respeito à promoção e proteção dos direitos humanos, a Assembleia Geral, em 1993, por intermédio da Resolução 48/141, criou o Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, sediado em Genebra, Suíça. 219 Estima-se, segundo Husek, que "a Assembleia é constituída por todos os membros das Nações Unidas (art. 9.o), podendo discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das finalidades da Carta, e fazer recomendações aos membros do Conselho de Segurança (art. 10), bem como solicitar a atenção do Conselho para situações que ameacem a paz e a segurança internacionais (art. 11), tendo o dever de fazer estudos e recomendações para promover os objetivos da ONU (art. 13), decidindo, em questões importantes, por maioria de 2/3 dos membros presentes e votantes e outras questões por maioria dos membros presentes (art. 18)". (HUSEK, Carlos Roberto. A nova (des)ordem Internacional ONU..., p.353). 114 Tal organismo tem a função primordial de promover a proteção dos direitos humanos, além de prevenir suas violações, garantindo o respeito a tais direitos. Ainda, opera no condão da cooperação internacional, mantendo o diálogo entre todos os Estados-membros da ONU. Suas principais funções podem assim ser descritas220: prevenção e alerta de abusos; assistência aos Estados quando ocorrer transições políticas; resolução de conflitos; promoção de direitos substantivos aos Estados; cooperação, coordenação e racionalizada de programas voltados aos direitos humanos; oferecer suporte aos órgãos convencionais e não convencionais da ONU; e buscar a ampla efetivação das normas internacionais. Com a criação de tal órgão, também fora desenvolvido o posto do Alto Comissário para os Direitos Humanos221, cujo qual vem a ocupar a posição de SubSecretário Geral das Nações Unidas, sendo a principal autoridade da ONU nas atividades relativas aos direitos humanos. Além do desenvolvimento de tal Escritório, no exercício de suas funções, a Assembleia Geral conta com o poder para criar missões de observações para a promoção e garantia dos direitos humanos. 3.1.4.2 O Conselho Econômico e Social (ECOSOC) O Conselho Econômico e Social, apesar de ter suas atividades voltadas ao âmbito econômico e social, como o seu próprio nome já revela, pode, em relação aos direitos humanos, fazer recomendações à Assembleia Geral. No âmbito dos direitos humanos, sua maior contribuição foi o desenvolvimento da já extinta Comissão de Direitos Humanos, quando então atribuiu ao ECOSOC a tarefa de revisão de seus relatórios e sua decorrente submissão à Assembleia Geral. 220 221 HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index. php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011. Hoje, o posto em questão é ocupado por Navanethem Pillay, da África do Sul. 115 Com e extinção de tal Comissão, hoje a principal tarefa do ECOSOC, no campo dos direitos humanos, é a supervisão de comitês, comissões e agências que lidam e trabalham com o tema. 3.1.4.3 A Corte Internacional de Justiça A Corte Internacional de Justiça (CIJ), instituída já em 1945 pela Carta das Nações Unidas222, representa o judiciário da ONU. Tem sua sede em Haia, na Holanda e é formada por quinze magistrados independentes, eleitos pela Assembleia Geral e pelo Conselho e Segurança, por um período de nove anos (com possível reeleição). Segundo o artigo 38 do Estatuto constitutivo da Corte, existe a possibilidade jurisdicional de solução de controvérsias internacionais, sendo ela a mais alta da escala evolutiva das cortes internacionais. Por conta de tal questão, muitos tratados acerca dos direitos humanos outorgam competência à Corte para que seja esta a responsável pela emissão de pareceres quando então da controvérsia entre dois ou mais Estados223 sobre a interpretação ou aplicação de disposições dos referidos tratados.224 Conjugada a esta função, a Corte também pode emitir pareceres consultivos sobre qualquer questão jurídica – inclusive sobre direitos humanos – por solicitação da Assembleia Geral, do Conselho de Segurança ou de qualquer outro órgão do sistema ONU. 222 223 224 Deve ser pontuado que todos os Estados signatários da Carta das Nações Unidas são, sem exceção, membros da Corte Internacional de Justiça. Não se pode perder de vista que apenas os Estados podem ser partes, segundo a jurisdição da Corte. GODINHO, Fabiana de Oliveira. A proteção internacional dos direitos humanos, p.41. 116 3.1.4.4 Agências e parceiros Algumas agências e parceiros, criados no interior das Nações Unidas, podem ter, por algumas de suas finalidades, o objetivo de concretizar a promoção e a proteção dos direitos humanos. Sendo assim, destacam-se225: - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR); - Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA); - Organização Internacional do Trabalho (OIT); - Organização Mundial da Saúde (OMS); - Organização para a Educação, Ciência e Cultura das Nações Unidas (UNESCO); - Programa conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids (UNAIDS); - Comitê Permanente entre Organismos (IASC); - Comissão sobre a Condição da Mulher (CSW); - Escritório da Assessoria Especial em Questões de Gênero e Melhoria da Mulher (OSAGI); 3.2 - Divisão para a Melhoria da Mulher (DAW); - Fundo da População das Nações Unidas (UNFPA); - Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF); - Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para as Mulheres (UNIFEM); - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP); - Organização de Alimento e da Agricultura das Nações Unidas (FAO); - Ação das Nações Unidas Contra as Minas. A PROTEÇÃO REGIONAL DOS DIREITOS HUMANOS A proteção regional dos direitos humanos, como outrora já discorrido, opera-se em quatro sistemas: o sistema europeu, o sistema interamericano, o africano e o árabe. 225 GODINHO, Fabiana de Oliveira. A proteção internacional dos direitos humanos, p.43-44. 117 Embora, inicialmente, tenha havido incerteza, especialmente por parte das Nações Unidas, na instauração de sistemas regionais, é indiscutível o seu valor na proteção dos direitos humanos, especialmente quando abre a possibilidade para a atenção a certas particularidades culturais da região.226 Sem qualquer possibilidade de contestação, o sistema europeu227 é o que se encontra com um maior grau de desenvolvimento, sendo que, nesse sistema, o indivíduo é sujeito de Direito Internacional, tendo capacidade postulatória individual para requerer seus direitos nos instrumentos adequados de tal sistema. Já no que tange ao sistema interamericano – com especial enfoque nesse trabalho –, precisa-se que, apesar de não possuir todo o amadurecimento do sistema europeu, conta com uma Corte de Direitos Humanos que possibilita ao cidadão, mesmo que não diretamente228, que reivindique seu direito humano violado, desde que atendidos os requisitos. O sistema africano, por sua vez, foi o terceiro a ser desenvolvido, em termos cronológicos. Encontra-se, ainda, muito prematuro na proteção dos direitos humanos naquele continente, mas já conta com a Comissão Africana de Direitos Humanos e Direitos dos Povos. Por fim, há o sistema árabe, cujo qual vem a ser o mais recente desses sistemas, possuindo um valor muito restrito na proteção dos direitos humanos e uma influência enorme da religião. Descritos tais aspectos, especifica-se, nesse momento, as características primordiais de cada um desses sistemas.229 226 227 228 229 HEYNS, Christof; PADILLA, David; PADILLA, Leo. Comparação esquemática dos sistemas regionais de direitos humanos: uma atualização. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v.3, n.4, p.162, 1.o sem. 2006. O sistema europeu de proteção de direitos humanos é o mais antigo de todos os sistemas. Para que seja possível a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é imprescindível uma prévia análise da Comissão Interamericana de Direitos Humanos do caso. Deixar-se-á a análise do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos para o final, uma vez que facilitará a compreensão do próximo estudo e ajudará no desenrolar lógico desse trabalho. 118 3.2.1 O Sistema Regional Europeu O sistema regional europeu é, sem dúvidas, o sistema que alcançou o maior desenvolvimento e efetividade na promoção e proteção dos direitos humanos. É, igualmente, o mais antigo e mais consolidado dentre todos eles, tendo, por base, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, assinada em 1950 e vigente a partir do ano de 1953. Fruto desse desenvolvimento é o grau de integração regional em que a Europa se encontra, outrora jamais vista, materializada na União Europeia, a qual, como um de seus preceitos, visa a promoção e a proteção dos direitos humanos. Pontua-se que a referida promoção e proteção são, de fato, ocorridas no âmbito do Conselho Europeu – a mais antiga organização internacional do continente. Diferentemente do sistema das Nações Unidas, o sistema europeu é de natureza jurídica, convencional, estabelecendo o vínculo direto entre a proteção internacional e os indivíduos. Sua importância reside, essencialmente, no fato de contar com o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, sendo esse o órgão jurisdicional do sistema europeu de direitos humanos. O sistema europeu atingiu, indiscutivelmente, patamares jamais realizados anteriormente na proteção dos direitos humanos, uma vez que os indivíduos podem, diretamente, demandarem suas questões, contra os Estados-membros, não necessitando do prévio crivo de um órgão que compõe o sistema – tal como ocorre no sistema interamericano. Assim dito, passa-se ao estudo dos mais relevantes institutos que o sistema europeu de direitos humanos abriga. 3.2.1.1 O Conselho da Europa Contextualmente, quando do surgimento de um sistema de proteção no continente, a Europa encontrava-se às margens das devastações advindas da Segunda 119 Guerra Mundial. Assim, para renovar esforços de manutenção da paz e, especialmente, de cooperação entre os Estados, os líderes de todos os cantos do continente fundaram três organizações: o Conselho da Europa (responsável pela proteção e promoção dos direitos humanos e da democracia), a União Europeia (promoção do comércio e da estabilidade econômica entre seus membros) e, posteriormente, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (manutenção da paz e da segurança no continente europeu).230 Avalia-se que, nesse trabalho, o interesse repousa no estudo do Conselho da Europa (COE), uma vez que ali encontra-se, de fato, o sistema de proteção de direitos humanos europeu. Assim, adentrando ao Conselho da Europa, pode-se dizer que este surgiu a partir do que viera a ser acordado no seio do Congresso Europeu, em 5 de maio de 1949, por intermédio do Tratado de Londres, tendo como marco inicial a aprovação de seu estatuto231. No preâmbulo do referido documento, afirma-se que "a devoção a valores espirituais e morais que constituem o patrimônio comum dos seus povos e a verdadeira fonte da liberdade individual, da liberdade política e do Estado de direito são os princípios que baseiam a democracia"232. Para um Estado participar do COE, deverá demonstrar que configura um Estado de Direito e desenvolve ações para a proteção dos direitos humanos, em conformidade com as preocupações do referido organismo, quais sejam: promoção da cultura e da diversidade, consolidação e manutenção da estabilidade democrática, promoção da força econômica do continente europeu, entre outras. 230 231 232 HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index. php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011. No momento inicial, dez países aprovaram o estatuto do Conselho da Europa, sendo eles: Bélgica, Dinamarca, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Noruega, Suécia e Reino Unido. Grécia e Turquia adentraram em 1949, Islândia e Alemanha no ano seguinte. A Áustria tornou-se membro em 1956, Chipre em 1961, Suíça em 1963, Malta em 1965, Portugal em 1976, Espanha em 1977, Liechtenstein em 1978, San Marino, dez anos depois, em 1988, Finlândia em 1989, e, finalmente, Andorra em 1994. Após a queda dos regimes comunistas, em 1989, vários Estados da Europa Central e Oriental tornaram-se membros do Conselho da Europa HART, James W. The European Human Rights System. Law Library Journal, Ohio, v.102, p.537, 2010. 120 O Conselho é regulado pelo Comitê de Ministros (ministros das Relações Exteriores de seus Estados contratantes), o qual possui autoridade para desenvolver acordos e fazer recomendações aos governos, podendo, ainda, tomar decisões relativas à organização interna do próprio Conselho. De acordo com o previsto em seu art. 14, cada um dos Estados tem direito a um voto e é o próprio órgão executivo do sistema europeu. Outro órgão do organismo é a Assembleia Parlamentar, cuja qual vem a ser um órgão deliberativo, debatendo problemas e fazendo recomendações ao Comitê de Ministros. Pode, ainda, representar a opinião dos cidadãos dos Estados contratantes. É composta por 313 membros e 313 suplentes, indicados entre legisladores nacionais, sendo que o número de representações concedidas aos Estados é determinado por uma fórmula baseada em sua população.233 Há, ainda, outros dois entes: o Congresso dos Poderes Locais e Regionais da Europa (órgão consultivo, com representantes locais e regionais, composto por uma Câmara dos Poderes Locais e uma Câmara das Regiões) e o Secretário-Geral (dirige e coordena as atividades da organização, com um mandato de cinco anos).234 3.2.1.2 A Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950 A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais foi elaborada no âmbito do Conselho da Europa. Aberta a assinaturas em 4 de novembro de 1950, em Roma, veio a entrar em vigor apenas em setembro de 1953. Valoriza-se o fato de que fora essa Convenção o primeiro tratado, propriamente dito, de direitos humanos, uma vez que a Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão, da ONU, de 1948, não contava com a coercitividade e obrigatoriedade próprias de um tratado, sendo ela, apenas, uma declaração sobre os direitos humanos. 233 234 HART, James W. The European Human Rights System, p.538. HUMAN RIGHTS EDUCATION ASSOCIATES. Disponível em: <http://www.hrea.org/index. php?doc_id=439>. Acesso em: 10 mar. 2011. 121 A Convenção veio a consagrar uma série de direitos e liberdades civis e políticas e, também, um sistema que visava garantir o respeito das obrigações assumidas pelos Estados contratantes, por intermédio de três instituições: a Comissão Europeia dos Direitos do Homem (criada em 1954), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (instituído em 1959) e o Comitê de Ministros do Conselho da Europa. Em seu preâmbulo, previa-se, claramente, que seu objetivo na região repousava em dar "os primeiros passos para a garantia coletiva de certo número de direitos enunciados na Declaração Universal". Esquematicamente, a primeira seção da Convenção versa sobre os direitos humanos individuais e sobre as liberdades fundamentais que devem ser protegidas, impedindo que os governos oprimam seus povos235. Na sequência, previu-se a possibilidade de recurso individual de queixas contra os Estados, por violação dos direitos garantidos pela Convenção, à Comissão. Nesse sentido, a estrutura jurisdicional prevista na Convenção, ao longo dos tempos, teve duas significativas mudanças desde sua criação.236 Em um primeiro momento, entres os anos de 1953 a 1998, a Comissão, prevista pela Convenção como obrigatória a todos os seus Estados contratantes, poderia receber queixas de quaisquer pessoas, organizações não-governamentais ou grupos de indivíduos, de acordo com o art. 25 da Convenção. Este contexto trouxe uma grande inovação ao sistema internacional, uma vez que, até o final da Segunda Guerra Mundial, o direito internacional não restringia o modo que um Estado soberano poderia tratar seus cidadãos.237 Ainda de acordo com o art. 25 da Convenção, cada um de seus Estados membros teria que redigir uma declaração de concordância com o sistema previsto no referido diploma legal. 235 236 237 No que tange aos direitos civis e às liberdades fundamentais, a Convenção Europeia prevê: direito à vida; proibição da tortura e tratamento desumano ou degradante; liberdade da escravidão ou servidão; direito à liberdade e à segurança; direito ao respeito à vida familiar e privada; liberdade de pensamento, consciência e religião; liberdade de expressão; direito à educação; liberdade da prisão por dívida; abolição da pena capital em tempos de paz; direito ao devido processo legal quando da expulsão do estrangeiro; igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. HART, James W. The European Human Rights System, p.539. Id. 122 Segundo o referido sistema de queixas à Comissão, determinados requisitos, previstos no art. 27 da Convenção, deveriam ser preenchidos e, em concordância com o art. 35, as queixas seriam inadmissíveis quando: fossem anônimas; os assuntos já tivessem sido examinados pela Comissão ou por outra corte ou, ainda, por outra organização internacional; temas que não tivessem esgotados todos os recursos internos e que teriam sido arquivados por seis meses após a última decisão em instituições nacionais; fossem incompatíveis com a extensão da Convenção. Caso a queixa fosse admitida pela Comissão, ocorreria tentativas de conciliação e, restando infrutíferas, o referido órgão redigiria um relatório que seria encaminhado ao Conselho de Ministros. Se o Estado aceitasse a jurisdição obrigatória do Tribunal Europeu, a Comissão e/ou qualquer outro Estado contratante, dispunha de três meses, a contar da transmissão do relatório ao Comitê de Ministros, para o envio do caso ao Tribunal. Cabe ressaltar que, nesse momento, os particulares não poderiam solicitar, diretamente, a intervenção do Tribunal na questão. Se a situação não fosse levada ao conhecimento do Tribunal, a incumbência de decidir se existia ou não uma violação da Convenção era do próprio Comitê de Ministros, cujo qual era igualmente responsável pela vigilância da execução dos acórdãos do Tribunal. Com o passar dos tempos, a Convenção viu-se na necessidade de mudar, especialmente por conta do aumento imenso do número de queixas individuais e pela demora na sua solução. A referida situação foi resultado da mudança cultural da Comissão e da dissolução da União Soviética Nesse cenário, vários Protocolos vieram entrar em vigor, sendo necessária uma atenção especial do Protocolo n.o 11, de primeiro de novembro de 1998. Permanecendo em vigor até primeiro de julho de 2010 (data em que o Protocolo n.o 14 entrou em vigor), o referido documento previu algumas mudanças: o fim da Comissão; transformou o Tribunal Europeu de Direitos Humanos permanente; proporcionou ao Tribunal a responsabilidade de propor conciliações; aboliu a possibilidade do Comitê de Ministros julgar casos individuais; tornou a decisão da Corte como decisão final nos casos à ela apresentados; reestruturou a Corte entre comitês e câmaras, incluindo uma câmara superior; e estabeleceu um sistema de registros para a Corte.238 238 HART, James W. The European Human Rights System, p.545-546. 123 Valoriza-se que, nesse momento, ocorrera, no sistema europeu, uma alteração jamais vista nos sistemas de proteção dos direitos humanos: a possibilidade do próprio indivíduo reclamar, em uma corte internacional de direitos humanos, seus direitos violados pelo Estado. Após, no ano de 2010, a entrada em vigor do Protocolo n.o 14 objetivou trazer soluções ao fato da apresentação de um número estrondoso de casos à Corte. Em números, o seu relatório anual de 2003 estimou que 27.281 casos foram admitidos, 16.724 inadmitidos e 548 casos foram levados ao julgamento de mérito naquele ano. Por conta dessa situação caótica, o Protocolo n.o 14 previu algumas situações para que se realizasse um crivo ao caso, anteriormente à demanda na Corte. Ocorre que, até hoje, o Protocolo não fora satisfatoriamente implementado e, por conta de tal situação, um dos principais desafios do sistema de proteção dos direitos humanos europeu é lidar com o irrestrito acesso e o consequente elevado número de petições em seu sistema que faz com que, muitas vezes, direitos humanos realmente violados não sejam reparados em tempo hábil. De tal forma, nesse ponto, tendo em vista toda a evolução do poder jurisdicional referente aos direitos humanos na Europa, valem ser feitas algumas considerações acerca do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. 3.2.1.3 O Tribunal Europeu de Direitos Humanos Especialmente para garantir a eficácia da proteção dos diretos humanos reconhecidos pela Convenção, criou-se o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Previsto no título II da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o Tribunal iniciou seus trabalhos no ano de 1991, atuando de forma permanente, na cidade de Estrasburgo, na França, compondo-se de juízes dos Estados partes. Frisa-se que, diferentemente do que ocorre no sistema interamericano – onde a assinatura da Convenção não necessariamente reflete na aceitação da jurisdição de sua Corte –, quando o Estado ratifica a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, necessariamente está, também, reconhecendo a jurisdição do referido Tribunal. 124 Adentrando à história, antes do ano de 1998, existia uma Comissão no âmbito europeu, que analisava previamente as demandas, dependendo de seu crivo a atuação da Corte. Após, com a implementação do Protocolo n.o 11, o Tribunal começou a receber demandas de violações dos direitos humanos diretamente dos cidadãos dos Estados partes. Assim, avalia-se que a nova estrutura do Tribunal Europeu de Direitos Humanos iniciou seus trabalhos em primeiro de novembro de 1998 e, de acordo com a sua organização, é composto por um número de juízes igual ao dos Estados contratantes, sendo eleitos por um período de nove anos, renováveis por mais nove.239 Documenta-se que os referidos juízes são eleitos pela Assembleia Parlamentar de cada Estado, por maioria dos votos expressos, recaindo numa lista de três candidatos por Estado. Tais juízes têm o dever de exercerem suas funções a título individual e não podem realizar qualquer atividade incompatível com o dever de independência e imparcialidade exigida para desempenho da função. Entre esses juízes, o Tribunal, em assembleia plenária, elege seu presidente, dois vice-presidentes e dois presidentes da câmara, todos por um período de três anos. As formações do Tribunal podem ser: juízes singulares; comitês de três juízes, seções de sete juízes; e grande câmara de dezessete juízes. Adentrando à possibilidade de apresentação de petições, traça-se que qualquer Estado contratante ou qualquer particular (pessoa singular, organização não governamental ou grupo de particulares) que se considere vítima de violação de um dos direitos previstos na Convenção, poderá dirigir, diretamente ao Tribunal, uma queixa, alegando que a violação se deu por intermédio de um ato ou inação de um outro Estado igualmente contratante.240 Sublinha-se que o Tribunal é competente para conhecer de todas as questões relativas à interpretação e à aplicação da Convenção Europeia e dos seus respectivos protocolos. Ademais, o órgão só poderá conhecer uma causa caso ocorra o esgotamento dos recursos internos. Pode, igualmente, emitir pareceres sobre questões jurídicas, 239 240 DIRECÇÃO-GERAL DA POLÍTICA DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA DE PORTUGAL. Disponível em: <http://www.dgpj.mj.pt/sections/relacoes-internacionais/copy_of_anexos/tribunaleuropeu-dos_1/>. Acesso em: 30 maio 2011. GABINETE DE DOCUMENTAÇÃO E DIREITO COMPARADO DE PORTUGAL. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/cons-europa-tedh.html>. Acesso em: 30 maio 2011. 125 levantadas pelo Comitê de Ministros, relativamente à interpretação da Convenção e seus protocolos. O processamento no Tribunal é público, exceto se a seção ou o tribunal pleno decidir de maneira diferente, levando em consideração excepcionalidades. Também, os requerentes individuais, após terem sua queixa admitida, devem ser representados por advogados. Quanto às queixas, essas podem ser apresentadas não apenas no inglês e no francês – que são as línguas oficiais do Tribunal –, mas também em uma das línguas oficiais dos Estados contratantes. Quanto à admissibilidade, um único juiz do órgão pode declarar a petição inadmissível ou arquivá-la, sendo a decisão definitiva. Caso entenda passível de julgamento, então esta será transmitida a um comitê ou seção para exame complementar que fará, novamente, uma análise e poderá declará-la inadmissível. Se admiti-la – e tratando-se de um caso simples, com jurisprudência anterior –, poderá proferir, de plano, sentença acerca da admissibilidade. Por fim, caso a questão verse sobre delicados pontos de interpretação da Convenção, será remetida à grande câmara.241 No que tange ao mérito, as partes têm a liberalidade de apresentarem provas e observações suplementares, podendo ser autorizada, também, a apresentação de observações por parte de terceiros, inclusive de outros Estados contratantes. Há a possibilidade de serem desenvolvidas negociações confidenciais por intermédio do secretário. Por fim, o acórdão será decidido por maioria, sendo que, até três meses após a data de sua prolação, as partes podem requerer que a questão seja enviada ao tribunal pleno – apenas casos que envolvam graves interpretações ou violações da Convenção. Caso as partes não requeiram o envio da questão ao tribunal pleno, o acórdão torna-se definitivo em três meses após sua prolação, tornando-se vinculante ao Estado demandado.242 Esquematiza-se que caberá ao Comitê de Ministros do Conselho da Europa a verificação da execução dos acórdãos. 241 242 GABINETE DE DOCUMENTAÇÃO E DIREITO COMPARADO DE PORTUGAL. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/cons-europa-tedh.html>. Acesso em: 30 maio 2011. Id. 126 Investiga-se que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos possui uma estrutura muito avançada em comparação aos outros sistemas regionais de proteção dos referidos direitos, uma vez que prevê o sistema de petições diretamente ao indivíduo, não necessitando da passagem por qualquer outro órgão que faça uma análise prévia de sua admissibilidade. Sem questionamentos plausíveis, a Europa desenvolveu sobremaneira o seu sistema de proteção com a referida previsão, mas, infelizmente, todo esse desenvolvimento trouxe prejuízos à eficácia e à celeridade das decisões, uma vez que os cidadãos dos Estados contratantes da Convenção acabam por demandar o Tribunal antes mesmo de refletirem se realmente incorreram em uma violação de seus direitos previstos na Convenção. De tal forma, pode-se dizer que a alta demanda no Tribunal Europeu é um desafio que, hoje, vislumbra o sistema europeu de proteção dos direitos humanos. 3.2.2 O Sistema Regional Africano O sistema regional de proteção dos direitos humanos no continente africano é extremamente recente, desenvolvendo-se a partir de meados dos anos 80. O continente africano apresenta uma história de proteção dos direitos humanos marcada por circunstâncias históricas, influência basilar da tradição local e dos valores da civilização africana, com suas decorrentes diversidades culturais, além de questões ligadas ao sofrido processo de descolonização e da luta pela sua autodeterminação. O principal sistema de proteção dos direitos humanos neste âmbito encontra-se materializado na União Africana (UA), então substituta da Organização da Unidade Africana (OUA), contando com 53 Estados membros.243 A base desse sistema de proteção encontra-se na Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, também conhecida como Carta de Banjul, a qual fora firmada em 1981 e em vigência desde 1986. 243 AFRICAN UNION. Disponível em: <http://www.au.int>. Acesso em: 11 mar. 2011. 127 Mas mesmo antes da adoção dessa Carta, o sistema africano já contava com outro tratado que previa os direitos humanos. Assim sendo, passa-se à análise do desenrolar histórico do sistema regional africano de proteção dos direitos humanos. 3.2.2.1 Formação e evolução Precisa-se que o sistema regional africano já se inicia no ano de 1963, com a criação da Organização da Unidade Africana (OUA). Acontece que, diferentemente daquilo que se imagina, o cerne de tal organização não estava pautado na busca pela consolidação dos direitos humanos no continente, mas sim por sua descolonização e pelo combate do apartheid. Acontece que, por mais que a Carta de criação da OUA previsse o respeito à Declaração Universal, os Estados africanos não aceitavam qualquer interferência externa quanto a um sólido sistema de proteção de direitos humanos, uma vez que, nesta época, muitos deles acabavam de conquistar suas soberanias e não queriam compartilhá-las, nem mesmo em prol dos direitos humanos.244 Nesse quadro, a OUA acreditava que seu desenrolar dependia da não intervenção nos assuntos internos de cada Estado, nem mesmo nas questões atinentes aos direitos humanos245, sendo que o primeiro avanço relatado, no que tange a tais direitos nessa organização, fora a adoção da Convenção da OUA sobre Governança dos Aspectos Específicos dos Refugiados de 1969. Mais tarde, em 26 de junho de 1981, no Quênia, devido ao emprego de maiores esforços por parte da OUA, proclamou-se a Carta de Direitos Humanos no âmbito africano, cuja qual ficara conhecida, também, como Carta de Banjul. 244 245 FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos... Segundo o art. III da Carta da OUA, "Os Estados membros, na persecução dos propósitos dispostos no art. II, afirmam e declaram, solenemente, os seguintes princípios: 2. Não interferência nos assuntos internos de cada Estado". 128 A referida Carta, sem dúvidas, é uma resposta da África aos abusos de direitos humanos durante a década de 1970, afirmando o direito dos povos, tanto interna, como internacionalmente e foi o primeiro documento internacional a afirmar o direito dos povos à preservação do equilíbrio ecológico (art. 24). A referida Carta fora adotada pela XVIII Conferência dos Chefes de Estado e de Governo dos países africanos, no âmbito da OUA. Este documento viera a preencher uma lacuna de proteção dos direitos humanos no âmbito africano, com um especial enfoque relacional entre direitos e deveres ante o Direito Internacional dos Direitos do Homem.246 Ainda, a Carta está dividida em três partes – direitos e deveres, medidas de salvaguarda, disposições diversas – e criou a Comissão Africana de Direitos Humanos e Direitos dos Povos (art. 30), objetivando a promoção e asseguração dos direitos humanos e dos povos do continente. Mais tarde, em 1998, a OUA criou o Protocolo à Carta Africana de Direitos Humanos e Direitos dos Povos, que entrou em vigor em 2004, cujo qual veio a criar o Tribunal Africano de Direitos Humanos e Direitos dos Povos (estabelecido em 2006). Nesse cenário, com condições concretas para a integração africana, a OUA se viu insuficiente para a busca de tais objetivos. Assim sendo, necessário se demonstrou a sua reestruturação, cujo resultado desembocou na criação da União Africana. A União Africana teve seu Ato Constitutivo aprovado em 11 de julho de 2000, pela Assembleia Geral da OUA, tendo entrado em vigor em 26 de maio de 2001. Diz-se, ainda, que os contornos da União Africana não foram apenas delimitados pela OUA, mas também pelo Tratado para o Estabelecimento da Comunidade Econômica Africana, aberto a ratificações em 30 de junho de 1991.247 Hoje, a União Africana conta com 53 Estados membros e representa, sem dúvidas, a principal representação do sistema de proteção dos direitos humanos na África. 246 247 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos... FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos... 129 3.2.2.2 Principais objetivos da União Africana A visão da União Africana repousa em uma "África integrada, próspera e pacífica, dirigida por seus próprios cidadão e representando uma força dinâmica na arena global".248 Além disso, a referida organização determinou alguns objetivos específicos a serem seguidos, cujos quais são assim descritos: - alcançar uma maior unidade e solidariedade entre os Estados africanos e os povos da África; - defender a soberania, a integridade territorial e a independência de seus membros; - acelerar as integrações política e sócio-econômicas no continente; - promover e defender as posições africanas nos casos de interesse do continente e de seus povos; - encorajar a cooperação internacional; - promover a paz, a segurança e a estabilidade do continente; - promover os princípios democráticos e suas instituições, a participação popular e a boa governança; - promover e proteger os direitos humanos e os direitos humanos, de acordo com a Carta Africana dos Direitos Humanos e outros instrumentos relevantes de direitos humanos; - promover condições necessárias para o desenvolvimento e a participação do continente na economia global e nas negociações internacionais; - promover o desenvolvimento sustentável no plano econômico, social e cultural e também a integração das economias africanas; - promover a cooperação em todos os campos da atividade humana para se alcançar melhores condições de vida na África; - coordenar e harmonizar as políticas existentes e as futuras das comunidades econômicas regionais; 248 AFRICAN UNION. Disponível em: <http://www.au.int>. Acesso em: 11 mar. 2011. 130 - avançar no desenvolvimento do continente, promovendo pesquisas em todas as áreas, particularmente em ciência e tecnologia; - trabalhar com relevantes parceiros globais na erradicação e na prevenção de doenças, além de promover bons níveis de saúde no continente.249 3.2.2.3 Principais órgãos do Sistema Africano Os principais órgãos que compõem o sistema africano podem ser descritos como sento a Comissão Africana de Direitos Humanos e Direitos dos Povos, o Tribunal (Corte) Africano de Direitos Humanos e Direitos dos Povos e o Comitê dos Direitos do Bem Estar da Criança. Adentrando à Comissão Africana de Direitos Humanos e Direitos dos Povos250, pode-se dizer que ela vem a ser um órgão convencional e autônomo – apesar de manter um estreito vínculo com a Assembleia da União Africana –, composta por 11 membros (art. 31), de nacionalidades diferentes (art. 32), tendo como função a promoção e efetivação dos direitos humanos e dos direitos dos povos, além de capacitar a interpretação dos dispositivos da Carta Africana. No que concerne à Corte Africana de Direitos Humanos e Direitos dos Povos, é composta por 11 juízes, nomeados pelos Estados partes (art. 11), não podendo ser de mesma nacionalidade e com representação das cinco regiões da África, escolhidos pela Assembleia (art. 14). Obedecendo ao princípio da não influência, os juízes estão impedidos de participarem de casos que envolvam os Estados de que são nacionais. A Corte, ainda, conta com uma competência consultiva sobre quaisquer questões de direto relacionadas à Carta Africana ou outros instrumentos de direitos humanos. A legitimidade para tais consultas se dá aos Estados membros da União Africana, à própria União Africana (quaisquer de seus órgãos) e a qualquer organização internacional, no âmbito da África, que seja reconhecida pela UA. 249 250 AFRICAN UNION. Disponível em: <http://www.au.int>. Acesso em: 11 mar. 2011. A referida Comissão possui sede em Gâmbia. 131 Já no que tange a sua competência contenciosa, a jurisdição da Corte deverá ser expressamente aceita pelos Estados251, sendo que seu acesso, segundo o art. 5.o, 1 da Carta Africana é restrito a determinados institutos, sendo eles: a) a Comissão; b) o Estado-parte que submeteu caso perante à Comissão; c) o Estado-parte contra o qual o caso na Comissão foi submetido; d) o Estadoparte cujo cidadão é vítima de violação de direitos humanos; e) as organizações africanas intergovernamentais. Por fim, atinente ao Comitê dos Direitos e do Bem Estar da Criança, diz-se ser este o único órgão convencional sobre temas específicos no sistema africano. É formado por 11 peritos de diferentes nacionalidades, com mandato de cinco anos, objetivando a promoção e a proteção dos direitos humanos, além do monitoramento e da implementação da Carta sobre o Bem Estar da Criança252. Fora criado pela Carta Africana dos Direitos e do Bem Estar da Criança (adotada em 1991) e fora estabelecido na 37.a Sessão Ordinária, em 10 de julho de 2001. 3.2.2.4 Principais problemas na efetividade dos direitos humanos na África É de conhecimento geral que os direitos humanos na África representam um grave problema, uma vez que nunca foram tratados da maneira que realmente necessitam. Desde a história moderna, a África demonstrou-se um celeiro de violações dos direitos humanos, das mais variadas formas, sendo que, com a sua divisão política, advinda de sua decorrente descolonização, o problema tomou contornos inimagináveis. Assim sendo, os principais pontos que merecem destaque, para que os africanos possam desfrutar, de fato, dos direitos humanos e desenvolver de maneira concreta um sistema de proteção em seu continente são: a superação dos entraves da divisão imposta pela descolonização; a superação da barreira política à efetividade dos direitos humanos, decorrentes do princípio da não interferência nos assuntos internos dos 251 252 Até o ano de 2009, dos 53 Estados membros da União Africana, 24 haviam aceitado a jurisdição da Corte. FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos... 132 Estados; e, especialmente, o desenvolvimento de proteção aos direitos humanos em nível doméstico. 3.2.3 O Sistema Regional Árabe O sistema regional árabe de proteção aos direitos humanos é tido, historicamente, como o mais recente dos sistemas regionais. Geograficamente, é o único que possui Estados membros em mais de uma região do globo, uma vez que há Estados do norte e nordeste da África, além de outros localizados na Ásia ocidental. O sistema árabe está previsto na Liga dos Estados Árabes, criada em 5 de maio de 1945, mas, ainda assim, só no ano de 1994 ocorrera a adoção de uma carta de direitos humanos – Carta Árabe de Direitos Humanos. Apesar da existência de tal, há uma crítica tremenda no que tange ao disposto neste instrumento, como bem afirma Louise Arbour, Alta Comissária da ONU para os direitos humanos: Ao longo do desenvolvimento da Carta Árabe, meu escritório expressou preocupações aos elaboradores sobre incompatibilidade de algumas de suas disposições com normas e padrões internacionais. Essas preocupações incluíram a possibilidade de pena de morte para crianças e os direitos das mulheres e não cidadãos. Além disso, ao que concerne à equiparação do sionismo com o racismo, nós reiteramos que a Carta Árabe não está em conformidade com a Resolução da Assembléia Geral 46/86, que rejeita que o sionismo seja uma forma de racismo e de discriminação racial.253 Por fim, não há, até o momento, qualquer órgão que trate, especificamente, no sistema árabe, sobre os direitos humanos, apesar de haver disposição expressa na Carta Árabe (art. 45) sobre o estabelecimento de um Comitê Árabe de Direitos Humanos, com composição de sete membros. 253 Disponível em: <http://www.unhchr.ch/hurricane/hurricane.nsf/view01/6C211162E43235FAC12573 E00056E19D?opendocument>. Acesso em: 10 mar. 2011. 133 4 O SISTEMA REGIONAL INTERAMERICANO O sistema regional interamericano é traduzido, basicamente, pelas estruturas da Organização dos Estados Americanos254 (OEA), uma vez que é esta organização que possibilita a disseminação, a proteção e a eficácia, em plano internacional, dos direitos humanos no âmbito interamericano. Como bem indica o Artigo 1.o da Carta da OEA255, de 1948, a organização tende a obter, entre seus Estados-membros, "uma ordem de paz e de justiça, para promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e defender sua soberania, sua integridade territorial e sua independência". Hoje, a Organização conta com 35 Estados e constitui, sem dúvidas, o principal fórum político, jurídico e social nas Américas. Também, concedeu o status de observador permanente a 65 Estados e à União Europeia. Na proteção dos direitos humanos, a Organização conta, especialmente, com dois órgãos, quais sejam: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além de ser a mais antiga organização regional do mundo, pode-se dizer que o próprio sistema interamericano é igualmente tido como o sistema institucional internacional mais antigo do mundo. Imprescindível se demonstra, nesse momento, a análise dos principais pontos para a compreensão da Organização dos Estados Americanos e do próprio sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. 254 255 Mesmo que o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos tenha surgido em um momento anterior ao da Organização dos Estados Americanos, fora esta última que inaugurou a manifestação política do sistema regional, além de ter possibilitado a sua própria evolução. CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em: <http://www.oas.org/ juridico/portuguese/carta.htm>. Acesso em: 13 mar. 2011. 134 4.1 FORMAÇÃO E EVOLUÇÃO As origens do sistema interamericano retrocedem-se ao ano de 1826, na realização do Congresso do Panamá, quando Simon Bolívar propôs a realização de conferências de Estados Americanos. Tal proposta trouxe resultados e precedeu uma séria de reuniões regionais que visaram formas de cooperação entre os Estados da região em questão.256 Acontece que, antes de 1890, tais reuniões eram convocadas apenas para a solução a problemas ou necessidades específicas, sendo que fora entre os anos de 1889 e 1890 que ocorrera a institucionalização desses encontros, objetivando a criação de um sistema compartilhado de normas e instituições. Assim sendo, a Primeira Conferência Internacional Americana257 contou com a presença de 18 Estados e veio a realizar-se em Washington D.C., entre os meses de outubro de 1889 e abril de 1890, segundo os termos da própria Conferência.258 com o objetivo de discutir e recomendar para adoção dos respectivos governos um plano de arbitragem para a solução de controvérsias e disputas que possam surgir entre eles, para considerar questões relativas ao melhoramento do intercâmbio comercial e dos meios de comunicação direta entre esses países, e incentivar relações comerciais recíprocas que sejam benéficas para todos e assegurem mercados mais amplos para os produtos de cada um desses países. Além disso, fora neste momento que ocorrera a aprovação do estabelecimento da União Internacional das Repúblicas Americanas, que, mais tarde, veio a transformar-se na União Pan-Americana e, devido à expansão de suas funções, tornou-se a Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos. Acontece que não fora apenas a referida União Pan-Americana, em seu momento histórico, que facilitou a cooperação entre os Estados Americanos. Houve muitas instituições que colaboraram ao desenvolvimento do sistema interamericano até 256 257 258 BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las Americas. Costa Rica: Editorial Juricentro, 1983. p.27. Segundo os termos da própria OEA, fora esta Conferência que assentou as bases do que depois se tornaria o Sistema Interamericano. HISTÓRIA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_historia.asp>. Acesso em: 11 abr. 2011. 135 se chegar como hoje se concebe, podendo ser citadas: Organização Pan-Americana da Saúde (1902); Comissão Jurídica Interamericana (1906); Instituto Interamericano da Criança (1927); Comissão Interamericana da Mulher (1928); Instituto Pan-Americano de Geografia e História (1928); Instituto Indigenista Interamericano (1940); Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (1942); e a Junta Interamericana de Defesa (1942). Acontece que nenhum desses esforços trouxe, efetivamente, uma perspectiva completa acerca dos direitos humanos nesse âmbito territorial. Só apenas no ano de 1948, em Bogotá, em razão da Nona Conferência Internacional Americana, contando com a participação de 21 Estados, é que os direitos humanos contaram com uma maior representatividade, uma vez que, neste momento, foram adotados: a Carta da Organização dos Estados Americanos, o Tratado Americano sobre Soluções Pacíficas (Pacto de Bogotá) e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.259 Importante lembrar que o Pacto de Bogotá impõe aos Estados que venham a resolver suas controvérsias por intermédio de meios pacíficos, indicando certos procedimentos: mediação, conciliação, arbitragem, investigação, bons ofícios e a possibilidade de recursos à Corte Internacional de Justiça (Haia).260 Como bem se deduz, a cláusula pétrea do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos261 materializou-se na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem262, lembrando que esta viera a anteceder em sete meses a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ainda, deve ser dito que tal Declaração263 tornou possível a adoção, mais tarde (1969, entrando em vigor em 1978), da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). 259 260 261 262 263 BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las Americas, p.27. HISTÓRIA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_historia.asp>. Acesso em: 11 abr. 2011. A referida Declaração vem a proteger, especialmente, o direito à vida, à segurança, à liberdade, à integridade, à igualdade, ao sufrágio, à participação no Governo, à justiça, à proteção contra prisão arbitrária e a livre associação e reunião. Não se deve perder de vista que, neste momento, a Declaração era uma simples resolução. A referida Declaração teve seu projeto preparado pela Comissão Jurídica Interamericana. 136 Adentrando à Carta da Organização dos Estados Americanos, pode-se entender, como a própria Organização sublinha, que "foi o resultado de um longo processo de negociação iniciado em 1945" e trouxe, consigo, uma série de disposições sobre direitos humanos, inclusive aquela que consta em seu artigo 3.o, "l", que diz que "os Estados americanos proclamam os direitos fundamentais da pessoa humana, sem fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo"264. Acontece que, apesar dos esforços na promoção e proteção dos direitos humanos no âmbito da Organização, estes se mostraram infrutíferos até 1959, quando então, em decorrência da Quinta Reunião de Consultas de Ministros de Relações Exteriores, ocorrida em Santiago, no Chile, adotou-se uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Tal Comissão seria composta por sete membros eleitos, a título individual, pelo Conselho da OEA. Ainda, este Conselho, já em 1960, veio a promulgar o Estatuto da Comissão, descrevendo este órgão como uma entidade autônoma da OEA265, com função de promover o respeito aos direitos humanos (art. 1.o do Estatuto). Acontece que, mesmo com um arcabouço já estabelecido, a OEA carecia, de fato, de uma autoridade codificada e de uma base constitucional sólida, uma vez que seu sistema era articulado, especialmente, segundo termos de declarações, resoluções e pronunciamentos, sem uma força vinculante fática. Além, o órgão que tratava especificamente sobre os direitos humanos era considerado como entidade autônoma de sua estrutura. Nesse quadro caótico, já em 1967, imprescindível se demonstrou a reforma da própria Carta da OEA de 1948. A reforma em questão veio a tornar-se realidade no ano de 1970, com a entrada em vigor do Protocolo de Reforma de Buenos Aires.266 264 265 266 CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em: <http://www.oas.org/ juridico/portuguese/carta.htm>. Acesso em: 13 mar. 2011. Como bem se refere Thomas Buergenthal sobre este fato, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos era definida como entidade autônoma da OEA uma vez que não estava prevista nem na Carta da OEA de 1948 e nem qualquer outro tratado, tendo sido estabelecida por uma simples resolução da Conferência, sem qualquer semelhança com os órgãos do Conselho da OEA e nem com os seus organismos especializados. PROTOCOLO DE BUENOS AIRES. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/ treaties_B31_Protocol_of_Buenos_Aires.htm>. Acesso em: 21 fev. 2011. 137 Este documento tratou, em seu artigo 51, de transpor a Comissão de Direitos Humanos à qualidade de um dos órgãos principais da Organização, tendo suas funções descritas no artigo 112267 do referido Protocolo. Além disso, como consequência da transposição do status legal da Comissão e de seu Estatuto, a Carta Reformadora de 1970 também fortaleceu, significativamente, o caráter normativo da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem.268 A Carta da OEA ainda veio a sofrer mais três modificações, mediante Protocolos de Reforma, sendo eles: Cartagena das Índias (1985), Washington (1992) e Manágua (1993). 4.2 A CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS (PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA - CADH) E SEU PROTOCOLO ADICIONAL (PROTOCOLO DE SÃO SALVADOR) Sem dúvidas, o documento mais importante do sistema interamericano de direitos humanos é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica.269 Tal Convenção foi fruto da Conferência Interamericana Especializada sobre Direitos Humanos, celebrada em São José, Costa rica, entre os dias 7 a 22 de novembro de 1969. Primordialmente, veio a tratar sobre a observância e a proteção dos direitos humanos entre os Estados membros da Organização dos Estados Americanos.270 Acontece que, sendo um tratado, dependeria da ratificação dos Estados para a sua entrada em vigor e, também, para a sua obrigatoriedade. Assim sendo, viera a entrar em vigor apenas em 18 de julho de 1978, quando atingiu o número de 11 depósitos de ratificações dos Estados membros da OEA. 267 268 269 270 Em seus termos: "Haverá uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos que terá como função principal a de promover a observância e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização nesta matéria. Uma convenção interamericana sobre direitos humanos determinará a estrutura, competência e procedimentos dessa Comissão, assim como a dos outros órgãos encarregados dessa matéria". BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las Americas, p.40. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.167. BUERGENTHAL, Thomas, op. cit., p.49. 138 Pode-se dizer que a Convenção teve sua origem em 1945, quando então da Conferência Interamericana da Cidade do México. Acontece que somente em 1959, na Quinta Reunião de Consulta de Ministros de Relações Exteriores, em Santiago, Chile, é que fora tomada a decisão de redigir uma Convenção acerca dos direitos humanos nas Américas271 – desembocando na redação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. No condizente às suas características, aponta ser a Convenção um tratado internacional para a proteção regional dos direitos humanos, sendo que todos os Estados membros da OEA podem converter-se em partes da Convenção Americana. Este é um ponto primordial a ser entendido: os Estados que fazem parte da Organização dos Estados Americanos não necessariamente fazem parte da Convenção Americana de Direitos Humanos, uma vez que, para fazerem parte da OEA, necessitam ratificar e depositar sua Carta constitutiva, enquanto que a referida Convenção é um documento autônomo. De tal forma, pode-se ter Estados membros da OEA que não aceitam os termos da Convenção, não tendo que se obrigar aos seus termos. Como bem se refere Vladmir Oliveira da Silveira: Para afirmar a responsabilização dos Estados que integram este sistema é preciso considerar que nem todos os Estados da OEA estão vinculados à Convenção Americana de Direitos Humanos. Os que aderiram apenas a OEA aceitaram a Carta dessa organização e a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, mas não se encontram obrigados pela Convenção.272 Fala-se em dois subsistemas normativos em matéria de direitos humanos no âmbito do sistema interamericano de proteção, como elucida a seguinte passagem: Dada a diversidade de fontes jurídicas, no continente americano há dois subsistemas normativos em matéria de direitos humanos, que não são incompatíveis entre si, mas se reforçam mutuamente. O primeiro subsistema deriva-se da Carta da OEA e atinge todos os Estados Membros desta Organização. Tem a Comissão Interamericana de Direitos Humanos como órgão de implementação dos preceitos primários proclamados em seu bojo. 271 272 BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las Americas, p.49. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.167. 139 O segundo advém da entrada em vigor da CADH e dos outros instrumentos a ela conexos. Através dela foi criado o segundo órgão supervisor do sistema interamericano de direitos humanos: a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ressalte-se que a CIDH faz parte, como órgão comum, de ambos os subsistemas.273 Argumenta-se que as obrigações da Carta da OEA e da Convenção Americana de Direitos Humanos são justapostas em muitos casos e, além disso, aqueles Estados que aderiram a ambos os documentos legais, estão submetidos a um regime obrigacional, em território americano, similar aquele previsto pelo sistema de proteção europeu. Precisa-se que sua estrutura está dividida entre seu preâmbulo e três partes274, com onze capítulos, totalizando 82 artigos. Além disso, pode-se dizer que, essencialmente, trata-se de um instrumento de proteção de direitos civis e políticos275, com o estabelecimento de dispositivos voltados ao controle de suas obrigações. Representou, sem qualquer questionamento, o ápice do processo de codificação dos direitos humanos no continente americano. Seu propósito, descrito no 1.o parágrafo de seu preâmbulo, é o de "consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do homem". Ainda, a Convenção esclarece quais são os dois órgãos com competência "para conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados Membros nesta Convenção", sendo eles: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nesse ponto, a Convenção veio reorganizar a Comissão, prevendo novas funções, competências e procedimentos, cujos quais serão analisados em momento posterior. 273 274 275 SANTOS, Janara Pereira César. Sistema interamericano de proteção dos direitos humanos: um sistema jurídico pouco conhecido. Revista da Esmese, Sergipe, n.9, p.192, 2006. Em termos gerais, a primeira parte é caracterizada como porção substantiva da Convenção e as duas últimas de porções processuais. Segundo os termos da própria Convenção, no que tange aos direitos econômicos, sociais e culturais, os Estados devem "adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional,especialmente econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos [...], na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados". 140 Além disso, também em decorrência da Convenção, a Comissão de Direitos Humanos encontrou-se nos ditames de um novo Estatuto, cujo qual veio a lhe fortalecer, dando-lhe maior capacidade para atuar ante denúncias, além de prever uma intercomunicação necessária e efetiva entre esse organismo e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.276 Também, pela primeira vez se previu a necessidade de uma autorização específica para possibilitar investigações in loco e, ainda, a possibilidade da Comissão solicitar opiniões consultivas em relação à interpretação da Convenção. Na realidade, a Comissão fortaleceu-se em sua posição, autoridade e capacidade no trabalho de proteger os direitos humanos, mas, infelizmente, ainda reside um problema no âmbito de tal sistema: nem todos os Estados membros da OEA tornaram-se partes constitutivas da Convenção, uma vez que há a necessidade da expressa ratificação e depósito pelos Estados para que os termos obrigacionais desta venham a valer de maneira efetiva e eficaz na interface do sistema americano. Além disso, identificou-se outro quadro a ser solucionado: a Convenção Americana de Direitos Humanos, como outrora já fora dito, tratava, especificamente, dos direitos civis e políticos, enquanto deixava à parte e a cargo dos Estados os direitos econômicos, sociais e culturais. Prevendo ser o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos um sistema completo, imprescindível faria se ter um documento – já que a Convenção não viera a tratar – sobre os direitos referidos, neste estudo tratados como direitos de segunda geração. Assim sendo, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em seu 18.o Período Ordinário de Sessões, em 1988, baseando-se nos trabalhos da Comissão, propôs o Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador). 276 BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las Americas, p.57. 141 Já em seu preâmbulo, nota-se claramente a aproximação entre ambos os grupos de direitos, quando se diz que "porquanto as diferentes categorias de direitos constituem um todo indissolúvel que encontra sua base no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, pelo qual exigem uma tutela e promoção permanente [...]". Assim sendo, ao aderirem ao Protocolo, os Estados se comprometem a adotar as medidas necessárias até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta o seu grau de desenvolvimento, a fim de conseguir, progressivamente, e de acordo com a legislação interna, a plena efetividade dos direitos reconhecidos neste Protocolo.277 O sistema americano, em termos genéricos, pode ter natureza múltipla, jurídica convencional ou semi-jurídica, dependendo do grau de comprometimento dos Estados, como se prevê na seguinte passagem: O sistema interamericano de proteção aos direitos humanos tem, em resumo, natureza múltipla: jurídica e convencional, para os Estados-partes do "Pacto de São José"; semijurídica, para os demais membros da OEA; judicial, para os que reconhecem a competência contenciosa da Corte Interamericana, e política, por sua capacidade de ação sobre situações nacionais que extrapolam casos individuais.278 De tal forma, pode-se reconhecer a existência de documentos obrigatórios aos Estados279, no âmbito do sistema interamericano, na proteção e efetivação dos direitos humanos. Finalmente, apenas a título exemplificativo, cita-se a existência de outros instrumentos no sistema interamericano, tais como: a) Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985); b) Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos, relativo à Abolição da Pena de Morte (1990); c) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994); d) Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas (1994); 277 278 279 Os direitos a que se refere são: direito às condições dignas de trabalho, à previdência social, à saúde, ao meio ambiente sadio, à alimentação, à educação, aos benefícios da cultura, à família e aos direitos das crianças, deficientes e idosos. ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.83. Lembra-se, mais uma vez, que tal obrigatoriedade decorre da vontade dos Estados membros da Organização dos Estados Americanos em aderirem à Convenção Americana de Direitos Humanos e seu Protocolo Adicional. 142 e) Convenção Interamericana sobre Prevenção, Punição e Erradicação da Violência Contra a Mulher (1995). 4.3 IMPORTÂNCIA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS A Organização dos Estados Americanos é, sem dúvidas, a principal – se não for a única eficaz – organização regional no âmbito da defesa dos direitos humanos nas Américas. Nesse sentido, a organização tem, como pilares elementares, a democracia, os direitos humanos, a segurança e o desenvolvimento, estando todos eles interligados por uma estrutura que inclui o diálogo político, cooperação, instrumentos jurídicos e mecanismos de acompanhamento.280 No que tange ao diálogo político, pode-se dizer que a OEA atua como principal fórum neutro das Américas, onde os Estados se reúnem para superar diferenças e definir metas comuns. Além disso, adentrando à cooperação, elucida-se que a Organização dispõe de apoio aos Estados membros visando fortalecer suas capacidades institucionais, promovendo treinamentos e bolsas a funcionários do governo em áreas distintas. Outra tarefa essencial da OEA é a implementação de mecanismos de acompanhamento, onde seus Estados membros devem, de tempos em tempos, prestar contas sobre um determinado assunto. Para o desenvolvimento de tal campo, a organização criou alguns instrumentos, tais como: Mecanismo de Avaliação Multilateral (MEM); Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana Contra Corrupção (MESICIC); Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará (MESECVI); Grupo de Revisão da Implementação de Cúpulas (GRIC); e Sistema de Acompanhamento das Cúpulas das Américas (SISCA). Investigando sua estrutura, examina ser ela formada pelos seguintes órgãos: Assembleia Geral; Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores; Conselho Permanente; Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral; Comissão 280 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/sobre/ que_fazemos.asp>. Acesso em: 09 abr. 2011. 143 Jurídica Interamericana; Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Secretaria Geral; Conferências Especializadas; Organismos Especializados; além de outras entidades, estabelecidas pela Assembleia Geral, que se demonstrarem necessárias no desenrolar dos trabalhos da organização. Acredita-se que, no desempenho de todas as suas funções, por intermédio de seus variados órgãos e com a cooperação de seus Estados membros, a OEA venha a atingir seus objetivos elementares, quais sejam: a promoção da democracia, a defesa dos direitos humanos, a garantia de uma abordagem multidimensional para a segurança, a promoção do desenvolvimento integral e da prosperidade e o apoio à cooperação jurídica interamericana. De tal forma, exprime-se o valor inenarrável da OEA não apenas na defesa dos direitos humanos, mas sim no desenvolvimento de todos os âmbitos que influenciam a vida daqueles que se demonstram como sujeitos – sejam os Estados, as organizações internacionais ou, até mesmo, os indivíduos – do sistema interamericano. 4.4 AS OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS DOS ESTADOS MEMBROS DA OEA EM MATÉRIA DE DIREITOS HUMANOS Primeiramente, deve ser entendido que os Estados membros da Organização dos Estados Americanos estão sujeitos à obrigação legal internacional de não violar os direitos humanos de seus próprios nacionais, mesmo que só tenham ratificado e depositado a Carta da OEA. Pontua-se que, desde sua criação, um dos pilares fundamentais da OEA é a defesa dos direitos humanos e, apenas por serem membros da Organização, os Estados já estão comprometidos à obrigação de proteção dos direitos humanos de seus nacionais. Precisa-se que as obrigações internacionais dos Estados membros da OEA sobre direitos humanos se regem pela Carta das Nações Unidas e pela própria Carta da OEA. Caso exista algum conflito entre as obrigações contidas em ambas as Cartas ou de qualquer outro instrumento que trate, igualmente, sobre direitos humanos, a 144 Carta da ONU deverá prevalecer, como bem demonstra o art. 103 da Carta da ONU e, também, o art. 137 da Carta da OEA.281 Assim sendo, decorrente de tal entendimento, a primeira questão que surge é a seguinte: os Estados membros da OEA podem vir a firmarem tratados internacionais que possuam, como objeto, uma proteção dos direitos humanos maior que aquela prevista na Carta da ONU282, mas não podem, em nenhum momento, apoiar-se nem na Carta da OEA, nem em qualquer outro instrumento internacional para violarem um direito reconhecido pela Carta da ONU. Também decorre de tal entendimento a questão dos Estados membros da OEA terem o dever de não intervenção nos assuntos internos de outro Estado, com especial exceção quando o Estado em pauta estiver violando os direitos humanos – aí, então, poderá o primeiro Estado, por intermédio dos instrumentos legais internacionais, intervir nos assuntos internos do Estado violador. Reunidos tais entendimentos, deve ser deduzido, ainda, que algumas disposições previstas na própria Carta da OEA deixam explícitas as obrigações, em matéria de direitos humanos, dos seus Estados membros, sendo que é seu art. 3.o, j, que melhor traduz a questão quando diz que "os Estados americanos proclamam os direitos fundamentais da pessoa humana, sem fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo". 4.5 PRINCIPAIS ÓRGÃOS DO SISTEMA INTERAMERICANO Essencialmente, os dois principais órgãos do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. 281 282 BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las Americas, p.65. Nesse sentido, a Carta da ONU acaba por ser um referencial do mínimo dos direitos humanos que devem ser protegidos e efetivados. 145 4.5.1 Comissão Interamericana de Direitos Humanos A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é, sem dúvidas, o principal e mais antigo órgão intergovernamental do sistema interamericano, sendo responsável, essencialmente, pela promoção e proteção dos direitos humanos. Hoje, a Comissão tem sua sede em Washington, D.C., sendo integrada por sete membros independentes283, eleitos pela Assembleia Geral284, atuando de forma pessoal, não vindo a representarem seus Estados membros. Reúne-se em Períodos Ordinários e Extraordinários de sessões várias vezes ao ano.285 A Comissão foi criada por resolução na Quinta Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores em Santiago, Chile, em 1959, tendo sido formalmente instalada em 1960, quando então o Conselho da OEA aprovou o seu Estatuto. O surgimento da Comissão foi de extrema importância na edificação de um sistema mais sério de proteção dos direitos humanos, tanto no âmbito do sistema interamericano, quanto no âmbito da própria OEA, quando então, como já afirmado anteriormente, faltava-lhe um órgão específico para a promoção e proteção dos direitos humanos286. Apesar de tal importância, deve-se deixar bem claro que, no início de seus trabalhos, a Comissão era determinada como um órgão autônomo da própria OEA. Segundo os termos da própria Comissão, entende-se que, já em 1961, iniciaram-se as visitas in loco287 nos Estados membros da OEA para a observância da situação geral dos direitos humanos, sendo que, desde então, suas observações geram relatórios especiais acerca da situação dos direitos humanos em cada Estado. 283 284 285 286 287 Exalta-se que seus membros são pessoas de alta autoridade moral e notório saber na área dos direitos humanos, não podendo haver dois nacionais do mesmo Estado. São eleitos por um período de quatro anos, podendo ser reeleitos uma única vez. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/ que.port.htm>. Acesso em: 12 mar. 2011. Apesar de sua indiscutível importância, a Comissão, em seus primórdios, era uma entidade autônoma da OEA, de caráter não convencional e seu mandato estava limitado à promoção e ao respeito dos direitos humanos, mas sem competência para assegurá-los de maneira efetiva que não fosse a teórica. Anexo A. 146 Imprescindível é a referência à II Conferência Interamericana Extraordinária, realizada no Rio de Janeiro, em 1965, quando da modificação do Estatuto da Comissão, ampliando suas funções e faculdades. Nesse momento, o mandato da Comissão se tornou efetivo, transformando a CIDH em verdadeiro órgão de controle, com autorização para receber e examinar petições individuais sobre alegadas violações de direitos humanos, dirigir-se aos Estados para solicitar informações e formular recomendações que se fizessem necessárias [...].288 Mas, ainda assim, a base jurídica da Comissão não estava totalmente consolidada, sendo que tal dificuldade fora superada apenas no ano de 1967, com a adesão do chamado Protocolo de Buenos Aires, que veio emendar a Carta da OEA, transformando, segundo seu art. 51, a Comissão em órgão principal da OEA, como parte da estrutura permanente da organização. A partir de 1978, com a entrada em vigor da Convenção Americana de Direitos Humanos, a Comissão acumulou mais duas funções: 1.a) atribuições unicamente políticas e diplomáticas para os Estados membros da OEA que não se tornaram partes da Convenção; e 2.a) atribuições políticas, diplomáticas e "quase judicial" para aqueles Estados membros da OEA que se tornaram partes da Convenção, uma vez que funciona como órgão supervisão do cumprimento da Convenção, além de suas citadas competências. Além disso, a Convenção permitiu, à Comissão, uma maior facilidade no desenvolvimento de seus trabalhos que permeiam os direitos humanos, além de ter fortalecido sua posição, autoridade e capacidade para protegê-los. Em termos mais recentes, a Comissão é composta289 por um brasileiro (Paulo Sérgio Pinheiro), um colombiano (Rodrigo Escobar Gil), um chileno (Felipe González), uma salvadorenha (María Silvia Guíllen), uma norte americana (Dinah Shelton), um mexicano (José de Jesús Orozco Henríquez) e um venezuelano (Luiz Patrícia Mejía Guerrero). 288 289 BRANDÃO, Marco Antônio Diniz; BELLI, Benoni. O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e seu aperfeiçoamento no limiar do século XXI. In: GUIMARÃES, Samuel Pinheiro; PINHEIRO, Paulo Sérgio (Orgs.). Direitos humanos no século XXI (Parte I). Brasília: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – Fundação Alexandre Gusmão, 2002. p 278. Até o final do ano de 2011. 147 Julga ser a Comissão um órgão que desempenha variadas funções, incluindo as funções de investigações, busca de soluções a dissídios que envolvam direitos humanos, emissão de opiniões consultivas, interpretações de tratados acerca dos direitos humanos e sobre formas de adequação dos ordenamentos internos a tais, entre outras. Apesar de não possuir, de fato, uma autoridade capaz de erradicar e punir as violações dos direitos humanos, valoriza-se o fato de que a aludida Comissão realizou uma frutífera e notável atividade de proteção dos direitos humanos, incluindo a admissão e investigação de reclamações de indivíduos e de organizações não governamentais, inspeção nos territórios dos Estados membros, solicitação de informes, com o que logrou um paulatino reconhecimento.290 Atualmente, as funções da Comissão residem, ainda, essencialmente, na promoção e na defesa dos direitos humanos, sendo que, para que tal situação se demonstre plausível, desempenha as seguintes atividades291: 1) receber, analisar e investigar petições individuais acerca de violações dos direitos humanos (artigos 44 a 51 da Convenção); 2) estudar o cumprimento dos direitos humanos nos Estados membros, podendo dispor de publicações sobre a situação num Estado específico; 3) realizar visitas in loco nos Estados membros, tendo como objetivo a investigação de um caso em particular ou para vistas gerais, podendo gerar um relatório que será publicado e enviado à Assembleia Geral292; 4) valorizar o desenvolvimento dos direitos humanos nos Estados americanos, podendo desenvolver estudos sobre determinados temas; 5) desenvolver e incentivar conferências e reuniões entre a população e aqueles envolvidos na proteção dos direitos humanos, objetivando o aprimoramento de temas relacionas aos direitos humanos na América; 290 291 292 FIX-ZAMUDIO, Héctor. Protección Jurídica de los Derechos Humanos. México: Comisión Nacional de Derechos Humanos, 1991. p.164, apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.91. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.165-166. Deve-se sempre ter em mente que, para o desempenho de tal função, a Comissão depende da anuência dos respectivos governos, mesmo que membros da Convenção. 148 6) recomendar certas medidas que garantam a promoção e proteção dos direitos humanos nos Estados da Organização; 7) propor a adoção de medidas cautelares aos Estados membros para que se evitem danos graves e irreparáveis aos direitos humanos, podendo, nesse caso, solicitar que a Corte Interamericana requeira "medidas provisionais" dos governos; 8) enviar os casos, que julgar necessários, à jurisdição da Corte Interamericana, podendo atuar em alguns litígios; 9) consultar a Corte Interamericana para que emita opinião acerca da interpretação da Convenção Americana. Importante é pontuar, no que concebe ao acesso à Comissão, que um Estado293, qualquer pessoa, grupo de pessoas ou órgãos não-governamentais, reconhecidos em, pelo menos, um dos Estados membros da organização, podem encaminhar petições que versem sobre a violação dos direitos humanos por um Estado parte.294 Em termos gerais, pode-se entender que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos é única, entre outros órgãos intergovernamentais de proteção, em sua capacidade de reação frente a situações que envolvam violações de direitos humanos295, especialmente pela existência do sistema de petições. O sistema de petições trouxe um grande avanço ao sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, guardando algumas peculiaridades que devem ser analisadas. Primeiramente, lembra-se que, para que a petição seja admitida pela Comissão, algumas condições devem estar preenchidas, sendo elas296: 1) exaustão das vias internas, a partir da demonstração da inexistência de meios de tutela na ordem interna, ou a ausência de permissão ao lesado na utilização dos meios existentes, ou ainda, a demora injustificada na solução do problema; 293 294 295 296 Taxa-se que o exame da petição de um Estado sobre a violação dos direitos humanos por parte de outro Estado depende do prévio reconhecimento da competência da Comissão por ambos os Estados. GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos... BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las Americas, p.229. GARCIA, Emerson, op. cit., p.84. 149 2) cumprimento do prazo decadencial de seis meses, iniciados na data que o possível lesado for notificado da decisão definitiva; 3) inexistência de outro processo internacional, sobre a mesma violação, em andamento. Estando presentes tais requisitos, o interessado em apresentar uma petição sobre determinada violação à Corte deverá, de igual maneira, observar as exigências do art. 28 do Regulamento da Comissão, cujo qual prevê que deve constar na petição: - nome, nacionalidade e assinatura do denunciante ou, no caso do peticionário ser uma entidade não-governamental, o nome e a assinatura de seu representante ou seus representantes legais; - se o peticionário deseja que sua identidade seja mantida em reserva frente ao Estado; - o endereço para o recebimento de correspondência da Comissão, qualquer que seja o meio; - relação do fato ou situação denunciada, com especificação do lugar e data das violações alegadas; - se possível, o nome da vítima, bem como de qualquer autoridade pública que tenha tomado conhecimento do fato ou situação denunciada; - indicação do Estado que o peticionário considera responsável, por ação ou omissão, pela violação de algum dos direitos humanos consagrados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros instrumentos aplicáveis; - o cumprimento do prazo previsto no art. 32 desse Regulamento; - as providências tomadas para esgotar os recursos da jurisdição interna ou a impossibilidade de fazê-lo de acordo com o art. 31 desse Regulamento; - a indicação se a denúncia foi submetida a outro procedimento internacional de conciliação, de acordo com o art. 33 desse Regulamento. Se atendidos todos esses requisitos, passa-se, então, à fase de instauração do processo na Comissão, sendo essa quase que judicial. Primeiramente, tal órgão irá solicitar informações ao Estado que está sendo demandado, podendo, ainda, vir 150 a realizar, com o prévio consentimento do Estado, uma investigação mais consistente, caso o fato alegado seja grave e urgente.297 Neste momento do processo, há dois caminhos possíveis. O primeiro deles vem a ser o alcance de uma solução amistosa entre o Estado violador e o indivíduo e/ou grupo de indivíduos que teve seu direito violado. Nesse caso, a Comissão irá redigir um relatório sobre o caso e sua solução, sendo publicado, posteriormente, pelo Secretário-Geral da OEA. Caso não seja possível, então a outra forma procedimental é a redação, pela Comissão, de um relatório, cujo qual elucidará os fatos, suas conclusões e suas recomendações, sendo encaminhado aos Estados interessados. Então, nesse momento, haverá o lapso temporal de três meses para a solução da questão. Caso não ocorra, a Comissão poderá, a partir do voto da maioria absoluta de seus membros, delimitar um prazo para que o Estado adote as medidas necessárias para a solução da situação. Se o Estado vier, mais uma vez, a não respeitar o prazo fixado pela Comissão, esta poderá declarar ter o Estado descumprido suas obrigações internacionais e, caso seja parte da Comissão e reconhecido a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, então a Comissão poderá submeter o quadro em tela à apreciação da Corte.298 Em resumo, o procedimento de um caso perante o sistema de petições da Comissão, possui, essencialmente, três fases: a apresentação da denúncia à Comissão; a admissibilidade pela Comissão; a solução pela Comissão, definindo ou não se um Estado é responsável pelas violações alegadas e de que maneira o caso será solucionado. Finalmente, pode-se dizer que o sistema de petições da Comissão Interamericana de Direitos Humanos atua determinantemente nas situações que serão apresentadas à Corte e naquelas que se encerrarão na própria Comissão. 297 298 GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos... O sistema interamericano difere-se sobremaneira do sistema europeu nesse ponto, uma vez que, diferentemente deste último, o indivíduo não tem acesso direto à Corte de Direitos Humanos. 151 4.5.2 A Corte Interamericana de Direitos Humanos A Corte Interamericana de Direitos Humanos é um órgão judicial internacional autônomo do sistema da OEA, criado e definido, como já referido anteriormente, pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos, de 1969 – lembrando que, hoje, encontra-se sediada na Costa Rica e vinte e cinco Estados americanos ratificaram ou adotaram a Convenção.299 Em respeito à soberania dos Estados, para que o Estado possa ser julgado pela Corte há, necessariamente, segundo os termos do art. 62 da Convenção, que ter sido reconhecida "como obrigatória de pleno direito e sem convenção especial, a competência do Tribunal" para qualquer caso, podendo tal reconhecimento se dar "incondicionalmente ou sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específicos". Nos termos ainda do art. 62, entende-se ter a Corte competência contenciosa – determinante aos Estados partes da Convenção e que a reconheçam expressamente, uma vez que a aceitação de sua jurisdição não é automática – e, ainda, consultiva (art. 64) – possível a todos o membros da OEA, membros ou não da Convenção. Segundo tais competências, insere-se o seguinte entendimento: A competência consultiva é ampla, permitindo a todos os membros da OEA – partes ou não do "Pacto de São José" – e a todos "os órgãos enumerados no Cap. 10 da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires" (a Assembleia Geral, o Conselho Permanente da CIDH etc.) consultá-la sobre a interpretação da Convenção Americana ou de outros tratados sobre a proteção dos direitos humanos nos Estados americanos, sobre a compatibilidade entre as leis nacionais e esses instrumentos jurídicos regionais. A competência contenciosa, para o julgamento de casos a ela submetidos, é, por sua vez, limitada aos Estados-partes da Convenção que a reconheçam expressamente. Nessas condições, a maior atividade da Corte tem se concentrado na jurisdição consultiva, sendo poucas as sentenças judiciais já proferidas.300 299 300 São eles: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Dominica, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global, p.80. 152 Examina-se, ainda, ser a Corte composta por sete membros: um presidente, um vice-presidente e mais cinco juízes. Inicialmente, documenta-se que a Corte não entrou em funcionamento até que o Pacto de São José da Costa Rica301 tivesse entrado realmente em vigor – fato que se desenrolou no ano de 1978. Já em julho de 1978, a Assembleia Geral recomendou a aprovação, pelo governo da Costa Rica, para que a Corte fosse ali estabelecida. A decisão foi ratificada pelos Estados membros da Comissão durante a Sexta Sessão Especial da Assembleia Geral da OEA, em novembro de 1978.302 Então, em 22 de maio de 1979, os Estados partes da Convenção elegeram, na Sétima Sessão Especial da Assembleia Geral da OEA, os primeiros juízes a integrarem a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Logo após a eleição, já nos dias 29 e 30 de junho, de 1979, desenvolveu-se, em Washington D.C., a primeira audiência da Corte e em 3 de setembro de 1979, ocorrera a cerimônia de abertura da Corte em São José, Costa Rica. Durante a Nona Sessão Regular da Assembleia Geral da OEA, houve a aprovação do Estatuto da Corte e em agosto de 1980, a aprovação de suas regras procedimentais. Importante é discorrer sobre a questão de que, em setembro de 1981, o governo da Costa Rica e a Corte assinaram um acordo, determinando privilégios e imunidades à Corte, aos seus juízes e às pessoas que ali vierem a desenvolver suas atividades laborais. Tal acordo demonstra ser de extrema valia, uma vez que facilita as atividades da Corte, dando proteção para todas as pessoas intervenientes dos processos. Além disso, em 1993, o governo da Costa Rica doou, à Corte, a casa onde, hoje, está localizada. Mais tarde, em 2001, a Corte veio a aprovar o regulamento que permitiria os indivíduos e seus devidos representantes, de participarem das fases processuais, juntamente com a Comissão e com o Estado demandado, o que possibilitou, sem 301 302 O Brasil aderiu ao referido Pacto em setembro de 1992, tendo aceitado a jurisdição da Corte apenas no ano de 1998, "por tempo indeterminado, como obrigatória e de pleno direito, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relacionados à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos, em conformidade com o seu art. 62, sob condição de reciprocidade e para fatos posteriores a esta declaração". CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr>. Acesso em: 22 jan. 2011. 153 qualquer questionamento viável, uma mais fácil defesa e argumentação para aqueles que tiveram seus direitos violados. Em 25 de novembro de 2003, então, aprovaram-se as novas Regras Procedimentais para a Corte, podendo ser aplicadas para todos os casos trazidos anteriormente a esta data à Corte. De tal forma, entende-se ser a Corte o principal órgão do sistema interamericano para a efetiva proteção dos direitos humanos, uma vez que apenas ela, no âmbito americano, tem poder de fato para condenar os Estados internacionalmente. Inquestionavelmente, a Corte atua no âmbito jurisdicional e consultivo, estando ambos voltados à matéria referente aos direitos humanos. Além disso, o Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em seu art. 1.o, dispõe que esta vem a ser uma instituição judicial e autônoma303, tendo sua sede em São José da Costa Rica, com o propósito de aplicar e interpretar, além Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos304, todos os compromissos firmados, por seus Estados membros, que versem sobre direitos humanos.305 No estudo sobre sua função consultiva, pode-se dizer que, apesar dos reconhecidos esforços da Corte em garantir a primazia de sua interpretação, há muito de ser evoluído, especialmente no alcance de suas interpretações. Nesse sentido, determina Nádia de Araújo: A partir de sua criação, em 1979, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem se destacado no cenário internacional por suas decisões, especialmente aquelas referentes à sua função consultiva, quando promove a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San Jose. No entanto, suas decisões não têm o espectro desejável, porque dependem da aceitação de sua jurisdição por um maior número de Estados, já que esta deve ser expressa.306 303 304 305 306 Segundo Héctor Espiel, a denominação "autônoma" é pertinente, uma vez que a Corte exerce suas funções, contenciosa e consultiva, de maneira independente e autônoma. (ESPIEL, Héctor. El Procedimento Contencioso ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos In: NIKKEN, Pedro (Org.). La Corte Interamericana de Derechos Humanos: estudios y documentos. 2.ed. San José, CR: Corte IDH, 1999). BUERGENTHAL, Thomas. La Proteccion Internacional de los Derechos Humanos en las Americas, p.59. No âmbito do sistema interamericano, há a existência de diversos tratados que versam sobre direitos humanos. Sua lista completa é possível de ser encontrada em: RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo. São Paulo: Max Limonad, 2001. p.62. ARAÚJO, Nádia de. A influência das opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, RJ, v.6, n.6, p.228, jun. 2005. 154 Referentemente a sua função consultiva (art. 64), a Corte pode exercê-la a todos os Estados membros da OEA, sendo eles partes ou não do Pacto de São José, além de poder desempenhar perante todos os órgãos referidamente enumerados no Capítulo 10, da Carta da Organização dos Estados Americanos. A descrita função consultiva pode ser de natureza dupla, qual seja: de "controle da interpretação das normas americanas de direitos humanos" (fixando a orientação da Corte para operadores do direito interno) e de "controle de leis ou projetos com relação às disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos" (incompatibilidade entre o primeiro citado e a Convenção).307 Especificamente a sua função contenciosa, a Corte só aceitará a submissão de casos que envolvam Estados308 e que, necessariamente, tenham aceitado, expressamente, a jurisdição do referido órgão.309 Lembra-se que será a Comissão Interamericana de Direitos Humanos que virá a submeter um caso à apreciação da Corte, sendo que, nesse caso, a Comissão analisará as demandas e aquelas que julgar necessárias, encaminhará à Corte. Para que a Corte esteja apta a analisar casos em que seus Estados membros tenham violado direitos ou liberdades protegidos pela Convenção, o requisito da exaustão das vias internas deverá, sem exceção, estar obedecido. Pontua-se ainda que, diferentemente do sistema europeu, não há lugar para o acesso direto dos indivíduos à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mas deve-se esclarecer que, desde 2001, quando então da adoção do novo regulamento da Corte, é possível a participação do indivíduo em todo o seu procedimento contencioso (art. 23). Além de decisões de mérito, a Corte poderá, igualmente, ordenar medidas provisórias de proteção, quando avistar uma situação de gravidade excessiva e/ou urgência. Pode-se dizer, em outros termos, que há, na verdade, a possibilidade de adoção de medidas cautelares. 307 308 309 ARAÚJO, Nádia de. A influência das opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro, p.232. De acordo com o art. 61 da Convenção Americana de Direitos Humanos: somente os Estados partes e a Comissão têm o direito de submeter um caso à decisão da Corte. Alude-se ao fato de que a atuação da Corte pressupõe o reconhecimento, por parte do Estado, de sua competência para conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e à aplicação da Convenção. O referido conhecimento se faz por uma declaração, que pode ser "incondicionalmente ou sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específicos" (art. 62). 155 Ao final do processo, caso haja a verificação da violação de um direito assegurado em um instrumento legal do sistema interamericano de proteção, a Corte determinará uma reparação em decorrência da violação, que se dará por intermédio do pagamento de uma indenização justa, permitindo à vítima que o direito violado possa ser, a partir de então, desfrutado.310 Ainda, a decisão da Corte é definitiva e inapelável (art. 67), sendo um Tribunal de última instância. Apesar de ser impossível recurso da decisão da Corte, caso ocorra uma divergência sobre o sentido e/ou o alcance da sentença por alguma das partes, caberá um recurso de interpretação (art. 67), assemelhado aos embargos de declaração, para elucidar o ponto questionável, no prazo de noventa dias. Decorrido o prazo, caso haja o referido recurso de interpretação, deverão os Estados cumprir as sentenças e executá-las em sua ordem interna. Ainda nesse ponto, deve-se fazer claro que a aceitação da competência contenciosa da Corte traduz-se em cláusula pétrea, ou seja, não aceita limitações que não aquelas previstas em seu artigo 62. É nesse entendimento que se prevê o alcance da competência jurisdicional da Corte, como lembra Fernando Jayme: Uma vez acionada a jurisdição da Corte, esta se torna intangível: não é – não pode ser – afetada de modo algum pela conduta ou pelas atuações posteriores das partes (em matéria contenciosa), ou do Estado ou órgão solicitante (em mate consultiva), ou da Comissão como solicitante de medidas provisórias de proteção. [...] A Corte é, em quaisquer circunstâncias, maestra de jurisdicción: a Corte, como todo órgão possuidor de competências jurisdicionais, tem o poder inerente de determinar o alcance de sua própria competência – seja em matéria contenciosa, seja em relação a medidas provisórias de proteção.311 Para desempenho de suas funções, a Corte conta com sete juízes312, nacionais dos Estados membros da OEA, atuantes a título pessoal, sendo eleitos, segundo o art. 52 da Convenção, "entre juristas da mais alta autoridade moral, e reconhecida competência em matéria de direitos humanos que reúnam as condições requeridas 310 311 312 GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos... JAYME, Fernando G. Direitos humanos e sua efetivação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p.79. Apenas a título de curiosidade, os primeiro sete juízes foram: Thomas Buergenthal (Estados Unidos), Máximo Cisneros Sánchez (Peru), Huntley Eugene Munroe (Jamaica), César Ordóñez Quintero (Colômbia), Rodolfo Piza Escalante (Costa Rica), Carlos Roberto Reina (Honduras), M. Rafael Urquía (El Salvador). 156 para o exercício das mais elevadas funções judiciais, conforma a lei do país da qual são nacionais". O mandato destes juízes é fixado por seis anos, sendo permitida uma recondução. A eleição é realizada pela Assembleia Geral da OEA. Também, acaba por ser indiscutível a grande problemática que advém das Cortes de Direitos Humanos que tendem a produzir sentenças internacionais, condenando os Estados em plano internacional e coagindo-os a cumprirem tais sentenças e âmbito interno, qual seja, a questão da soberania estatal versus tal condenação. Não fugindo à regra, muitas são as questões que se levantam quando da condenação de um Estado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, estando comprovada a violação de um determinado direito por parte deste citado. Acontece que justamente por conta da dependência da Corte de um reconhecimento expresso dos Estados para que sua jurisdição seja aplicável, faz-se, ao menos aos olhos daqueles que defendem e acreditam no Direito Internacional, incabível a imposição da noção de soberania para o não cumprimento de uma decisão de tal órgão. O que se tem, em realidade, é uma delegação, por parte dos Estados que aceitaram, expressamente, a jurisdição da Corte, de poderes para que a Corte, quando estes se mostrarem omissos ou violarem algum dos direitos previstos no sistema interamericano, possa vir a julgá-los em um plano internacional. Mais do que isso: estes Estados estão comprometidos com o próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos, possibilitando a segurança de seus cidadãos, em casos de violações ou omissões, e a previsibilidade de ações que possam ser buscadas em tais situações. Como bem lembra Luigi Ferrajoli, não é que o compartilhamento da soberania em um ente internacional e/ou a condenação de um Estado, em um plano internacional, que irá aprofundar a crise do Estado nesse momento histórico. Inversamente, são justamente tais entes, tais como as Cortes Internacionais de Direitos Humanos, que possibilitarão a crescente superação da referida crise. Em suas palavras: [...] essa ligação entre Estado, constituição e garantia dos direitos fundamentais é totalmente contingente e não reflete nenhuma necessidade do tipo teórico. O modelo garantista do Estado constitucional de direito, como sistema hierarquizado de normas inferiores à coerência com as normas superiores e com os princípios axiológicos nelas estabelecidos, pelo contrário, tem validade 157 seja qual for o ordenamento. A crise dos Estados pode ser, portanto, superada em sentido progressivo, mas somente se for aceita sua crescente despotencialização e o deslocamento (também) para o plano internacional das sedes do constitucionalismo tradicionalmente ligadas aos Estados.313 Assim sendo, em um mundo onde a crescente busca pela proteção e efetividade dos direitos humanos é uma constante, é impossível sobrepor a tal situação a soberania, em seus termos arcaicos, onde a expressa declaração dos Estados, comprometendo-se a determinadas jurisdições, acaba por ter menos valor que um conceito terminológico, criado em função de necessidades anteriores. Finalmente, diz-se que, caso um Estado tenha expressamente reconhecido a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, este veio ceder parcela de sua soberania em prol de uma segurança aos seus cidadãos e, caso demandado e condenado perante a Corte, não poderá valer do conceito de sua soberania para escusar-se de suas obrigações internacionais, decorrentes de decisões do referido órgão. 313 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno, p.53. 158 CAPÍTULO 3 O BRASIL NA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS: PRINCIPAIS CASOS ENVOLVENDO OS DIREITOS HUMANOS 1 O BRASIL NO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Apesar do cenário interno configurar vários paradoxos, o Brasil é, sem dúvidas, uma potência regional em todos os âmbitos, especialmente no quadro da América Latina. Não fugindo à regra, no caso do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, o Brasil atua de maneira determinante e enérgica ao desenvolvimento desse próprio sistema. Primeiramente, deve-se lembrar que, ao final da Segunda Guerra Mundial, o Estado brasileiro adotou, desde logo, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e a Declaração Universal de Direitos Humanos (ambas de 1948). Pouco mais tarde, veio a participar de uma série de acordos de proteção dos direitos humanos, tais como: Convenção sobre Genocídio (1948); as quatro Convenções de Genebra e seus dois Protocolos Adicionais (1949); a Convenção sobre Refugiados (1951), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); a I Convenção Mundial sobre Direitos Humanos de Teerã (1968); e a II Convenção Mundial sobre Direitos Humanos de Viena (1993).314 Sem dúvidas, todo o empenho brasileiro mostrou-se determinante no desenvolvimento do sistema de proteção dos direitos humanos interamericano. Prova disso é que, após longos períodos de negociações, o Brasil, já na Nona Conferência Internacional Americana, em 1948, desenvolveu – juntamente com o auxílio de mais vinte países – e adotou a Carta da Organização dos Estados Americanos315, a qual 314 315 Em âmbito regional, o Brasil ainda ratificou o Protocolo Relativo à Abolição da Pena de Morte, de 1986; a Convenção Interamericana para prevenir e sancionar a tortura, de 1987; e a Convenção Interamericana para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher (Convenção de Belém do Pará), de 1985. O Brasil aprovou a Carta da OEA pelo Decreto Legislativo 64, de sete de dez. de 1949. 159 entrou em vigor em 13 de dezembro de 1951 e, no ordenamento jurídico pátrio, fora introduzida pelo Decreto n.o 30.544, de 14 de fevereiro de 1952. Acontece que, ainda nesse momento, o sistema interamericano não contava com uma proteção efetiva dos direitos humanos, só tendo sido realizável quando então da adoção da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica - CADH), de 1969, e seu Protocolo Adicional (Protocolo de São Salvador), de 1988. No que tange ao Pacto de São José da Costa Rica, o Brasil aprovou-o pelo Decreto Legislativo 27, de 25 de outubro de 1992, tendo sido promulgado no mesmo ano, pelo Decreto 678, de 06 de novembro. Igualmente, o país aprovou o Protocolo de São Salvador pelo Decreto Legislativo 56, de 19 de abril de 1995 e promulgo-o pelo Decreto 3.321, de 30 de dezembro de 1999. A partir de então, o Brasil encontra-se submetido às condições da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, devendo obediência aos princípios desse órgão na busca pela promoção e defesa dos direitos humanos. Determinante a este estudo é relatar que, a partir de então, o Brasil estará submetido a todos os meios passíveis de proteção dos direitos humanos previstos por esse órgão. Ainda, o sistema interamericano, como bem já se discorreu, conta com uma Corte, cujo Estatuto viera a ser aprovado pela Resolução AG/Res. 448 (IX-O/79) e adotado pela Assembleia Geral da OEA, em 1979, sendo necessário o reconhecimento de cada Estado de sua competência jurisdicional. O Brasil o fez em dezembro de 1998, por meio do Decreto Legislativo n.o 89, garantindo a jurisdição, em plano internacional regional, dos direitos humanos aos indivíduos sob sua jurisdição, quando as instâncias nacionais se demonstrarem insuficientes em sua proteção.316 Tendo demonstrado o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil poderá vir a ser demandado, respeitadas as determinações do instituto em questão, e não poderá se valer da escusa da incompatibilidade da norma convencional com o direito interno, uma vez que, como já se disse, tal 316 Ainda, o reconhecimento da jurisdição internacional dos direitos humanos, em solos nacionais, ocorrera por intermédio do art. 7.o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. 160 reconhecimento vem a ser cláusula pétrea e demanda uma devida adequação do direito interno para com a responsabilidade assumida em plano internacional. Ademais, o Brasil também poderá vir a ser condenado em âmbito internacional – como já bem ocorrera e será detalhado mais adiante – e, nesse caso, deverá, de maneira efetiva, processar a materialização de sua condenação, no palco internacional, em âmbito interno, para que tal venha a produzir sua devida eficácia, uma vez que, conjuntamente ao reconhecimento da Corte, vê-se o dever de cumprimento de suas decisões no plano interno. Há, segundo a doutrina, duas regras sobre execução das sentenças da Corte Interamericana, que podem muito bem assim serem descritas: A primeira regra, tradicional em termos de execução de sentença internacional, estipula que a execução das sentenças da Corte depende da normatividade interna. Assim, cabe a cada Estado escolher a melhor forma, de acordo com seu Direito, de executar os comandos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A segunda regra firmada no artigo 68.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos é inovação do sistema interamericano. Consiste na menção da utilização das regras internas de execução de sentenças nacionais contra o Estado para a execução da parte indenizatória da sentença da Corte.317 Acontece que ainda hoje, treze anos após o reconhecimento da competência e jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não se determinou, de forma legal, clara e objetiva, a maneira que se desenvolverá a internalização da sentença internacional, advinda de tal órgão, e nem sequer se tem uma ideia segura de implementação, em âmbito interno. Em outras palavras, o Brasil ainda não adotou, nesse tema, a chamada enabling legislation, como explica André de Carvalho Ramos: Para facilitar o cumprimento interno das decisões da Corte, alguns países aprovaram as chamadas "enabling legislations" ou legislações nacionais de implementação das decisões de instâncias internacionais de proteção dos direitos humanos. Cita-se o caso colombiano, com a Lei n.o 288 de 1996. Na Colômbia, a Lei n.o 288/96 estabeleceu os instrumentos para a indenização de prejuízos às vítimas de violações de direitos humanos, após a constatação das violações por instâncias internacionais. No caso da Costa Rica, estabeleceu-se, já no tratado de sede entre o Governo daquele país e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que as decisões da Corte possuem a mesma força executiva das dos tribunais do país.318 317 318 RAMOS, André de Carvalho. A execução das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil. In: SOARES, Guido Fernando Silva; CASELLA, Paulo Borba; CELLI JUNIOR, Umberto; MEIRELLES, Elizabeth de Almeida; Polido, Fabrício Bertini Pasquot Polido (Orgs.). Direito internacional, humanismo e globalidade. São Paulo: Atlas, 2008. p.459. ibid., p.463. 161 O que se observa claramente neste cenário é que, no caso brasileiro, apesar da igual importância dada à proteção – já determinada pela existência de instrumentos internos e pela existência de uma Corte, caso os primeiros se demonstrarem, de alguma forma, falhos – e à eficácia dos direitos humanos, esta última não vislumbra instrumentos legais nacionais para que haja a previsibilidade e a segurança da eficácia das sentenças internacionais. É neste momento que se vislumbra o livre arbítrio do Estado brasileiro em cumprir e, consequentemente, vir a proporcionar eficácia à sentença internacional.319 Julga-se que esse livre arbítrio é uma incoerência generalizada, uma vez que, como já dito inúmeras vezes nesse estudo, o Brasil veio a se obrigar internacionalmente na proteção e, igualmente, na eficácia dos direitos humanos, devendo vir a proporcionar meios que permitam o alcance e o cumprimento de suas obrigações internacionais, independentemente de sua posterior vontade. É indiscutível a necessidade de implementação do ordenamento jurídico interno no âmbito do cumprimento das sentenças internacionais e, também, no comprometimento do Estado brasileiro com as resoluções e recomendações advindas de ambos os órgãos do sistema interamericano de direitos humanos, quais sejam: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nesse sentido, far-se-á a análise, em termos recentes, dos cinco casos brasileiros320 de maior relevância, sobre violações dos direitos humanos, e serão planejadas e discorridas algumas tentativas de melhor implementação e efetivação das decisões e recomendações dos órgãos supracitados. 319 320 A arbitrariedade é tanta que, em dezembro de 2010, em decorrência da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da Guerrilha do Araguaia, o Ministro da Defesa, Nelson Jobim, afirmou, erroneamente, que "naquilo que a Corte (OEA) refere que o Brasil teria que processar os militares envolvidos no incidente, essa matéria é absolutamente ineficaz. Nós não temos, no nosso sistema legal, algo que se sobreponha ao Supremo Tribunal Federal. Inclusive o Poder Executivo não pode tomar nenhuma providência, porque essa matéria é exclusiva de um poder autônomo, que é o STF. Em termos internos, a decisão é completamente anódina". São eles: Damião Ximenes Lopes (Caso 12.237); Gilson Nogueira de Carvalho (Caso 12.058); Arley José Escher e Outros (Caso 12.353); Sétimo Garibaldi (Caso 12.478); e Julia Gomes Lund e Outros (Caso 11.552). 162 2 CASO DAMIÃO XIMENES LOPES – CASO 12.237 O caso Damião Ximenes Lopes é, sem dúvidas, um marco na proteção dos direitos humanos em nível interamericano, uma vez que decorreu na condenação do Estado brasileiro por violação direta e indireta dos direitos humanos. Direta uma vez que Damião Ximenes Lopes veio a falecer devido à inobservância de seus direitos fundamentais, e indireta por conta da justiça brasileira não ter encontrado uma solução, em tempo hábil, para as possíveis condenações e reparações de danos à família da vítima. O Brasil veio a ser condenado, em 2006, na Corte Interamericana de Direitos Humanos por conta de tal caso e, em 2010, cumpriu – parcialmente, de acordo com os entendimentos desse estudo – os termos da sentença em âmbito interno. Passa-se, nesse momento, à análise dos principais pontos dessa questão. 2.1 HISTÓRICO DO CASO O Caso 12.237 trata sobre a morte do senhor Damião Ximenes Lopes, nascido em 25 de junho de 1969 e vítima de deficiência mental de origem orgânica, proveniente de alterações no funcionamento do cérebro, apresentando necessidades específicas. Vivia com sua mãe na cidade de Varjota, situada a uma hora da cidade de Sobral, onde encontrava-se a Casa de Repouso Guararapes, centro de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.321 Já em 1995, Damião Ximenes Lopes veio a ser internado no referido centro, por um período de dois meses, sendo que, quando regressou a sua casa, apresentou feridas nos joelhos, nos tornozelos, alegando que tinha sido vítima de 321 Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Damião Ximenes Lopes – Sentença de 4 de jul. de 2006. 163 violência na Casa de Repouso Guararapes322. Acontece que, nesse momento, seus familiares acreditaram na versão dos funcionários da instituição, que relataram que o próprio paciente tinha se machucado quando tentara fugir. Mais tarde, em 1.o outubro de 1999, em decorrência dos problemas nervosos que estava apresentando, Damião Ximenes Lopes foi, mais uma vez, internado em tal centro, como paciente do SUS. Apresentava perfeitas condições físicas quando da sua entrada. Dois dias após a sua chegada na clínica, o paciente desenvolveu uma crise de agressividade e estava desorientado, tendo sido, até mesmo, retirado à força por um técnico de enfermagem do banheiro, tendo, nesse episódio, sofrido uma lesão no rosto, na altura do supercílio. Ainda nesse dia, Damião Ximenes Lopes teve um novo quadro de agressividade e fora, novamente, submetido à contenção física, quando então o médico da instituição veio a determinar que lhe fosse aplicada uma medicação intramuscular. Já no dia 4 de outubro de 1999, a mãe da vítima, pelo período da manhã, chegou à Casa de Repouso Guararapes para visitá-lo e encontrou-o em uma situação lastimável: estava sangrando, com hematomas pelo corpo, roupas rasgadas, sujo, cheirando a excremento, com as mãos amarradas, com dificuldades para respirar, agoniado e pedindo socorro à polícia. A mãe da vítima, a senhora Albertina Ximenes Lopes, requereu que banhassem seu filho e quis entrar em contato com o médico e também diretor da clínica, Francisco Ivo de Vasconcelos, que havia receitado remédios a seu filho, sem a realização de exames. Não o encontrou e seu filho veio, mais tarde, duas horas após ter sido medicado, às 11 horas e 30 minutos, a falecer. 322 Segundo os termos da própria Sentença da Corte Interamericana, "as condições de confinamento na Casa de Repouso Guararapes eram desumanas e degradantes, a atenção médica aos pacientes era freqüentemente prestada na recepção, inclusive em presença de visitantes, já que por muito tempo o hospital não dispôs de um consultório médico, e freqüentemente faltava a medicação adequada aos pacientes. O hospital não oferecia as condições necessárias e era incompatível com o exercício ético-profissional da medicina. No contexto de violência contra os pacientes, e anteriormente à morte do senhor Damião Ximenes Lopes, ocorreram na Casa de Repouso Guararapes pelo menos duas mortes em circunstâncias violentas, que teriam incluído golpes na cabeça com objetos contundentes e em que os pacientes ingressavam na Casa de Repouso em boas condições físicas e faleciam durante o período de internação". 164 Nota-se que o senhor Damião Ximenes Lopes não recebeu a assistência adequada e faltavam-lhe cuidados específicos, tanto físicos, como psiquiátricos, o que acabou por causar, de maneira determinante, a sua morte. Posteriormente à morte da vítima, o médico Francisco Ivo de Vasconcelos retornou à Casa de Repouso e, examinado o corpo, declarou, falsamente, que o cadáver não apresentava lesões externas e que a causa da morte seria uma parada cardio-respiratória, não tendo sequer ordenado a realização da necropsia do corpo. Os familiares da vítima, então, solicitaram a realização da necropsia, transferindo o corpo para a cidade de Fortaleza, sendo que, no Instituto Médico Legal desse município, constatou-se que: Trata-se de um corpo do sexo masculino, cor parda, cabelos negros, bigode cultivado, barba por fazer, envolto em lençol branco. Apresenta rigidez cadavérica generalizada, pupilas dilatadas, hipóstases de decúbito dorsal e ausência de quaisquer manifestações vitais. Exame externo: escoriações localizadas na região nasal, ombro direito, face anterior dos joelhos e pé esquerdo, equimoses localizadas na região orbitário esquerda, ombro homolateral e punhos (compatível com contenção). Exame interno: não observamos sinais de lesões de natureza traumática internamente; apresenta tem pulmonar e congestão, sem outras alterações macroscópicas de interesse médico legal nos demais órgãos dessas cavidades. Enviamos fragmentos de pulmão, coração, estômago, fígado e rim para o exame histopatológico, que concluiu [que se tratava de] edema e congestão pulmonar moderado, hemorragia pulmonar e discreta esteatose hepática moderada. CONCLUSÃO: […] inferimos tratar-se de morte real de causa indeterminada.323 Já em 13 de outubro de 1999, a mãe da vítima apresentou denúncia à Coordenação Municipal de Controle e Avaliação da Secretaria da Saúde e Assistência Social sobre a morte de seu filho, enquanto que a irmã da vítima apresentou denúncia à Comissão de Cidadania do Estado do Ceará. Já em 8 de novembro de 1999, o Ministério Público solicitou a instauração de uma investigação policial para esclarecer a morte de Damião Ximenes Lopes, sendo que três dias após, a própria Comissão de Cidadania veio a solicitar celeridade no caso. 323 Laudo de exame de corpo de delito – cadavérico – realizado em Damião Ximenes Lopes, no Instituto Médico Legal de Fortaleza, pelo Dr. Walter Porto, em 4 de outubro de 1999. 165 Com provas suficientes, em 27 de março de 2000, o Ministério Público veio apresentar acusação criminal à Terceira Vara da Comarca de Sobral, contra aqueles que incidiram nos maus-tratos seguidos de morte de Damião Ximenes Lopes. Acontece que, infelizmente, a partir de 24 de maio de 2000, a Terceira Vara da Comarca de Sobral obstruiu a justiça do processo, uma vez que, pelo período de dois anos, limitou-se à realização de audiências – as quais, ainda, vieram a ocorrer em momentos posteriores aos anteriormente agendados. Alguns anos após, com a realização dos interrogatórios, dos devidos aditamentos e diligências processuais, um dos acusados solicitou a suspensão da apresentação das alegações finais, fato que, até a data da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2006, não havia sido julgado e, consequentemente, obstruiu a emissão de uma sentença em primeira instância. Ocorre, ainda, que em 6 de julho de 2000, a mãe da vítima instaurou uma ação de reparação de danos, por conta da "dor, tristeza, sofrimento e humilhação que [...] passou e passará pelo resto de sua vida", em decorrência da morte de seu filho. Como já havia uma anterior ação penal, compreendeu-se que se devia esperar a sentença desse processo para julgar a referente ação cível, suspendendo-a pelo prazo máximo de um ano. Como se sabe, até 2006, não houve sentença penal e, consequentemente, não se decidiu a ação de reparação de danos na esfera cível. Ilustra-se, nesse breve histórico, que a justiça brasileira não ofereceu, de forma alguma, a proteção e a efetivação dos direitos humanos do senhor Damião Ximenes Lopes, motivando seus representantes legais a procurarem auxílio do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. 2.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tomou conhecimento do caso já em 22 de novembro de 1999, quando a irmã da vítima, Irene Ximenes Lopes Miranda, apresentou uma petição contra a República Federativa do Brasil, 166 enunciando os fatos que acabaram por determinar a morte de seu irmão, Damião Ximenes Lopes.324 Nesse sentido, em 14 de dezembro de 1999, a Comissão iniciou a tramitação da petição, que adquiriu o número 12.237, remetendo ao Estado brasileiro, com prazo de noventa dias, para apresentação de informações pertinentes à questão. Não apresentadas quaisquer informações por parte do Estado brasileiro, a Comissão admitiu a petição, ressaltando que se tratava sobre o respeito ao direito à vida, à integridade física, à proteção da honra e da dignidade, ao recurso judicial e à obrigação do Estado em respeitar os direitos contidos na Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Ocorre que apenas em 21 de março de 2001, o Brasil, pela primeira vez, veio a apresentar uma contestação sobre o caso. De tal forma, em 20 de junho do mesmo ano, a Comissão determinou a espera por uma proposta de conciliação pelo Estado brasileiro, o qual não apresentou qualquer resposta e, muito menos, uma proposta conciliatória. Com o levantamento e a apuração de dados sobre o caso, sobre o sistema de saúde brasileiro e a situação dos doentes mentais na localidade, a Comissão deu-se por convencida que o Estado brasileiro é responsável pela violação de direito da integridade da pessoa, da vida, da proteção judicial e das garantias judicias, consagrados nos artigos 5, 4, 25 e 8, respectivamente, da Convenção Americana, devido à hospitalização de Damião Ximenes Lopes, em condições desumanas e degradantes, com violações a sua integridade pessoal, seu assassinato e, também, violações da obrigação de investigar os feitos. Igualmente, o Estado violou seu dever genérico de respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção Interamericana, recomendando: 1. a realização de uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos relacionados à morte de Damião Ximenis Lopes [...]; 2. reparar, adequadamente, os familiares da vítima pela violações de direitos humanos determinadas e o pagamento efetivo de uma indenização; 3. adoção das medidas necessárias para evitar novas vítimas.325 324 325 Demanda do Caso Damião Ximenes Lopes contra o Estado brasileiro (caso 12.237), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Id. 167 Em 31 de dezembro de 2003, a Comissão determinou um prazo de dois meses para que o Brasil adote e informe as medidas para cumprir com as recomendações formuladas. Diferentemente das outras situações, o Brasil viera a dar uma resposta rápida à solicitação da Comissão, requerendo que o caso fosse incluso nas audiências e sessões de trabalhos da 119.o Período de Sessões da Comissão Interamericana, fato que viera a se desenvolver. Acontece que, em 8 de março de 2004, os peticionários consideraram de suma importância o envio do caso à Corte Interamericana, em razão de que o Estado não havia cumprido com as recomendações formuladas, especialmente no sentido de realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva, nem reparou adequadamente os familiares de Damião e nem procurou meios para evitar novas vítimas. Em 16 de março de 2004, o Estado brasileiro solicitou à Comissão a prorrogação, por três meses, para prestar suas observações e cumprir as observações. Mais uma vez, três meses após, o Estado requereu uma nova prorrogação. Somente em 23 e 29 de setembro de 2004 é que o Brasil apresentou informes parciais sobre a implementação das recomendações da Comissão. Mesmo assim, configurou-se a falta de cumprimento satisfatório das recomendações da Comissão e, em 30 de setembro de 2004, decidiu-se por submeter o presente caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2.3 A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Logo em 1.o de outubro de 2004, a Comissão apresentou a demanda à Corte e veio a notificar sobre o caso, um mês após, o Centro de Justiça Global, designado, neste caso, como representante da suposta vítima e de seus familiares. Estes dispunham de dois meses para apresentar seu escrito de solicitações, argumentos e provas. Em suma, os representantes salientaram que o Estado não cumpria as obrigações relativas à garantia dos direitos tutelados nos artigos 4 (direitos à vida) e 5 (direito à integridade pessoal), além de ter violado os artigos 8 (garantias judiciais) 168 e 25 (proteção judicial) da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Além, solicitaram que a Corte ordenasse o pagamento, pelo Estado, de danos materiais e morais, além de medidas de não repetição e o reembolso das custas e gastos processuais. Documenta-se que a Corte, segundo tais alegações e analisando as contraposições estatais, admitiu o reconhecimento parcial da responsabilidade internacional efetuada pelo Estado, quando então violou, em detrimento de Damião Ximenes Lopes, em seu âmbito interno, o direito à vida e à integridade pessoal, consagrados nos artigos 4.1, 5.1 e 5.2 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Ainda, reconheceu que o Estado também violou, em relação à família da vítima – seus representantes legais –, o direito à integridade pessoal, consagrado no art. 5 da Convenção Interamericana e, igualmente, o direito às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 8.1 e 25.1, respectivamente). De tal forma, dispôs, por unanimidade, que o Estado brasileiro deverá garantir, por intermédio do processo interno, a investigação e a sanção, em prazo razoável326, dos supostos responsáveis pelos ilícitos. Ainda, condenou o Brasil no desenvolvimento de um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, psiquiátrico e psicológico, além de outro voltado aos técnicos e auxiliares de enfermagem (e todas as outras pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental), no trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria. Deverá o Estado, também, pagar em dinheiro, para a família da vítima, no prazo de um ano: indenização por dano material, no valor de $51.850 (cinquenta e um mil e oitocentos e cinquenta dólares americanos); dano moral, na quantia de $125.000,00 (cento e vinte e cinco mil dólares americanos); custas e gastos processuais, no valor de $10.000.00 (dez mil dólares dos Estados Unidos da América). Por fim, o Brasil deverá cumprir a sentença na íntegra, além de apresentar, à Corte Interamericana de Direitos Humanos, relatórios sobre as medidas adotadas para o seu devido cumprimento. 326 Não há menção expressa sobre o que poderá vir a ser prazo razoável: fato que pode, ainda mais, obstruir a efetivação dos direitos humanos em solos brasileiros. 169 2.4 O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL Primeiramente, cabe ser dito que a referida sentença internacional, no caso Damião Ximenes Lopes, foi reconhecida pelo Estado Brasileiro e, desde logo, tratou o Estado de achar formas eficazes de implementação no âmbito interno. Prova disso é que um dia após a promulgação da sentença pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Ministério das Relações Exteriores, em nota de n.o 512, veio a declarar que: O Estado brasileiro já está estudando as formas necessárias para dar pleno cumprimento a todos os itens da sentença da Corte. No que diz respeito, especificamente, à garantia de maior celeridade à ação penal, está sendo constituído grupo, que deverá ser integrado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Conselho Nacional de Justiça, Ministério das Relações Exteriores e Advocacia-Geral da União, para agilizar este e outros processos judiciais internos cujos objetos estão sob consideração dos órgãos internacionais de proteção e promoção dos direitos humanos.327 Deve-se pontuar que o cumprimento da sentença iniciou-se em 17 de agosto de 2007, quando então a União veio a pagar a indenização devida à família da vítima. Um ano após, a Corte emitiu uma resolução sobre o cumprimento da sentença em solos brasileiros, alertando o país que o seu cumprimento não repousa apenas no pagamento da indenização, requerendo que o Brasil também remetesse informações atualizadas e detalhadas sobre o estado da investigação penal e sobre os avanços no tratamento de doentes mentais. Assim sendo, em 27 de junho de 2008, finalmente, houve a prolação da sentença no âmbito da ação cível, proposta pela família da vítima para a devida reparação material. Mais tarde, em 29 de junho de 2009, prolatou-se a sentença em âmbito penal, pelo juiz da 3.a Vara da Comarca de Sobral, condenando os envolvidos na 327 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/>. Acesso em: 23 fev. 2011. 170 morte de Damião Ximenes Lopes328, pelo crime de maus-tratos que resultaram na morte da vítima. Com essas duas condenações, seria possível dizer que houve o cumprimento de mais uma determinação da sentença da Corte? Teriam sido elas prolatadas em prazo razoável? Esse vem a ser um problema não apenas do cumprimento da sentença internacional, mas sim de todo o judiciário brasileiro: a demora na prolação das sentenças e na finalização de um caso. Logicamente, existem diversas razões para que se justifique a demora processual na justiça brasileira (excesso de ritos no conhecimento da causa, protelação por intermédio de recursos, ineficácia no cumprimento da decisão, excesso de demandas, entre inúmeras outras), mas o que é necessário ser entendido é que, no que tange aos direitos humanos, não cabe qualquer atraso na demanda processual, sendo que, nesse limiar, qualquer justificativa acaba por ser esmagada pelo interesse e necessidade de proteção e efetividade desses direitos. Assim sendo, deve ser dito que o caso Damião Ximenes Lopes iniciou-se com a ineficácia e demora injustificada da justiça no âmbito interno, configurou o descaso do governo brasileiro – e seus representantes – quando da apresentação da questão à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e findou-se com a alarmante demora do Brasil em fazer cumprir, em âmbito interno, o teor integral da sentença internacional. Sem dúvidas, o esforço em reconhecer a referida sentença, nesse caso, foi realizado de forma efetiva pelo Brasil, mas faltou-lhe muito o empenho em cumpri-la em prazo razoável, o qual, quando se encontra na esfera dos direitos humanos, deve ser realizável em urgência máxima e absoluta. O Brasil deveria, nesse caso, ter dado mais atenção logo quando a situação chegou ao conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Como não acontecera, deveria, ao menos, ter proporcionado, em vias internas, o cumprimento do teor integral da sentença em tempo menor que os quase quatro anos da demora. 328 São eles: Sérgio Antunes Ferreira Gomes (proprietário da casa de repouso), Carlos Alberto Rodrigues dos Santos (auxiliar de enfermagem), André Tavares do Nascimento (auxiliar de enfermagem), Maria Salete Moraes Melo de Mesquita (enfermeira-chefe), Francisco Ivo de Vasconcelos (médico) e Elias Gomes (auxiliar de enfermagem). 171 Finalmente, cabe uma última ressalva: o Brasil fora condenado, também, no desenvolvimento de programas de capacitação dos agentes que lidam com doentes mentais. Até hoje, ano de 2011, não se desenvolveu qualquer programa eficaz nesse âmbito, decorrendo, então, a seguinte indagação: até que ponto se deu o cumprimento da sentença do Caso 12.237 e quantas, ainda hoje, não serão as vítimas em situações análogas às de Damião Ximenes Lopes? 3 CASO GILSON NOGUEIRA DE CARVALHO – CASO 12.058 Juntamente com o caso Damião Ximenes Lopes, interessa discorrer algumas peculiaridades do caso Gilson Nogueira de Carvalho. Pontuam-se ambos os casos como os primeiros, contra o Estado brasileiro, perante o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. Apesar do Brasil ter sido, nesta situação, absolvido, é de importância suprema o entendimento da questão, até mesmo para se compreender que há sim a possibilidade do Estado não ser condenado, em um tribunal internacional, quando uma questão é levada a seu conhecimento. 3.1 HISTÓRICO DO CASO Gilson Nogueira de Carvalho, com 32 anos no momento de sua morte, era um advogado ativista dos direitos humanos, tendo dedicado boa parte de seu trabalho na denúncia dos crimes cometidos pelos Policiais Meninos de Ouro e no impulso às causas penais já iniciadas.329 Trabalhava para a organização não-governamental de promoção e defesa dos direitos humanos, Centro de Direitos Humanos e Memória Popular – filiada ao Movimento Nacional de Direitos Humanos –, cuja missão era lutar, de maneira 329 Demanda do Caso Gilson Nogueira de Carvalho contra o Estado brasileiro (caso 12.058), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 172 frontal, contra a impunidade no estado do Rio Grande do Norte, centrando seu trabalho na denúncia das atividades criminais dos Policiais Meninos de Ouro. Como parte de suas atividades profissionais, Gilson Nogueira de Carvalho apresentou ao Ministério Público, em nome do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, uma notitia criminis, cuja qual deu ensejo a uma investigação de diversos homicídios, torturas e sequestros cometidos pelos Policiais Meninos de Ouro. Tal investigação clareou nomes de vítimas e descrições de feitos concretos atribuídos a tal grupo. Em decorrência da denúncia, criou-se uma comissão especial de fiscais do Ministério Público, com o objetivo de investigar os crimes cometidos pelo referido grupo. Esta comissão, após a escuta de diversas testemunhas e a colheita de várias evidências, apresentou acusação contra membros dos Policiais Meninos de Ouro, incluindo, até mesmo, o Subsecretário de Segurança Pública do estado do Rio Grande do Norte. Também, a referida comissão veio a publicar informes e assegurou que todos os crimes investigados eram de responsabilidade da polícia civil e de empregados da Secretaria de Segurança Pública. Assim sendo, subentende-se que as denúncias de Gilson Nogueira de Carvalho vieram a ocasionar a acusação criminal de diversos policiais e funcionários do estado. Também, ocorrera a difusão da existência de um grupo de extermínio, por intermédio dos meios locais e nacionais de comunicação, motivando a atuação do Governo Federal. Em meio a este cenário, Gilson Nogueira de Carvalho recebera inúmeras ameaças de morte330, especialmente pelo desenvolvimento de suas atividades profissionais de proteção e promoção de defesa dos direitos humanos. Assim sendo, o Governo Federal lhe disponibilizou uma proteção específica, por intermédio da polícia federal, a partir da data de seis de setembro de 1995. Acontece que, sem motivação alguma, na data de quatro de junho de 1996 – quatro meses antes de seu assassinato –, por ordem do chefe de gabinete do Ministério da Justiça, Dr. José Gregori, cumprindo determinações do próprio Ministério, a referida proteção foi suspensa. 330 Viera a relatar, em 16 de agosto de 1995, tais ameaças à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, requerendo uma especial proteção. 173 Na data de 19 de outubro de 1996, Gilson fora uma festa pública, acompanhado de uma jovem que havia conhecido poucos dias antes. Segundo seu amigo, Juney Pinheiro Lucas, a jovem insistiu que Gilson a levasse a seu sítio, em Macaíba. Pouco tempo depois, Gilson e a jovem deixaram o local, em direção a seu sítio. Ocorre que o referido amigo morava nas proximidades do sítio de Gilson e deixou a festa no mesmo período que os dois, podendo notar que eles estavam sendo seguidos por um automóvel. Poucos minutos após chegar a sua casa, o amigo de Gilson ouviu alguns tiros, fato que motivou sua ida imediata ao sítio do referido. Chegando lá, encontrou Gilson morte e a jovem com o telefone celular dele em suas mãos. Segundo depoimento da jovem, logo que ela e Gilson chegaram ao sítio, por volta da meia noite e meia, do dia 20 de outubro de 1996, três homens, que estavam a bordo do automóvel, atiraram com uma escopeta e um rifle em direção de Gilson, não tendo acertado a jovem. O homicídio de Gilson Nogueira de Carvalho teve ampla difusão no país, fato que motivou o governador do Rio Grande do Norte declinar a competência do fato em favor da investigação da Polícia Federal, justificando a necessidade de assegurar a imparcialidade das investigações. Também, o referido governador, logo após o homicídio, resolveu afastar do cargo o Subsecretário de Segurança Pública de seu estado, dando como motivos a existência de acusações sobre a possibilidade de seu envolvimento com grupos de extermínio. De tal forma, já em 25 de outubro de 1996, a Polícia Federal iniciou a investigação331 com o depoimento da jovem que estava com Gilson quando de seu assassinato. A jovem declarou que teria pedido a Gilson que a levasse a sua casa e que não queria ter ido ao sítio do rapaz. Ocorre que a mãe da jovem, em um jornal local, relatou que sua filha havia mentido em seu testemunho à polícia federal, uma vez que havia sido pressionada, pela própria polícia, a não contar nada sobre o ocorrido. Ao mesmo tempo, o amigo de Gilson, Juney, declarou que havia presenciado a insistência da jovem em ir ao sítio: contradição entre as testemunhas que nunca foi solucionada. 331 Investigação n.o 296/96/-SR/DPF/RN. 174 Nessa investigação, o Ministério Público observou que os policias a cargo de tal omitiram perguntas fundamentais às pessoas que poderiam ter interesses na morte de Gilson, tendo sido, tal investigação, arquivada, por ordem judicial de 19 de junho de 1997. Não satisfeito, o Ministério Público ordenou, em 24 de setembro de 1998, a reabertura da investigação. Como parte de sua fundamentação, a referida instituição ressaltou que Antonio Lopes, amigo de Gilson, havia realizado uma investigação por sua própria conta, mediante gravações de entrevistas, e tinha encontrado fortes indícios a respeito da autoria do homicídio em um elemento identificado como "Chicão". Absurdamente após tais revelações, Antonio Lopes também viera a ser assassinato. Assim, em 15 de novembro de 1998, policiais federais executaram busca e apreensão na propriedade de Otavio Ernesto Moreira, policial afastado da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Norte, e ali encontraram duas metralhadoras, duas escopeta e uma pistola. A referida pessoa foi, logo após tal fato, detida preventivamente. Ocorre que, até aqui, como bem se sabe, o Estado brasileiro ainda não havia reconhecido a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Após essa data, a partir de 10 de dezembro de 1998, o caso Gilson contou com a possibilidade de ser levado a tal instância. Ainda na mesma data supracitada, peritos do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal determinaram que Gilson tinha sido morto por uma bala de escopeta, tal qual tinha sido encontrado na casa de Otavio Ernesto Moreira – que declarou que a arma era de seu uso pessoal. Assim, em 25 de janeiro de 1999, o Ministério Público formulou denúncia contra o ex-policial Otavio Ernesto Moreira, pelo homicídio de Gilson Nogueira de Carvalho. O caso fora levado a júri popular que entendeu que Otavio seria inocente e, em 7 de junho de 2002, o juiz que cuidava do feito decidiu pela sua absolvição. Então, em 28 de agosto de 2002, o Ministério Público apelou da decisão, solicitando a realização de um novo júri, com novos jurados, uma vez que a decisão fora contra as provas apresentadas nos autos. Além do Ministério Público, os pais de Gilson, por intermédio de seu advogado, também apelaram da decisão. 175 Acontece que ambos os recursos foram indeferidos e, assim sendo, valeu-se a decisão acima discorrida, obstando aos pais de Gilson uma compensação pelos danos sofridos e impossibilitando a identificação e a sanção aqueles que cometeram o homicídio. 3.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS O Caso Gilson Nogueira de Carvalho chegou a conhecimento da Comissão já em 11 de dezembro de 1997, quando então ocorrera a apresentação de uma petição pelo Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, pelo Holocaust Human Rights Project e pelo Grupo de Estudantes de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Além deles, mais tarde, em 2000, a Justiça Global incorporou-se ao caso como co-peticionária. Na referida petição, os peticionários salientaram a responsabilidade do Estado pela morte de Gilson, alegando que o Brasil havia faltado com a sua obrigação de garantir ao referido cidadão o direito à vida, além de não ter realizado uma investigação séria sobre sua morte, nem processado os responsáveis e muito menos promovido os recursos judiciais adequados. Em de janeiro de 1998, a Comissão transmitiu as informações ao Estado e às partes pertinentes da denúncia, dando-lhes o prazo de 90 dias para que prestasse informações sobre o caso. Acontece que, por diversos motivos – tais como a tradução ao português da petição –, o prazo do país para prestar esclarecimentos acabou por ser prolatado, mas, assim mesmo, até abril de 1999, o Brasil não havia apresentado a sua resposta, fato que levou a Comissão a conceder-lhe um prazo de mais 30 dias, mas advertindo-o sobre a possibilidade da aplicação do art. 42 do Regulamento da Comissão (presumindo a veracidade dos fatos alegados, caso não houvesse resposta do Estado). Apenas em 29 de junho de 2000 é que o Estado foi informar que, segundo a Procuradoria Geral de Justiça do Rio Grande do Norte, o processo sobre o homicídio de Gilson se encontrava em fase de pronúncia. 176 Mais adiante, em 2 de outubro de 2000, a Comissão aprovou o Relatório de Admissibilidade n.o 61/00, ressaltando a possibilidade da denúncia ser recebida e salientando que "o silêncio do Estado (sobre esgotamento dos recursos internos) constitui, no presente caso, uma renúncia tácita à invocação da exigência". Seleciona-se que tal relatório fora enviado tanto aos peticionários, como ao Estado e, em 29 de agosto de 2003, a Comissão colocou-se à disposição das partes para que fosse encontrada uma solução amistosa ao caso. Ocorre que três dias após, os peticionários declararam que gostariam de continuar com a análise do mérito da causa, antes de se chegar a uma solução amistosa – fato este que o Estado não se pronunciou. Em 10 de março de 2004, a Comissão veio a concluir que o Estado seria responsável pela violação dos direitos estabelecidos nos artigos 4 (direito à vida), 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana, recomendando, em 13 de abril do mesmo ano, ao Estado a adoção de uma séria de medidas para sanar tais violações, fixando um prazo máximo de dois meses para que informasse sobre o cumprimento de tais recomendações. Acontece que o Estado solicitou, por duas vezes, a prorrogação do prazo e, em 18 de maio de 2004, os peticionários requereram à Comissão, a submissão do caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mais tarde, de 10 de agosto de 2004 a 12 de janeiro de 2005, o Brasil apresentou vários relatórios acerca do cumprimento das recomendações formuladas pela Comissão, informando, inclusive, em que fase processual estava o processo de homicídio no âmbito interno e o desenvolvimento de um programa de proteção dos direitos humanos. Viera informar, ainda, que o principal acusado no processo havia sido absolvido em primeira instância, mas como era de interesse do Ministério Público em interpor recurso à decisão até os tribunais superiores, então as etapas recursivas ainda não se apresentavam conclusas. Novamente, em 21 de dezembro de 2004, os peticionários alegaram que "era extremamente importante o envio do caso para a Corte Interamericana [...] uma vez que o Estado [...] não havia cumprido com as três recomendações formuladas pela Comissão". Logo, em 13 de janeiro de 2005, a Comissão apresentou a demanda perante a Corte, anexando prova documental e oferecendo prova testemunhal e pericial como fundamentos. 177 3.3 O CASO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Como dito anteriormente, o caso 12.058 chegou à Corte em 13 de janeiro de 2005, quando então a Comissão veio apresentá-lo perante este órgão. Fora informado à Corte, mediante sua solicitação, pelos representantes de Gilson, que ao Estado caberia a sua responsabilização em plano internacional, uma vez que não investigou a morte do referido cidadão, não sancionou seus responsáveis e incorreu na violação dos artigos 4 (direito à vida), 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Interamericana. Além, requereram ao órgão que ordenasse o pagamento, pelo Estado, de danos materiais e morais, imputasse a adoção de medidas de não repetição e garantisse o reembolso das custas e gastos processuais. Ocorre que, em 21 de junho de 2005, o Estado interpôs, perante a Corte, primeiramente, exceções preliminares de incompetência ratione temporis da Corte, alegando que a Comissão, embora discorresse sobre violações dos artigos 8 e 25 da Convenção, tinha por objetivo, na realidade, a declaração da violação do direito à vida. Também, apresentou exceções preliminares de não esgotamento dos recursos internos. Ambas as exceções foram consideradas, pela Comissão, infundadas e requereu que fossem julgadas improcedentes. No que tange às exceções preliminares de incompetência ratione temporis, a Corte entendeu que é sim competente para examinar as ações e omissões relacionadas às violações contínuas ou permanentes, mesmo que essas tenham início antes mesmo da data do reconhecimento de sua competência pelo Estado. Consequentemente, entendeu ser competente para julgar o caso 12.058 e considerar improcedente tal exceção preliminar do Estado brasileiro. Julgando as exceções preliminares de não esgotamento dos recursos internos, entendeu-se que o momento oportuno para suscitar tal exceção seria quando da interposição da petição à Comissão, fato que não ocorrera e acabou, como já dito anteriormente, por presumir-se a renúncia tácita do Estado a tal argumentação. Indeferiu, então, a Corte, tal exceção. 178 Apesar de ambas as vitórias por parte dos representantes da vítima, a Corte viera a decidir, por unanimidade, o arquivamento do caso, uma vez que entendeu ser o suporte fático limitado para demonstrar que o Estado teria mesmo violado os direitos às garantias judiciais (art. 8.o) e à proteção judicial (art. 25 da Convenção Interamericana). Finalmente, declarou que a Corte lembra que compete aos tribunais do Estado o exame dos fatos e das provas apresentadas nas causa particulares. Não compete a este Tribunal substituir a jurisdição interna, estabelecendo as modalidades específicas de investigação e julgamento num caso concreto, para obter um resultado melhor ou mais eficaz, mas constatar se nos passos efetivamente dados no âmbito interno, foram ou não violadas obrigações internacionais do Estado, decorrentes dos artigos 8 e 25 da Convenção. Assim, entendeu que não se demonstrou que o Estado tenha violado os direitos à proteção e às garantias judiciais [...], com relação à Jaurídice Nogueira de Carvalho e Geraldo Cruz de Carvalho (pais da vítima).332 3.4 REPERCUSSÃO DA DECISÃO NO BRASIL Apesar de ter sido absolvido na Corte Interamericana de Direitos Humanos, o caso Gilson Nogueira de Carvalho repercutiu no âmbito interno. Primeiramente, é cabível ser mencionado o fato de que, mesmo tendo ocorrido antes do reconhecimento, pelo Estado brasileiro, da jurisdição da Corte, o caso pôde ser levado a seu conhecimento. É que, como bem se argumentou na sentença da Corte, caso a violação do direito inicie-se anteriormente ao seu reconhecimento, mas torne-se continua após este prazo, é passível de ser conhecida por este órgão. Este se tornou um marco importante no entendimento da competência da Corte Interamericana, especialmente no que tange à submissão do Estado brasileiro. Acontece que, adentrando ao mérito da sentença internacional, muito se criticou, especialmente pelos defensores de direitos humanos. Falou-se que, apesar da Organização dos Estados Americanos reconhecer a necessidade de apoio às tarefas dos defensores dos direitos humanos, em sua promoção, proteção e respeito, a Corte veio a decidir pelo arquivamento do processo, alegando falta de suporte fático, 332 Decisão do Caso Gilson Nogueira de Carvalho contra o Estado brasileiro (caso 12.058), da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 179 no principal caso em que se pôde traduzir o abuso, a violação e a perseguição aos defensores dos direitos humanos. Ecoou ainda mais em solos brasileiros, quando então a Comissão, em desacordo com a sentença da Corte, entendeu que como consequência das violações dos direitos dos defensores dos direitos humanos é que se repele a voz de mais defensores em solos nacionais, uma vez que tais violações têm, por objetivo, causar temor generalizado, desestimular defensores de direitos humanos e silencias denúncias, alimentando a impunidade e impedindo a plena realização da defesa de tais direitos e, em último grau, da própria democracia. Assim, por mais que a sentença internacional estivesse em acordo com os ditames processuais da Corte, seria sim o momento do Brasil mostrar a prevalência dos direitos humanos internamente e fazer, diferentemente do que fora a sua postura, uma flexibilização dos ditames processuais da Corte, relevando o mérito da causa, atinente à violação dos direitos humanos. E em relação ao Brasil, observa-se claramente que, de uma maneira ou de outra, violações maciças de direitos humanos estariam, no Rio Grande do Norte, ocorrendo, de maneira ininterrupta. E, mesmo tendo sido o caso em questão arquivado, está mais do que na hora do Brasil agir em prol dos direitos humanos daqueles que, bravamente, os defendem. 4 CASO ARLEY JOSÉ ESCHER E OUTROS – CASO 12.353 Adentrando à avaliação do Caso Arley José Escher e outros (Caso 12.353), julga-se, logo em um primeiro momento, que tal conta com peculiaridades específicas, uma vez que versa em torno de violações, cometidas pelo Brasil, de direitos ainda não demandados, por cidadãos brasileiros, no sistema interamericano de proteção. Examina-se, ainda, que as referidas violações – materializadas no desrespeito aos direitos de proteção da honra, da dignidade, da liberdade de associação, das garantias judiciais e da proteção judicial – são frutos de interceptação e monitoramento 180 ilegal de linhas telefônicas de cooperativas de trabalhadores ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).333 Com a devida prova de que, em âmbito interno, não houvera uma efetiva reparação dos direitos violados, o caso chegou ao sistema interamericano, vindo a ser debatido, primeiramente, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Após constata-se que as violações descritas na petição não haviam, realmente, sido reparadas em âmbito interno, a Comissão determinou que o Brasil adotasse algumas medidas. Acontece que o Estado não as adotou, tendo, então, o referido órgão levado o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos que, em julho de 2009, emitiu sentença condenando o Estado brasileiro. Tendo em vista esse breve quadro, exprime-se, a seguir, um estudo mais detalhado do caso. 4.1 HISTÓRICO DO CASO No primeiro momento da análise do Caso 12.353, imprescindível se faz conjugar, às violações de direitos, o próprio contexto social brasileiro, uma vez que a própria questão em si versa, em termos genéricos, sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Dessa maneira, remonta-se ao ano de 1964, quando o então Presidente Castelo Branco promulgou a primeira Lei de Reforma Agrária do Brasil (o Estatuto da Terra), propondo a modificação da distribuição da terra no Estado. Ocorre que não ocorrera a implementação de tal situação, transformando, tal documento, apenas em um desarticulador dos conflitos de terras.334 Mesmo nos anos de ditadura militar, quando as perseguições às organizações dos trabalhadores rurais era uma constante, a luta pela reforma da distribuição das 333 334 O MST é um movimento social camponês, autônomo, que luta pela Reforma Agrária e por transformações sociais no Brasil. Fundado no ano de 1983, é composto por antigos posseiros, migrantes, meeiros, parceiros, pequenos agricultores, entre outros não proprietários de terras. (Disponível em: <http://www.mst.org.br/>. Acesso em: 26 maio 2011). Demanda do Caso José Arley Escher e Outros contra o Estado brasileiro (caso 12.353), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 181 terras cresceu intensamente e, em 1975, desenvolveu-se a primeira organização dos trabalhadores rurais sem terra do Brasil, a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Alguns anos mais tarde, ao final de 1983, operou-se o início de um movimento com objetivos e linha política definidos, sendo que, em 1985, em Curitiba, Paraná, o MST realizou, de fato, o seu primeiro Congresso Nacional. Evocou, como lema, "ocupação como a única solução", tendo, desde então, ocupado mais de 3.900 propriedades no Estado brasileiro. Sem visar um debate sobre a licitude e a moralidade do MST, fato é que o Brasil caracteriza-se por uma alta concentração de terra e uma crescente mobilização de setores sociais para sua melhor distribuição. Essa mobilização, sem respaldo para dúvidas, provocou reações violentas por parte de setores latifundiários que, em alguns casos, contaram com a aquiescência e conivência de certos órgãos governamentais. Aponta-se que tal violência335 concentrou-se, especialmente, nos líderes dos movimentos e naqueles que pregavam os direitos humanos dos trabalhadores rurais, visando o temor generalizado e, por conseguinte, desanimar outros que poderiam defender tais movimentos. É nesse contexto político-social que se desenvolvem as violações do Caso 12.353, iniciadas logo em maio de 1999, quando o então Major Copetti Neves, do Quadro de Oficiais da Política Militar do Paraná, solicitou à Juíza Elisabeth Kather, da Comarca de Loanda, com fulcro na Lei n.o 9.296, de 1996, a autorização para que a empresa de Telecomunicações do Paraná (TELEPAR) interceptasse e monitorasse linhas telefônicas de determinada cooperativa de trabalhadores, ligada ao MST. O supracitado Major declarou, como fundamento de seu pedido, que as vítimas usavam as referidas linhas de telefone para o apoio fundamental à consecução de seus crimes e, de tal maneira, demonstrava-se por essencial à Polícia, o monitoramento dessas comunicações. Precisa-se que, por intermédio de uma simples anotação à margem da própria solicitação, sem qualquer fundamentação, a Juíza deferiu o pedido da Polícia, em cinco de maio de 1999, não dando sequer notícia da decisão da interceptação ao 335 De acordo com os estudos realizados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, constata-se que a violência mostrou-se mais intensa nos governos democráticos que na época da ditadura militar, uma vez que a criação e a atuação das milícias privadas eram patrocinadas por latifundiários. Prova-se uma estreita relação entre os mandantes dos crimes e as estruturas locais de poder. 182 Ministério Público – atitude que seria legalmente obrigatória – e nem atinando ao fato de que não competiria à Polícia Militar a referida investigação criminal. Correlacionadas a todas essas irregularidades, ressalta-se que apesar da autorização de monitoramento ter sido concedida apenas para uma única linha telefônica, a interceptação também fora efetuada em outra linha, de uma cooperativa também ligada ao MST. Nesse quadro, durante 49 dias, os telefonemas foram gravados e, em primeiro de julho de 1999, o já citado Major Waldir Copetti Neves entregou à Juíza de Loanda, 123 fitas com conversas gravadas das linhas interceptadas. Ocorre que, anteriormente a essa data, em oito de junho de 1999, fragmentos das gravações obtidas foram reproduzidas pelo noticiário de um canal de televisão local e, também, por diversos jornais da imprensa escrita. Segundo tais gravações, constatou-se que as conversas consistiam, majoritariamente, sobre as atividades promovidas por esses movimento (ocupação de terras, perseguição de seus membros, entre outros pontos). Mesmo que com essa prévia reprodução, o conteúdo das gravações fora, oficialmente, divulgado mais tarde em uma coletiva de imprensa, por ordem do então secretário de Segurança Pública do Paraná, Cândido Martins de Oliveira. O problema que se desencadeou foi a questão de que as gravações estavam, nitidamente, editadas de maneira tendenciosa, insinuando o desvio de verbas repassadas pelo governo, além de ameaças à segurança de autoridades locais. Contribui, assim, de maneira incisiva para o processo de criminalização do MST. Consequentemente, alguns de seus membros, afetados por tais interceptações e divulgações, interpuseram, em primeiro de abril de 2000, mandado de segurança, impugnando o ato mediante o qual a Juíza de Loanda autorizara a interceptação e monitoramento da linha telefônica. Quatro dias após, em cinco de abril, rejeitou-se tal remédio constitucional, alegando que a escuta telefônica havia sido suspensa antes do referido processo. Então, mediante a situação desfavorável, as vítimas interpuseram, perante o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e no âmbito do mesmo processo, embargos de declaração, declarando a existência de omissões na rejeição. Mais uma vez, em sete de junho de 2000, o recurso fora rejeitado. 183 Nesse momento, ainda, o Tribunal decidiu que o pedido de destruição das gravações obtidas não poderia ser atendido, pois a resolução que havia indeferido a petição anteriormente proposta não analisara o mérito da causa – motivo que não permitia o debate sobre a existência de omissão na resolução. Incansáveis, em 19 de agosto de 2000, as vítimas interpuseram denúncia perante o Ministério Público, motivando-a nos delitos contra elas cometidos. Mais uma vez, em seis de outubro do mesmo ano, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná expediu uma resolução rejeitando a denúncia e absolvendo dos delitos de usurpação da função pública, abuso de autoridade e crime de responsabilidade a Juíza de Loanda (Elisabeth Khater), o Subcomandante de Chefe do Estado-Maior da Polícia Militar (Coronel Valdemar Kretschmer), o Major Waldir Copetti Neves e o Terceiro Sargento do 8.o Batalhão da Polícia Militar (Sargento Valdecir Pereira da Silva). No mesmo momento, remeteu-se a causa relativa ao Secretário de Segurança Pública (Cândido Manuel Martins) ao Juizado de Primeira Instância Penal, ante a possível adequação de conduta – uma vez que se divulgou, à imprensa, a informação presente nas gravações obtidas nas linhas monitoradas – ao tipo penal do art. 10, da Lei n.o 9.296/96. Assim, o Secretário em questão fora condenado no Processo Penal o n. 82.516-5, pelo delito de quebrar o segredo de justiça sem autorização judicial. Teve sua pena substituída, já na sentença, por serviços comunitários e ao pagamento de dez dias de multa. Já contando com uma pena branda, o Secretário beneficiou-se ainda mais quando o Tribunal de Segunda Instância do Estado do Paraná, em outubro de 2004, reverteu sua condenação e absolveu-o, considerando que os conteúdos das conversas não foram por ele divulgados aos meios de imprensa na entrevista que este concedera, pois já haviam sido tornados públicos anteriormente. Provando, então, que os direitos violados das vítimas – quando então da interceptação e monitoramento de suas linhas telefônicas, além das insinuações de atitudes criminosas das referidas pessoas – não foram sequer analisados, em seu mérito, pela justiça brasileira, inquestionável se traduz a possibilidade da análise das violações pelo sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e, assim sendo, segue-se o estudo do caso na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 184 4.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS O Caso 12.353 inicia-se na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 26 de dezembro de 2000, quando então fora lhe proposta denúncia, apresentada pelas organizações Rede Nacional de Advogados Autônomos Populares (RENAAP) e pelo Centro de Justiça Global (CJG).336 Segundo o seu teor, alegou-se que as vítimas teriam os seguintes direitos violados, de acordo com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos: violação do direito à proteção da honra e da dignidade (art. 11); violação do direito à liberdade de associação (art. 16); violação do direito às garantias judiciais (art. 8.1); violação do direito à proteção judicial em relação com a obrigação geral de garantir os direitos humanos (art. 25.1); e a violação do dever de adotar disposições de direito interno (art. 1.1). Conjugou-se, ainda, os referidos pedidos: reparação das violações das vítimas, em concordância com o teor do art. 63.1 da Convenção; compensação dos seus danos materiais e morais, uma vez que o Estado não cumpriu com o seu dever de proteção dos direitos humanos; e a inserção de medidas de satisfação e garantias de não repetição pelo Estado brasileiro. Assim, logo em 27 de dezembro de 2000, a Comissão transmitiu a denuncia ao Brasil, vindo, juntamente, solicitar que este apresentasse uma resposta no prazo de noventa dias – prazo que não fora respeitado. Então, em oito de agosto de 2001, os peticionários solicitaram que se realizasse uma audiência sobre o caso, sendo tal instaurada na data de 14 de novembro de 2001, onde as partes puderam discutir as questões de admissibilidade da questão. Então, logo ao encerramento da audiência, o Estado brasileiro veio a apresentar, por escrito, sua posição a respeito da admissibilidade do caso, transmitida aos peticionários em 26 de novembro de 2001. Tais peticionários apresentaram resposta à posição do Estado em 22 de janeiro de 2002, a qual fora imediatamente transmitida ao último. 336 Demanda do Caso José Arley Escher e Outros contra o Estado brasileiro (caso 12.353), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 185 Mais tarde, em 15 de outubro de 2002, fora realizada uma reunião de trabalho, com a presença de ambas as partes, na sede da Comissão. Esse órgão, na busca pela verdade sobre a causa, desenvolveu seus trabalhos por alguns anos. Nesse sentido, apenas em dois de março de 2006 é que veio a declarar, formalmente, a admissibilidade do caso José Arley Escher e outros, transmitindo, em 19 de abril do mesmo ano, o Relatório de Admissibilidade às partes. Concedeu, nesse momento, prazo de dois meses aos peticionários, para que propusessem suas alegações sobre o mérito. Colocou-se, ainda, à disposição das partes para o encontro de uma solução amistosa, nos conformes do art. 48.1, f, da Convenção Americana. Por conta de problemas atinentes ao recebimento de notificações, os peticionários vieram a apresentar as alegações sobre o mérito da questão apenas em 10 de julho de 2010, tendo sido encaminhadas ao Estado 15 dias após a data anterior, concedendo-lhe, também, prazo de dois meses para a apresentação de resposta. Requerida a prorrogação do prazo, o Estado apresentou resposta em 30 de novembro de 2006 e, em sete de dezembro, remeteu-se aos peticionários, concedendo-lhes prazo de um mês para observações. Após esse período, em oito de janeiro de 2007, os peticionários apresentaram observações sobre as informações alegadas pelo Estado, remetidas, mais uma vez, a este último. Finalmente, no intermédio do Centésimo Vigésimo Sétimo período Ordinário de Sessões, em oito de março de 2007, a Comissão veio a aprovar o Relatório de Mérito 14/07337, concluindo, então, que o Estado brasileiro violou os direitos consagrados nos artigos 8.1, 11, 16 e 25 da Convenção Americana, não cumprindo, igualmente, as obrigações gerais, do mesmo documento, constante em seus artigos 1.1, 2 e 28. Além disso, recomendou que o Brasil: a) realizasse uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos, com o objetivo de estabelecer as responsabilidades civis e administrativas com respeito dos fatos relacionados com as interceptações 337 Demanda do Caso José Arley Escher e Outros contra o Estado brasileiro (caso 12.353), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, p.4. 186 telefônicas e com as gravações realizadas de forma arbitrária; b) reparasse, plenamente – material e moralmente –, Arley José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, além dos familiares de Eduardo Aghinoni, pelas violações de direitos humanos; c) aprovasse e implementasse medidas destinadas a preparar funcionários da justiça e da polícia, a fim de evitar ações, em investigações, que impliquem violações do direito de privacidade; e d) aprovasse e implementasse ações imediatas para assegurar o cumprimento dos direitos estabelecidos nos artigos 8.1, 11, 16 e 25 da Convenção Americana, para que os cidadãos brasileiros tivessem tais direitos assegurados. Transmitido o referido Relatório ao Estado brasileiro em dez de abril de 2007, concedeu-lhe o prazo de dois meses para que informasse sobre ações executadas com o intuito de implementar as referidas recomendações. Na mesma data, ainda, informou aos peticionários sobre a aprovação do Relatório e a remessa ao Estado, dando-lhes o prazo de dois meses para que manifestassem sua posição em relação à eventual submissão do caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, e, logo em dez de maio de 2010, os peticionários expuseram seu desejo de que o caso fosse encaminhado à Corte. Por outro lado, o Brasil veio, em 24 de maio de 2007, solicitar a prorrogação do seu prazo para implementação das medidas, alegando a alta complexidade na articulação interna dos diferentes atores responsáveis pelo cumprimento das recomendações e a falta de tempo para elaboração de um relatório completo e preciso. A Comissão entendeu a consideração do Estado e, em cinco de junho de 2007, concedeu-lhe uma prorrogação de três meses, suspendendo, igualmente, o prazo para o envio do caso à Corte (art. 51.1 da Convenção Americana). Então, em 11 de setembro de 2007, o Brasil enviou à Comissão um relatório sobre o cumprimento parcial sobre as recomendações formuladas, requisitando, ainda, uma segunda prorrogação – dessa vez por seis meses – do prazo do disposto no art. 51.1 da Convenção Americana, objetivando o cumprimento integral das recomendações relativas ao caso, esclarecendo, ainda, que não pretendia eximir-se de suas responsabilidades internacionais. Investiga-se que os peticionários apresentaram suas observações sobre o relatório de cumprimento parcial do Estado em 27 de setembro de 2007 e em oito de outubro do mesmo ano, a Comissão concedeu a segunda prorrogação ao Estado, 187 mas pelo período de dois meses. Tal prorrogação pretendia que o Brasil dispusesse de um prazo hábil para a implementação integral das recomendações. Paradoxalmente, como informado pelos peticionários à Comissão em 14 de novembro de 2007, a Assembleia Legislativa do Estado do Paraná e o Governador do Estado concederam, em 11 de outubro de 2007, o título de Cidadã Honorária do Estado do Paraná338 à Juíza Elisabeth Kather, envolvida nos fatos alegados na denúncia. Claro fica, segundo os peticionários, a impunidade quanto à responsabilidade da magistrada, distanciando-se, assim, do cumprimento das recomendações por parte do Estado brasileiro. Relata-se que, apesar de tal contexto, o Brasil solicitou, em dez de dezembro do ano em questão, uma terceira prorrogação pelos mesmos argumentos da anteriormente requerida. Nesse momento, a Comissão concedeu-lhe apenas dez dias para a apresentação de um cronograma de cumprimento de cada uma das recomendações, além de um detalhado relatório sobre o grau de cumprimento de cada uma delas. Provando, mais uma vez, o descaso do Brasil para com esta demanda, não houve qualquer tipo de apresentação que lhe fora requerida, sendo que, então, convenceu-se a Comissão que era o momento de submeter o caso à Corte Interamericana. Assim, não tendo o Brasil reparado as violações e nem mesmo implementado as medidas solicitadas pela Comissão, o Caso 12.353 fora submetido ao julgamento da Corte em 20 de dezembro de 2007. 4.3 A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Como já registrado nesse estudo, o Caso 12.353 chegou ao conhecimento da Corte Interamericana na data de 20 de dezembro de 2007, quando a Comissão Interamericana entendeu ser passível de julgamento, pela Corte, o citado caso. 338 Conforme a Lei n.o 13.114 de 2001, o Estado do Paraná só concede o título de cidadão honorário às pessoas que tenham prestado relevantes serviços ao estado federado. 188 Logo após, em seis de fevereiro de 2008, o Estado e os peticionários (representantes) foram notificados sobre a referida demanda, ordenando-se a apresentação dos escritos principais, além do recebimento de declarações de um agente dotado de fé pública, de oito testemunhas propostas pela Comissão, pelos representantes e pelo Estado e de dois peritos oferecidos pelos representantes. Para que o julgamento se demonstrasse possível, a Presidente convocou a Comissão, os representantes e o Estado para uma audiência pública, realizada em três de dezembro de 2008, a fim de escutar os depoimentos de determinadas pessoas envolvidas no caso. Mais além, em 19 de janeiro de 2009, os três interessados – Estado, Comissão e representantes – remeteram suas alegações finais escritas, passando-se à investigação das alegações do Estado. Sintetiza-se, primeiramente, que o Brasil veio a interpor três exceções de caráter preliminar. Na primeira delas, referindo-se ao descumprimento pelos representantes dos prazos previstos no Regulamento para apresentar o escrito de petições e argumentos e seus anexos, afirmou o Estado que os representantes haviam descumprido os prazos estabelecidos nos artigos 26.1 e 36 do Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos.339 No tocante ao disposto em tal exceção, entendeu a Corte que o suposto descumprimento dos representantes, em relação aos prazos previstos no Regulamento, não configura uma exceção preliminar, mas sim questão a ser analisada juntamente às provas. A segunda exceção preliminar interposta referiu-se à impossibilidade de alegar violações não consideradas durante o procedimento perante a Comissão Interamericana. Debateu, nesse ponto, o Estado brasileiro que a violação do art. 28 da Convenção Americana não tinha sido alegada durante o procedimento perante a Comissão. 339 Artigo 26. Apresentação de escritos. 1. A demanda, sua contestação, o escrito de petições, argumentos e provas e os demais escritos dirigidos à Corte poderão ser apresentados pessoalmente, via courier, facsímile, telex, correio ou qualquer outromeio geralmente utilizado. No caso de envio por meios eletrônicos, os documentos originais, assim como a prova que os acompanhe, deverão ser remetidos a mais tardar, em um prazo de sete dias. Artigo 36. Escrito de petições, argumentos e provas. 1. Notificada a demanda à suposta vítima, seus familiares ou seus representantes devidamente acreditados, estes disporão de um prazo improrrogável de 2 meses para apresentar autonomamente à Corte suas petições, argumentos e provas. 189 Mais uma vez, a Corte rejeitou tal exceção preliminar, uma vez que o Estado, tendo oportunidade de apresentar seus argumentos de defesa sobre esse aspecto da demanda em outro momento, não o fez e, ainda, segundo o art. 62.3, da Convenção Americana, vislumbra-se a ampla liberdade e competência da Corte para interpretar e aplicar as disposições da Convenção, a partir do momento que o Estado tenha reconhecido sua jurisdição – caso brasileiro. Finalmente, alegou o Brasil, como exceção preliminar, a falta de esgotamento dos recursos judiciais internos. No ponto em questão, a Corte discriminou cada um dos recursos judiciais, entendendo, em todos eles – mandando de segurança, ação penal e ações civis – que não eram passíveis de serem acatados como exceções preliminares. Assim, com o decorrer do caso, e fruto de diversas investigações sobre tal, a Corte prolatou sua sentença, declarando, por unanimidade, o Estado como violador do direito à vida privada, à honra e à reputação, previstos no art. 11 da Convenção Americana, das vítimas, pela interceptação, gravação e divulgação de suas conversas telefônicas. Violou, ainda, o direito das vítimas à liberdade de associação, reconhecido no art. 16 da Convenção, pelas alterações no exercício desse direito. Por fim, referiu-se ao fato de não contar com elementos que demonstrem a existência de violação dos direitos consagrados nos artigos 8 e 25 da Convençao Americana, no que tange ao mandado de segurança de segurança e às ações civis, mas contou com a presença de violações dos referidos direitos no que tange à ação penal movida em face do ex-Secretário de Segurança Pública.340 Finalmente, veio a Corte determinar que o Estado brasileiro deveria: a) pagar aos senhores Arley José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, o montante de U$ 20.000,00 (vinte mil dólares), a título de dano imaterial, no prazo de um ano, a partir da notificação da sentença; b) publicar no Diário Oficial, em outro jornal de ampla circulação nacional, em outro de ampla circulação no Estado do Paraná e em um sítio na Internet oficial da União Federal e do Estado do Paraná, uma única vez, a sentença da Corte, no prazo de 340 Demanda do Caso José Arley Escher e Outros contra o Estado brasileiro (caso 12.353), na Corte Interamericana de Direitos Humanos. 190 seis meses para os primeiros e dois meses para esses últimos, contados a partir da notificação da sentença; c) pagar o montante de U$ 10.000,00 (dez mil dólares), por restituição de custas e gastos, dentro do prazo de um ano, contados a partir da notificação da sentença; d) apresentar, dentro do prazo de um ano, contado a partir da notificação da sentença, um relatório sobre as medidas adotadas para o cumprimento da mesma. Taxa-se, em termos finais, que a sentença da Corte veio a condenar o Estado brasileiro de maneira incisiva a fim de que, ao menos para as referidas vítimas, os direitos humanos prevaleçam sobre quaisquer outros interesses, sejam eles privados ou, até mesmo, públicos. 4.4 O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL Apesar da demora no cumprimento da sentença, não se pode deixar de relatar o fato de que o Estado brasileiro tomou atitudes para o seu cumprimento. Logicamente, não se vislumbra, nesse cumprimento, a plena reparação de todos os direitos que outrora estavam sendo violados – até mesmo pela demora no cumprimento da referida sentença –, mas deve-se ressaltar o grande passo no reconhecimento e na efetivação da jurisdição internacional em solos nacionais. Passando-se às resoluções brasileiras que deram ensejo ao cumprimento, seleciona-se a promulgação do Decreto n.o 7.158, de 20 de abril de 2010, quando então se autorizou que a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República promovesse as gestões necessárias ao cumprimento da sentença da Corte Interamericana, referente ao Caso 12.353. O decreto em questão regulamenta, especialmente, a existência de previsões orçamentárias para o pagamento de indenizações às cinco vítimas341, elencadas no próprio instrumento legal, no valor de U$ 20.000,00 (vinte mil dólares). 341 São elas: Arley José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Ceso Aghinoni. 191 Logicamente, tal previsão, como já julgado, é um grande avanço no reconhecimento e na efetivação das decisões advindas de foros internacionais, mas não se pode conceber como a única e satisfatória atitude do Estado brasileiro. Lembra-se, mais uma vez, que o pagamento das indenizações é apenas um dos pontos em que o Brasil fora condenado, devendo, impreterivelmente, em um futuro próximo – e não em momento oportuno aos seus políticos – cumprir todas as determinações da Corte para que, de fato, ocorra a reparação das violações dos direitos humanos das vítimas. Conjuntamente ao caráter econômico da reparação, o Estado tem por obrigação vir a procurar, processar e punir os culpados pelas violações, não podendo, nesse ponto, as vítimas e a própria sociedade brasileira se contentarem com grandes discursos teóricos e pequenas atitudes fáticas na punição de seus delituosos. Além disso, deve o Brasil enxergar que a morosidade de sua justiça e, também, do próprio cumprimento de decisões em âmbito interno – sejam elas nacionais ou internacionais – já se demonstra como uma afronta aos próprios direitos humanos. E é nesse momento, onde há uma condenação em plano internacional e todos os olhos encontram-se lançados ao seu cumprimento, que se vislumbra uma grande oportunidade do Brasil vir a mostrar que paraíso de impunidades e falta de efetividade de decisões serão, em um futuro próximo, adjetivos incompatíveis com a sua conduta. 5 CASO SÉTIMO GARIBALDI – CASO 12.478 Enuncia-se, nesse momento, o Caso 12.478, também conhecido como Caso Sétimo Garibaldi, fruto da violência na área rural brasileira. Documenta-se que o homicídio do senhor Sétimo Garibaldi fora consequência da operação de desocupação extrajudicial da Fazenda São Francisco, localizada na cidade de Querência do Norte, estado do Paraná. O caso traz preocupações além de suas delimitações fáticas, uma vez que se vislumbra, a partir dele, um imenso problema presente na sociedade brasileira: a concentração de terra entre poucos proprietários rurais. 192 Antes de se adentrar ao histórico propriamente dito – e, mais uma vez, não cabendo, nesse trabalho, uma análise crítica sobre o movimento –, deve-se atentar ao fato de que, novamente, os direitos humanos violados foram de um cidadão ligado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sintetiza-se que os direitos humanos violados, devidamente reconhecidos pela Corte, foram os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos). Assim, investigar-se-á, mais detalhadamente, o caso em tela. 5.1 HISTÓRICO DO CASO Primeiramente, é de relevância extrema argumentar que o histórico do caso em questão se faz indissociável de seu contexto, uma vez que fora esse o próprio fundamento do ocorrido. Assim sendo, especifica-se que o senhor Sétimo Garibaldi morreu esvaído em sangue, em decorrência do disparo de arma de fogo, recebido na perna esquerda, em meio a uma operação de despejo extrajudicial, no assentamento localizado na Fazenda São Francisco, situada no município de Querência do Norte, estado do Paraná. Como se observa, o referido cidadão não possuía terras e vivia em um assentamento no local supracitado. Ocorre que ele não era o único nestas condições, uma vez que a concentração de terra, no Brasil, é considerada como uma das mais elevadas do mundo.342 Conjugado a esse quadro, ainda, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), há cem milhões de hectares de terra ociosos no Brasil e, paradoxalmente, cerca de cinco milhões de famílias de trabalhadores rurais sem propriedade de nenhuma terra, vivendo como posseiros, arrendatários, regimes de terra compartilhada ou com propriedades inferiores a cinco hectares. 342 Segundo dados da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2007, o número de proprietários rurais brasileiros não atingia 50.000. Aproximadamente 1% da população brasileira detinha 46% de todas as terras. 193 Logicamente, nessa situação, os trabalhadores, já desde a década de 70, uniram-se e criaram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, objetivando avanços na política agrária e de habitação brasileira. Diferentemente do que imaginavam, as mudanças têm ocorrido a passos lentos, sofrendo intensas repressões. As referidas desigualdades e falta de incentivos trouxeram, como consequência imediata, a violência na área rural brasileira, onde, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre os anos de 1987 e 2005, cerca de dois mil trabalhadores rurais foram assassinados. Diante desse quadro, pontua-se que a ascendência da maior revolta – maior até que a decorrente dos dados sobre a violência – plaina sobre a conformação da sociedade brasileira com a impunidade daqueles que cometem a violência rural. Há, de fato, casos de atuação conjunta entre aqueles que praticam a violência propriamente dita – pistoleiros particulares, contratados pelos proprietários das terras objeto de despejo – e forças públicas. Sem dúvidas, a impunidade transformou-se em uma importante cúmplice da violência rural. No contexto em questão, ocorrido no estado do Paraná durante o mandato do ex-governador Jaime Lerner, entre 1994 e 2002, 16 trabalhadores rurais paranaenses foram assassinados, além de terem ocorrido 5216 prisões arbitrárias. Em decorrência de tais fatos, o então governador passou a ser conhecido como "arquiteto da violência". Fora nesse cenário que, em novembro de 1998, na Fazenda São Francisco, localizada em Querência do Norte, Paraná, de propriedade de Maurílio Favoretto, Darci Favoretto, Morival Favoretto e Wilson Favoretto, ocorrera a ocupação por cerca de setenta famílias de trabalhadores rurais, do MST. Logo em seguida, em 27 de novembro de 1998, operou-se, de madrugada, uma violenta ação de despejo na fazenda, realizada por um grupo armado civil, de aproximadamente vinte homens, contratados pelos fazendeiros. Com a invasão, de madrugrada, do referido grupo ao acampamento, iniciouse o despejo, forçando os ocupantes a saírem de suas barracas e dirigirem-se ao centro do local, onde deveriam permanecer estendidos, com a boca apontando para baixo. Relata-se que nesse momento, o grupo disparava tiros. Assim, o trabalhador Sétimo Garibaldi, de 52 anos, fora ferido por um projétil, que veio a causar uma hemorragia e, como consequência, levou-lhe à morte na mesma data, poucas horas após a operação. 194 Taxa-se que, segundo declarações testemunhais não controversas, os ocupantes da fazenda tinham conhecimento, anteriormente à ação, de que os proprietários possuíam a intenção de desalojá-los por meios próprios. Também, durante a própria operação, as declarações confirmaram que Morival Favoretto, co-proprietário da fazenda, e seu capataz, Ailton Lobato, estavam sem capuz, comandando a operação.343 Os integrantes do grupo, ainda, usavam patentes militares como forma de tratamento (chamando-se de capitão, sargento, entre outros) e identificaram-se como agentes da polícia. Logo após atirarem em Sétimo Garibaldi, e observarem a sua consequente morte, o grupo retirou-se do local e não finalizou o despejo das famílias. Após o referido homicídio, na mesma data, denunciou-se à Polícia Militar do Estado do Paraná, instruindo-se, então, a investigação policial n.o 179/98. Logo, em 14 de dezembro de 1998, a juíza do caso negou a solicitação de prisão temporária de Morival Favoretto, por considerar as declarações das testemunhas divergentes. Em 17 de dezembro do mesmo ano, atendendo ao pedido da juíza da comarca de Loanda, o escrivão de polícia Cézar Napoleão Casimir Ribeiro, acostou um documento de informação ao expediente da investigação policial, informando que, para evitar a represália dos integrantes do MST, o investigado Ailton Lobato tinha acordado com os policiais que dispararia um tiro ao alto para avisar-lhes que um veículo parado na fazenda não oferecia ameaça. Além disso, o senhor Morival Favoretto afirmou, em suas declarações, que, por motivos de ameaças de morte proferidas pelos trabalhadores rurais, não frequentava a fazenda desde agosto de 1998, anteriormente à data da ocupação pelos membros do MST. Após inúmeras investigações, em 18 de maio de 2004, a Juíza de Loanda (Elisabeth Khater) – a mesma que viera a investigar e arquivar o caso Arley José Escher e outros –, seguindo o parecer do Ministério Público, determinou o arquivamento da investigação da morte do senhor Sétimo Garibaldi. Inconformada com a decisão, a viúva de Garibaldi, Iracema Garibaldi, impetrou, em 16 de setembro de 2004, mandado de segurança, solicitando a reabertura da 343 Demanda do Caso Sétimo Garibaldi contra o Estado brasileiro (caso 12.478), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 195 investigação, a qual fora novamente arquivada, uma vez que se entendeu absoluta ausência de fundamentos (art. 93, alínea IX, Constituição Federal). Um dia após, o Tribunal de Justiça do Paraná negou-lhe o recurso, afirmando não existir direito definido e certo em favor da requerente, sendo necessária uma análise mais profunda no conteúdo probatório, incompatível com o objeto e propósito da peça em questão. Não tendo resposta do Estado brasileiro em decorrência do ocorrido e, ainda, comprovadas, de fato, as violações dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial violados, o caso chegou ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. 5.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Examina-se que a petição relativa ao Caso 12.478 fora apresentada à Comissão, na data de seis de maio de 2003, pelas organizações Justiça Global, Rede Nacional de Advogados e Advogados Populares (RENAP) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em nome de Sétimo Garibaldi e seus familiares. Após a análise de seus fundamentos, em cinco de fevereiro de 2004, a Comissão, de acordo com o art. 30 de seu Regulamento, transmitiu ao Brasil as partes pertinentes da denúncia, solicitando uma resposta à petição, concedendo-lhe prazo de dois meses, comunicando, igualmente, os peticionários acerca da situação. Vencido o prazo, e não tendo o Estado apresentado qualquer resposta, os peticionários, em 17 de maio de 2004, requereram que a Comissão aplicasse o art. 37.3 de seu Regulamento. Ocorre que, ainda assim, o Estado não viera a se manifestar e então, o referido organismo, em nota de 20 de dezembro de 2004, comunicou-lhe que o caso seria registrado sob o n.o 12.478 e as considerações relativas à admissibilidade do pedido seriam adiadas ao momento do debate sobre o mérito da questão. No referido momento, ainda, comunicou os peticionários, segundo o disposto no art. 38.1 de seu Regulamento, que deveriam apresentar, no prazo de dois meses, informações adicionais sobre o mérito. 196 Pouco mais tarde, em seis de junho de 2005, os peticionários finalmente informaram questões acerca do mérito, as quais foram transmitidas ao Estado, concedendo-lhe, novamente, prazo de dois meses para apresentar considerações acerca do mérito da causa. Provando o total descaso do Brasil, até a data de 20 de abril de 2006, este não havia prestado qualquer informação sobre o mérito da demanda, apresentandoas apenas em seis de junho do referido ano. Tais informações foram remetidas aos peticionários, concedendo-lhes prazo de um mês para sintetizarem observações. Após ambas as partes prestarem informações relativas à questão, no 127.o Período Ordinário de Sessões, em 27 de março de 2007, a Comissão aprovou o Relatório de Admissibilidade e Mérito 13/07, concluindo que existia uma violação do direito à vida, às garantias judiciais e à proteção judicial, em respectiva concordância com os artigos 4, 8.1 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, sendo que no que concerne às duas últimas violações, os prejudicados seriam os familiares de Sétimo Garibaldi. Fruto também de tal relatório, recomendou-se que o Brasil: 1) realizasse uma investigação completa, imparcial e eficaz da situação, com o objetivo de estabelecer a responsabilidade do assassinato de Sétimo Garibaldi, além de punir os responsáveis; 2) reparar plenamente os familiares de Sétimo Garibaldi, moral e materialmente, pelas violações de direitos humanos nesse documento indicadas; 3) adotar e implementar as medidas necessárias para uma eficaz implementação das investigações policiais, bem como para o julgamento dos fatos puníveis, decorrentes dos despejos forçados em assentamentos dos trabalhadores sem terra; 4) adotar e implementar medidas necessárias para observar-se os direitos humanos nas políticas governamentais que tratam da ocupação da terra; 5) adotar e implementar medidas adequadas dirigidas aos funcionários de justiça e da polícia, evitando a proliferação de grupos armados que realizem despejos arbitrários e violentos.344 344 Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o Caso Sétimo Garibaldi (caso 12.478), p.5. 197 Concedeu-se ao Brasil o prazo de dois meses para informar sobre as ações empreendias para efetuar as supracitadas recomendações. Igual prazo fora concedido para que os peticionários se posicionassem a respeito da eventual submissão do caso à Corte Interamericana. Em 15 de agosto de 2007, o Estado solicitou uma prorrogação do referido prazo, aceitando, expressamente e de boa fé, que a eventual concessão da prorrogação suspendia o prazo estabelecido no art. 51.1 da Convenção para encaminhar o caso à Corte. Precisa-se que o Estado, após outras solicitações de prorrogações de prazos, não apresentou qualquer relatório sobre implementações satisfatórias das medidas e, assim sendo, em quatro de setembro de 2007, os peticionários manifestaram seu interesse na submissão do caso à Corte. Decidiu a Comissão, então, submeter o caso à jurisdição da Corte Interamericana em 21 de dezembro de 2007. 5.3 A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Não tendo o Estado brasileiro atendido, de maneira satisfatória, as medidas previstas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, esta apresentou o Caso 12.478 à Corte Interamericana, em 21 de dezembro de 2007, solicitando que fosse estabelecida a responsabilidade internacional do Estado, o qual não cumpriu suas obrigações internacionais ao incorrer nas violações dos artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos Humanos. Logo após o seu recebimento, a demanda da Comissão foi notificada ao Estado e aos peticionários (aqui chamados de representantes) em 11 de fevereiro de 2008 e, considerando as circunstâncias particulares do caso, a Presidente – Cecilia Medina Quiroga – do julgamento convocou a Comissão, os peticionários e o Estado para uma audiência pública, visando a escuta de depoimentos de duas testemunhas (uma oferecida pela Comissão, outra pelo Estado), de dois peritos (um indicado Comissão, outro pelo Estado) e das alegações finais orais das partes sobre 198 as exceções preliminares e os eventuais pontos acerca do mérito, das reparações e das custas do processo. A audiência desenrolou-se em 29 e 30 de abril de 2009, durante o XXXIX Período Extraordinário de Sessões da Corte, realizado em Santiago do Chile. Ainda, em maio de 2009, a Corte recebeu escritos, na qualidade de amicus curiae, da Clínica de Direitos Humanos, do Núcleo de Prática Jurídica da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro) e da Coordenação de Movimentos Sociais do Paraná, ambos informando sobre a violência no campo brasileiro e ao arquivamento e posterior reabertura do procedimento para investigar a morte de Sétimo Garibaldi.345 Alguns meses após, em 10 de junho de 2009, a Comissão, os representantes e o Estado remeteram suas alegações finais escritas à Corte. No que tange às considerações do Estado brasileiro, este interpôs quatro exceções preliminares. A primeira delas, atinando à incompetência ratione temporis da Corte para examinar supostas violações ocorridas antes do reconhecimento da competência da Corte pelo Estado, entendeu que, por ter o homicídio de Sétimo Garibaldi ocorrido na data de 27 de novembro de 1998, anteriormente ao reconhecimento da jurisdição da Corte (ocorrido em 10 de dezembro de 1998), o referido órgão não teria competência para declarar violações à Convenção do presente caso.346 Acolhendo parcialmente esta exceção, a Corte entendeu que não seria competente para levantar dados e julgar os fatos relativos à própria morte de Sétimo Garibaldi, mas teria competência para analisar os fatos e possíveis omissões relacionadas à investigação da referida morte. Assim, a Corte não poderia analisar a violação do direito à vida, mas teria plena competência para sentenciar as violações dos artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos Humanos, decorrentes das incongruências das investigações e processamentos em âmbito interno. 345 346 A reabertura do inquérito, pelo Ministério Público Federal, do assassinato de Sétimo Garibaldi se deu em 19 de abril de 2009. O Ministério Público Federal explicou que a referida reabertura fora motivada por novas informações sobre o caso, advindas do depoimento de um dos filhos de Sétimo Garibaldi, Vanderlei Garibaldi, à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Demanda do Caso Sétimo Garibaldi contra o Estado brasileiro (caso 12.478), na Corte Interamericana de Direitos Humanos. 199 Combinada à citada exceção, o Estado alegou o descumprimento, pelos representantes, dos prazos previstos no Regulamento da Corte para apresentar o escrito de petições, argumentos e seus anexos. Segundo os entendimentos do tribunal, o argumento não constituiria uma exceção preliminar propriamente dita e poderia ser analisado no capítulo da sentença referente à prova. Já na terceira exceção preliminar, afirmou o Brasil que seria impossível alegar violações que não tivessem sido consideradas durante o procedimento perante a Comissão Interamericana. Novamente, a Corte desconsiderou a exceção em pauta, uma vez que o referido organismo exerce jurisdição plena sobre todos os seus artigos e disposições, não dependendo de anteriores considerações sobre os temas. Por fim, na última das exceções apresentadas, o Estado evocou a falta de esgotamento dos recursos internos, situação que a Corte desestimou, uma vez que, decorrente dos argumentos das partes e da prova juntada aos autos, concluiu-se que as alegações, do Estado, relativas à eficácia e à inexistência de um retardo injustificado do inquérito policial, versariam sobre o mérito, não sendo este o momento oportuno para seu levantamento. Após a investigação de todos os pontos oportunos para o julgamento do caso, a Corte declarou, por unanimidade, que o Estado havia incorrido na violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, reconhecidos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em prejuízo dos familiares do senhor Sétimo Garibaldi. Por fim, dispôs que o Estado deveria publicar no Diário Oficial, em dois jornais (um de circulação nacional, e em outro de ampla circulação no Paraná) e em páginas da web oficiais da União e do Estado do Paraná, a parte resolutiva da referida sentença, no prazo de seis meses. Além disso, entendeu-se o dever do Estado em conduzir, eficazmente e dentro de um prazo razoável, o inquérito e qualquer processo que se demonstre necessário, para identificar, julgar e, eventualmente, sancionar os autores da morte do senhor Garibaldi. Deveria, ainda, investigar e, caso assim seja plausível, punir as eventuais faltas funcionais dos funcionários públicos. Ainda, teria a obrigação de pagar o montante de US$ 68.000,00 (sessenta mil dólares) à viúva do senhor Garibaldi, Iracema Garibaldi, e US$ 20.000,00 (vinte mil dólares) em favor das outras vítimas (Darsônia Garibaldi, Vanderlei Garibaldi, Fernando Garibaldi, Itamar Garibaldi, Itacir Garibaldi e Alexandre Garibaldi), a título 200 de dano moral, material, e restituição de custas e gastos, dentro do prazo de um ano, a partir da notificação da sentença. Por fim, concluiu a Corte que supervisionaria o cumprimento integral da sentença e só seria dado por concluído o referido caso quando o Estado tiver cumprido cabalmente o dispositivo da mesma. 5.4 O CUMPRIMENTO DA SENTENÇA INTERNACIONAL PELO BRASIL Julga-se que o Brasil, após um ano da prolação da sentença do caso Garibaldi – datada de 23 de setembro de 2009, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – começou a cumpri-la. Inicialmente, decretou-se, nos termos do Decreto n.o 7.307 de 2010, que a Secretaria de Direitos Humanos estaria autorizada a promover gestões necessárias para o cumprimento da referida sentença, especialmente no que tange ao pagamento das indenizações, de acordo com as dotações orçamentárias. Ademais, ocorrera, de fato, a publicação da sentença nos jornais O Globo (de relevância nacional) e no Diário Oficial do Estado do Paraná. Como de praxe, o Brasil realizou o pagamento das indenizações previstas na sentença, mas não cumpriu, ainda, as determinações referentes às obrigações de investigar e punir os eventuais culpados pelo homicídio de Sétimo Garibaldi. O problema que se vislumbra, mais uma vez, é que a morosidade da justiça e a impunidade dos culpados é um mal permanente na realidade brasileira, onde nem sequer uma decisão internacional consegue reverter. O Brasil, um ano e meio após a condenação, não implantou qualquer esforço para investigar e sancionar, nesse caso concreto, os eventuais responsáveis pela morte do cidadão. Em decorrência, o que se vislumbra é um futuro não muito esperançoso na justiça que um Estado Democrático de Direito tanto almeja. Se não há sequer uma única perspectiva de solução ao caso concreto, onde já há condenação em foro internacional, acaba por ser quase uma utopia o debate sobre a reforma agrária e o fim das impunidades decorrentes da violência da área rural brasileira. 201 O Brasil precisa, emergencialmente, rever os pilares de sua democracia e de sua prática de justiça. E, para isso, necessário se demonstra que realmente ocorra o cumprimento integral das condenações internacionais que visam, direta ou indiretamente, reformular a sociedade brasileira de acordo com os ditames reais de justiça e, especialmente, dos referentes aos direitos humanos. 6 CASO JULIA GOMES LUND E OUTROS (GUERRILHA DO ARAGUAIA) – CASO 11.552 Chega-se, finalmente, na análise do Caso Julia Gomes Lund e Outros, mais conhecido como Guerrilha do Araguaia347 – Caso 11.552 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Juntamente com o caso, vem à tona toda historicidade brasileira do período chamado de Ditadura Militar, localizado entre os anos de 1964 a 1985, quando a censura e a repressão de muitos direitos, tidos como fundamentais, tornou-se uma constante.348 Nesse contexto, também, crimes de repressões políticas foram realizados por parte daqueles que trabalhavam para e com o governo militar, sendo que o maior massacre registrou-se no caso da Guerrilha do Araguaia, uma vez que, como bem apontam os registros históricos349, foi a única tentativa de guerrilha consistente nos anos da ditadura militar. Acontece que, não bastando o cenário caótico de violação dos direitos humanos, o governo brasileiro promulgou uma lei, em 1979, que tratava sobre a concessão de anistia àqueles que tinham praticado crimes políticos e/ou crimes conexos com 347 348 349 Anexo B. De acordo com os arquivos da revista VEJA, "entre 1964 e 1985, o Brasil foi governado pelos militares. Durante esse período, as instituições democráticas sofreram restrições, as liberdades individuais foram limitadas e a imprensa foi censurada". (Disponível em: <http://veja.abril.com.br/ arquivo_veja/regime-militar-ditadura-ai5-medici-geisel-figueiredo-lamarca-marighella-terrortorturas-herzog-anistia.shtml>. Acesso em: 17 maio 2011). FÓRUM DE ENTIDADES NACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2387&Itemid=25>. Acesso em: 17 maio 2011. 202 esses, ficando conhecida como Lei de Anistia350 (Lei n.o 6.683/79). Presumivelmente, o teor da lei – e nem qualquer documento posterior – não tratou qual seria o conceito de crimes conexos, tendo sido aplicada, irrestritamente, para a concessão da anistia aos praticantes do massacre da Guerrilha do Araguaia. O mais revoltante ainda estava por vir: o governo, talvez para se isentar de culpa, destruiu a maioria dos documentos que versavam sobre as principais repressões – especialmente no que condiz à Guerrilha do Araguaia – e, ainda, sumiu com os corpos exterminados, impossibilitando que os familiares das vítimas encontrassem reparação adequada. Mas, por mais que se imagine que o cenário apresentava-se em um contexto histórico-político diferente do atual, o Supremo Tribunal Federal, em processo findado no início do ano de 2010351, entendeu ser desnecessária a revisão da referida Lei de Anistia, significando um visível retrocesso no que tange à reparação de um direito humano violado. Nesse sentido, passa-se ao estudo detalhado do caso em tela. 6.1 HISTÓRICO DO CASO Imprescindível se demonstra, para o entendimento do caso, a compreensão de todo o contexto histórico político que se transcorria em solos brasileiros. Em 1.o de abril de 1964, o Brasil adentrou ao período chamado de Ditadura Militar, quando então os militares vieram a tomar o poder político352 e instituíram um regime ditatorial baseado, no que importa e este trabalho, na repressão de muitos direitos humanos dos seus cidadãos – especialmente aos seus direitos políticos e direitos de liberdade de expressão. 350 351 352 A lei veio a anistiar os cidadãos – funcionários públicos afastados de seus cargos; indivíduos com direitos políticos cassados; ativistas presos ou no exílio – punidos por ações ou ideologias contrárias à Ditadura. De acordo com a interpretação firmada na época e persistente até os dias atuais, a lei também beneficiou os agentes de Estado acusados de violarem os direitos humanos. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.o 153. Min. Relator: Eros Grau. Os militares armaram um golpe de Estado que depôs o Presidente João Goulart 203 Acontece que, ao longo dos 21 anos do regime ditatorial militar brasileiro (de 1964 a 1985), houve períodos de maior e menor repressão e violência (conhecidos como períodos de abertura e endurecimento), sendo que, a partir do Ato Institucional n.o 5353, entre os anos de 1968 e 1974, – onde ocorreram as desaparições forçadas das vítimas da Guerrilha do Araguaia –, o Brasil encontrava-se na fase ditatorial conhecida como Anos de Chumbo, nomenclatura utilizada por conta da repressão ter alcançado o mais alto grau do regime (onde até mesmo a tortura seria uma prática constante). Mesmo já presentes anteriormente, fora neste período que as guerrilhas urbanas, contrárias ao regime, desenvolveram-se de forma intensa. Também, o partido de oposição de maior representatividade nacional, o Partido Comunista do Brasil, dividiu-se no Partido Comunista Brasileiro (PCB) – o qual acreditava no restabelecimento da democracia por intermédio de meios pacíficos – e no Partido Comunista do Brasil (PCdoB), cujos membros acreditavam que a ditadura só seria finalizada por meio da luta armada. Assim sendo, considera-se como feito público e notório o fato de que, a partir de 1966, membros do PCdoB instalaram-se à margem esquerda do Rio Araguaia, no sul do estado do Pará, instaurando, ali, a Guerrilha do Araguaia, cujo objetivo era armar um exército popular de campesinos, com inspiração no processo revolucionário da China, ocorrido entre os anos de 1927 e 1949.354 Apesar da inegável existência da Guerrilha do Araguaia, há imensos obstáculos na compreensão dos detalhes das operações militares que lá se desenvolveram, dificultando sobremaneira o esclarecimento dos feitos do presente caso e afetando, notavelmente, a possibilidade da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em individualizar as ofensas aos direitos humanos das vítimas e de seus familiares.355 353 354 355 Conhecido por AI-5, o ato fora responsável pelo endurecimento da censura no Regime Militar, estendo a fiscalização prévia dos artigos e reportagens de imprensa, às letras de músicas, peças teatrais e cenas de filme. Além disso, possibilitou que a ditadura mostrasse sua faceta mais cruel contra os dissidentes e contrários ao Regime Militar. ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. São Paulo: Vozes, 1996. p.196. Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro (caso 11.552), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 204 Valoriza-se que essa situação – da impossibilidade de conhecimento dos verdadeiros acontecimentos para com as vítimas – já configura uma violação dos direitos humanos de seus familiares, uma vez que impossibilita o conhecimento à verdade e as suas devidas reparações. Apesar disso, segundo a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos356, e estimativa é que setenta pessoas participaram das ações de resistência armada ao governo militar na região do Araguaia, sendo que aproximadamente sessenta militantes foram mortos em combate, não sendo conhecida, até hoje, a localização da maioria dos restos mortais dos combatentes. Nesse contexto, em 1995, com base em um dossiê organizado pelos familiares dos desaparecidos políticos, fora promulgada a Lei 9.140, contando com um Anexo que listava 136 desaparecidos políticos, sendo que, dessas, sessenta e uma desapareceram em virtude das operações militares contra a Guerrilha do Araguaia. Lembra-se que a referida posição do Estado, em reconhecer os desaparecimentos em questão, possibilitou aos familiares das vítimas, direito a reparações econômicas. Acontece que, se de um lado, em 1995, o Estado brasileiro veio a reconhecer os desaparecimentos políticos, por outro, algumas situações contribuem para a manutenção, em segredo, de dados sobre todas as possíveis vítimas do massacre, tais como: o modus operandi durante as operações militares contra a Guerrilha; a negativa das Forças Armadas de fornecer informações sobre eventos ali ocorridos e documentos oficiais que demonstrem suas atividades; e a promulgação, em 2005, da Lei n.o 11.111, que dificultou o acesso a documentos públicos que, segundo os seus termos, "contenham informações cujo sigilo seja imprescindível à suposta e outorgada segurança da sociedade e do Estado", sendo que tal sigilo pode ser por um prazo de trinta anos, renováveis por mais trinta.357 356 357 COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/desaparecidos/abert_desaparecidos.htm>. Acesso em: 17 maio 2011. Em junho de 2011, o governo brasileiro iniciou uma série de debates visando o fim do sigilo eterno dos documentos da ditadura militar. Ocorre que, até o fechamento desse estudo – julho de 2011 –, o impasse sobre a publicidade dos documentos encontra-se ainda incerto, não havendo ainda, por parte do governo brasileiro, resposta definitiva sobre o fim do sigilo. Consequentemente, até esse momento, os documentos encontram-se sob sigilo. 205 Mesmo com todas essas dificuldades, evocam-se três principais operações contra a Guerrilha do Araguaia, quais sejam: Operação Papagaio, Operação Sucuri e Operação Marajoara. A primeira delas, conhecida como Operação Papagaio, iniciou-se nos últimos dias de março de 1972, sendo que, entre abril e outubro do mesmo ano, um contingente de aproximadamente quatro mil soldados fora mobilizado para tal operação. Nesse momento, não existiam informações muito precisas sobre o contingente da Guerrilha do Araguaia, sendo que os militares vieram a realizar sete prisões de membros do PCdoB. Ocorre que, já aqui, ocorrera o desaparecimento da primeira vítima, aponta como Jorge. De acordo com as informações da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, perdoaram-se apenas as vidas dos primeiros capturados políticos, uma vez que, já na segunda operação contra a Guerrilha do Araguaia, conhecida como Operação Sucuri, entre meio e outubro de 1973, a ordem oficial passo a ser a de exterminar os guerrilheiros, sepultando seus restos mortais na selva358, sem possibilidade de identificação. A última das operações, a Operação Marajoara, iniciada em sete de outubro de 1973, contou com a determinação do governo para que seus militares não mantivessem prisioneiros, executando-os assim que pegos, sem a devolução dos cadáveres. Em quatro meses de operação, os militares, a mando do governo, dizimaram a Guerrilha do Araguaia, mas, como ocultavam os cadáveres, o governo não reconheceu a existência de tal operação.359 Apenas após alguns anos, em 19 de outubro de 1993, é que houve uma entrevista com o oficial da Aeronáutica, Pedro Cabral Corrêa, que afirmou que havia pilotado um helicóptero que contava com corpos exumados para a incineração. Provavelmente aí estavam alguns dos corpos exterminados no referido massacre. 358 359 Há registros que contam que os combatentes militares, a mando do governo, quando exterminavam algum dos combatentes membros da Guerrilha do Araguaia, desapareciam com seus restos mortais, mas os decapitavam e carregavam consigo essas cabeças para virem a apresentar, como troféus, a seus superiores. Imediatamente após o ocorrido com a Guerrilha do Araguaia, o governo militar determinou o silêncio a respeito do episódio e a imprensa não publico absolutamente nada sobre o assunto, no referido momento. 206 Assim, considerando todos os fatores supramencionados, não há a possibilidade de identificação de todas as vítimas do caso, nem estabelecer com precisão, as circunstâncias de desaparecimento de cada uma delas. Ocorre que, apesar das dificuldades, dezesseis processos foram iniciados, na jurisdição brasileira, por moradores da região e, devido às incertezas, os casos foram conclusos sem a devida análise do mérito. Mas, antes mesmo de tais processos, os primeiros esforços dos familiares dos desaparecidos, em solos nacionais, foram desenvolvidos já no ano de 1977, quando o arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, juntamente com uma comissão de familiares de desaparecidos políticos, visitou o General Golbery. A princípio, o General se comprometeu a dar uma resposta sobre o paradeiro de tais, em trinta dias, mas, mais tarde, por intermédio do Ministro da Justiça da época, Armando Falcão, relatou-se à imprensa que os referidos desaparecidos jamais haviam sido detidos.360 Mais tarde, em 1980, um grupo de familiares dos desaparecidos no Araguaia visitou a região em busca de informações a respeito dos possíveis locais de sepultura dos restos mortais de seus parentes, encontrando indícios de corpos no cemitério na cidade de Xambioá e em cemitérios clandestinos em áreas próximas. Então, em 1991, os familiares promoveram escavações no cemitério de Xambioá, encontrando restos mortais de duas pessoas – um deles fora, em 1996, identificado como os restos mortais de Maria Lucia Petit da Silva. Avalia-se, ainda nesse ponto, a ocorrência de uma outra situação revoltante: entre 29 de junho e 24 de julho de 1996, uma nova missão na região do Araguaia, mais especificamente na reserva indígena Suruís, desenvolveu-se para oportunizar o reconhecimento de novos restos mortais, mas, infelizmente, as sepulturas que ali se localizavam haviam sido violadas e a maioria dos ossos, retirados. Momentos depois, outras buscas foram igualmente realizadas, mas sem grandes sucessos. Ademais, em dois de outubro de 2003, o Estado criou uma Comissão Interministerial, por intermédio do Decreto n.o 4.850, com o propósito de obter informações para localizar os restos mortais dos participantes da Guerrilha do Araguaia. Tais trabalhos finalizaram-se em março de 2007, sendo que nada fora encontrado. 360 ARNS, Paulo Evaristo. Brasil..., p.65-66. 207 Mesmo sem sucesso na busca dos restos mortais dos combatentes da Guerrilha do Araguaia e na falta de informações e esclarecimentos sobre o caso, desenvolveram-se algumas ações em âmbito nacional relacionados com o fato. A primeira delas, a Ação Civil n.o 82.00.24682-5 (Ação Ordinária para a Prestação de Fato), inciou-se em 21 de fevereiro de 1982, pelos familiares de 22 desaparecidos no Araguaia, perante o 1.o Juizado Federal do Distrito Federal. Solicitou-se a declaração de ausência dos desaparecidos, a determinação de seu paradeiro e, se possível, a localização de seus restos mortais para que possam ter um enterro digno. Previsivelmente, sete anos após, em 27 de março de 1989, a ação foi declarada extinta, sem julgamento de mérito, uma vez que o pedido mostrava-se jurídica e materialmente impossível de ser cumprido. Após muitos recursos, com perdas e ganhos para os familiares das vítimas, o caso chegou ao conhecimento do STJ que entendeu que a sentença de primeira instância deveria ser restabelecida integralmente, dando fim à causa e aos anseios dos familiares das vítimas. Os parentes das vítimas ainda tentaram outras vias de natureza judicial, sendo que, em 2001, as Procuradorias da República dos estados do Pará, São Paulo e Distrito Federal instauraram Inquéritos Civis Públicos – n.o 1/2001, n.o 3/2001 e n.o 5/2001, respectivamente – para recopilar informações sobre a Guerrilha do Araguaia. Mediante tais informações colhidas, o Ministério Público Federal interpôs Ação Civil Pública (n.o 2001.39.01.000810-5) contra a União Federal, para que fosse cessada a influência das Forças Armadas sobre as pessoas que viviam na região do Araguaia, objetivando, ainda, conseguir do Estado todos os documentos que contivessem informações sobre as ações militares das Forças Armadas contra a Guerrilha. Em primeiro grau, a União fora condenada, mas, com a interposição dos recursos especiais e extraordinários por parte da União, não houve, ainda, a execução de tal sentença – demonstrando, mais uma vez, que os direitos das famílias das vítimas já foram lesados apenas pela demora na decisão final do feito. Em resumo, os parentes das vítimas dos desaparecidos e dos executados da Guerrilha do Araguaia têm impulsionado, desde o ano de 1982, de maneira independente ou através de órgãos do próprio Estado, ações de natureza não penal, relacionadas com a abertura dos arquivos das Forças Armadas sobre o referido caso, para saber sobre as circunstâncias dos desaparecimentos forçados e execuções de seus familiares, 208 além da localização de seus restos mortais. Mas, até hoje, não fora permitido o acesso e nem mesmo o conhecimento das verdades sobre o ocorrido. 6.1.1 A Lei de Anistia (Lei n.o 6.683/79) A Lei de Anistia – vigente até o momento, uma vez que, em decisão recente o Supremo Tribunal Federal entendeu que não feria a Constituição, esquecendo-se dos valores supremos dos direitos humanos – fora sancionada pelo General João Baptista de Oliveira Figueiredo, em 28 de agosto de 1979. De acordo com o entendimento da referida Lei, encontra-se extinta a responsabilidade penal de todos os indivíduos que cometeram "crimes políticos ou conexos a estes", durante o período de dois de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.361 De acordo com a questão, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu Informe Anual 1979-1980, assinalou que: O Governo do Brasil informou que, em agosto de 1979, editou a Lei n.o 6.683, mediante a qual se concede anistia a todos os que, no período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram delitos de tipo políticos e conexos a estes, assim como delitos eleitorais. A anistia cobre, também, os que tiveram suspendidos seus direitos políticos, os servidores da administração direta ou indireta de funções vinculadas ao Poder Público, os servidores dos poderes Legislativo e Judicial, os militares e dirigentes e representantes sindicais, apenados com fundamento em atos institucionais e complementários. Concede-se, ainda, anistia aos empregados de empresas privadas que, por motivos de participação em qualquer movimento reivindicatório ou de reclamação de direitos regidos pela legislação social, foram despedidos de seu trabalho ou destituídos de seus cargos administrativos ou de representação sindical.362 361 362 Lei n.o 6.683/79, Art. 1.o: "É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram, crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1.o Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política". COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Informe anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos 1979-1980. Washington, 1979-1980. Capítulo IV, A. 209 Teoricamente, a Lei de Anistia tinha como propósito principal, anistiar os cidadãos que foram processados com base nas normas de exceção, aprovadas pelo governo militar. Acontece que seu texto, como já se referiu, veio a incorporar o conceito de "crimes conexos", beneficiando claramente os agentes do Estado envolvidos na prática de torturas e assassinatos. Em decorrência do referido absurdo, o Estado brasileiro reconheceu que a investigação e a sanção penal dos responsáveis pelas desaparições forçadas das vítimas e pela execução de Maria Lucia Petit da Silva estariam impossibilitadas por conta da lei, uma vez que ainda se encontra vigente. Por mais revoltante que soe, em decorrência da interpretação da Lei de Anistia, vislumbra-se a absolvição automática de todas as violações de direitos humanos que foram desenroladas durante os anos da ditadura, numa espécie de autoanistia (quando o próprio governo concede anistia a seus integrantes), não cabendo sequer às vítimas e/ou aos seus familiares, uma devida reparação de seus direitos violados. Apesar desse quadro, deve-se frisar que os crimes de tortura e extermínio, considerados ou não crimes políticos, não são passíveis de serem anistiados, uma vez que são crimes contra a humanidade, como já se decidiu, em outros momentos, nas cortes internacionais de direitos humanos. Além disso, muito se debate sobre o fato de que as leis de anistia – não apenas a brasileira, mas todas aquelas que, no mesmo período, desenvolveram-se nos países latino-americanos –, além de violarem instrumentos internacionais, ratificados posteriormente pelos Estados, violam também as normas imperativas de direito internacional (jus cogens), as quais – entende esse trabalho, em concordância com a doutrina majoritária – possuem valores supraconstitucionais, por abrangerem temas indisponíveis. O problema maior que se vislumbra na Lei de Anistia brasileira é a consideração sobre crimes conexos, deixando margens a dúbias interpretações. Mas, em concordância com os dizeres de Flávia Piovesan, deve-se, sem qualquer dúvida, ser de tal forma compreendido: [...] há que se afastar a insustentável interpretação de que, em nome da conciliação nacional, a lei de anistia seria uma lei de 'duas mãos', a beneficiar torturadores e vítimas. Esse entendimento advém da equivocada leitura da expressão 'crimes conexos' constante da lei. Crimes conexos são os praticados por uma pessoa ou grupo de pessoas, que se encadeiam em 210 suas causas. Não se pode falar em conexidade entre fatos praticados pelo delinquente e pelas ações de sua vítima. A anistia perdoou a estas e não àqueles; perdoou às vítimas e não aos que delinquem em nome do Estado. Ademais, é inadmissível que o crime de tortura seja concebido como crime político, passível de anistia e prescrição.363 Somada à problemática da interpretação do que vem a ser crimes conexos está o fato de que a Lei de Anistia brasileira perdura até os dias atuais, revelando um atraso político da sociedade, tendo em vista que a grande maioria dos Estados, localizados geograficamente próximos ao Brasil, que também haviam editado uma Lei de Anistia, já a revogaram por entenderem que hoje não mais perdura os entendimentos, os contextos e muito menos os valores que basearam os textos das referidas leis. O Brasil teve a possibilidade de revogá-la, quando então a Ordem dos Advogados do Brasil, por intermédio da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental n.o 153364, Distrito Federal, alegou ser notória a controvérsia constitucional a propósito do âmbito de aplicação da Lei de Anistia, questionando se houve ou não anistia dos agentes públicos responsáveis pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores políticos ao regime, sendo que, caso tivesse anistiado tais agentes, teria violado frontalmente os preceitos fundamentais do Estado. Igualmente, alega a OAB que os atos de violação da dignidade humana não se legitimariam com a reparação pecuniária concedida às vítimas ou aos seus familiares, vez que os responsáveis pelos atos violentos estariam imunes ou acobertados por seu anonimato. Requereu, finalmente, que a anistia da Lei n.o 6.683/7 não fosse estendida aos crimes comuns praticados pelos agentes de repressão, contra opositores políticos durante o regime militar. Não se vislumbra um melhor momento para a revogação da Lei de Anistia, quando então alguns entes da sociedade civil estavam ali questionando sobre a 363 364 PIOVESAN, Flávia. Direito internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da FMP, Porto Alegre, n.4, p.117, 2009. A controvérsia constitucional estaria consubstanciada na divergência de entendimentos entre o Ministério da Justiça e do Ministério da Defesa. 211 inferioridade da Lei de Anistia perante os preceitos fundamentais do Estado brasileiro. Mas, infelizmente, o Supremo Tribunal Federal trouxe à tona um retrocesso indiscutível no âmbito dos direitos humanos, quando entendeu que não seria hora de revogá-la, uma vez que, segundo os dizeres do Ministro relator do processo, Eros Grau, não caberia ao Poder Judiciário a revisão desse acordo político – competência exclusiva do Poder Legislativo. Mesmo que a compreensão do Poder Judiciário, no começo de 2010 tenha sido a de sobrepor – erroneamente – outros valores aos mais supremos de todos – quais sejam, os direitos humanos –, o caso sobre a Guerrilha do Araguaia já se encontrava no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e em vias de finalização. Como não poderia deixar de ser, ali, o entendimento fora contrário ao da corte suprema brasileira. O mais revoltante é que, se o caso ainda não estava findado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Comissão a questão sobre a Lei de Anistia já havia adquirido contornos concretos, tendo a própria Comissão determinado que o Estado brasileiro deveria adotar todas as medidas que fossem necessárias para garantir que a referida lei não continuasse representando obstáculos para a persecução penal de graves violações de direitos humanos, as quais constituíam, sem dúvidas, crimes contra a humanidade. Referiu-se, também, ao fato de que a Lei de Anistia – não apenas do Brasil, mas de todos os países da América Latina – seriam incompatíveis com a Convenção Americana. Infelizmente, em um ato de soberba e desrespeito aos direitos humanos de todos os cidadãos brasileiros, o Supremo entendeu diferente – considerando plenamente plausível a reafirmação da Lei de Anistia no contexto político e jurídico atual – e revelou, mais uma vez, a sua mentalidade retrógrada. Na verdade, o que se entende é que o Supremo, ao analisar apenas a compatibilidade da Lei de Anistia com a Constituição de 1988, não se ateve, perigosamente, ao fato de que, hoje, não se fala mais apenas em controle de constitucionalidade de leis ou atos normativos, uma vez que, devido ao valor inestimável dos documentos internacionais que versam sobre os direitos humanos, 212 fala-se, sim, em controle de convencionalidade365 – pautado, especialmente, nos referidos documentos. Nessa linha de raciocínio, presume-se que a Lei de Anistia não passaria pelo referido controle, uma vez que o Brasil vem a ser signatário, em âmbito regional e global, da maioria – se não de todos – dos instrumentos que garantem e protegem os direitos humanos. E mais: estando a maioria desses direitos já presentes no ordenamento interno, e condenado o Brasil já em âmbito internacional – no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos – caberia uma nova análise do que fora decidido pelo Supremo sobre a Lei de Anistia. Nesse sentido, passa-se ao estudo do caso no sistema interamericano de direitos humanos, iniciado em sua Comissão. 6.2 O CASO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Primeiramente, examina-se que o trâmite do caso inaugurou-se na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na data de sete de agosto de 1995, quando então viera a receber uma petição contra o Brasil, apresentada pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela Human Rights Watch/Americas, em nome das pessoas desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia e seus respectivos familiares.366 Mais tarde, em dez de janeiro de 1997, os peticionários originários solicitaram a inclusão, como co-peticionários do caso, da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, do Instituto da Violência do Estado (IEVE), e da senhora Ângela Harkavy, irmã de Pedro Alexandrino Oliveira, um dos desaparecidos citados na demanda. 365 366 O controle de convencionalidade encontra respaldo na normativa internacional, advinda de tratados e convenções. Diz-se que quando um Estado submete-se, em plano internacional, a um determinado documento, seu conjunto normativo inferior à Constituição deverá não apenas respeitá-la (controle de constitucionalidade), mas também adequar-se às obrigações internacionais do Estado (controle de convencionalidade). Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro (caso 11.552), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 213 Ainda, em vinte de maio de 1997, os peticionários solicitaram a inclusão, novamente como co-peticionário, do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro. A petição apresentada relatava, em suma, os seguintes pontos: o desaparecimento de integrantes da chamada Guerrilha do Araguaia, entre os anos de 1972 a 1975; a falta de investigação e punição das pessoas que deram causa aos desaparecimentos; e a falta de informações acerca das campanhas militares, realizadas para combater a guerrilha, sobre as circunstâncias de óbito dos combatentes e sobre o paradeiro de seus corpos.367 Salientou a Comissão que a demanda referia-se à responsabilidade do Estado em virtude da detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de, pelo menos, 70 pessoas, cujas quais seriam membros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e camponeses da região. Entendeu ainda que tais atitudes resultariam de operações do exército brasileiro, entre 1972 a 1975, objetivando erradicar, por completo, a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar brasileira, empreendida nos anos de 1964 a 1985. Segundo os peticionários, o Brasil havia incorrido na violação dos direitos humanos previstos nos seguintes artigos da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem: artigo I (direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade da pessoa); artigo XXV (direito de proteção contra a detenção arbitrária); e artigo XXVI (direito ao processo regular). Compreendeu-se, igualmente, que o Estado brasileiro havia violado a Convenção Americana dos Direitos Humanos em seus artigos 4.o (direito à vida), artigo 8.o (direito às garantias judiciais), artigo 12 (liberdade de consciência e de religião), artigo 13 (liberdade de pensamento e de expressão), e artigo 25 (direito à proteção judicial), juntamente com o descumprimento do artigo 1.1 (obrigação de respeitar os direitos). Nesse quadro, em 21 de agosto de 1995, a Comissão acusou o recebimento da petição e em 12 de dezembro do mesmo ano, remeteu os autos às partes, solicitando que prestassem maiores informações sobre o caso. 367 Contestação do Estado brasileiro no caso n.o 11.552 (Caso Júlia Gomes Lund e Outros – Guerrilha do Araguaia), da Corte Interamericana de Direitos Humanos, apresentada em 31 de outubro de 2009. 214 O Brasil veio, em 26 de junho de 1996, responder à solicitação da Comissão, informando que não haviam esgotados os recursos internos, estando em curso regular a Ação Ordinária n.o 82.00.24682-5, criando-se, ainda, por intermédio da Lei n.o 9.140/95, a Comissão Especial sobre Mortos de Desaparecidos Políticos (CEMDP), reconhecendo 61 mortos na Guerrilha do Araguaia e estipulando o pagamento de indenizações aos seus familiares, além da previsão da realização de buscas de restos mortais no local do fato. Em 16 de julho seguinte, a Comissão enviou uma cópia da resposta estatal aos referidos representantes, solicitando que tecessem comentários – fato ocorrido em 23 de agosto de 1996, sendo logo, em 19 de setembro próximo, remetidos ao Estado brasileiro. Assim, em sete de outubro do mesmo ano, celebrou-se, no âmbito do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, uma audiência entre as partes, onde os representantes da petição e o Estado apresentaram seus argumentos sobre a admissibilidade do caso em tela. Em nove de dezembro, os representantes solicitaram informações sobre o interesse do Estado em procurar uma solução amistosa na questão. Então, em 13 de dezembro de 1996, a Secretaria da Comissão informou aos representantes que o Estado não havia se pronunciado sobre a possibilidade de uma solução amistosa. No ano seguinte, em 25 de janeiro de 1997, a Comissão recebeu informações do Estado brasileiro, alegando, novamente, sobre o regular andamento da Ação Ordinária n.o 82.00.24682-5, propugnando pela inadmissibilidade da petição em questão, por falta de esgotamento dos recursos internos. Esta informação, então, fora remitida aos representantes em 18 de abril de 1997. Mais tarde, em quatro de março do mesmo ano, a Comissão celebrou, novamente, uma audiência entre as partes, onde se apresentaram argumentos em torno da admissibilidade da petição, ouvindo-se, na qualidade de testemunha, a senhora Ângela Harkavy. Incansável, a Comissão ofereceu seus bons ofícios para procurar uma solução amistosa e outorgou um prazo de trinta dias para que as partes decidissem se desejavam recorrer a essa via. Nessa mesma ocasião, os representantes apresentaram alegações escritas sobre o caso. Então, em seis de março de 1997, o Brasil informou sobre as medidas que vinham sendo adotadas, em cumprimento à Lei n.o 9.140/05, sendo que, logo na 215 data de 20 de maio, os representantes remitiram uma resposta ao Estado, que veio a se pronunciar em 25 de julho, reiterando que inexistia relatório sobre as atividades anti-guerrilha em posse das Forças Armadas e, ainda, que não dispunha de informações completas sobre a localização dos restos mortais dos desaparecidos. Entre a data de quatro de novembro de 1997, a 22 de abril de 1998, os representantes remeteram informações à Comissão, tais como a declaração de um dos sobreviventes da Guerrilha do Araguaia, além de informarem sobre a existência de documentos militares com dados precisos sobre o paradeiro das pessoas desaparecidas. Mais uma vez, em 31 de agosto de 1998, o Estado brasileiro reiterou as informações prestadas em 25 de fevereiro de 1997 e requereu, novamente, a inadmissibilidade da demanda por falta de esgotamento dos recursos internos e seu consequente arquivamento. Tais informações foram transladadas em 1.o de setembro de 1998, e em cinco de março de 1999, os representantes apresentaram suas alegações. Finalmente, em seis de março de 2001, a Comissão expediu o Relatório de Admissibilidade n.o 33/01, declarando admissível que o Brasil, segundo a descrição e suas provas, tenha violado o artigo I, artigo XXV e artigo XXVI da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, além dos artigos 1.o (1), artigo 4.o, artigo 8.o, artigo 12, artigo 13 e artigo 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, passando à análise do mérito do caso.368 De tal maneira, em 16 de dezembro de 2004, a Comissão requereu que os representantes apresentassem suas alegações sobre o mérito do caso, no prazo de dois meses. Após várias solicitações de prorrogações, as alegações foram apresentadas em 28 de novembro de 2006 e já em quatro de dezembro, foram enviadas ao Brasil. Em maio de 2007, o Brasil apresentou declarações sobre as ações realizadas, iniciadas no ano de 1993, com vistas a esclarecer os fatos ocorridos durante a Guerrilha do Araguaia. Tal documentação fora recebida pela Secretaria Executiva da Comissão no dia 22 de maio. Ademais, a CIDH recebeu informações dos representantes – cujas quais foram devidamente transmitidas ao Estado – nas datas de sete de julho e oito de novembro de 2007, e 18 e 22 de abril de 2008. 368 Contestação do Estado brasileiro no caso n.o 11.552 (Caso Júlia Gomes Lund e Outros – Guerrilha do Araguaia), da Corte Interamericana de Direitos Humanos, apresentada em 31 de outubro de 2009. 216 Do Brasil, a Comissão recebeu sua manifestação em agosto de 2007, a qual relatava, mais uma vez, que os recursos no âmbito interno não haviam sido esgotados e que já estava promovendo, a partir da promulgação da Lei n.o 9.140/95, medidas de reparação material e moral aos familiares das vítimas do caso. O Estado brasileiro ainda informou, em setembro de 2007 e em janeiro de 2008, que seus entes internos encontravam-se realizando gestões necessárias junto aos seus órgãos para o início da execução da sentença proferida no âmbito da Ação Ordinária n.o 82.00.24682-5. Ocorre que o Brasil não foi convincente em suas alegações e, muito menos, provou que a reparação aos direitos humanos das vítimas e de seus familiares seria suficiente em âmbito interno e, assim sendo, em 31 de outubro de 2008, a Comissão expediu o Relatório de Mérito n.o 91/08, nos termos do art. 50 da Convenção, determinando recomendações ao Estado e concluindo que: O Estado brasileiro deteve arbitrariamente, torturou e desapareceu os membros do PCdoB e os camponeses listados no parágrafo 94 deste Relatório. Além disso, a CIDH conclui que, em virtude da Lei 6.683/79 (Lei de Anistia), promulgada pelo governo militar do Brasil, o Estado não levou a cabo nenhuma investigação penal para julgar e sancionar os responsáveis por estes desaparecimentos forçados; que os recursos judiciais de natureza civil com vistas a obter informação sobre os fatos não foram efetivos para garantir aos familiares dos desaparecidos o acesso à informação sobre a Guerrilha do Araguaia; que as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o direito ao acesso à informação desses familiares; e que o desaparecimento forçado das vítimas, a impunidade dos seus responsáveis, e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos.369 Além disso, a Comissão considerou que o Estado havia violado todos os artigos referidos na petição apresentada pelos representantes das vítimas e determinou que o Brasil adotasse algumas medidas: a) garantir que a Lei de Anistia não continuasse representando obstáculo para a persecução penal de graves violações de direitos humanos; b) determinar a responsabilidade penal pelos desaparecimentos forçados das vítimas da Guerrilha do Araguaia, mediante uma investigação judicial completa e imparcial dos fatos, visando identificar os responsáveis por tais violações e sancioná-los penalmente, levando em conta que tais crimes não são suscetíveis de 369 Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro (caso 11.552), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, p.10. 217 anistia e, igualmente, são imprescritíveis; c) sistematizar e publicar todos os documentos relacionados com as operações militares contra a Guerrilha do Araguaia; d) fortalecer, com recursos financeiros e logísticos, os esforços já empreendidos na busca dos restos mortais dos desaparecidos; e) outorgar uma reparação aos familiares das vítimas, que inclua o tratamento físico e psicológico, assim como a celebração de atos de importância simbólica que garantissem a não repetição dos delitos cometidos no caso e o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelo desaparecimento das vítimas e sofrimento de seus parentes; f) implementar, em prazo razoável, programas de educação em direitos humanos permanentes dentro das Forças Armadas brasileiras; e g) tipificar, no ordenamento interno, o crime de desaparecimento forçado, segundo o disposto em instrumentos internacionais.370 O referido relatório fora transmitido ao Brasil em 21 de novembro de 2008, concedendo-lhe prazo de dois meses para que implementasse as referidas medidas ou, ao menos, informasse sobre as ações executadas com o propósito de implementá-las. Após dois pedidos de prorrogações do prazo, em 24 de março de 2009, o Brasil encaminhou à CIDH o primeiro Relatório Parcial de Cumprimento de Recomendações e uma nova solicitação de prorrogação, por seis meses. Como os representantes já haviam solicitado, em 22 de dezembro de 2008, a submissão do caso à Corte, e tendo a Comissão entendido a falta de implementação satisfatória, por parte do Estado brasileiro, das recomendações contidas no Informe n.o 91/08, decidiu-se, durante seu 134.o Período Ordinário de Sessões, a submissão do caso à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na data exata de 26 de março de 2009. A Comissão, ao submeter a questão à Corte, pontuou que o fato poderia representar uma importante oportunidade para consolidar a jurisprudência interamericana sobre as leis de anistia, em especial em relação aos desaparecimentos forçados e as execuções extrajudiciais, revelando, ainda, as obrigações dos Estados em possibilitar o conhecimento da verdade à sociedade, além de ter o dever de investigar, processar e punir os violadores dos direitos humanos. Por fim, previu a possibilidade da Corte afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia com a Convenção Americana. 370 Contestação do Estado brasileiro no caso n.o 11.552 (Caso Júlia Gomes Lund e Outros – Guerrilha do Araguaia), da Corte Interamericana de Direitos Humanos, apresentada em 31 de outubro de 2009. p.12-13. 218 6.3 O CASO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Como já dito anteriormente, a Comissão apresentou o Caso 11.552 à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 26 de março de 2009, requerendo, essencialmente, que o organismo responsabilizasse o Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento dos membros do PCdoB e dos moradores da região (listados como vítimas desaparecidas); pela falta de investigação penal para julgar e sancionar os responsáveis pelos atos descritos, e também pela execução extrajudicial de Maria Lucia Petit da Silva; pela falta de efetividade dos recursos judiciais de natureza civil para obtenção de informações sobre o ocorrido; pela restrição do acesso à informação por parte dos familiares das vítimas; pelos danos à integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e executados e pela impunidade dos culpados.371 Descreve-se, então, que a referida demanda fora notificada ao Estado e aos representantes em 18 de maio de 2009, conjuntamente ao requerimento do Presidente da Corte, referente ao recebimento dos depoimentos e pareceres das 26 supostas vítimas, de quatro testemunhas (duas propostas pelos representantes e duas pelo Estado) e de cinco peritos (um proposto pela Comissão, dois pelos representantes e dois pelo Estado). O Presidente também convocou a Comissão, os representantes e o Estado para a realização de uma audiência pública, em 21 e 22 de maio de 2010, durante o LXXXVII Período Ordinário de Sessões da Corte, com o intuito de ouvir alguns depoimentos que considerou relevantes ao desfecho do caso.372 371 372 Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro (caso 11.552), na Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte recebeu oito escritos na qualidade de amicus curiae, sendo eles: a) Open Society Justice Initiative, Commonwealthy Human Rights Initiative, Open Democracy Advice Centre e South African History Initiative, relacionados ao direito à verdade e ao acesso à informação; b) Grupo de Pesquisa de Direitos Humanos na Amazônia, relacionado com a Lei de Anistia; c) Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio de Janeiro, sobre os efeitos de uma eventual sentença da Corte Interamericana e a decisão emitida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.o 153; d) Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão "Democracia e Justiça de Transição", da Universidade Federal de Uberlândia, sobre a extensão da Lei de Anistia e a importância do caso para a garantia do direito à memória e à verdade; e) Grupo de Pesquisa "Direito à Memória e à Verdade e Justiça de Transição, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, o Núcleo de Pesquisa e Extensão da Universidade Federal do Rio Grande, o Movimento Nacional de Educação em Direitos Humanos e Acesso, Cidadania e Direitos 219 Então, em 21 de junho de 2010, a Comissão e o Estado enviaram suas alegações finais escritas, além de terem os representantes as apresentado horas após o vencimento do prazo – sem objeções –, mas admitidas pela Corte. Tais escritos foram transmitidos às partes para a realização de observações sobre os documentos anexados pelas outras, remetendo, ainda, documentos adicionais. Adentrando às alegações das partes, pode-se dizer que o Brasil interpôs contestação da demanda, vindo, em primeiro lugar, apresentar exceções preliminares. No que tange às exceções preliminares373 do Estado, estas foram em número de três, quais sejam: incompetência do Tribunal em virtude do tempo para examinar determinados fatos, falta do esgotamento dos recursos internos e falta de interesse processual da Comissão e dos representantes. Posteriormente, durante a audiência pública, o Estado acrescentou uma nova exceção: a regra da quarta instância, relacionada a um fato qualificado como superveniente. Adentrando à primeira das exceções, atinente à incompetência temporal da Corte Interamericana, o Brasil alegou que o referido órgão era incompetente para examinar supostas violações ocorridas anteriormente ao reconhecimento de sua competência, realizado em 10 de dezembro de 1998. Por outro lado, a Comissão atentou ao fato de que a demanda se refere unicamente às violações dos direitos previstos na Convenção Americana que persistem depois do referido reconhecimento de competência, em razão da natureza contínua do desaparecimento forçado, vindo a confirmar a competência da Corte para o conhecimento da causa. 373 Humanos, o Grupo de Pesquisa "Delams-Marty: Internacionalização do Direito e Emergência de um Direito Mundial", o Grupo de Pesquisa "Fundamentação Ética dos Direitos Humanos, a Cátedra UNESCO/UNISINOS, O Curso de Graduação em Direito e o Núcleo de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, sobre eventuais consequências desse processo na justiça de transição no Brasil; f) Justiça Global, com respeito à incompatibilidade da Lei de Anistia brasileira com a Convenção Americana; g) Equipe do Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sobre o direito de acesso à informação em poder do Estado; e h) Associação dos Juízes para a Democracia, sobre o direito à memória e à verdade, com relação à Lei de Anistia. Afirma a Corte que exceções preliminares têm a finalidade de obter uma decisão que previna ou impeça a análise do mérito do aspecto questionado ou do caso em seu conjunto. 220 A Corte considerou parcialmente a referida exceção preliminar, entendendo que não poderia exercer sua competência contenciosa para aplicar a Convenção e declarar uma violação de suas normas quando os fatos alegados ou a conduta do Estado fossem anteriores a esse reconhecimento, tendo excluído de sua competência a alegada execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva. Entretanto, considerou o caráter contínuo ou permanente do desaparecimento forçado de pessoas e entendeu ter jurisdição para analisar tal ponto. Adentrando à segunda exceção preliminar, sobre a falta de interesse processual, entendeu o Estado brasileiro que já desenvolveu muitas ações para a reparação da violação dos direitos humanos dos familiares e a falta de interesse processual dos peticionários seria consequência do fato de que as referidas medidas, já adotadas ou que ainda seriam implementadas, atendem integralmente seus pedidos. A Comissão ressaltou que as referidas alegações do Estado brasileiro não teriam características de exceções preliminares e, igualmente, os representantes manifestaram-se sobre a insuficiência das medidas adotadas pelo Brasil. A Corte veio a afirmar que as eventuais medidas adotadas ou em vias de consolidação pelo Estado não repercutem no tema das exceções preliminares, devendo ser relevantes quando da análise do mérito do caso. Assim sendo, desconsiderou tal exceção. No que tange à terceira exceção preliminar, acerca da falta do esgotamento dos recursos internos, o Estado discutiu que a Comissão não atendeu a tal requisito, uma vez que havia algumas ações pendentes, em jurisdição interna, sobre as questões levadas a seu conhecimento. A Comissão, em sua defesa, referiu-se ao fato de que o seguinte pressuposto foi devidamente analisado no Relatório de Admissibilidade n.o 33/01, sendo que os três dos quatro pilares de argumentação do Estado são posteriores ao referido documento. Também, os representantes afirmaram a ineficácia dos recursos internos, aludidos pelo Estado, na reparação de seus danos. Então, entendeu a Corte que a suposta falta de esgotamento dos recursos internos deveria ter sido apresentada em um momento anterior, na etapa de admissibilidade do procedimento perante a Comissão – fato não consumado pelo Brasil. Igualmente, a Corte referiu-se, a partir dos argumentos das partes e das provas apresentadas, à ineficácia e ao atraso injustificado dos recursos internos, desconsiderando, então, essa exceção preliminar. 221 A última das exceções preliminares apresentadas, quanto à regra da quarta instância, fora superveniente à contestação da demanda, tendo o Estado alegado que o seu Supremo Tribunal Federal "declarou improcedente, por sete votos a dois, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.o 153", relativa à Lei de Anistia, considerando-a necessária em um determinado momento histórico. Assim sendo, o Estado questionou a competência da referida Corte Interamericana para revisar decisões adotadas pelas mais altas cortes brasileiras. Entre outros argumentos, os representantes entenderam que, apesar do caráter subsidiário da jurisdição internacional, a análise do conjunto dos elementos das violações continuadas aos direitos das vítimas e de seus familiares é essencial para a responsabilização internacional do Estado. Nesse aspecto, argumentou a Corte que a alegação sobre a quarta instância foi interposta pelo Estado na audiência pública do presente caso, posteriormente à apresentação do escrito de contestação à demanda, compreendendo, então, que a sentença do Supremo Tribunal Federal, de 29 de abril de 2010, constitui fato superveniente e, por esse motivo, a Corte encontra-se apta a pronunciar-se sobre a alegação estatal. Além disso, a Corte finalizou a argumentação estatal e desestimou tal exceção preliminar, quando se referiu ao fato que não pretende um embate com o Supremo Tribunal Federal, uma vez que, no sistema interamericano, pretende-se estabelecer se o Estado violou ou não determinadas obrigações internacionais.374 Analisados tais pontos, a Corte passou à análise do mérito da demanda proposta pela Comissão, baseando-se nos fatos alegados e nas provas admitidas pelo referido Tribunal, tendo decidido pela demanda na data de 24 de novembro de 2010. 374 Como bem refere a Corte, na página 20 da Sentença sobre o caso: "No presente caso, não se solicita à Corte Interamericana a realização de um exame da Lei de Anistia com relação à Constituição Nacional do Estado, questão de direito interno que não lhe compete e que foi matéria do pronunciamento judicial na Arguição de Descumprimento n.o 153, mas que este Tribunal realize um controle de convencionalidade, ou seja, a análise da alegada incompatibilidade daquela lei com as obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção Americana". 222 Na referida decisão, a Corte declarou que: a) as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, não podendo, além, representar um obstáculo para a investigação dos fatos do caso em tela; b) o Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e pela violação dos direitos elencados nos artigos 3.o, 4.o, 5.o e 7.o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; c) o Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à referida Convenção Americana, interpretando e aplicando a Lei de Anistia também a graves violações de direitos humanos; d) o Estado é responsável pela violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão, pela afetação do direito a buscar e receber informação, bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido; e) o Estado é responsável pela violação do direito à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares indicados no caso.375 Além disso, decidiu, por unanimidade que o Estado: 1) deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja; 2) deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares; 3) deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o caso, pagar o montante estabelecido; 4) deve realizar as publicações ordenadas; 5) deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso; 6) deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas; 7) deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos. Enquanto cumpre com esta medida, deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se 375 Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro (caso 11.552), na Corte Interamericana de Direitos Humanos. 223 for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno; 8) deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma; 9) deve pagar as quantias fixadas na presente Sentença, a título de indenização por dano material, por dano imaterial e por restituição de custas e gastos; 10) deve realizar uma convocatória, em, ao menos, um jornal de circulação nacional e um da região onde ocorreram os fatos do presente caso, ou mediante outra modalidade adequada, para que, por um período de 24 meses, contado a partir da notificação da Sentença, os familiares das pessoas aportem prova suficiente que permita ao Estado identificálos e, conforme o caso, considerá-los vítimas nos termos da Lei n.o 9.140/95 e da Sentença internacional em questão; 11) deve permitir que, por um prazo de seis meses, contado a partir da notificação da presente Sentença, os familiares dos senhores Francisco Manoel Chaves, Pedro Matias de Oliveira ("Pedro Carretel"), Hélio Luiz Navarro de Magalhães e Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, possam apresentar-lhe, se assim desejarem, suas solicitações de indenização utilizando os critérios e mecanismos estabelecidos no direito interno pela Lei n.o 9.140/95.376 Debate-se, finalmente, segundo os termos da própria decisão advinda da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que o Brasil violou sobremaneira os direitos humanos das vítimas e dos familiares daqueles que foram desaparecidos, forçadamente, durante o período da Ditadura Militar. E, por mais que em solos nacionais o entendimento – especialmente na interpretação da Lei de Anistia – seja diferente, o Brasil encontra-se numa via de mão única na afirmação e concretização dos direitos humanos, não podendo sobrepor, aos direitos humanos, os entendimentos arcaicos de suas instituições jurídicas. 376 Demanda do Caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) contra o Estado brasileiro (caso 11.552), na Corte Interamericana de Direitos Humanos, p.115-116. 224 6.4 REPERCUSSÕES DA SENTENÇA INTERNACIONAL EM SOLOS BRASILEIROS Inquestionavelmente, a decisão da Corte Interamericana sobre o Caso 11.552, publicada no dia 14 de dezembro de 2010, condenando o Brasil pelo desaparecimento forçado de pessoas, além da violação de diversos direitos humanos, elencados na Convenção Americana, representa, formalmente, um novo ânimo para a submissão do Brasil aos valores supranacionais, elencados e traduzidos como direitos humanos. Nesse sentido, o conceito de supranacionalidade não advém da Corte propriamente dita, mas sim do teor de sua decisão, que guarda, sem dúvidas, respeito e reparações às violações, cometidas pelo Estado brasileiro, dos direitos humanos. Pelo seu valor inestimável, o Brasil já deveria cumpri-la, de maneira voluntária. Mas, além disso, o Estado reconheceu a competência da Corte, em 10 de dezembro de 1998 e, por assim ser, entendeu, igualmente, que, caso venha a ser condenado – como esta e as outras questões levantadas neste trabalho –, deverá cumprir cabalmente a referida condenação.377 Acontece que esse caso, infelizmente, repercutiu de maneira dúbia em solos nacionais. Uma primeira corrente, que felizmente se sustenta pela supremacia dos direitos humanos no cenário brasileiro, aplaudiu a referida decisão, e entendeu que, segundo as palavras do então secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, "o Brasil não pode ter qualquer dúvida de que cabe reexaminar e cumprir cuidadosamente a decisão, que é irrecorrível. Cabe agora aos poderes públicos do Brasil, especialmente ao Judiciário, promover ajustes das suas decisões anteriores"378. Paulo Vannuchi acreditou, ainda, que o Supremo Tribunal Federal poderia, por conta de tal condenação, rever sua postura no que tange ao seu entendimento sobre a Lei de Anistia declarado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.o 153. 377 378 O recorte temporal desse estudo, no que tange ao cumprimento da sentença internacional do Caso 11.552 pelo Brasil, é dado até o início de julho de 2011. JOBIM reage à OEA e diz que país não punirá torturadores; Vannuchi defende cumprimento da sentença do órgão. Jonal O Globo, em 15 de dezembro de 2010. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/12/15/jobim-reage-oea-diz-que-pais-nao-puniratorturadores-vannuchi-defende-cumprimento-da-sentenca-do-orgao-923301888.asp>. Acesso em: 05 abr. 2011. 225 O Itamaraty, também, divulgou uma nota favorável a tal decisão, ressaltando a importância da referida sentença internacional e a obrigação do Estado brasileiro em cumpri-la e implementá-la em solos nacionais. No reconhecimento de tal sentença internacional, manifestou-se, ainda, a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, quando então, por intermédio de uma nota pública, datada de 15 de dezembro de 2010, afirmou que a decisão posicionase pela repulsa aos crimes contra a humanidade, especialmente àqueles cometidos pelos Estados contra seus próprios cidadãos. Ainda, parabenizou o trabalho do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, pelas elucidativas decisões. Em termos de direitos humanos e fortalecimento da democracia. Infelizmente, nem todos tiveram uma posição favorável à sentença. Nesse sentido, o Ministro da Defesa, Nelson Jobim, ressaltou, logo em 15 de dezembro de 2010, que a decisão seria meramente política, não produzindo sequer efeitos jurídicos no Brasil e nem sendo possível, como ela própria determina, a punição dos militares que praticaram tortura no período ditatorial brasileiro. Disse ainda que já está se cumprindo a sentença por intermédio de um Grupo de Trabalho do Tocantins para localização dos corpos desaparecidos na Guerrilha e complementa suas declarações, afirmando que, no ponto que tange à Lei de Anistia, a discussão não poderia ser recolocada na pauta do Supremo Tribunal Federal. Provando, ainda, o despreparo de algumas instâncias brasileiras no cumprimento de sentenças internacionais, o então Presidente do STF, Cezar Peluso, afirmou que, em referência clara ao ponto pertinente à Lei de Anistia, não revoga, não anula, não cassa a decisão do Supremo. Mas, sem dúvidas, a mais despreparada declaração fora a do Ministro Marco Aurélio Mello, que afirmou que o direito interno, pautado na Constituição Federal, deveria sobrepor-se ao direito internacional, sendo que a decisão sobre os direitos humanos teria, apenas, eficácia política. As posições supracitadas despertam um sentimento de revolta naqueles que acreditam nos valores dos direitos humanos e no próprio Direito Internacional, uma vez que, tendo o Brasil reconhecido a jurisdição da Corte Interamericana, o não cumprimento da decisão advinda desse organismo seria uma afronta ao próprio Direito Internacional e, mais ainda, um retrocesso na proteção e eficácia dos valores 226 mais elevados e de maior indisponibilidade de uma sociedade democrática, quais sejam, os direitos humanos. Julga-se, ainda, que caso o Brasil não venha cumprir a sentença do Caso 11.552 – como os fatos estão sinalizando –, o Estado incorrerá em uma nova responsabilidade internacional, podendo dar ensejo a uma nova ação, na mesma Corte, uma vez que deixou de efetivar os direitos humanos das vítimas e de seus familiares, reconhecidos em um plano internacional. Infelizmente, o Executivo, apesar de ter sinalizado positivamente ao cumprimento da sentença internacional – quando então pagou às vítimas, de imediato, naquilo em que fora condenado –, tomou a mesma posição do Judiciário, tendo em vista que, na data de 17 de junho de 2011, pela primeira vez, o governo de Dilma Rousseff admitiu que, apesar da Lei de Anistia não abranger aqueles delitos que violem os direitos humanos, ainda assim, a referida lei é válida para todos os crimes cometidos durante o período da Ditadura Militar brasileira, independentemente do entendimento diverso da sentença advinda da Corte da OEA. Em nota, o Itamaraty assim divulgou: Em parecer, Advocacia-Geral reforça entendimento do Supremo de que a anistia vale para todos os crimes cometidos na ditadura e enfatiza que País não precisa cumprir a sentença da OEA, que pedia punição de responsáveis na Guerrilha do Araguaia. Sob Dilma, União reafirma decisão do STF sobre validade da Lei da Anistia. Pela primeira vez no mandato da presidente Dilma Rousseff, o governo afirmou que a Lei da Anistia não permite a punição de envolvidos em crimes de tortura e violação de direitos humanos. Em parecer, a Advocacia-Geral da União reforçou o entendimento já manifestado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de que a anistia vale para todos os crimes cometidos durante a ditadura.379 Lastimavelmente, o Brasil está recorrendo-se de meios irracionais para sobrepor sua posição perante decisões internacionais acerca dos direitos humanos, demonstrando o total desconhecimento da sistemática do sistema de proteção interamericano dos direitos humanos. 379 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Para governo, sentença da OEA não muda Lei da Anistia. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-denoticias/midias-nacionais/brasil/o-estado-de-sao-paulo/2011/06/17/sob-dilma-uniao-reafirmadecisao-do-stf-sobre>. Acesso em: 20 jun. 2011. 227 Apesar do pouco tempo transcorrido desde a publicação da referida sentença internacional, os direitos humanos não podem aguardar mais uma compreensão do Estado brasileiro sobre a relevância de tais direitos, uma vez que como bem se observa no âmbito da sociedade brasileira, nenhuma atitude, por parte dos poderes estatais, fora tomada para o cumprimento da sentença do caso da Guerrilha do Araguaia. Correlacionadas a este cenário, já em abril de 2011, pessoas e entidades que trabalharam no processo do caso da Guerrilha do Araguaia, contando com a adesão de cidadãos brasileiros e de outros Estados das Américas, enviaram uma carta aos três poderes da República para exigir o cumprimento da referida sentença. O documento, com mais de 600 assinaturas, fora enviada às presidências da República, do Senado, da Câmara dos Deputados, do Supremo Tribunal Federal e ao procuradorgeral da República. Até esse momento, julho de 2011, não se tem notícias sobre a resposta dada ao documento, nem sequer sobre qualquer nova ação do Estado brasileiro que vá de encontro às determinações da sentença do Caso 11.552. Infelizmente, já não se cumpriu as determinações em tempo hábil, uma vez que, versando a questão sobre direitos humanos, a urgência em sua efetivação deve ser, sempre, máxima. Mas, ainda assim, por mais que o cenário demonstre-se caótico para o cumprimento de seu integral teor, se o Brasil realmente defende os valores essenciais de um Estado Democrático de Direito, e, em especial, os direitos humanos, não se vislumbra outra saída – não apenas nessa questão, mas caso existam outras condenações na Corte Interamericana – que o cumprimento da sentença internacional. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Debatidas as principais questões levantadas contra o Estado brasileiro no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos – materializado, nesse momento, na Corte Interamericana de Direitos Humanos –, julga-se necessária uma última análise dos desafios do próprio sistema e, especialmente, das principais mudanças que se demonstram imprescindíveis no papel brasileiro na implementação da proteção dos direitos humanos em âmbito interno. 228 Valoriza-se que as críticas que aqui serão desenroladas não visam desmerecer o sistema interamericano e nem a posição brasileira nessa conjuntura: sabe-se que muitos avanços tornaram-se realizáveis apenas pela existência do referido sistema e, da mesma forma, considera-se a posição do Brasil perante a implementação de tal essencial para todo o seu desenvolvimento. Prevê-se, apenas, que alguns aspectos realmente merecem uma especial atenção. Assim sendo, inicialmente, adentrando aos pontos do próprio sistema interamericano que ainda não se encontram aptos em sua plenitude, atina-se ao fato de que o principal desafio da Organização dos Estados Americanos, hoje, é, sem dúvidas, a definição de quais são as violações da democracia que permitem o desenvolvimento de procedimentos e sanções, de acordo com a Carta Democrática Interamericana. Explica-se: os direitos configurados no sistema de proteção dos direitos humanos não podem se estender a questões que não sejam essenciais, característica inerente aos próprios direitos humanos. Também, não se pode deixar de proteger e sancionar eventuais violações dos direitos humanos em detrimento dos conceitos advindos da normativa interna ou escusando-se por não haver previsão exata e expressa, da violação, na Convenção Americana de Direitos Humanos. Essa tarefa é, obrigatoriamente, um dos principais desafios ao sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. Outro alarmante problema, inerente ao sistema, é a questão do seu déficit operacional: o referido sistema conta com limitadíssimos recursos financeiros para a sua carga jurisdicional. Ou seja, acaba por ser praticamente um milagre o sistema não ter entrado, ainda, em colapso. O que se sugere, nesse ponto, é que programas de assistência monetária à Corte Interamericana sejam desenvolvidos pela OEA e por organizações não-governamentais para a indispensável busca de fundos financeiros.380 Traça-se, ainda, o debate sobre a asfixia da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que, pela elevada demanda de casos e pelos poucos recursos, a justiça tem se demonstrado cada dia mais retardada, contribuindo de maneira expressiva para o jargão já recorrente nos Estados da América Latina: justiça tardia é justiça negada. 380 ROMANO, Cesare. Can you hear me now? The case for extending the international judicial network. Chicago Journey of International Law, Chicago, v.10, n.1, p.233-273, 2009. 229 Logicamente, existem ainda inúmeros outros debates para a melhoria do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, mas, inquestionavelmente, consideram-se como os mais essenciais e urgentes os aqui referidos. Passando-se, então, aos apontamentos sobre o caso brasileiro, a primeira grande discussão que se observa é aquela que pretende uma legislação auxiliar na implementação das sentenças internacionais que versem sobre direitos humanos. Nesse sentido, ilustra-se o Projeto de Lei n.o 3.214381 (Deputado Federal Marcos Rolim) e o Projeto de Lei n.o 4.667 (Deputado Federal José Eduardo Martins Cardozo) que, mais tarde, fora alterado pelo Deputado Federal Orlando Fantazzini e foi, sem dúvidas, o mais expressivo dos projetos. Aponta-se: O Relator de 2006, Deputado Federal Orlando Fantazzini incluiu várias alterações no projeto original, tendo sido estabelecido o caráter vinculante das decisões e recomendações internacionais referentes a direitos humanos. Ademais, no caso das medidas cautelares e provisórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos e também da Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi ainda fixado o prazo de 24 horas para cumprimento. Na parte indenizatória das decisões, a União teria 60 dias para cumprimento (teriam natureza alimentar) e lhe seria permitido ingressas com ações regressivas contra os responsáveis pelas violações e descontar eventualmente os valores das indenizações do repasse das receitas a Estados ou municípios responsáveis. O texto aprovado ainda sugere a criação de um órgão específico para acompanhar a implementação dessas decisões internacionais.382 Investigadas, ponto a ponto, as implementações das condenações internacionais de direitos humanos do Brasil, considera-se, indubitavelmente, a necessidade de uma lei que preveja, internamente, modos de cumprimento das referidas decisões, assim como organismos permanentes que vistoriem, dando-lhes, de fato, a eficácia necessária para que o Estado seja considerado um referencial na proteção dos direitos humanos. Infelizmente, o Brasil tem se demonstrado falho em efetivar condenações internacionais apenas pela voluntariedade. Além de toda essa problemática, na atualidade, a postura brasileiro que merece uma maior análise crítica reside sobre a questão da medida cautelar, outorgada em 381 382 O referido projeto tratava sobre as indenizações, além de estipular a possibilidade de ações regressivas contra pessoas físicas ou jurídicas que teriam realmente violado os direitos humanos que deram causa à ação internacional. SOARES, Guido Fernando Silva; CASELLA, Paulo Borba; CELLI JUNIOR, Umberto; MEIRELLES, Elizabeth de Almeida; POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot (Orgs.). Direito internacional, humanismo e globalidade. São Paulo: Atlas, 2008. p.466. 230 1.o de abril de 2011, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que requereu a suspensão imediata do processo de licenciamento da usina hidroelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, localizado no estado do Pará.383 No referido caso, os membros das comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu (PA)384 requereram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a suspensão da construção da referida usina hidroelétrica. O citado órgão acatou a solicitação de medida cautelar, alegando que a vida e a integridade pessoal dos beneficiários da ação estariam em risco pelo impacto da construção da usina hidroelétrica Belo Monte, solicitando que o governo brasileiro suspendesse, imediatamente, o seu processo de licenciamento e impedisse qualquer obra material de execução até que fossem observadas as condições mínimas previstas na referida medida cautelar. Ocorre que, diferentemente do que se esperava – especialmente por estar se tratado de um Estado que possui, como seu preceito fundamental, a observância dos direitos humanos –, a posição do Brasil foi a pior possível. Em um primeiro momento, o Senado classificou como "absurda" a recomendação da Comissão, que, segundo o entendimento de Flexa Ribeiro (PSDB-PA), estaria a OEA adentrando à própria soberania do Brasil. Igualmente, o Ministério de Relações Exteriores disse que as referidas medidas seriam "precipitadas e injustificáveis". Em ambas as declarações, demonstra-se transparente o fato de que se levou em conta somente a necessidade de tal meio energético ao Brasil, e não as suas consequências aos direitos da própria sociedade. Mas a posição de maior impacto, infelizmente, veio da Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, quando afirmou que, caso a Comissão não reveja suas medidas, o Brasil deixará o órgão a partir de 2012 e, já 2011, deixará de repassar a verba à entidade, prevista de aproximadamente US$ 800 mil. Inquestionavelmente, a atitude do governo brasileiro é vergonhosa, demonstrando um descaso para com o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e, 383 384 No momento da finalização desse estudo, os fatos, relacionados às medidas requeridas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Estado brasileiro, encontravam-se em intermináveis debates. Assim sendo, taxa-se, como recorte temporal desse ponto do trabalho, o início do mês de julho de 2011. São elas: Arara da Volta Grande do Xingu; Juruna de Paquiçamba; Juruna do "Kilómetro 17"; Xifrin de Trinceira Bacajá; Asurini de Koatinemo; Kararaô e Karayapó da terra indígena Kararaô; Parakanã de Apyterewa; Araweté do Igarapé; Ipixuna; Arara da terra indígena Arara; Arara de Cachoeira Seca; e as comunidades indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingu. 231 mais ainda, negando até mesmo os referidos direitos às populações indígenas por dois motivos: primeiramente, por impossibilitar que sua vida se desenvolva às margens do rio Xingu e, segundo – ponto que mais interessa nesse momento –, por negar-lhes a possibilidade de socorrerem-se em organismos internacionais, uma vez que seus direitos humanos violados não tiveram resposta em âmbito interno. Preocupa-se, também, o fato de que a recusa do Brasil em acatar as recomendações da Comissão possa, tristemente, enfraquecer a instituição, desmoralizar a própria posição do Estado na defesa dos direitos humanos e, ainda, dar-lhe um status de descumpridor de obrigações assumidas no plano internacional. A posição do Brasil, na questão é, de fato, extremamente preocupante para todo o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Acredita-se que para que um colapso no referido sistema não ocorra – devido, especialmente, à posição hegemônica do Brasil no contexto teórico de proteção interamericano dos direitos humanos –, a Comissão veio a afirmar, em maio de 2011, que iria revisar as medidas cautelares impostas ao Estado. Infelizmente, o que se esperava não era uma mudança de posição da Comissão, mas sim da própria mentalidade governamental brasileira frente não apenas a esse ponto, mas à proteção efetiva dos direitos humanos e à seriedade do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos como um todo. Findadas tais considerações, em suma, deve-se pensar que o Estado brasileiro – no que tange à efetivação de condenações internacionais de direitos humanos no plano interno – e o referido sistema de proteção interamericano estão em sua fase embrionária, necessitando de atenções especiais, críticas construtivas, análise de modelos (cita-se, em especial, o sistema europeu) e incentivos de toda a sociedade para que possam desenvolver-se melhor e mais rapidamente. Se assim for feito, os institutos que hoje são sinônimos de incertezas serão modelos de proteção e efetivação dos direitos humanos de amanhã. 232 CONCLUSÃO Essa dissertação objetivou, especificamente, o estudo dos casos de violações de direitos humanos, por parte do Estado brasileiro, que foram levados ao conhecimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ocorre que, para que se demonstrasse possível chegar até esse ponto primordial do estudo, necessário se fez a análise de diversos outros institutos, localizados em três grandes esferas que garantiram o suporte ao próprio título do trabalho, sendo elas: organizações internacionais, direitos humanos e a consequente interligação entre essas últimas na correlação entre os casos brasileiros de violação dos direitos humanos e a Organização dos Estados Americanos. Nesse sentido, alguns assuntos demonstraram-se indispensáveis para a correta compreensão do trabalho, quais sejam: organizações internacionais – e todo o conjunto que se compreende a partir dela; sentenças internacionais e a consequente responsabilização dos Estados frente organismos internacionais; direitos humanos, em suas mais diversas acepções; a proteção universal dos direitos humanos e os sistemas convencional e não-convencional; os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos – sistema europeu, sistema africano, sistema árabe e, especialmente, o sistema interamericano; as peculiaridades do sistema de proteção interamericano dos direitos humanos, com especial enfoque à sua Comissão e Corte; e, finalmente, o papel do Brasil diante do sistema interamericano e os casos envolvendo-lhe que foram levados ao conhecimento da Corte. Diversas conclusões, ao longo do estudo, foram detectadas e, nesse momento, sintetizam-se da seguinte forma: 1. No que tange às organizações internacionais, exprime-se o fato de que estas tiveram, de fato, seu desenvolvimento com a abertura dos sujeitos de Direito Internacional Público para além dos Estados, baseando-se, primordialmente, nos pilares de cooperação e solidariedade. 2. A origem das organizações internacionais acompanha todo um desenrolar histórico, dividindo-se, didaticamente, em gerações. Como hoje se concebem, as organizações surgiram no contexto pós Segunda Guerra Mundial, por intermédio da necessidade dos Estados em compartilharem 233 de esforços comuns na busca pela paz e segurança internacional, tendo como exponencial exemplo a Organização das Nações Unidas. 3. Segundo o seu conceito, sugere-se que as organizações internacionais dependam da livre vontade dos Estados em associarem-se, tendo seu surgimento vinculado à aprovação de seu tratado constitutivo. As organizações, tais como os Estados, são consideradas como sujeitos clássicos de Direito Internacional, possuindo vontade própria e um importante papel no cenário internacional. 4. O desenvolvimento de uma organização internacional está intrinsecamente ligado ao compartilhamento de soberania dos Estados no plano internacional, em prol de objetivos comuns, no âmbito de uma determinada organização. 5. Para o atendimento da demanda internacional, desenvolveram-se duas espécies de organizações: aquelas cujo processo decisório depende da aprovação de seus membros (intergovernamentais) e aquelas cujo processo decisório encontra-se acima dos seus membros, estando estes submetidos às decisões (supranacionais). 6. Há, de fato, uma correlação entre o processo decisório das organizações internacionais, seus órgãos jurisdicionais e a responsabilidade internacional dos Estados, especialmente no que tange aos direitos humanos, uma vez que quando determinada organização, por intermédio de seu órgão jurisdicional, emite um ato internacional (decisão), condenando o Estado, este incorre na responsabilidade internacional de seu cumprimento. Caso o Estado não o cumpra, poderá ter a suspensão de certos direitos no interior da organização e se a decisão versar sobre direitos humanos, e o Estado não cumpri-la de plano, poderá ser duplamente responsabilizado internacionalmente. 7. O problema que se vislumbra na eficácia das decisões dos órgãos jurisdicionais internacionais é que, além de dependerem da livre vontade dos Estados em fazer cumprir e internalizar suas determinações, não há um conceito amplamente aceito pela doutrina que garanta sua efetividade irrestrita. 8. Conclui-se que o estabelecimento da diferenciação entre sentenças estrangeiras e sentenças internacionais é imprescindível para a compreensão 234 de todo o processo decisório internacional, tendo em vista que apenas as sentenças internacionais caracterizam-se como atos internacionais, advindos de órgãos jurisdicionais internacionais. Diferentemente delas, as sentenças estrangeiras advêm de sistemas judiciários internos de terceiros Estados. 9. Nesse estudo, a análise das organizações internacionais teve sua importância atrelada aos direitos humanos, os quais, segundo sua natureza, não podem ser entendidos sob um único prisma, dependendo de um foco detalhado e complexo, a partir de seu histórico, iniciado já nos remotos períodos da Grécia antiga. 10. Apesar de sua origem distante, os direitos humanos foram se adequando de acordo com as demandas da sociedade, e por encontrarem-se em constante mudança, guardam características essenciais que permitam não apenas identificá-los, mas garantir-lhes uma posição de supremacia no ordenamento jurídico que se fazem presentes. 11. A mais importante conceituação dos direitos humanos deve considerar, impreterivelmente, a dignidade da pessoa humana – instituto indissociável dos direitos humanos, uma vez que lhe garantem unidade e permanência. 12. Fica claro que a melhor maneira de se compreender a evolução dos direitos humanos é mediante a análise dos períodos da história, sendo que, apesar de sua origem remontar à antiguidade, fora, de fato, na Idade Moderna que os documentos basilares para sua formatação se desenvolveram (declarações inglesas, declarações norte-americanas e declarações francesas) e, mais tardar, na Idade Contemporânea, que os direitos humanos realmente adquiriram as configurações que hoje apresentam – fruto especialmente da democracia e das diversas revoluções que lhes molduraram. 13. Acredita-se que a forma mais eficaz de estudar os direitos humanos é dividindo-os entre suas gerações, por conta dessas acompanharem, de fato, os reclames sociais, a própria evolução dos referidos direitos e, mais ainda, a consolidação desses na sociedade em que se desenvolvem. 14. Uma vez consolidados, os direitos humanos sofreram, por intermédio da mudança dos conceitos de soberania clássica estatal e fruto do repúdio 235 das atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial, o importante processo de internacionalização, que veio alterá-los definitivamente. Alterou, também, o próprio Direito Internacional, que começou a preocupar-se com o tratamento dispensado pelo Estado aos seus nacionais, guardando o dever de proteção dos direitos humanos. 15. O marco na proteção e efetivação dos direitos humanos, em termos recentes, fora o desenvolvimento, no âmbito da ONU, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. De fato, esse documento representou a materialização de todos aqueles direitos conquistados e confirmados ao longo dos tempos e, apesar de não ter um caráter vinculante, pretendeu servir de base para os ordenamentos jurídicos dos Estados. Teve importância exacerbada por dotar, definitivamente, os direitos humanos de um caráter universal, indivisível e interdependente. 16. Uma vez que a referida Declaração não possuía caráter vinculante, fora imprescindível o surgimento dos dois Pactos que, de fato, obrigavam os Estados a respeitar e consolidar os referidos direitos em seu âmbito interno. O Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foram absolutamente necessários na imputação de uma responsabilidade internacional aos Estados contratantes e, apesar de sua divisão por questões geopolíticas, não trazem – e nem poderiam – uma divisão dos direitos humanos que ali estão elencados. 17. Além dos processos de evolução e internacionalização, os direitos humanos foram influenciados pela globalização, que, apesar de poder ser manejada em proveito da proteção e efetivação dos referidos direitos, pode também, infelizmente, ser utilizada para a dominação de uma cultura sobre a outra, trazendo resultados reversos aos pretendidos pelos direitos humanos. 18. Advindo de todo o processo de surgimento, consolidação e efetivação dos direitos humanos – a partir dos acontecimentos históricos, da internacionalização e da universalidade –, decorre o processo de proteção internacional desses, demonstrando-se indispensável a transposição dos direitos humanos do plano teórico ao plano fático. 236 19. A proteção internacional dos direitos humanos é um instrumento essencial na efetivação de tais direitos, encontrando-se sensível nos seguintes sistemas: de petições, de relatórios e de investigações. Ocorre que a referida proteção não é imposta, de plano, aos Estados, uma vez que estes devem submeter-se a um determinado sistema de proteção internacional, a partir da ratificação e internalização do documento internacional que garanta a referida proteção. 20. Ressalta-se que o alegado sistema de proteção é subsidiário ao sistema interno de cada Estado, uma vez que a responsabilidade primária em proteger e efetivar os direitos humanos de todos os cidadãos é do próprio Estado. Consequentemente, há a necessidade prévia do esgotamento dos recursos internos – com algumas variáveis, como a demora em uma resposta estatal, a não existência de recursos, entre outras – à demanda no plano da proteção internacional dos direitos humanos. Não restam dúvidas, assim, que há a compatibilização entre o plano internacional e o plano interno de proteção dos direitos humanos. 21. Existem inúmeros entraves ao desenvolvimento do citado sistema de proteção, atrelados à mentalidade dominante em algumas sociedades – onde nem sequer a democracia se consolidou. Mas, inquestionavelmente, avanços foram obtidos, especialmente quando se observa a possibilidade dos indivíduos em demandarem nos foros internacionais de proteção dos direitos humanos – atitude que, em um momento anterior, era possibilitada apenas aos Estados. 22. Em termos gerais, o sistema de proteção divide-se entre o sistema universal e os sistemas regionais. O sistema universal configura-se no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), dividindo-se, por sua vez, nos mecanismos convencionais e não-convencionais de proteção dos direitos humanos. Já o sistema regional divide-se, segundo sua própria nomenclatura, nos seguintes sistemas: europeu, africano, árabe e interamericano. 23. A compreensão do sistema universal é indissociável do entendimento da própria ONU. Por mais que a proteção dos direitos humanos não seja um ponto basilar em sua estrutura, criou-se, em seu interior, todo um aparato 237 indispensável para a proteção dos direitos humanos (documentos, tratados, cartas, órgãos, entre outros). 24. Os mecanismos convencionais do sistema universal de proteção ordenam-se em documentos internacionais específicos e autônomos, localizados no interior das Nações Unidas, sendo obrigatórios aos Estados que os aderiram, além de contarem com Comitês para fiscalização de seu cumprimento. Já os mecanismos não-convencionais são os que decorrem da própria Carta da ONU, de suas resoluções e de determinações de seus órgãos, sendo obrigatórios a todos os Estados membros da ONU. 25. Quanto aos sistemas regionais, valoriza-se o sistema europeu de proteção como o mais evoluído na efetivação dos direitos humanos. Baseando-se na Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950, conta com um tribunal onde os indivíduos podem demandar diretamente seus direitos – grande inovação desse sistema. Apesar de seus méritos e contribuições inestimáveis aos sistemas regionais de proteção, o sistema europeu encontra-se em uma situação delicada, tendo em vista que o livre acesso dos indivíduos ao tribunal sobrecarregou o sistema, resultando em decisões cada vez mais tardias. 26. O sistema africano desenvolveu-se em meados dos anos 80, a partir da ratificação da Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Conta com uma comissão, uma corte e com um comitê. Apesar dos válidos esforços, o sistema é vítima de inúmeros problemas, decorrentes, especialmente, das incontáveis violações que assolam a África. Demonstra-se impossível enumerar todas as questões que merecem destaque para que a proteção e a efetivação dos direitos humanos no continente africano seja uma realidade, mas, sem dúvidas, o desenvolvimento do referido sistema de proteção tem contribuído para que a realidade venha a ser mais digna, no futuro, ao povo que ali habita. 27. Já o sistema regional árabe é o mais recente dentre todos os sistemas, baseando-se na Carta Árabe de Direitos Humanos. Observa-se que esse não se encontra em funcionamento, uma vez que inexiste qualquer órgão para fiscalizar as violações que ali ocorrem. 238 28. O sistema interamericano – focado sobremaneira nesse estudo – localiza-se no seio da Organização dos Estados Americanos, notavelmente na Comissão e na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Configurou-se como um meio eficaz de proteção dos direitos humanos a partir da ratificação, pelos Estados, da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos e de seu Protocolo Adicional. 29. Além de proteger e efetivar os direitos humanos, o sistema interamericano participou exaustivamente na consolidação da democracia e da cooperação na região, tendo em vista que seus próprios pilares estruturais baseiam-se nesses institutos. Os Estados, que desse sistema fazem parte, devem obedecer a todos os valores ali elencados e, para participarem de um modelo de proteção ainda mais efetivo, devem anuir, expressamente, com a submissão à Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso seja essa sua vontade. 30. Contando com dois principais órgãos, o sistema interamericano caracteriza-se, em suma, pela necessidade de um prévio crivo, pela Comissão, aos casos que serão levados à Corte. Ou seja, o indivíduo, nesse sistema, não possui um livre e irrestrito acesso ao órgão jurisdicional (como ocorre no sistema europeu), sendo lhe disponibilizado, apenas, a possibilidade de se levar a conhecimento da Comissão os casos de violações. Por sua vez, será esta quem decidirá sobre a oportunidade ou não da Corte conhecer e julgar o caso (segundo a análise de alguns critérios previamente definidos), provando assim que o indivíduo ainda não se encontra, nesse sistema, elencado como um dos sujeitos de Direito Internacional – conceituação que abrange os Estados e as organizações internacionais. 31. Por mais que o sistema interamericano tenha avançado na proteção e efetivação dos direitos humanos, há pontos que ainda merecem um especial destaque. Mais urgencial, talvez, seja o fato de que a sua Corte depende, para exercer a jurisdição, da aceitação expressa dos Estados. Em outros termos, paradoxalmente, um Estado que faz parte do sistema interamericano pode não aceitar a jurisdição da Corte e, assim, seus cidadãos não contarem com um meio de socorrer-se em um organismo 239 de cunho regional, caso haja violações de seus direitos em âmbito interno. Nesse sentido, o sistema interamericano – para aqueles cidadãos de cujos Estados não reconheceram a competência da Corte – carece, de fato, de uma utilidade prática, estando seus direitos protegidos contra as violações dos Estados apenas em plano teórico. 32. O Brasil sempre se demonstrou como uma força regional no progresso do sistema interamericano de proteção e, nesse sentido, veio a submeter-se à jurisdição da Corte em 1998, concebendo a tal reconhecimento a natureza de cláusula pétrea. Dessa maneira, o ordenamento interno, em seus mais variados recursos, encontra-se completamente compatibilizado com a jurisdição internacional (sendo essa subsidiária à nacional), não podendo, em uma determinada questão, valer-se o Brasil da escusa da incompatibilidade com a norma interna para não fazer cumprir as determinações da referida Corte. 33. O maior problema que se vislumbra no cumprimento das sentenças da Corte pelo Brasil é o fato de que não há qualquer previsão legal sobre os meios de internalização dessas e nem como se dará, em solos nacionais, o desenrolar da efetivação de seus termos. Em outras palavras, o cumprimento das condenações fica a cargo do livro arbítrio do Estado brasileiro e, infelizmente, nem sempre a realidade que se desenvolve é satisfatória àqueles que ganharam a demanda em plano interamericano. Indispensável se demonstra a releitura dessa postura, não apenas em fazer cumprir as sentenças, mas também na mudança do ordenamento jurídico interno, uma vez que, sendo o reconhecimento da Corte cláusula pétrea no ordenamento jurídico nacional, necessária se demonstra a criação de leis que deem diretivas ao cumprimento das referidas condenações pelo Estado brasileiro, garantindo-lhes segurança e eficácia. 34. O Brasil fora demandado, até 2011, por cinco vezes na Corte Interamericana de Direitos Humanos, sendo que em quatro delas fora condenado (Damião Ximenes Lopes; Arley José Escher e Outros; Sétimo Garibaldi; e Julia Gomes Lund e Outros) a apenas em uma, absolvido (Gilson Nogueira de Carvalho). Infelizmente, o que se observa nas condenações é quase que uma postura padrão do Brasil, onde cumpre 240 as determinações pecuniárias dispostas nas sentenças, prevendo dotação orçamentária para tal, mas esquece e escusa-se de fazer cumprir as outras condenações, que versam em obrigações de fazer e/ou de alterações das realidades presentes em âmbito interno. 35. A posição brasileira, até então, tem contribuído para o desenvolvimento do sistema interamericano. A principal problemática reside no ponto de que se em plano internacional o Brasil se demonstra um fervoroso defensor dos direitos humanos, incorre em contradições no plano interno, tendo em vista que, não cumprindo todas as determinações de suas condenações, viola, duplamente, os direitos humanos e não merece, em solos nacionais da forma que deveria, o sistema de proteção regional de que é parte. 36. Infelizmente, na conjuntura dos últimos acontecimentos, o futuro do Brasil no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos não se manifesta promissor, uma vez que o Estado não tem cumprido as recomendações da Comissão e, pior, tem ameaçado retirar-se do sistema, caso seja demandado na Corte. Mais alarmante é o fato de que, com receio de perder a força regional, o sistema interamericano tem se curvado perante a postura brasileira, revendo suas decisões para que o Brasil não venha abandoná-lo. Advinda de tais atitudes, vislumbrase uma imaturidade na consolidação e na juridicidade do sistema, uma vez que, em um sistema sério e eficaz, torna-se impensável curvar-se às vontades de um determinado Estado e esse tem por obrigação jurídica – uma vez que integra o sistema – e moral – pelo tema versar sobre direitos humanos – cumprir as determinações advindas da jurisdição do sistema de proteção dos direitos humanos. Finalmente, avalia-se que o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, por mais que tenha avançado na busca da proteção e efetivação dos direitos humanos, tem muito que se desenvolver, especialmente na eventual possibilidade de um acesso direto dos indivíduos ao sistema e, também, na maior jurisdicionalização da Corte aos Estados que abrangem ao próprio sistema, devendo, de fato, findar com a distinção entre aqueles que fazem parte apenas de outros organismos, excluindo-se da submissão à Corte. Quanto ao Brasil, claro está que o Estado é, ainda, um grande violador dos direitos humanos de seus cidadãos, contando com inúmeros 241 problemas sociais e, igualmente, com outras tantas questões inadmissíveis, desde sempre presentes na justiça brasileira. Por mais que aceite a jurisdição da Corte Interamericana, falta muito até o Brasil alcançar o postulado de pleno garantidor dos direitos, em plano internacional, aos seus cidadãos, uma vez que, como bem se analisou, o descaso para com as suas condenações em âmbito interamericano faz o Estado incorrer em uma dupla violação. Indispensável de torna uma mudança da postura brasileira frente à seriedade e primordialidade não apenas de suas condenações e do próprio sistema interamericano, mas sim dos direitos humanos, que devem, por obrigação do Estado, ser respeitados e efetivados acima de qualquer outro bem jurídico. Só assim – e hoje, visivelmente, ainda não o é – o Brasil poderá ser considerado um Estado Democrático de Direito defensor dos direitos humanos. 242 REFERÊNCIAS ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo E. do Nascimento e. Manual de direito internacional público. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 2000. ALSTON, P. The United Nations and human rights: a critical appraisal. Oxford: Clarendon, 1992. ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. AMARAL JR., Alberto do. Introdução ao direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2008. ARAÚJO, Nádia de. A influência das opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, RJ, v.6, n.6, jun. 2005. ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. São Paulo: Vozes, 1996. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1994. BENNETT, Alvin Leroy. 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Dominicana 2 2 janeiro 1963 Miami, Florida 3 5-9 maio 1963 República Dominicana Segunda visita de observação in loco 4 11 junho 1965 - 1 junho 1966 República Dominicana Terceira visita de observação in loco 4-7 julho 1969 El Salvador 8-10 julho 1969 Honduras 6 22 julho - 2 agosto 1974 Chile 7 29 novembro - 7 dezembro 1977 Panamá Primera visita de observação in loco 8 18 janeiro 1978 El Salvador Segunda visita de observação in loco 9 16-25 agosto 1978 Haití Primeira visita de observação in loco 10 3-12 outubro 1978 Nicaragua Primeira visita de observação in loco 11 20 setembro 1979 Argentina Visita de observação in loco 12 21-28 abril 1980 Colombia Primeira visita de observação in loco 13 6-11 outubro 1980 Nicarágua Segunda visita de observação in loco 14 3-6 maio 1982 Nicarágua Terceira visita de observação in loco 15 7-9 maio 1982 Honduras Visita ao campo de refugiados miskitos em Mocorón 16 28-29 junho 1982 Estados Unidos Puerto Rico Visita a centros de detenção de refugiados haitianos na Florida e Puerto Rico 17 5-6 agosto 1982 Estados Unidos Visita ao centro de refugiados haitianos no Brooklyn, Nueva York 18 21-26 setembro 1982 Guatemala 19 2-8 janeiro 1983 México 20 12 junho 1983 Honduras - Nicaragua Visita à Mosquitia de ambos países 21 20-24 junho 1983 Suriname Primeira visita de observação in loco 22 6-10 maio 1985 Guatemala Segunda visita de observação in loco 23 12-17 junho 1985 Suriname Segunda visita de observação in loco 24 10-16 agosto 1986 El Salvador Segunda visita de observação in loco 25 20-23 janeiro 1987 Haití Segunda visita de observação in loco 26 15-19 febrero 1987 El Salvador Terceira visita de observação in loco 27 5-9 outubro 1987 Suriname Tercera visita de observação in loco 28 3-7 janeiro 1988 Guyana Francesa 29 25-28 janeiro 1988 Guatemala Terceira visita de observação in loco 30 20-22 janeiro 1988 Nicarágua Quarta visita de observação in loco N.o 5 OBSERVAÇÕES Primeira visita de observação in loco Visita aos refugiados cubanos Uma Comissão Especial permaneceu em ambos os países até 25 de outubro de 1969 Visita de observação in loco Primeira visita de observação in loco Visita ao campo de refugiados guatemaltecos em Chiapas, México Visita aos campos de refugiados surinameses 253 continua DATAS LUGAR 31 2-30 abril 1988 Nicarágua 32 29 agosto - 2 setembro 1988 Haití Terceira visita de observação in loco 33 13-16 dezembro 1988 Suriname Quarta visita de observação in loco 34 27 febrero - 3 março 1989 Panamá Segunda visita de observação in loco 35 6-12 maio 1989 Peru Primeira visita de observação in loco 36 29 janeiro – 3 febrero 1990 Guatemala Quarta visita de observação in loco 37 7-9 febrero 1990 Paraguai 38 17-20 abril 1990 Haití Quarta visita de observação in loco 39 9-13 julho 1990 Panamá Terceira visita de observação in loco 40 14-16 novembro 1990 Haití Quinta visita de observação in loco 41 3-7 dezembro 1990 Colômbia 42 12-14 agosto 1991 República Dominicana 43 28 outubro - 1 novembro 1991 Peru Segunda visita de observação in loco 44 4-6 dezembro 1991 Haití Sexta visita de observação in loco 45 19-21 abril 1992 Perú Terceira visita de observação in loco 46 27-30 abril 1992 Nicarágua Quinta visita de observação in loco 47 4-8 maio 1992 Colômbia Segunda visita de observação in loco 48 11-12 maio 1992 Perú Quarta visita de observação in loco 49 2-6 novembro 1992 Guatemala Quinta visita de observação in loco 50 17-21 maio 1993 Peru Quinta visita de observação in loco 51 23-27 agosto 1993 Haití Sétima visita de observação in loco 52 6-10 setembro 1993 Guatemala Sexta visita de observação in loco 53 9-10 março 1994 Guatemala Sétima visita a Guatemala para verificar a situação das "Comunidades de Poblaciones en Resistencia (CPR)" 54 16-20 maio 94 Haití 55 22-27 maio 94 Bahamas 56 24-27 outubro 1994 Haití 57 7-11 novembro 1994 Ecuador 58 1-5 dezembro 1994 Guatemala 59 7 dezembro 1994 Jamaica Primeira visita de observação in loco 60 20-23 março 1995 Haití Décima visita de observação in loco 61 3-5 maio 1995 Estados Unidos Visita à Penitenciária Federal de Lompoc, California, para verificar as condiciones de detenção dos presos "Marielitos" cubanos 62 30 de maio 1995 Estados Unidos Visita à Penitenciária de Leavenworth, Kansas 63 5-10 julho 1995 Guatemala 64 4-8 dezembro 1995 Brasil 65 26 abril 1996 Estados Unidos 66 12-18 maio 1996 Venezuela N.o OBSERVAÇÕES Revisão de expedientes de ex-guardas nacionais (1,834 casos) Visita de observação in loco Visita de observação in loco (preliminar) Quarta visita de observação in loco Oitava visita de observação in loco Primeira visita de observação in loco Nona visita de observação in loco Primeira visita de observação in loco Oitava visita de observação in loco Nona visita de observação in loco Primeira visita de observação in loco Visita à Allenwood, Pennsylvania, verificação das condições carcerárias dos presos "Marielitos". Visita de observação da situação carcerária 254 conclusão DATAS LUGAR 67 15-24 julho 1996 México 68 9-10 dezembro 1996 Estados Unidos 69 28 abril - 2 maio 1997 Bolívia 70 16-20 junho 1997 República Dominicana 71 20-22 outubro 1997 Canadá Visita de observação das condições dos refugiados 72 1-8 dezembro 1997 Colômbia Terceira visita de observação in loco 73 7-9 julho 1998 Estados Unidos 74 6-11 agosto 1998 Guatemala 75 9-13 novembro 1998 Peru 76 7-9 julho 1999 Estados Unidos 77 28-30 julho 1999 Paraguai 78 21-25 agosto 2000 Haití 79 6-8 junho 2001 Panamá Quarta visita de observação in loco 80 7-13 dezembro 2001 Colômbia Quarta visita de observação in loco 81 6-10 maio 2002 Venezuela Visita de observação in loco 82 28-31 maio 2002 Haití Décima segunda visita de observação in loco 83 24-29 março 2003 Guatemala Décima primeira visita de observação in loco 84 18-22 agosto 2003 Haití Décima terceira observação in loco 85 11-17 julho de 2004 Colombia Quinta visita de observação in loco 86 1-3 setembro 2004 Haití Décima quarta observação in loco N.o 87 15-20 novembro 2004 OBSERVAÇÕES Visita de observação in loco Visita à Marksville e Amite, Louisiana, de verificação das condições carcerárias dos presos "Marielitos" Visita de observação in loco Quinta visita de observação in loco Visita à Los Angeles e San Diego, Califórnia, para estudar a situação dos trabalhadores migrantes e suas famílias Décima visita de observação in loco Sexta visita de observação in loco Visita a El Paso, Texas Segunda visita de observação in loco Décima primeira visita de observação in loco Visita para observar a situação das crianças e adolescentes ligados aos grupos conhecidos El Salvador y Guatemala como "maras" ou "gangues"; e para conhecer as condições de vida das pessoas privadas da liberdade Visita para observar a situação das crianças e adolescentes ligados aos grupos conhecidos como "maras" ou "gangues"; e para conhecer as condições de vida das pessoas privadas da liberdade 88 1-4 dezembro 2004 Honduras 89 12-17 dezembro 2006 Bolívia Visita de observação in loco 90 9-13 junho de 2008 Bolívia Visita para observar a situação das comunidades em cativeiro do povo indígena guarani 91 1-5 dezembro 2008 Jamaica Visita de observação in loco 92 17-21 agosto de 2009 Honduras Visita de observação in loco 255 ANEXO B CARTOGRAMA DE LOCALIZAÇÃO DA GUERRILHA DO ARAGUAIA