CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO CEARÁ FACULDADE CEARENSE CURSO DE SERVIÇO SOCIAL EMANUELA TATIANA LIMA VITOR O Programa Bolsa Família e sua função social e política na sociedade brasileira: assistência social na perspectiva do direito ou assistencialismo na lógica da administração da pobreza? FORTALEZA – CE 2012 EMANUELA TATIANA LIMA VITOR O Programa Bolsa Família e sua função social e política na sociedade brasileira: assistência social na perspectiva do direito ou assistencialismo na lógica da administração da pobreza? Monografia submetida à aprovação pela Coordenação do Curso de Serviço Social da Faculdade Cearense – FAC, como requisito parcial para obtenção do grau de Graduação. Orientadora: Profª Ms. Eliane Nunes de Carvalho FORTALEZA - CE 2012 V845p Vitor, Emanuela Tatiana Lima. O Programa Bolsa Família e sua função social e política na sociedade brasileira: assistência social na perspectiva do direito ou assistencialismo na lógica da administração da pobreza? / Emanuela Tatiana Lima Vitor. – 2012. 132 f. Orientador: Profª. Ms. Eliane Nunes de Carvalho. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Faculdade Cearense, Curso de Serviço Social, 2012. 1. Direitos sociais. 2. Assistência social. 3. Programa Bolsa Família. I. Carvalho, Eliana Nunes de. II. Título. CDU 364-266 CDU 334.722 Bibliotecária Maria Albaniza de Oliveira CRB-3/867 CDU 338.48-2-055.34 CDU 351.756 CDU 347.63 CDU 343.26 CDU 78 EMANUELA TATIANA LIMA VITOR O Programa Bolsa Família e sua função social e política na sociedade brasileira: assistência social na perspectiva do direito ou assistencialismo na lógica da administração da pobreza? Monografia como pré-requisito para obtenção do título de Bacharelado em Serviço Social, outorgado pela Faculdade Cearense – FAC, tendo sido aprovada pela banca examinadora composta pelos professores. Data: ________/________/_________ BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________ Professora Ms. Eliane Nunes de Carvalho _____________________________________________________ Professora Ms. Socorro Letícia Peixoto _____________________________________________________ Professora Ms. Renata Custódio de Azevedo Aos meus pais, pelo dom do amor. Ao meu filho, minha dádiva. Aos amigos especiais que a vida me ofereceu. AGRADECIMENTOS Agradecer é reconhecer o apoio das pessoas, é partilhar satisfação, gratidão e, sobretudo, que não se consegue nada individualmente. Este trabalho só foi possível graças às pessoas que, de diversas maneiras e em diferentes momentos, colaboraram para que fosse realizado. Meus sinceros agradecimentos... A Deus por iluminar meu caminho e por me dar a tranquilidade necessária nos momentos mais difíceis. Ao meu pai César, por me mostrar o quanto vale a pena viver com honestidade, respeito, dignidade e amor. A minha mãe Luzinete, que com amor sempre soube me amparar nos momentos mais difíceis de minha vida e pelo apoio constante sem o qual não teria chegado até aqui. Ao meu filho Pedro Henrique, por entender a importância deste trabalho para mim e para o nosso futuro, por abdicar da minha presença em muitos momentos e por seu sorriso que sempre serviu para renovar as minhas baterias. Ao Igor e à Charliane, irmãos queridos e amados, pela confiança, amor e torcida incondicional. À profª Ms. Eliane Carvalho, minha orientadora, que esteve sempre à disposição, orientando-me na realização deste trabalho de forma amiga e cordial, incentivando-me a buscar mais conhecimento em prol de minha formação profissional. Por seu conhecimento, sua firmeza, seu discernimento e pela disponibilidade de sempre, digo que a realização deste trabalho também é mérito seu. À minha amiga-irmã Patrícia Ribeiro, pelo companheirismo, amizade, disponibilidade, solidificação dos laços de afeto e compartilhamento da realização deste trabalho. À minha amiga Raquel Nogueira que entendeu e compreendeu a minha ausência durante esse período e que, com seu apoio, deu-me forças para superar as dificuldades. Ao meu amigo Pe. Marcílio Jerônimo, pela sua integridade e senso de justiça, por sua amizade, carinho e confiança. Às amigas Débora Lemos, Caroline Lindolfo, Mirella Freire, Shirley de Castro, Antonia Lira, que juntas formamos por 4 anos a Equipe Master, pelos bons e difíceis momentos e companhia neste longo caminho da graduação que juntas trilhamos em busca do conhecimento. Aos Professores que compartilharam o seu conhecimento, experiências e gestos amigos, possibilitando o meu crescimento pessoal e profissional, durante a trajetória acadêmica. À Régia Prado, por suas orientações, sua garra, sua coragem, sua coerência em defender a nossa profissão, a qual foi para mim, muito mais que a “supervisora de campo”, mas alguém admirável de quem falo com orgulho e que contribuiu na minha formação acadêmica e profissional. Aos colegas de turma, pela convivência e pelas discussões calorosas e inflamadas, as quais me permitiram aprender um pouco mais e descobrir que pouco sabemos. E a todas as pessoas que, direta e indiretamente, me ajudaram, auxiliaram e incentivaram na busca do conhecimento, vibrando com cada vitória. A todos vocês a minha gratidão e que Deus, na sua infinita bondade, retribua em dobro todos os gestos de carinho e amizade que dedicaram a mim. Beijos carinhosos! “O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher.” Cora Carolina RESUMO Este trabalho tem como objetivo analisar o Programa Bolsa Família, no sentido de confrontar a perspectiva da assistência e do assistencialismo, para uma melhor compreensão do programa e de sua função social na sociedade em face da questão social brasileira para o enfrentamento da lógica neoliberal ou no fortalecimento da perspectiva da assistência social como política social universalizadora de acesso aos direitos. O trajeto teórico-metodológico explora a relação dialética entre as ideias neoliberais e a assistência social na formação dos modernos sistemas de proteção social na sociedade capitalista. À luz do referencial teórico, a pesquisa bibliográfica examina dados qualitativos e quantitativos, tendo como foco o programa de transferência de renda como fenômeno contraditório em suas multicausalidades e multifuncionalidades. O estudo explora sua caracterização, procurando demonstrar suas propriedades internas. A análise dos dados revela que este Programa está focalizado na pobreza absoluta, limitando-se a garantir um mínimo em termos monetários, insuficiente para atender necessidades básicas e com uma frágil articulação com as demais ações das políticas sociais setoriais. Estes desdobramentos permitem concluir que o viés liberal tem demarcado o Programa Bolsa Família, limitando-o a perspectivas marcadamente assistencialistas/compensatórias, não se baseando em uma perspectiva da assistência social. Palavras chave: Questão social; Transferência de renda; Assistência social; Assistencialismo. ABSTRACT This study aims to analyze the Bolsa Família Program, to confront the prospect of assistance and welfare, for a better understanding of the program and its social function in society in the face of Brazilian social issue to confront the neoliberal logic or strengthening the perspective of social welfare policy as universalizing access rights. The course explores the theoretical and methodological dialectic relationship between neoliberal ideas and social assistance in the formation of modern social protection systems in capitalist society. In light of the theoretical framework, the research examines quantitative and qualitative data, focusing on the cash transfer program as contradictory phenomenon in multi-causalities and their multifunctionality. The study explores characterization, seeking to demonstrate its internal properties. Data analysis reveals that this program is focused on absolute poverty, limited to ensure a minimum in monetary terms, insufficient to meet their basic needs and with a fragile joint actions with other social sector policies. These developments allow us to conclude that the liberal bias has marked the Bolsa Família Program, limiting the prospects markedly welfare / allowance, not based on a perspective of social welfare. Keywords: Social issue; transfer income; social assistance; welfarism. LISTA DE SIGLAS BPC – Benefício de Prestação Continuada BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD – Banco Internacional para Reconstrução e o Desenvolvimento BSM – Brasil Sem Miséria CAPs – Caixas de Aposentadoria e Pensão CEF – Caixa Econômica Federal CEME – Central de Medicamentos CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe CF – Constituição Federal CIDE – Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço FMI – Fundo Mundial Internacional FNAS – Fundo Nacional de Assistência Social FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor IAPs – Institutos de Aposentadoria e Pensões IDH – Índice de Desenvolvimento Humano IGD – Índice de Gestão Descentralizada INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Medica e Previdência Social INPS – Instituto Nacional de Previdência Social IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada LBA – Legião Brasileira de Assistência LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social MEC – Ministério da Educação MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MME – Ministério de Minas e Energia NOB – Norma Operacional Básica OMS – Organização Mundial da Saúde ONU – Organização Mundial das Nações Unidas PASEP – Programa do Patrimônio do Servidor Público PBF – Programa Bolsa Família PCS – Programa Comunidade Solidária PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil PIB – Produto Interno Bruto PIS – Programa de Integração Social PNAA – Programa Nacional de Acesso à Alimentação PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAS – Política Nacional de Assistência Social PNB – Produto Nacional Bruto PROMINP – Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural PRONAF – Programa Nacional da Agricultura Familiar PTR – Programa de Transferência de Renda RMV – Renda Mensal Vitalícia SENARC – Secretaria Nacional de Renda e Cidadania SESP – Serviço Especial de Saúde Pública SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social SUAS – Sistema Único de Assistência Social SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................15 1. QUESTÃO SOCIAL E DIREITOS SOCIAIS.................................................24 1.1Polêmicas e dissonâncias sobre a Questão Social......................................24 1.2 A Questão Social em sua trajetória: novas e velhas expressões ...............31 1.3 A origem das políticas sociais para o enfrentamento das expressões da questão social. ..................................................................................................36 1.4 Direitos Sociais no Brasil.............................................................................43 1.4.1Proteção Social no Brasil. .........................................................................50 1.4.2 Seguridade Social brasileira. ...................................................................56 2.DEFININDO CONCEITOS: ASSISTÊNCIA E ASSISTENCIALISMO ..........61 2.1 Assistencialismo X Assistência. ..................................................................61 2.2 A trajetória da Assistência no Brasil............................................................64 3.PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA: NOVA CONFIGURAÇÃO DE PROTEÇÃO SOCIAL? ................................................75 3.1Fundamentos teóricos e concepções dos Programas de Transferência de Renda não contributivos. ..................................................................................75 3.2 A trajetória dos programas de transferência de renda não contributiva no Brasil. ................................................................................................................80 3.3 Caracterizando os Programas de Transferência de Renda não contributiva no Brasil.............................................................................................................83 3.3.1Programa Bolsa Escola. ...........................................................................85 3.3.2 Bolsa Alimentação. ..................................................................................86 3.3.3 Auxílio-Gás. .............................................................................................87 3.3.4 Cartão Alimentação. ................................................................................87 3.3.5 A unificação: o Programa Bolsa Família. .................................................88 4.Analisando o Programa Bolsa Família.......................................................94 CONSIDERAÇÕES FINAIS. ..........................................................................119 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. .............................................................124 15 INTRODUÇÃO Escrever é uma ação solitária; entretanto, a produção de conhecimento somente adquire significado ao metamorfosear-se em uma ação coletiva. Este trabalho está assentado, nessa perspectiva, como resultado de um longo caminho, individual e coletivo, que consolida e orienta à produção que ora se apresenta. O presente trabalho propõe-se a examinar algumas ambiguidades e tensionamentos que perpassam a política social brasileira, privilegiando a análise de um programa emblemático: o Programa Bolsa Família. Visa identificar os aspectos sociohistóricos e econômicos que explicam a relação entre a lógica do direito e a concessão do benefício do programa. A opção por essa área de investigação teve sua origem no conjunto de observações empíricas e questionamentos teóricos e políticos, a partir da nossa experiência como estagiária na Assistência Social, do município de Maracanaú, numa inquietação para compreender a real dimensão tomada e a função social de um programa que emergiu no país em um contexto de profundas transformações societárias e de alterações na proteção social, destinada particularmente aos segmentos populacionais de maior risco e vulnerabilidade social, para uma maior compreensão do seu significado no enfrentamento da questão social brasileira. Uma vez que este trabalho constitui parte de um processo de aprendizagem, decidimos por estudar o desenvolvimento dessa temática, tendo como base de orientação metodológica o fato de que os fenômenos sociais são síntese de múltiplas determinações, o que permite evitar reducionismos e fragmentações na sua compreensão. Buscamos, ainda, adotar a perspectiva da totalidade e situar o objeto como parte do movimento da própria sociedade capitalista, dado que a realidade é uma totalidade em movimento, podendo apenas ser compreendida a partir do processo histórico, pensado em sua complexidade e numa relação dialética, de continuidades e rupturas entre o passado e o presente (KONDER, 1981). 16 Desde os anos 1980, nos países capitalistas desenvolvidos, tem-se assistido a um amplo debate sobre a necessidade de reformulação das políticas sociais. A partir da crise dos anos 1970, os sistemas de proteção social começaram a receber crescentes questionamentos sobre a sua visibilidade financeira, eficiência e possibilidade de responder às novas demandas decorrentes da crise do capitalismo, como o aumento do desemprego. Essas críticas sustentaram-se devido a uma crescente falta de adequação entre o histórico WelfareState e o avanço do neoliberalismo. O WelfareState nas sociedades capitalistas desenvolvidas passou a organizar sua intervenção de forma contínua, respondendo a algumas demandas da questão social, buscando a preservação e o controle da força de trabalho. O Estado passou a regular as relações sociais e econômicas, fundamentadas no keynesianismo. A intervenção do Estado foi baseada em um conjunto de medidas de proteção social, entre elas a garantia de emprego relativamente pleno; a ampliação dos direitos de cidadania; a oferta de serviços sociais de caráter universal e a institucionalização de uma rede de segurança que garantiria padrões mínimos de atenção às necessidades humanas (PEREIRA, 2008). O ajuste neoliberal ultrapassa a esfera econômica e incorpora também uma redefinição global do campo político-institucional e das relações sociais, introduzindo um projeto de „reintegração social‟ bem distinto daquele que entrou em crise a partir dos anos de 1970. Segundo Soares: Os direitos sociais perdem identidade e a concepção de cidadania se restringe; aprofunda-se a separação público-privado e a reprodução é inteiramente desenvolvida para este último âmbito; a legislação trabalhista evolui para a maior mercantilização (e, portanto, desproteção) da força de trabalho; a legitimação (do Estado) se reduz à ampliação do assistencialismo (SOARES, 2000, p.13). No Brasil, nesse mesmo período, o padrão de desenvolvimento das políticas sociais era caracterizado como um processo que, apesar de incompleto, fragmentado e com heranças históricas e inflexões cíclicas e 17 políticas, induziu a uma expansão, sobretudo nas áreas de saúde e educação, embora sem a universalização das políticas sociais. Corrobora-se que, o sistema de proteção social, edificado no pós Segunda Guerra nos países capitalistas desenvolvidos, não responde mais ao novo contexto econômico e social. Na perspectiva dos trabalhadores, o crescente desemprego e sua permanência no tempo levam a uma paulatina perda dos direitos sociais, dado que os benefícios estavam atrelados à integração no mercado de trabalho. A partir desse panorama, estudiosos, sobretudo na literatura francesa, afirmam a existência de uma „nova‟ questão social. Diante desse quadro, certas correntes começam a repensar a política social para torná-la compatível com a nova dinâmica estrutural. Nesse contexto, os programas de transferência de renda passam a ter importância crescente no debate público e tornam-se “alternativas” de política. A ideia de promover uma renda mínima à parcela pobre da população não é nova. Na Inglaterra, 1795, no período imediatamente anterior à Revolução Industrial, ocorreu o primeiro programa de transferência de renda, normatizado pela Lei de Speenhamlad, que garantia um abono baseado no preço do pão, em complemento aos baixos salários ou à sua ausência (PEREIRA, 2009). No Brasil, o primeiro programa de transferência de renda instituído foi a Renda Mensal Vitalícia (RMV), em 1974, que consistia na garantia de meio salário mínimo aos idosos com mais de 70 anos e às pessoas consideradas inválidas, que em algum momento de suas vidas tivessem realizado contribuições para a Previdência Social. Foi extinta em 1995, com a aprovação do Benefício de Prestação Continuada – BPC pela Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS. Concretamente, o debate sobre programas de transferência de renda só se efetiva no Brasil a partir de 1980, momento em que as análises mais gerais sobre o rumo das políticas apontaram uma mudança no processo de construção da seguridade social. 18 A seguridade social como direito social foi instituída na Constituição Federal de 1988, tendo como integrantes as políticas de saúde, da previdência social e da assistência social. Entretanto, a ampliação da demanda ocorrida por pressão social no âmbito da redemocratização da sociedade brasileira começou a ser duramente atingida com o impacto da crise econômica e fiscal do Estado nos anos 1980, intensificada com a onda neoliberal introduzida no País nos anos 1990, quando foram impostas limitações para os programas sociais, acompanhadas do desmonte dos direitos sociais conquistados, concretizando uma verdadeira contrarreforma. Assim, os anos 1990 representam um período de profunda contradição no campo de bem-estar social: o qual se tem um avanço no plano político-institucional, representado pela instituição da seguridade social e dos princípios de descentralização e de participação social, dispostos na Carta Magna de 1988, tem-se também, no plano de intervenção do Estado no social, um deslocamento guiado por posturas restritivas, com a adoção de programas sociais focalizados, quando não privatizantes (SILVA et al, 2011). É nesse contexto que emerge, no Brasil, a temática dos programas de transferência de renda não contributivos. Esses programas de transferência de renda consistem em auxílios monetários de caráter não eventual, condicionados a algum tipo de contrapartida de seus beneficiários, cujo acesso aos benefícios é definido por critérios focalizados nos grupos sociais mais vulneráveis, de baixa renda (SILVA et al, 2011). No ano 2004, depois da unificação de vários programas de transferência de renda, surge o Programa Bolsa Família – PBF que colocou em evidência o lugar da pobreza na sociedade brasileira. Ao trazer para o debate público a problemática da fome, movimentando a mídia, a opinião pública, os especialistas de diversas áreas, as universidades, as lideranças locais, os governantes de Estados e municípios e outros cidadãos do país, o PBF coloca a pobreza e a fome como questões públicas, alvo de opções políticas que põem em foco as alternativas de futuro para o país e os desafios da cidadania e da construção democrática nesta sociedade excludente e desigual. 19 São os rumos e a politização desse debate que permitiram a um Programa como o Bolsa Família se colocar (ou não) na perspectiva de forjar formas de resistência e defesa da cidadania dos excluídos, ou apenas reiterar práticas conservadoras e assistencialistas? Portanto, trazer à análise um Programa como o Bolsa Família, no contexto da re-filantropização da questão social brasileira e da despolitização da política social, é enfrentar uma temática complexa, que supõe diversos caminhos analíticos e diferentes ângulos a serem considerados em sua análise. Nesta oportunidade, o Programa será abordado a partir da sua proposta e seu significado social e político em face da questão social brasileira. Desse modo, desenhada a problematização do tema, começou a ser delineado como objetivo geral de análise: analisar o Programa Bolsa Família, no sentido de confrontar a perspectiva da assistência e do assistencialismo, para uma melhor compreensão do programa e de sua função social na sociedade em face da questão social brasileira. Esse objetivo geral se desdobrou em outros objetivos específicos que agem como orientação no desenvolvimento da pesquisa e das reflexões, quais sejam: 1. Problematizar o sentido da categoria questão social, relacionando-a com o desenvolvimento das políticas sociais na sociedade capitalista; 2. Contextualizar a gênese e a expansão da seguridade social no Brasil, assim como os limites que esse sistema passa a sofrer em virtude da crise econômica do Estado; 3. Apontar as diferenças conceituais entre assistência e assistencialismo; 4. Discutir os fundamentos teóricos e concepções dos programas de transferência de renda não contributivos no Brasil; 5. Verificar se o Programa Bolsa Família rompe com a lógica neoliberal ou fortalece a perspectiva da assistência social como política social universalizadora de acesso de direitos. 20 Compreendemos o processo de conhecimento como a possibilidade de produzir informações sobre um determinado fenômeno, é necessário considerar algumas peculiaridades que o envolve. Segundo Minayo (1994), a primeira delas refere-se ao caráter aproximado do conhecimento, cuja construção se faz a partir de outros conhecimentos sobre os quais se exercita a apreensão, a crítica e a dúvida. O conhecimento é uma tentativa de reprodução da realidade, mas nunca a própria realidade. As ideias sobre ele são sempre parciais, dependentes de uma série de condições, entre elas o próprio lugar de onde fala o pesquisador. O conhecimento, por sua vez, não está isento de interesses e sua autonomia é relativa, porque, para um mesmo fenômeno, pode haver mais de uma explicação, dependendo da abordagem e do tratamento que lhe dá o pesquisador. Na construção do longo caminho que foi percorrido, para assim alcançar os objetivos preestabelecidos nesse planejamento, foi necessário uma abordagem com o método dialético, pois com este foi possível penetrar no mundo dos fenômenos através de sua ação recíproca, da contradição inerente e da mudança dialética que ocorre na natureza e na sociedade. Como método de procedimento, usamos o histórico e o comparativo, pois partimos do princípio de que as atuais formas de viver e agir na vida social, as instituições e os costumes tem origem no passado, vemo-nos na obrigação de pesquisar suas raízes para compreender sua natureza e função. E, além disso, fez-se necessário investigar as coisas ou fatos, explicando-os segundo suas semelhanças e suas diferenças. É a interpretação da realidade, visão de mundo e práxis1 que permitem compreender o mundo como processo, sujeito ao desenvolvimento histórico e à mudança, delineado para explicar o desenvolvimento da sociedade. 1 O conceito de práxis de Marx pode ser entendido como prática articulada à teoria, prática desenvolvida com e através de abstrações do pensamento, como busca de compreensão mais consistente e consequente da atividade prática, a qual esta tem relação com a transformação social. 21 Segundo Alcyrus Barreto (1998), a metodologia da pesquisa em um planejamento deve ser entendida como um conjunto detalhado e sequencial de métodos e técnicas científicas a serem executadas ao longo da pesquisa, de tal modo que se consiga atingir os objetivos inicialmente propostos. Assim, no presente trabalho, o trajeto metodológico foi orientado por esses princípios, que nos levaram a examinar os dados qualitativos, tendo como foco o Programa Bolsa Família como fenômeno contraditório, em sua multicausalidade e multifuncionalidade. Buscou-se entender a natureza contraditória do PBF em função de suas características, pois podem se constituir como estratégias de políticas sociais embasadas nos princípios universais de cidadania ou se manter no terreno das políticas sociais compensatórias. Sua análise buscou articular os aspectos conjunturais e estruturais, situando os de natureza política, econômica e social. Para que as ideias ora apresentadas fossem desenvolvidas neste trabalho, foi necessário definir os procedimentos metodológicos que viabilizaram a análise do objeto em questão. Primeiramente, foi realizada uma pesquisa documental que incluiu documentos oficiais da área, tais como: Leis, Decretos presidenciais, Medidas Provisórias, Resoluções e documentos técnicos oficiais. O recorte metodológico remete-se à intenção de centralizar a análise no período de 2004 a 2012. Esse período se refere ao ano de unificação dos programas de transferência de renda no Programa Bolsa Família até os dias de hoje para a melhor compreensão do objetivo do referido programa. Concomitantemente, foi efetuada pesquisa bibliográfica mais detalhada sobre o tema, que abrange uma boa parte de toda a bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros, pesquisas. Sua finalidade é nos colocar em contato direto com tudo o que foi escrito sobre o assunto a ser estudado. Tais pesquisas foram realizadas com o intuito de caracterizar o cenário socioeconômico e político que contribuiu para os debates, elaboração 22 de propostas e implementação do Programa Bolsa Família, especificando seu contexto. De acordo com Minayo (1994), na análise final dos dados pesquisados serão estabelecidos as articulações entre os dados (quantitativa) e as referências teóricas da pesquisa (qualitativa), respondendo às questões da pesquisa com base em seus objetivos. Promovendo assim, relações entre o concreto e o abstrato, o geral e o particular, a teoria e a prática. Orientada pelos objetivos para o desenvolvimento do tema já exposto, o referencial teórico está consubstanciado nos seguintes aspectos: No primeiro capítulo, perpassa o estudo crítico sobre as polêmicas e dissonâncias da questão social, contextualizando historicamente a organização da assistência social na configuração do capitalismo, considerando que a base histórica e teórica dessa discussão está relacionada à visibilidade da questão social a partir do século XIX, enquanto fenômeno da sociedade capitalista. O século XX, contudo, registra o desenvolvimento de um novo tipo de regulação – WelfareState – com forte intervenção estatal na regulação das relações econômicas e sociais que, após a década de 1970, passa a sofrer os efeitos da reestruturação produtiva, bem como o surgimento do neoliberalismo. Em seguida, procura-se situar historicamente a questão social no Brasil, seus sentidos, bem como as respostas atribuídas pelo Estado, contextualizando a questão dos direitos sociais, procurando evidenciar os processos sóciohistóricos na sociedade brasileira, dando destaque à gênese da seguridade social no Brasil. No segundo capítulo, fazemos a discussão sobre os conceitos de assistência e assistencialismo, além da trajetória da Assistência Social brasileira. No terceiro capítulo, é apresentado o debate internacional sobre os fundamentos teóricos e as concepções dos programas de transferência de renda, avançando na análise para identificar suas características até a unificação dos programas de transferência de renda no Programa Bolsa Família. 23 No quarto capítulo, é realizada uma análise de vários aspectos que perpassam o PBF, para a tentativa de responder o questionamento central desse trabalho. São apresentadas, então as considerações finais, que resultam do conjunto de observações e estudos, bem como da compreensão da pesquisadora, buscando tecer a ideia, mesmo que preliminar, sobre a configuração do Programa Bolsa Família para uma melhor compreensão do programa e de sua função social na sociedade em face da questão social brasileira, no sentido de confrontar a perspectiva da assistência e do assistencialismo. No transcorrer deste trabalho de pesquisa, foi intenso o empenho para atingir a completeza e a precisão, tanto dos dados coletados quanto dos resultados das análises, porém, não existe a pretensão de encerrar o assunto. Como em qualquer trabalho de pesquisa científica, o seu resultado deve ser visto de maneira provisória e aproximativa, tendo em vista que as afirmações aqui apresentadas podem ter superado conclusões anteriores, mas também poderão ser superadas por outras futuras afirmações. Espera-se que o presente trabalho represente mais do que uma etapa transposta: seja o diferencial no processo de aprendizagem a partir da construção de um conhecimento científico que realmente possibilite uma compreensão crítica do objeto, por meio de aproximações sucessivas em direção à essência do fenômeno. Eis o desafio! 24 1. QUESTÃO SOCIAL E DIREITOS SOCIAIS 1.1 Polêmicas e Dissonâncias sobre a Questão Social A partir da década de 1970, o crescente domínio do mercado nos processos econômicos e sociais marcou um ponto de inflexão no mundo capitalista, caracterizado pelo desemprego estrutural 2, agravamento da pobreza e da exclusão social, precarização do trabalho e desmonte dos direitos sociais, suscitando novas formas de expressão da questão social. Esse contexto, não completamente novo, mas com dimensões notoriamente diferentes, passa a ser escopo de muitas discussões e estudos, tanto no contexto internacional, como nacional. Todavia, é corrente encontrarmos estudiosos que afirmam a existência de uma „nova questão social‟, caracterizada por uma sucessão de novos problemas ou antigos problemas superdimensionados, que denotariam uma ruptura com a questão social que teve sua emergência em meados do século XIX, conforme os autores franceses Pierre Rosanvallon (1998) e Robert Castel (2010)3. De acordo com Pastorini (2010, p.56), a discussão sobre a existência de uma “nova questão social” irrompe na Europa e nos Estados Unidos no final da década de 1970, a partir do momento em que os problemas inerentes à acumulação capitalista passam a ser percebidos como estados permanentes, não mais residuais e conjunturais como se acreditava durante os “Trinta Anos Gloriosos”4. Segundo Rosanvallon (1998), a nova questão social é identificada com a expressão, criada no final do século XIX, referente às disfunções da sociedade industrial emergente. Trata-se, pois, do crescimento do desemprego 2 O desemprego estrutural ocorre quando o número de desempregados é superior ao número de trabalhadores que o mercado quer contratar e esse excesso de oferta de trabalhadores não é temporário.O desemprego causado pelas novas tecnologias, como a robótica e a informática, recebe o nome de desemprego estrutural. Ele não é resultado de uma crise econômica, e sim das novas formas de organização do trabalho e da produção (OLIVEIRA, s/d, mimeo). 3 “A Nova Questão Social” (1998) e “As Metamofoses da Questão Social:uma crônica do salário”(1998), respectivamente. Ambos os autores adotam a sociedade francesa como referência para a análise. 4 Refere-se aos anos que se segue à segunda Guerra Mundial, até o início dos anos 1970. 25 e do surgimento de novas formas de pobreza, seguidos de novas maneiras de insegurança social a partir de 1970. Essa nova questão social tem como padrão o desenvolvimento e a crise do paradigma keynesiano do modelo de acumulação e métodos de gestão social, assim como do Estado-providência5, dos programas reguladores e da proteção social e trabalhista. Assim,segundo o autor, estaríamos atualmente diante da presença de uma crise de ordem filosófica6, que levanta a questão sobre a base de sustentação do sistema de proteção social que ele denomina de Estadoprovidência passivo: desagregação dos princípios de organização da solidariedade e o fracasso da concepção tradicional dos direitos sociais com o surgimento de novas formas de solidariedade social. Rosanvallon (1998) afirma que é impossível enfrentar o problema da exclusão social usando a concepção tradicional dos direitos sociais; a questão social deixou de ser analisada dentro de um sistema global (em termos de exploração e distribuição) e passou a uma abordagem que focaliza o segmento mais vulnerável da população. O autor defende a manutenção de certas prestações universais combinadas com a seletividade e a focalização para se manter o elo social da cidadania, financiadas de forma generalizada. O autor acentua que o Estado, no período mencionado, funcionava encoberto por um “véu de ignorância”, pois se baseava no princípio securitário, que prevê a igualdade dos indivíduos diante dos variados riscos sociais que poderiam afetá-los. Rosanvallon(1998) propõe o tratamento diferenciado dos indivíduos, que implica a renúncia aos conceitos universalizantes de direito, por meio de novos mecanismos de solidariedades, de novas utilidades sociais para se “refazer a nação”, reorganizando-se o espaço cívico e um laço social, 5 O termo Estado-providência é utilizado para designar o Estado Social na França. Rosanvallon(1998) apresenta três etapas da crise do Estado-providência: 1)a de ordem financeira: crescimentos com as despesas sociais(principalmente com saúde), a partir dos anos 1970; 2)a ideológica: presente nos anos de 1980 revela que o Estado-empresário não administra eficazmente os problemas sociais; e 3)a filosófica: apresenta como problemas principais a desagregação dos princípios de organização da solidariedade e o fracasso da concepção tradicional dos direitos sociais, marco para considerar a situação dos excluídos. 6 26 apostando também no “terceiro setor”7 como forma de desenvolvimento da sociedade de inserção. Com base na análise realizada por Pastorini, a alternativa pensada por Rosanvallon, centrada no Estadoprovidência ativo, poderia chegar a constituir uma justificação e sistematização do processo de individualização, entendido que o Estado-providência estaria cada vez menos vinculado às classes sociais, às populações homogêneas, aos grupos sociais e, ao contrário, cada vez mais relacionado aos indivíduos particulares. Ele pensa que a equidade deve ser garantida pelo Estado-providência ativo e que isso só será possível se essa instituição tiver um tratamento diferenciado para com os distintos setores da sociedade (PASTORINI, 2010, p.62). Compreendemos que Rosanvallon tem sua análise na solução para a crise do Estado-providência passivo e da exclusão social sem discutir a lógica da sociedade capitalista, haja vista, que a substituição do “Estadoprovidência ativo”, produtor do sentimento cívico da solidariedade, ligado ao desenvolvimento da cidadania, seria para o autor a solução. Concordamos com Pastorini (2010), que duvida de que o Estadoprovidência ativo seja capaz de exercer justiça mediante o conhecimento das diferenças entre os homens, dando a eles um tratamento diferenciado. Para a autora, o problema das desigualdades capitalistas não está enraizado nessa questão, mas na desigual distribuição da riqueza acumulada pelo sistema produtivo, cuja origem é a exploração dos trabalhadores e a concentração dos meios de produção nas mãos da classe capitalista. Por sua vez, Castel (2010), em sua análise demonstrará a necessidade de acompanhar o caminho da sociedade salarial 8 como forma de entender as principais transformações sofridas pela questão social na contemporaneidade. Para ele, 7 O "terceiro setor" apresenta-se como um agente capaz de deslanchar uma "mudança social", devido à sua capacidade de articulação, por ser um espaço democrático de mobilização comunitária e por ser também, apenas no nível do discurso, apolítico e aclassista, um "virtuoso".O "terceiro setor" (que juntou num mesmo pacote conceitual ONGs, movimentos religiosos, associações de moradores e filantropia empresarial, só para citar alguns) passa a executar ações sociais, fortalecendo uma postura clientelista nos atendimentos (MENEZES, 2010). 8 Para Castel(2010), essa sociedade, que buscou combinar trabalho e proteção, concedeu ao assalariamento um status que jamais possuíra no passado, o que significa dizer que nela ser assalariado passou a representar não somente receber um salário, uma retribuição monetária, mas certo número de garantias e de direitos, essencialmente direito ao trabalho e à proteção social. 27 a “questão social” é uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. Ela é um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade (o que em termos políticos se chama de nação) de existir como um conjunto ligado de relações de interdependência (CASTEL, 2010, p.30). Robert Castel (2010), tomando o caso francês como exemplo típico, traça os delineamentos gerais da questão social sob dois ângulos: o que representou seu enfrentamento na proposição das classes dominantes face à ameaça à coesão social e o que representou o ponto de vista do operariado em sua luta por melhores condições de vida e de trabalho. Segundo este autor, a expressão “Questão Social” aparece pela primeira vez no jornal legitimista francês La Quotidienne em 1831, que acusava o governo, chamando a atenção dos parlamentares, no sentido de que era preciso entender que, além dos limites do poder, isto é, fora do campo político, existia uma questão social carente de resposta, quando esses efeitos do processo de industrialização representavam um perigo à paz e à ordem econômico-social e moral estabelecida. No interior do pensamento dos reformadores sociais, defensores do sistema, a questão social passa a ser tratada como [...] “questão da reabilitação das classes trabalhadoras „gangrenadas‟ pela chaga do pauperismo” (CASTEL, 2010, p. 317). Castel (2010) caracteriza a questão social por “uma inquietação quanto à capacidade de manter a coesão de uma sociedade. A ameaça de ruptura é apresentada por grupos cuja existência abala a coesão do conjunto” (CASTEL, 2010, p. 41). Explicitando a composição de tais grupos, o autor esclarece que as populações que dependessem de intervenções sociais seriam basicamente pelo fato de serem ou não capazes de trabalhar, sendo tratados de forma distinta em função deste critério. A análise parte da identificação no longo prazo de uma correlação profunda entre o lugar ocupado pelo indivíduo na divisão social do trabalho e a participação nas redes de sociabilidade e nos sistemas de proteção. O autor compreende que a questão social passa por reformulação por meio das crises, porém, não defende que o surgimento do capitalismo consistiu em uma ruptura dos problemas sociais que sempre existiram e que estão em constante transformação. As metamorfoses pelas quais a questão 28 social passa são frutos das transformações históricas. Entretanto, apesar das transformações, Castel, chama atenção para o fato de que os membros da zona de vulnerabilidade9 ocupam posições homólogas na estrutura social ao longo do tempo. Os processos que produzem essas situações são comparáveis, ou seja homólogos, na dinâmica diferindo nas manifestações, sendo que a história não é linear. O processo de manifestação social, segundo Castel, é marcado por suas “metamorfoses”, compreendidas como: dialética do mesmo e do diferente [...] os conteúdos concretos de noções como estabilidade, instabilidade ou expulsão do emprego, inserção relacional, fragilidades dos suportes protetores ou isolamento social são agora completamente distintos do que eram nas sociedades pré-industriais ou no século XIX [...] Entretanto, ainda que fundamentais, as grandes mudanças não representam inovações absolutas quanto se inscrevem no quadro de uma problematização (CASTEL, 2010, p. 27-28). Partindo da ideia de que a “questão social” foi se redefinindo e metamorfoseando com o passar do tempo, o autor se interessa em analisar o que há de diferente e de comum nas heterogêneas situações de vulnerabilidade social, pois Castel (2010) afirma que se trata de uma nova problemática, mas não de outra problematização. Tendo como base aquela realidade, Castel (2010) afirma que o Estado é insubstituível no que diz respeito a direção das operações, porém, será preciso criar mudanças em sua intervenção. “O poder público é a única instância capaz de construir pontes entre os dois pólos do individualismo e impor um mínimo de coesão à sociedade” (CASTEL, 2010, p.610). Com isso, o autor entende que para enfrentar a crise da sociedade salarial, seria necessário encontrar um “Estado interventor” que tenha propostas novas para ocupar o mundo, onde o trabalho não seria o grande integrador. Na compreensão do autor, a solução dos problemas sociais seria a efetivação das políticas de integração10 e não das políticas de inserção11. 9 O autor define como “zona intermediária, instável, que conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade dos suportes de proximidade” (CASTEL, 2010, p. 24). 10 Direcionada a todos os cidadãos, buscando restabelecer o equilíbrio social, homogeneizar a sociedade e reduzir as desigualdades sociais. 29 A partir do que foi exposto, identificamos que tanto Castel (2010) quanto Rosanvallon (1998) defendem a “nova questão social”. Enquanto o primeiro autor busca em sua análise demonstrar que não há uma separação dicotômica entre a antiga/nova questão social, o segundo persiste nessa separação, preocupando-se em evidenciar as singularidades. Resumindo, para Rosanvallon a “nova” questão social consiste no desemprego e no surgimento de novas formas de pobreza, acompanhados de novos tipos de insegurança social, produzidos por mudanças estruturais e políticas desencadeadas a partir do final dos anos 1970. Esses fatos, favoreceram o surgimento do conceito de exclusão social, que Castel (2010) denomina de desfiliação12, embora indiferenciado, é o único capaz de recobrir “uma infinidade de situações infelizes sem tornar inteligível seu pertencimento a um gênero comum [...] encobrir todas as pessoas e grupos que não tem nem o mesmo passado, nem o futuro, nem as mesmas vivências e valores” (CASTEL, 2010, p.32). Para Pastorini (2010), a compreensão que os autores franceses tem dos invalidados pela conjuntura – os “inúteis para o mundo” para Castel e os “novos pobres” e “excluídos” para Rosanvallon – não remete à “antiga” categoria de exploração. Castel e Rosanvallon compreendem que a explicação da “questão social” fundamentada na ideia do confronto de interesses de classes não apreende a realidade contemporânea, onde a integração pelo trabalho não é mais o ponto principal para pensar o pertencimento dos indivíduos à sociedade, passando a ocupar o lugar prioritário a inserção a partir das redes de sociabilidade (PASTORINI, 2010). Porém, Marilda Iamamoto, compreende que a gênese da questão social na sociedade burguesa deriva do caráter coletivo da produção contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho - , das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos (IAMAMOTO, 2010, p,156). 11 Sujeitas a uma “discriminação positiva” decorrente do déficit da integração, focalizando os programas sociais para as populações mais pobres e que não conseguem entrar ou se manter no universo produtivo. 12 Castel (2010) em vez de adotar o termo exclusão, prefere trabalhar com o conceito de desfiliação, por designar uma trajetória e o processo que esta engendra. 30 Assim, segundo a autora, no capitalismo com a apropriação dos meios de produção, o trabalhador se coloca como trabalhador livre, possuidor apenas da sua força de trabalho, assumindo assim a função de trabalhador assalariado como único meio para a satisfação de suas necessidades vitais. A questão social é uma expressão desconhecida no universo teórico de Marx, porém os processos sociais que ela revela estão no cerne da análise do autor, especialmente no exame que o autor faz sobre a dinâmica do regime capitalista de produção, isto é, quando identifica as condições materiais e relações sociais que produzem e reproduzem a desigualdade entre as classes, condicionada pelo acúmulo de capital (IAMAMOTO, 2010). Nesse sentido, a questão social é produzida e reproduzida na sociedade capitalista, em consequência das relações de produção que se constituem com base na estrutura da sociedade e que, em determinados momentos históricos, com a criação de um excedente, possibilitaram a apropriação privada dos meios de produção, culminando com o aparecimento de classes sociais desiguais e contraditórias – “os possuidores de propriedade e os trabalhadores sem propriedade” (MARX, 2004, p.110) – portadoras de características específicas. O trabalhador livre13 é “excluído de toda a riqueza objetiva, dotado de mera capacidade de trabalho e alijado das condições necessárias à sua realização objetiva na criação de seus meios de sobrevivência” (IAMAMOTO, 2010, p.159). A autora revela que a pobreza não é apenas resultado da má distribuição da renda, mas também está ligada à produção e, mais especificamente, à distribuição dos meios de produção. Desse modo, ao tratar da questão social em suas diversas expressões, é fundamental considerar a dimensão coletiva e estrutural da questão social, produzida e reproduzida historicamente, com suas configurações alteradas em consonância com as condições econômicas e sociais conjunturais. Para Iamamoto (2010), a questão social tem sua 13 “A separação do individuo das condições de seu trabalho, monopolizadas sob a forma capitalista de propriedade” (IAMAMOTO, 2010, p.159) 31 emergência vinculada ao surgimento da classe proletária e à sua atuação no cenário político, por meio de suas lutas e reivindicações pelo reconhecimento de seus direitos por parte do bloco dominante, principalmente pelo Estado, pois: foram as lutas sociais que romperam o domínio privado nas relações entre capital e trabalho, extrapolando a questão social para a esfera pública. [...] passam a exigir a interferência do Estado no reconhecimento e na legalização de direitos e deveres dos sujeitos sociais envolvidos, consubstanciados nas políticas e serviços sociais (IAMAMOTO, 2010, p.160). É importante observar que as novas expressões da questão social não são notadamente novidades, tampouco um conjunto de problemáticas que sempre existiram e/ou que sempre existirão e que vão sendo metamorfoseadas. Indubitavelmente, há novos elementos, novas expressões da questão social na contemporaneidade (aumento da pobreza, precarização do trabalho, desemprego estrutural), mas de fato ela continua a manter os traços essenciais e constitutivos da sua origem, ou seja, a questão social nas sociedades capitalistas mantém a característica de ser uma expressão concreta das contradições e antagonismos presentes nas relações entre classe sociais e entre estas e o Estado. 1.2 A Questão Social em sua trajetória: novas e velhas expressões O modo de produção feudal tinha por base a economia agrária, de escassa circulação monetária e autossuficiente. Nesse modo de produção, o servo era vinculado ao senhor por relações de submissão e proteção, que também era proprietário dos meios de produção. Essa relação foi rompida no modo de produção capitalista. Ao tratar da acumulação primitiva, Marx demonstrou que a ruptura entre o camponês e a terra havia permitido que os donos do capital tivessem atendidos as suas demandas de força de trabalho. A posse privada dos meios de produção por uma classe e a exploração da força de trabalho daqueles que não os detêm configurou-se como o elemento definidor do capitalismo. Essa dissociação entre meios de produção e trabalhador e sua subordinação aos 32 donos do capital conduziram a formação do processo de acumulação capitalista primitiva (MARX, 2008). A decomposição da estrutura econômica da sociedade feudal serviu de elemento para a formação da estrutura econômica da sociedade capitalista. No interior da primeira, engendrou-se a classe revolucionária, que iria fazê-la desaparecer, e a afirmação do novo modo de produção capitalista, cuja acumulação primitiva pôde ser realizada, no momento de gênese e no início de seu desenvolvimento, sem que colocasse em dúvida o valor das antigas relações sociais e produtivas feudais, apesar dos inumeráveis conflitos de interesses (MARX, 2008). De acordo com Marx (2008), a separação entre camponeses e a terra, entre produtos e os meios de produção foi acompanhada de uma consequência: a divisão social do trabalho. Assim, o desenvolvimento do capitalismo, em sua fase mercantil, foi seguido pelo surgimento de uma força de trabalho assalariada e privada de meios de produção. A nova organização social baseava-se no duplo conceito de liberdade: liberdade do trabalho – assalariamento – e livre uso da propriedade dos meios de produção – capital. O antagonismo entre as classes se aprofundava, e o desenvolvimento do capitalismo, em sua fase mercantil, começou a introduzir significativas alterações na estrutura, nas relações e nos processos sociais. Os pobres começaram a surgir na Inglaterra na primeira metade do século XVI, tornando-se visíveis como indivíduos desprendidos da propriedade rural. Segundo Marx (2008), nessa época, porém, o pauperismo se dava num contexto de escassez e de precário desenvolvimento das forças produtivas. A pobreza já começava a expressar uma ameaça à ordem econômica e social, começando, assim, a exigir regulação por parte do Estado, “que viam no pobre não um titular de direitos, mas um perigo à ordem pública” (PEREIRA, 2009, p.61). Com o agravamento da pobreza, surgem “escassas atenções públicas às necessidades sociais, geridas por um Estado ainda socialmente restrito” (PEREIRA, 2009, p.61). 33 As leis existentes determinavam um “código coercitivo do trabalho” (CASTEL, 2010, p.176) e seu caráter “era mais punitiva que protetora” (PEREIRA, 2009, p.62). Exemplo disso foi a instituição da Poor Law (1601), lei do reinado da rainha Elizabeth, primeiro marco no desenvolvimento dos serviços sociais públicos, que criou formas de gerir a caridade em âmbito local ou paroquial. Segundo Pereira (2009), essa lei estabelecia uma tipificação dos indivíduos sociais, diferenciando os pobres dos mendigos fortes, assim como a forma de serem atendidos, com forte esquema antivagabundagem. O objetivo real era criar estratégias de combate às precárias situações de inserção no trabalho, para impedir a decomposição do laço social (CASTEL,2010). A Poor Law é considerada um marco histórico em medida social, e tal concepção é inerente a lógica capitalista de acumulação, dado que a ideologia dominante faz do trabalho um critério da vida “normal” e de mobilidade social, continuando a estigmatizar os não-trabalhadores corporalmente capazes. Segundo Castel (2010), as primeiras medidas de proteção social revelaram que, na estruturação do sistema socioassistencial, a relação entre trabalho e pauperismo já constituía o núcleo de uma lógica de assistência, na qual “as pessoas que dependem de intervenções sociais diferem, fundamentalmente, pelo fato de serem ou não capazes de trabalhar, e são tratadas de maneira completamente distinta em função de tal critério” (CASTEL, 2010, p.41). O século XVII foi marcado pelo surgimento de algumas fábricas de produção e por importantes invenções14 e foi berço da Revolução Inglesa 15 (1640-1960), cenário que deu início a uma nova política econômica e social, o liberalismo, que isentou a indústria das concessões de monopólios e criou condições necessárias para a livre expansão do capitalismo. O Estado, pela “pressão das Paróquias e dos proprietários fundiários que queriam manter nos seus domínios os trabalhadores de que necessitavam” (PEREIRA, 2009, p.65), decretou em 1662, a Lei do Domicílio (SettlementAct), 14 Como a máquina a vapor e o tear mecânico. A Revolução Inglesa do século XVII representou a primeira manifestação de crise do sistema da época moderna, identificado com o absolutismo. 15 34 que restringia a mobilidade dos trabalhadores, impedindo-os de se mudar para Paróquias mais ricas e com uma melhor remuneração pelo trabalho (PEREIRA,2009). A proteção social que existia até então, não tinha como base a noção de cidadania, haja vista, que o pobre não tinha sequer o direito de ir e vir. No último quarto do século XVIII, junto com o aumento da população, teve início na Inglaterra a Revolução Industrial, imprimindo uma transformação radical nas relações capital-trabalho e profundas transformações na estrutura social, na organização econômica e no modo de produção. Segundo Pereira, a intensificação da industrialização ocasionou mudanças na economia, desmoronando o sistema de proteção social vigente. Assim, a escassez de alimentos, produzida pelas baixas colheitas e por conflitos bélicos, passou a requerer novas modalidades de políticas sociais. Agora, não só os impotentes e desempregados, mas também os empregados, tinham de ser sustentados, em vista da presença ameaçadora da fome e do aumento dos preços dos produtos de primeira necessidade (PEREIRA, 2009, p.67), evidenciando um forte domínio do capital sobre o trabalho. Com a Revolução Industrial a caminho, e sob a pressão das necessidades da indústria, foi restaurada a mobilidade do trabalhador, e no desenrolar dessa trajetória foi instaurada em 1795, a Speenhamland Law (Lei de Speenhamland) (PEREIRA, 2009). Para Pereira, essa lei impediu a instituição de um mercado de trabalho na Inglaterra, ou pelo menos diminuiu o seu ritmo, protegendo os trabalhadores contra o próprio mecanismo de mercado. Seu resultado, porém, foi a pauperização das massas: como todos recebiam subsídio estatal, os donos do capital não remuneravam devidamente seus trabalhadores. Essa lei introduziu uma inovação social e econômica que nada mais era que o direito de viver e, até ser abolida, em 1834, impediu efetivamente o estabelecimento de um mercado de trabalho competitivo, visto que houve, uma genuína preocupação com todos aqueles que, trabalhando ou não, viviam em estado de pobreza crítica, rompendo assim a estreita 35 relação entre assistência e trabalho assalariado. E isso se deu não por motivos humanitários ou benevolentes, mas pelo forte receio de que as massas empobrecidas se rebelassem (PEREIRA, 2009, 69). Pelas características citadas, ficam manifestadas as ambiguidades que marcam a relação entre o trabalho e a assistência, sobretudo para os pobres em condições de trabalhar. Para desenvolver sua nova dinâmica, o capitalismo industrial exigiu a liberação dos pobres das antigas formas de regulação social, para que pudessem se inserir no mercado de trabalho. Em 1834 houve a revogação da Speenhamland Law e a criação da Poor Law AmendmentAct (Nova Lei dos Pobres), “que representou um verdadeiro ato abolicionista para a emergente economia de mercado, pois a libertava das rédeas do protecionismo estatal.” (PEREIRA, 2009, p.70). Além de tornar a condição do indivíduo que precisava de assistência menos atrativa do que a do trabalhador mais inferiormente remunerado, a Nova Lei dos Pobres visava assegurar que a assistência não interferisse no sistema de salários, e que os trabalhadores independentes não fossem tentados a aceitar auxílio como uma alternativa desejável, no que obteve êxito, pois como o esquema de obrigação ao trabalho se tornou mais rígido e mais humilhante com a internação nos asilos e workhouses(casas de trabalho), os pobres preferiam vender a sua força de trabalho em troca de baixos salários, longas jornadas, ausência de proteção social e falta de condições salubres de trabalho e de vida (PEREIRA, 2009). Para Castel (2010), as workhouses reuniam a reclusão com o trabalho forçado e a oração para a regeneração dos mendigos. Tal situação, portanto, era marcada pela efemeridade, mas não podia ser aceita passivamente, pois, “os remédios adotados pela Lei de 1834 para mudar o caráter dos pobres, e fazê-los laboriosos e felizes, mostraram-se falaciosos” (PEREIRA, 2009, p.79). Foi no terceiro quartel do século XIX, que houve a grande expansão do poder do capital e trouxe o refluxo do movimento operário em termos de manifestações coletivas. Os trabalhadores lutavam contra as condições desumanas de vida e de trabalho às quais estavam submetidos no capitalismo, com jornadas de 22 horas de trabalho diárias, em que adultos e crianças eram 36 explorados desmedidamente, em minas de carvão de pedra embaixo da terra, sem ventilação, em ambientes perigosos e insalubres, sem dispositivos de segurança, mínimos que fossem, para impedir os altos índices de mutilações e mortes ocorridas durante o trabalho (MARX, 2008). Como já foi explicitado, a pobreza e a desigualdade entre as várias camadas sociais existiram em tempos anteriores ao da industrialização, porém eram resultantes da escassez de recursos. No sistema capitalista, contudo, o pauperismo tornou-se resultante da acumulação de riquezas; o mesmo sistema gerador de riqueza era também o gerador de pobreza – o pauperismo das massas – que passou a ser denominado pelos reformadores da questão social (PEREIRA,2009). Evidencia-se que o aparecimento das questões acima mencionadas, vinculadas às novas condições de trabalho advindas do processo de industrialização, e a pressão dos trabalhadores por melhores condições de vida e de trabalho fez o Estado perceber que “o fortalecimento da economia tinha estreita relação com o bem-estar dos trabalhadores e da população em geral” (PEREIRA, 2009, p.86), provocando a progressiva intervenção do Estado na formação das políticas sociais, como será explicitado a seguir. 1.3 A origem das políticas sociais para o enfrentamento das expressões da questão social. Segundo Pereira (2009), em meio a Revolução Industrial, um processo irresistível no progresso e na desigualdade de acumulação de riqueza pelas classes em ascensão, a burguesia mergulhava na fartura, enquanto o proletariado conhecia a alienação do trabalho e o pauperismo. Nesse mesmo período, a burguesia se firma como classe dominante e o proletariado tomou consciência de sua própria classe, surgindo a questão social, perante a qual o Estado teve que fazer mediação legal e política. Resgatando Robert Castel (2010), foi em 1830 que o “social” passou a ocupar um lugar mais preciso entre a organização política e os sistemas econômicos, com a finalidade de regular as forças livres do mercado e as novas tensões sociais. Isso não quer dizer que, para Castel, o “social” não tivesse existido nas sociedades pré-industriais, 37 mas foi no século XIX “em que pareceu ser quase total o divórcio entre uma ordem jurídico-política, fundada no reconhecimento dos direitos do cidadão, uma ordem econômica que acarreta uma miséria e uma desmoralização de massa” (2010, p.30) que este social se fez notório. O desenvolvimento das políticas sociais como sinônimo de proteção aos pobres é um fenômeno antigo, que existiu desde as sociedades précapitalistas, precedendo o surgimento de dois movimentos contrários que são o fundamento da questão social surgida no século XIX: o da economia de mercado que, ao transformar tudo em mercadoria, realizou uma profunda mudança na estrutura da sociedade, submetendo-a ao domínio das leis do mercado auto-regulável e o da reação da classe trabalhadora frente aos efeitos perversos dessa economia de mercado (PEREIRA,2009). É no cerne desse duplo movimento, tenso e contraditório entre os interesses do capital e do trabalho, que advém a política social moderna, posteriormente denominada WelfareState16. Observamos que a intervenção do Estado é inerente à própria construção da sociedade fundada no trabalho assalariado e explorado, e que foi a ação organizada da classe trabalhadora, no período do capitalismo concorrencial para a fase monopolista, que impôs progressivamente a publicização do privado, gerando a intervenção do Estado nos contratos de compra e venda de trabalho, nas condições de trabalho, na saúde e na segurança dos trabalhadores. As políticas sociais e a formatação de padrões de proteção social são desdobramentos e até mesmo respostas e formas de enfrentamento – em geral setorializadas e fragmentadas – às expressões multifacetadas da questão social no capitalismo, cujo fundamento se encontra nas relações de exploração do capital sobre o trabalho (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.51) 16 Ao falar sobre o WelfareState, estamos tratando dos sistemas de bem-estar dos Estados capitalistas desenvolvidos, que receberam esse nome na Inglaterra; de Estado-providência, na França; e de Estado Social, na Alemanha. Presente em muitos outros países, todos com características e peculiaridades próprias. A distinção entre eles, embora seja relevante em determinados contextos, aqui não será discutida. 38 Isso demonstra que os trabalhadores conseguiram transformar condições de vida e de trabalho em uma questão social, ao darem visibilidade política e pública às suas necessidades coletivas. Foi na segunda metade do século XIX, por volta de 1880, ainda no contexto de uma sociedade liberal, que foi possível observar uma série de medidas de proteção ao trabalho que marcaram o início da ação estatal na regulamentação do mercado de trabalho: a Legislação Fabril, na Inglaterra, era considerada por Marx(2008) como a primeira reação consciente e planejada da sociedade contra a forma espontaneamente desenvolvida de seu processo de produção capitalista. Essa legislação marcou o início de época em que a sociedade começa a reagir à exploração excessiva dos trabalhadores, com mobilização contra as condições desumanas de vida e de trabalho a que estavam submetidos no capitalismo; introdução do seguro social na Alemanha, conhecida como política social de Bismarck, concretizado em 1883 (seguro saúde) e em 1889 (seguro de velhice e invalidez), levou a cabo uma sucessão de intervenções, visando pôr em ação um sistema de previdência social compulsória, fundamentado nos princípios de seguro, cotização e solidariedade profissional. Trata-se do reconhecimento de que a incapacidade das pessoas para ganhar a vida não era considerada fruto da vagabundagem e sim consequência das contingências sociais, como desemprego, enfermidade e idade avançada, sendo o Estado considerado como instância legítima para organizar e gerir a provisão coletiva contra a perda de renda causada por essas contingências. É um sistema de proteção social baseado na inserção no trabalho e na cotização que dá direito ao benefício (PEREIRA, 2009). extensão da cidadania e desfocalização do WelfareState da pobreza, que significou a mudança da relação do Estado com o cidadão. O interesse do Estado foi além da tradicional ajuda à 39 destituição e da manutenção da ordem; os seguros sociais passam a ser vistos como parte do conjunto de direitos e deveres; e receber proteção pública deixou de ser obstáculo para a participação política, configurando um benefício para plena cidadania (PEREIRA, 2009). crescimento do gasto social: comprometimento de um gasto social de pelo menos 3% do PNB (Produto Nacional Bruto) como um indicador nacional da origem do WelfareState (PEREIRA, 2009). De acordo com Castel (2010), o estabelecimento do WelfareState está diretamente associado ao reconhecimento político da ineficácia de outras formas de regulação da questão social. Esse processo ocorreu principalmente nos países em que o crescimento da produção de riquezas não veio acompanhado pelo processo de redução da pobreza operária. Assim, frustradas as alternativas para a resolução da questão social – como as que defendiam soluções via mercado, via ações de solidariedade ou mesmo via moralização do povo –, as medidas de proteção via Estado tornaram-se a alternativa mais viável. A partir de então, a assistência, ainda que incipiente e marginal, passou a ser assumida como função do Estado, conferindo-lhe o estatuto de Política Social que iria se transformar posteriormente em um importante componente do chamado WelfareState. Fraser (apud PEREIRA, 2009) define o WelfareState como um sistema de organização social com três direções principais as livres forças do mercado: a) garantindo direitos e segurança social a grupos específicos da sociedade como crianças, idosos e trabalhadores; b) distribuindo, de forma universal, serviços sociais como saúde e educação e c) transferindo recursos monetários para garantir a renda dos mais pobres em certas contingências, como maternidade, ou em situações de interrupção de ganhos devido a fatores como doença e desemprego. Todavia, a ingerência do Estado nessas direções só ocorreu a partir de determinada conjuntura política e econômica, compreendida por vários acontecimentos que demandaram uma intervenção organizada dos poderes 40 públicos, a saber: a Segunda Guerra Mundial; o progresso econômico do pósguerra e o fortalecimento da classe trabalhadora (BEHRING & BOSCHETTI, 2009). Em vista disso, alguns autores destacam o caráter contraditório do WelfareState, pois ele serve tanto para atender às necessidades básicas da classe trabalhadora quanto para defender e manter a integridade capitalista (PEREIRA, 2009). Além dessa característica, o WelfareState não é constituído de um único modelo. Embora muitos autores estabeleçam tipologias e classificações na análise de políticas sociais, contudo, cabe uma breve menção à análise de Esping-Andersen (apud BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.99). Ele emprega três modalidades análogas de WelfareState: o liberal; o conservador e o social-democrata: 1. no modelo liberal, predomina a assistência aos comprovadamente pobres, o status mercantil do trabalho assalariado é maximizado, e o Estado apenas intervém quando o mercado impõe penas a determinados segmentos sociais onde as vias naturais – o esforço individual, a família, o mercado, as redes comunitárias – de satisfação das necessidades revelam-se insuficientes (BEHRING & BOSCHETTI,2009); 2. o modelo conservador é claramente corporativista e nele prevalece a subordinação dos direitos à classe e ao status. É identificado com a política bismarckiana, na qual o Estado intervencionista fomenta a subordinação individual e a lealdade a suas ações e interfere apenas quando a capacidade da família se exaure (BEHRING & BOSCHETTI, 2009); 3. no modelo social-democrata, o Estado é o principal promotor da igualdade; são preponderantes os princípios de universalismo e desmercadorização dos direitos sociais, além das correções redistributivas das injustiças induzidas pelo mercado; esse modelo está comprometido com a institucionalização do pleno emprego sustentado (BEHRING & BOSCHETTI, 2009). 41 É importante destacar que os sistemas de proteção social predominantes nos países desenvolvidos entre 1940 e 1970 se desenvolveram dentro de um modelo econômico cujas principais características eram: a) elevadas taxas de crescimento; b) demanda de trabalho que acompanhava esse dinamismo econômico; c) salários que cresciam paralelamente às elevações da produtividade e d) economias relativamente fechadas, que permitiam os estados nacionais possuírem certa autonomia na regulação das políticas econômicas e sociais (BEHRING, 1998). A ação social estatal teve origem no último quartel do século XIX. Seu apogeu, no entanto, só ocorreu entre 1945 e 1975, tidos como os 30 anos gloriosos. Isso porque, nesse período, as relações sociais passam a ser reguladas pelo Estado, que se constitui em principal fonte de provisão e de financiamento do bem-estar social, em substituição à lógica de regulação pelo mercado prevalecente até então. Embora nem o padrão nem o desenvolvimento do WelfareState tenham sido idênticos em todos os países industrializados, Pereira (2009) identifica que este foi orientado por três doutrinas que, pactuadas, formaram o “Paradigma Dominante do Estado de Bem-Estar”. Segundo a referida autora, esse paradigma está ancorado: 1. No receituário keynesiano de regulação econômica e social, em que o Estado tinha legitimidade para intervir por meio de um conjunto de medidas econômicas e sociais, com o objetivo de gerar demanda efetiva; 2. nas postulações beveridgeanas, recomendações sobre o sistema de seguridade social, baseados no direito de feição universal e 3. na Teoria de Cidadania de T.H. Marshall, composta por três tipos de direitos: civis, que tratam das liberdades individuais; políticos, de votar e ser votado e sociais, caracterizados pelo acesso a um mínimo de bem-estar e de segurança, privilegiando o WelfareState como a instituição responsável pelos serviços sociais. Vale ressaltar que foi a partir do período depressivo – a crise de 1929-1932, com seus deletérios efeitos inflacionários e depressivos, revertendo num aumento aterrador do desemprego – que os donos do capital começam a 42 reconhecer os limites do mercado. O modo fluente que a contestação burguesa do laissez-faire17 adquiriu está estabelecido na chamada revolução keynesiana, que sistematizou uma ruptura substantiva com a ortodoxia liberal – defensora da auto-regulação do mercado e, portanto, da ideia de que havia uma “mãoinvisível” assegurando o equilíbrio entre oferta e procura –, justificando a intervenção estatal por meio de um conjunto de medidas econômicas e sociais, para conter a queda de demanda efetiva –, ou seja, disponibilizar meios de pagamento e dar garantias ao investimento, inclusive contraindo déficit público para controlar as flutuações da economia (BEHRING, 1998). A doutrina keynesiana fomentou a criação de medidas macroeconômicas, entre elas: a regulação do mercado; a formação e o controle dos preços; a emissão de moedas; a distribuição de renda; o investimento público; o combate à pobreza. Essas providências objetivavam não exatamente a socialização da produção, rumo à instituição de uma sociedade socialmente igualitária, mas a socialização do consumo (PEREIRA, 2009). A configuração do WelfareState como instituição e estrutura da sociedade capitalista só foi possível em virtude da existência de uma sociedade salarial, em que o trabalho e o salário formaram as variáveis essenciais de coesão social (CASTEL, 2010). Como a maioria da população era e ainda continua sendo assalariada, bem como em função da reprodução do mercado, o Estado pôde recolher os fundos para garantir o bem-estar dos que estavam incluídos na ordem do trabalho, além de minimizar os riscos da parcela excluída dessa mesma ordem. Desse modo, entre 1945 e 1975, houve uma expansão horizontal da oferta de proteção social guiada pelos governos centrais, que auxiliavam um número cada vez maior de categorias assalariadas ou não, denotando uma tendência à universalização dos serviços sociais, os quais adquiriram o status de direito social. Na prática, contudo, a regulação social sob a égide do direito ocorreu num campo em que sempre estiveram presentes conflitos de interesses e lutas de classes, nos quais predominaram, nos anos seguintes, os 17 Princípio do mercado livre (PEREIRA, 2009). 43 direitos civis/individuais sobre os direitos coletivos/sociais no seio do WelfareState. Entretanto, atualmente, a presença do Estado não se dá da mesma maneira. A institucionalização considerada garantidora da continuidade do sistema hoje entra com um outro tom na discussão da crise do Estado de BemEstar Social e da questão social que tem no desemprego, na pobreza e na exclusão social, os resultados que denunciam a face mais perversa do sistema capitalista. 1.4 Direitos Sociais no Brasil Tratar da emergência e do desenvolvimento dos direitos sociais no Brasil requer a inserção nas raízes de sua formação social. Os traços que compõem uma sociedade dependente, com economia baseada no trabalho escravo e com relações sociais delimitadas pelo campo privado, darão à trajetória dos direitos, marcas que serão constantes nessa sociedade (COUTO, 2010). Assim, ainda que a história brasileira apresente acontecimentos que indiquem uma trajetória com muitos percalços para a realização de mecanismos garantidores de direitos – civil, político e social –, é necessário analisá-la para entender por que a desigualdade social é persistente na formação dessa sociedade. Ao analisar a construção dos direitos no Brasil como uma trajetória inversa de caminho, ou seja, compreendendo que os direitos sociais são os primeiros a serem efetivados, para depois se consolidarem os direitos civis e políticos, as características dessa inversão aparecem no Brasil a partir de 1930. Desse modo, para entender esse caminho é necessário observar a realidade brasileira a partir dessa data, as constituições que regeram a vida social, política e econômica e os governos que consolidaram mecanismos que ou foram consagradores desses direitos, ou apenas os declararam, ou ainda referendaram fórmulas de os anularem (COUTO, 2010). 44 Couto (2010) realiza um balanço histórico do processo de garantia de direitos no Brasil, especificamente do Período Colonial à Independência brasileira, verifica que o conjunto de direitos civis, sociais e políticos, que poderia fomentar um Estado de cidadãos, praticamente não existia. Segundo a autora, a própria Independência (1822), palco de um avanço no que tange aos direitos políticos, ao ser realizada com a manutenção da escravidão, trouxe em si limitações aos direitos civis, não sendo, portanto, capaz de introduzir mudanças radicais no conjunto dos direitos. A ordem escravista, o latifúndio monocultor, o estatuto de colônia, enfim, desguarneciam de tutela jurídica os brasileiros. A assistência social era desenvolvida, em grande parte, “pelos religiosos, sem interferência do Estado, criando-se, a partir dessa época, as condições para a caracterização dessa área como campo da filantropia ou da iniciativa de cunho privado” (COUTO, 2010, p.88). Ainda de acordo com a análise realizada por Couto, a proclamação da República, em 1889, trouxe pouca mudança. Desde a Independência, até 1930, a única alteração importante no avanço da cidadania foi exatamente a abolição da escravidão, em 1888. Para a autora, o que impediu a conquista dos direitos sociais no período pós-libertação dos escravos foi a limitação dos direitos civis, que perduraria até 1930. Ainda que o direito civil à liberdade e a não-escravidão estivesse garantido desde 1888, os escassos direitos civis e políticos, presumidamente garantidos, eram precários, o que teria protelado, efetivamente, a conquista de direitos sociais. A República também evitou regulamentar os direitos trabalhistas. Na primeira década da República houve um surto industrial nas regiões Sul e Sudeste do País, que trouxe à cena da política nacional, pela primeira vez, a figura do trabalhador. Nas primeiras lutas pelos direitos sociais, o poder público acabou por se colocar ao lado dos detentores do capital e garantiu proteção policial às fábricas, perseguiu e prendeu lideranças, fechou gráficas e jornais considerados subversivos, extraditando estrangeiros que fossem suspeitos de 45 colocar em perigo a tranquilidade pública e a segurança nacional etc.(BEHRING & BOSCHETTI, 2009). Com efeito, de maneira geral, pode-se admitir que os direitos sociais brasileiros tiveram origem na fase final da Primeira República (1890 e 1930), quando a questão social começa a adquirir evidência frente à emergência do processo de industrialização em substituição à crise da oligarquia agrária. Ademais, estava presente toda uma expectativa de que essa conjuntura, marcada pelo amadurecimento do processo republicano, com seus princípios liberais de liberdade e igualdade, garantisse a condição de cidadania à população brasileira. O fato de a questão social, típica desse período, ter sido predominantemente considerada pela classe dominante como “caso de polícia”, não coibiu que o movimento operário investisse nas suas organizações políticas, exigindo melhores condições de vida e de trabalho. Nesse período, foi aprovada a lei Eloy Chaves, que institui a obrigatoriedade de criação de Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs), estabelecendo as bases para a formação da Previdência Social no Brasil (BEHRING & BOSCHETTI, 2009). Segundo Behring&Boschetti (2009), no que concerne à concretização de uma relação de direito social, não havia condições objetivas para tal, visto que não existia ainda, naquela conjuntura, a constituição plena do Estado intervencionista. Nessa época, o Estado funcionava, fundamentalmente, a partir de uma perspectiva liberal. Desse modo, os direitos sociais só vão adquirir densidade nos anos de 1930, gerando, como resultado de sua efetiva existência, as condições objetivas para o estabelecimento de uma reação de cidadania entre povo e nação. De 1930 a 1937 o Brasil foi governado por Getúlio Vargas, que assumiu o poder após o movimento denominado Revolução de 1930. Nesse período, o governo brasileiro implementou encargos em seu processo de rompimento com o regime oligáquico-agrário, como a construção de estradas e de indústrias, e promoveu o desenvolvimento de instituições de política social 46 com o intuito de ministrar a questão do trabalho representada pela desqualificação profissional, pela pobreza e pelo desemprego. Em sua gestão trabalhista desenvolvida no período de 1930 a 1945, e na esfera do seu nacionalismo vivenciado de 1951 a 1954, a política social de Vargas vai ser marcada pelo controle, pela fragmentação e pela seletividade frente às demandas dos trabalhadores urbanos, institucionalizando os seguros sociais para as categorias de trabalhadores mais organizadas politicamente e promovendo mais estratégias ao desenvolvimento do capitalismo monopolista (COUTO, 2010). Nesse cenário, as políticas sociais eram concebidas como privilégio e não como direito. Pois, passaram a ser critérios de inclusão ou exclusão nos benefícios sociais a posição ocupacional e o rendimento auferido. Estes critérios colocaram somente os trabalhadores urbanos em posição de privilégio, pois sua vinculação ao mercado formal de trabalho era a garantia de inserção nas políticas sociais da época (COUTO, 2010, p.96). Nessa linha de raciocínio, os direitos do cidadão eram restritos ao lugar – reconhecido por lei – que este ocupa no processo produtivo, onde a carteira profissional era posta como comprovante essencial do contrato entre o Estado e a cidadania. É compreensível, portanto, que a cidadania, em tal hipótese, não passasse de instrumento político-jurídico de que se valia o Estado para implementar e manter o controle social e, consequentemente, as bases de sustentação do poder político (BEHRING & BOSCHETTI, 2009.). A criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) foi seguido, pelo caráter centralizador do Estado, onde a política social brasileira foi cunhada pela fragmentação e centralização federal, com a completa ausência dos usuários no seu processo decisório, destinada a compensar carências e oferecer legitimidade a grupos no poder (COUTO, 2010). É nesse contexto que emerge uma quantidade significativa de leis e de instituições sociais marcadas por práticas assistencialistas, todas relacionadas, direta ou indiretamente, com a questão do trabalho urbano. Esse modelo de política social e de cidadania vai subsistir para além da fase 47 trabalhista de Vargas (1930-1945), prolongando-se durante todo o período populista pós-1946, e configurando-se no nacionalismo de Vargas (1951-1954), no desenvolvimentismo de Kubitschek, no moralismo de Quadros e no reformismo de Goulart (COUTO, 2010; BEHRING & BOSCHETTI, 2009). Pode-se reconhecer que os direitos sociais assegurados no período de 1930 a 1960 foram caracterizados por representar uma conformação corporativista marcada por um direito regulado, diferentemente do padrão universalista predominante nos países de capitalismo avançado. A partir do golpe de 1964, os militares assumiram o poder no Brasil, dando início o período da ditadura militar, que apresentou como proposta “transformar o país em uma grande potência internacional, tendo como perfil as suas ações o cunho burocrático e tecnicista” (COUTO, 2010, p.119). Refere-se, portanto, a uma estratégia política instauradora de uma dominação substancialmente da classe dominante, impulsionada por meio de um projeto cuja natureza era a implantação de uma modernização conservadora, “reiterando uma dinâmica singular de expansão dos direitos sociais em meio à restrição dos direitos civis e políticos, modernizando o aparato varguista” (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.135). Enfim, o desenho das políticas sociais desse período revela a compreensão de como os direitos eram enfrentados, pois se as medidas eram tomadas visando a uma política de controle para manter a população sob a guarda dos instrumentos técnicos e burocráticos do governo, a compreensão dos direitos era de concessão a quem os governos entendiam ser merecedores (COUTO, 2010, p.132) No último governo do regime ditatorial, conduzido por João Figueiredo e sua política de abertura, iniciada no governo anterior, presenciase o fortalecimento das liberdades democráticas, a restauração do habeas corpus, a lei de anistia, a reorganização partidária e as eleições diretas para o Congresso e os governos estaduais em 1982. Nesse mesmo ano, o Brasil vivenciou um forte movimento de massas, que concentrou uma multidão nas principais cidades, em defesa de eleições para presidente, denominadas “Diretas Já!”. Tais fatos culminaram com a reconstitucionalização do País, introduzindo-se, em 1985, a Nova República, sob o governo de José Sarney, 48 também conhecida como “Transição Democrática” (COUTO, 2010; PEREIRA, 2008). A partir de 1985, o Brasil era marcado por uma nova fase no que tange ao processo de reorganização política, guiado sob a égide da democracia, mas em contrapartida também apresentou o aumento de sua herança para com a face da desigualdade social. A pobreza expandiu-se, efeito dos períodos anteriores, sobretudo dos governos militares, que, com suas orientações econômicas de desenvolvimento, produziram um país com uma funesta distribuição de renda e elevaram o número de demandatários das políticas sociais (COUTO, 2010). Analisando a noção de cidadania que emerge no Brasil nessa década, relacionada às experiências dos movimentos sociais, Dagnino (1994) distingue-a da visão liberal, destacando pontos que marcam o seu caráter inovador e estratégico, apresenta a noção de direitos que ela considera, que tem como premissa a concepção de “um direito a ter direitos” (p. 107), ou seja, amplia a noção das conquistas legais, implicando também na “invenção criativa de novos direitos” (p.108). É também uma noção de cidadania, que surge „de baixo para cima‟, como estratégia do não-cidadão, possibilita a difusão de uma “cultura de direitos”, em que a cidadania se constitui como “uma proposta de sociabilidade”. Este tipo de cidadania estabelece a relação entre o Estado e a sociedade civil, sendo “o direito a participar efetivamente da própria definição do sistema político” (p.112), por meio de fóruns e conselhos de gestão participativa. Um último elemento, destacado por esta autora, é que esta nova noção de cidadania pode constituir um quadro de referência complexo e aberto para dar conta da diversidade de questões emergentes nas sociedades latino-americanas à medida que, incorpora tanto a noção de igualdade, como a de diferença (DAGNINO, 1994, p.112). O resultado do processo de democratização foi materializado com a promulgação da Constituição Federal de 1988, também denominada “Constituição Cidadã”. Nesta Constituição a reformulação do sistema de proteção social introduziu, segundo Pereira (2008), valores e critérios que representam uma inovação semântica, conceitual e política, tais como “direitos sociais”, seguridade social, “equidade”, “controle democrático”, 49 “universalização” etc., que passaram a compor, efetivamente, categorias norteadoras do estabelecimento de um novo padrão de política social a ser adotado no país. Na Carta Magna, os direitos sociais foram dispostos no Título II, Capítulo II, “Dos Direitos Sociais”: Art. 6. São direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma 18 desta Constituição . Essas novas diretrizes contidas na Constituição, segundo inspiração de Pereira (2008), previam na área social: Maior responsabilidade do Estado na regulação, financiamento e provisão de políticas sociais; universalização do acesso a benefícios e serviços; ampliação do caráter do distributivo da seguridade social, como um contraponto ao seguro social, de caráter contributivo; controle democrático exercido pela sociedade sobre os atos e decisões estatais; redefinição dos patamares mínimos dos valores dos benefícios sociais; e adoração de uma concepção de “mínimos sociais” como direito de todos (PEREIRA, 2008, p.153). Com essas novas diretrizes, houve um debate que se voltava para a colocação da questão social em um plano nivelado ao plano mais geral do desenvolvimento, especialmente pelos princípios gerais de direitos sociais, da cidadania e da universalização. Ocorre que houve uma outra conformação política trazida pela Nova República, caracterizada como reação conservadora, que mina a regulamentação da legislação complementar necessária à implantação das reformas trazidas pela constituição, desfigurando e descumprindo o texto constitucional, em que os programas tipicamente assistencialistas e emergenciais ganharam maior expressão nesse período (COUTO, 2010; PEREIRA, 2008). Nesse período, mantém-se o caráter compensatório, seletivo, fragmentado e setorizado da política social brasileira, subsumida à crise econômica, apesar do agravamento das expressões da questão social (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 144) 18 Alterada pela E. C. 26, de 14/2/2000 (Texto original) “Art 6º São direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. 50 As inovações trazidas pela constituição, de acordo com a análise de Pereira (2008), foram motivo de preocupação para os adeptos brasileiros da ortodoxia liberal, já em franca ascensão nos países capitalistas centrais; ou seja, a aprovação da Constituição coincidiu com o período da “ofensiva neoliberal”, que impôs uma série de limites e desafios à efetivação de um padrão de cidadania “social-democrata”. Segundo essa autora: A Constituição Federal de 1988 foi rotulada pelas correntes conservadoras nacionais ora de inviável, por “remar contra a corrente” neoliberal, ora de inconseqüente, por conter, nas palavras “de efeito” de Roberto Campos (1991), “propostas suecas com recursos moçambicanos” (PEREIRA, 2008, p.153) O que se presenciou nesse período, foi que o conjunto de direitos arduamente conquistados, ao ser submetido aos princípios neo-liberais, apresentou um descompasso entre direito e realidade, ou seja, é o resultado de uma luta permanente, é produto da correlação de forças entre as classes e frações de classes, como estratégia e referência essenciais para a construção de uma outra sociabilidade, não capitalista, em busca de uma proteção. 1.4.1 Proteção Social no Brasil A ideia da instituição de um sistema de proteção social público nasceu no século XIX com a industrialização e a constatação de que a vulnerabilidade e a insegurança social vinham se ampliando à medida que se expandiam as relações de trabalho assalariadas (JACCOUD, 2010, p.58). Segundo Jaccoud (2010), a industrialização e a modernização ampliaram os riscos de as famílias caírem em estado de miséria em decorrência da impossibilidade de conseguir um salário. O Estado, face a questão social e os riscos sociais, teve a tarefa de atuar na oferta da proteção social, que pode ser definida como “um conjunto de iniciativas públicas ou estatalmente reguladas para a provisão de serviços e benefícios sociais visando enfrentar situações de risco social ou privações sociais” (JACCOUD, 2010, p.58). Porém, é preciso chamar a atenção para o caráter histórico e político dos sistemas de proteção social. Como afirma Silva, Yasbek & Giovanni, 51 os modernos sistemas de proteção social não são apenas respostas automáticas e mecânicas às necessidades e carências apresentadas e vivenciadas pelas diferentes sociedades. Muito mais do que isso, eles representam formas históricas de consenso político, de sucessivas e intermináveis pactuações que, considerando as diferenças existentes no interior das sociedades, buscam, incessantemente, responder pelo menos a três questões: quem será protegido? Como será protegido? Quanto de proteção? (SILVA; YASBEK; GIOVANNI, 2011, p.18-19). No Brasil, a discussão sobre essa temática tem indicado, em conformidade com a experiência internacional, que o Estado social brasileiro teve sua origem no surgimento das classes trabalhadoras urbanas e no intuito de responder aos conflitos entre as classes sociais que marcaram a relação entre o capital e o trabalho num panorama de crescente industrialização, como já foi discutido em item anterior. Além do tratamento repressivo exercido no interior dos aparelhos do Estado, a questão social expressa nas más condições de habitação, de saúde, de trabalho, de higiene e de educação vivenciadas pelos trabalhadores foram objetos da atuação da Igreja Católica que, baseada nos princípios cristãos de humildade, solidariedade e amor ao próximo, teve nesses problemas amplo campo para o exercício da caridade e da filantropia. A filantropia também foi exercida pela classe dominante e estava associada ao prestígio social; seu posicionamento alternava entre a hostilidade e o apoio explícito à repressão policial e ações caridosas e assistencialistas (IAMAMOTO, 2008). Entre 1930 e 1943, foi delineado o sistema de proteção social no Brasil, em uma conjuntura de grandes transformações sociais, políticas e econômicas marcadas pela transição do modelo de desenvolvimento agroexportador para o modelo urbano-industrial, quando também ocorreu o processo de construção do Estado Nacional intervencionista e centralizador. Esse, a partir de então, passou a assumir a provisão direta na esfera da educação, saúde, saneamento, habitação, entre outros (NEPP, apud SILVA, 2011). Datam dessa época a criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), em substituição às CAPs; do Ministério do Trabalho; da 52 Carteira do Trabalho19, da Legião Brasileira de Assistência (LBA); do Ministério da Educação e Saúde e do Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp). Segundo Silva (2011), é nesse período, de forma lenta, gradual, parcial e limitada, que elementos próprios do modelo beveridgiano 20 começam a ser incorporados pelos IAPs e pelo Ministério do Trabalho, em seus discursos e textos. Behring (2009) sinaliza que a implementação da previdência social no Brasil foi o resultado do processo de assalariamento provocado pela industrialização e pela política que consentiu ao governo ter um capital fixo para impulsionar a indústria. Ressalte-se que o assalariamento, no sentido dado por Castel (2010), a partir dos anos de 1930, foi estabelecido somente para uma parte e não para a totalidade dos trabalhadores ativos. Dessa forma, a previdência baseada na lógica do seguro social, o processo de assalariamento e a industrialização desempenharam um papel fundamental no surgimento da proteção social brasileira. Mas, de acordo com a análise de Behring (2009), foram incapazes de consolidar uma “condição salarial” que resultasse em uma “sociedade salarial” com seus pressupostos: “acumulação de bens e riquezas, criação de novas posições e de oportunidades inéditas, ampliação dos direitos e das garantias, multiplicação das seguridades e das proteções” (CASTEL, 2010, p.417). No período entre 1945 e 1964, o Brasil viveu a fase de democracia populista. Isso representou uma mudança formal no sistema representativo, contudo, no que se refere à construção do Sistema de Proteção Social Brasileiro, não foram observadas mudanças significativas. Embora o Brasil tenha adotado um regime democrático após 1945, muitas das estruturas corporativas instituídas nos anos precedentes permaneceram intactas, 19 A carteira de trabalho representava não só ter um emprego quase estável, mas garantia o acesso aos direitos previdenciários e trabalhistas (BEHRING & BOSCHETTI, 2009). 20 O modelo beveridgiano, caracterizando-se pela cobertura universal, como a concessão de prestações básicas sem a exigência de contribuição individual, dando-se o seu financiamento mediante tributos gerais. Nesse modelo, a aferição do direito de proteção social se dá pelas mesmas características definidoras da cidadania, ou seja, o simples fato de uma pessoa ter nascido ou possuir a cidadania daquele país já lhe dá o direito da proteção social (BEHRING & BOSCHETTI, 2009). 53 especialmente no campo das relações de trabalho, como o caso do sistema de previdência social (PEREIRA, 2008; COUTO, 2010). Até o golpe de 1964, pouca coisa havia mudado, apesar da democratização vivida pelo País desde 1946. O fato significativo foi a instituição da Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), em 1960, que consistiu na unificação dos benefícios e serviços. A LOPS garantia o mesmo regime de benefícios e serviços a todos os trabalhadores regulados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), independentemente da sua categoria profissional. Contudo, os trabalhadores rurais, as(os) empregadas(os) domésticas(os) e os profissionais autônomos continuaram a não ter acesso à previdência social (BEHRING & BOSCHETTI, 2009; PEREIRA, 2008; COUTO, 2010). Em 1964 com o inicio dos governos militares inaugura-se a fase de consolidação do sistema de proteção social, acompanhados por profundas mudanças na estrutura institucional e financeira das políticas. No período entre meados da década 1960 e 1970, foram implementadas políticas de cobertura relativamente ampla, marcada pela consolidação do sistema de proteção social, por meio de organização de sistemas nacionais públicos ou estatalmente regulados de provisão de serviços sociais básicos, apresentando tendências universalizantes e políticas de massa e cobertura relativamente ampla distinguindo-se e ultrapassando a forma fragmentada e seletiva do período anterior (PEREIRA, 2008). Nesse período foram efetuadas, no âmbito da política social previdenciária, ações de integralidade tecno-política de áreas a ela relacionadas: em 1966, criou-se o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em que foram unificados os institutos de previdência, dentro da política centralizadora do governo federal; outra inovação foi o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), Programa de Integração Social (PIS) e Programa do Patrimônio do Servidor Público (PASEP). Durante a década de 1970, a cobertura previdenciária foi estendida, ainda às categorias que até então não estavam incluídas nos planos anteriores, como: as empregadas domésticas (1972), trabalhadores autônomos (1973) e os trabalhadores rurais (1976). Em 54 1977 foi instituído o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Sinpas), que reuniu o INPS, o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps), a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), a LBA e a Central de Medicamentos (Ceme), tendo como objetivo incorporar, em uma única estrutura, as instituições que anteriormente tinham uma relação direta na oferta dos benefícios à população (COUTO, 2010). Na década de 1980, o sistema de proteção social, entendido por englobar as áreas de previdência social, assistência social e saúde, foi caracterizado como centralizador, fragmentado, sem a participação do controle social e com poucos investimentos e os acessos às principais políticas de proteção social ainda se realizava mediante a participação do trabalhador no seguro social previdenciário (JACCOUD, 2010). Nosso sistema de proteção social também foi analisado por Sposati (1999), sob o conceito de “Estado de Bem Estar Ocupacional”, em que “as relações de direitos universais constitucionalmente assegurados”, são substituídas pelas de direito contratual: “é o contrato de trabalho que define, imediatamente, as condições de reprodução do trabalhador no mundo da previdência ou no da assistência”, cabendo a última, “como mecanismo econômico e político, cuidar daqueles que aparentemente „não existem para o capital‟” (SPOSATI, 1999, p.15). A década de 1980 apresentou um país com grandes dificuldades produzidas pela concentração de renda e por uma política econômica restritiva no que concerne à participação da população na riqueza nacional, que já não indicava o crescimento do bolo como estratégia de riqueza apresentada pelos governos ditatoriais, muito menos propunha a sua distribuição, denotando ser uma sociedade extremamente desigual (COUTO, 2010). É importante destacar que tal configuração foi o produto de um condicionamento de origem histórica, provocado pelo abandono da população por parte do Estado no provimento de suas necessidades, pela descaracterização do povo como agente de sua própria história e pelo 55 interesse da classe dominante em manter essa forma de exercer a sua hegemonia. O Estado brasileiro tendeu a adquirir, nas suas relações com os grupos de interesses e com o sistema político, uma conotação corporativista, típica dos sistemas de base meritocrático-particularista21; porém foi o caráter clientelista o que mais marcou a sua dinâmica. Trata-se de um modelo que se diferencia dos modelos de política residual (caracterizado exclusivamente por políticas seletivas) e institucional-redistributivo (caracterizado por políticas universais e igualitárias) (DRAIBE, apud JACCOUD, 2010). Com o avanço da democratização da sociedade brasileira, ampliouse o processo de universalizar os direitos sociais, porém, foi fortemente combatido e interrompido na década de 1990, quando o Estado passou a adotar o chamado projeto de desenvolvimento neoliberal. O sistema de proteção social brasileiro foi marcado por superposições de objetivos, competências, clientela-alvo, agências e mecanismos operadores; instabilidade e descontinuidade dos programas sociais; insuficiência e ineficiência, com desperdício de recursos; distanciamento entre formuladores e beneficiários; ausência de mecanismos de controle e acompanhamento de programas, além dos avanços da privatização das políticas sociais, principalmente nas áreas de educação, saúde e habitação (SILVA, YAZBEK, GIOVANNI, 2011). Em última análise, nos anos 1990, verificou-se um verdadeiro desmonte do sistema de proteção social brasileiro que parecia crescer, em direção a universalização dos direitos, que veio evidenciar um retrocesso na oferta dos serviços, cedendo lugar ao que passa a ser considerado como um movimento de focalização. Iniciado o século XXI, temos o país com indicadores econômicos e sociais cada vez mais distantes do ideal. Segundo Silva, Yasbek e Giovanni, 21 Parte da premissa que cada indivíduo deve estar em condições de satisfazer as suas necessidades, mas reconhece que existem distorções que podem, inclusive, ser geradas pelo próprio mercado ou por desigualdades de oportunidades. A solução das necessidades dos indivíduos dependerão tão somente dos seus méritos e seu trabalho (DRAIBE, apud JACCOUD, 2010). 56 nosso Sistema de Proteção Social tem se mostrado incapaz de enfrentar o empobrecimento crescente e a desproteção social de amplo contingente da população brasileira, sem lugar no mercado de trabalho ou sujeita a ocupar postos de trabalhos precários, instáveis, sem proteção social e com remuneração cada vez mais baixa (SILVA, YASBEK & GIOVANNI, 2011, p.32). Para compreender a consolidação do sistema de proteção social assentado na seguridade social e na garantia de atendimento das demandas da população na ótica dos direitos, faz-se necessário visualizar o processo que se deu a seguridade social. 1.4.2 Seguridade Social brasileira No sistema capitalista, a gênese e a expansão da seguridade social no Brasil e no mundo estão intrinsecamente ligadas ao processo de acumulação capitalista e a seu modo de organizar o trabalho, à capacidade de reivindicação e resistência da classe trabalhadora e à natureza do Estado. O termo Seguridade Social é um “conceito estruturante das políticas sociais cuja principal característica é de expressar o esforço de garantia universal da proteção de benefícios e serviços de proteção social pelo Estado” (JACCOUD et al, 2009, p.21) Nesse sentido, sua base de financiamento é maior que a do seguro social, base que se deu a política previdenciária brasileira desde os anos 1920, que era organizada sob inspiração do modelo bismarckano. No Brasil, o processo da estruturação começou a ser desenhado a partir de mobilizações populares e do debate parlamentar, que culminou com a promulgação da nova Constituição Federal de 1988, e com esta inicia-se um período no qual o modelo da seguridade social passa a estruturar a organização e o formato da proteção social brasileira, em busca da universalização da cidadania (BOSCHETTI, 2009). O artigo 194 da Constituição Federal de 1988, estabelece que “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (BRASIL, 1988). Com base nesse dispositivo, as três políticas passam a ser concebidas como um 57 sistema integrado de proteção social, onde se inter-relacionam e se complementam: a. a saúde passa a ser reconhecida como direito do cidadão e dever do Estado. Seu acesso é de natureza universal e não contributiva. A política de saúde é operacionalizada por meio de um sistema único e descentralizado junto aos Estados e Municípios da Federação, denominado Sistema Único de Saúde (SUS). b. a previdência social, de caráter contributivo, tem por fim assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, idade avançada, desemprego involuntário, encargos de família e reclusão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente; c. a assistência social, que adquire status de política social de caráter não contributivo, direito do cidadão que dela necessitar. Fica, então, prevista a universalidade de cobertura, o que supõe segundo Sposati, que os cidadãos tenham acesso a um conjunto de certezas e seguranças que cubram e reduzam ou previnam os riscos e as vulnerabilidades sociais. Nesses termos, a definição de seguridade social, no Brasil, é utilizada de uma forma mais restrita do que aquele de WelfareState, que incorpora outros programas sociais. Todavia, a adoção daquele conceito representou um grande avanço, pois além de instituir um direito, incutiu-lhe um estatuto de política pública, apontando para a viabilidade de mecanismos mais equitativos de financiamento, de modelos mais ágeis e flexíveis de gestão democrática e popular, e forneceu alguns instrumentos que dariam conta da implementação desse novo desenho, que correspondia às exigências sociais e políticas da época (COUTO, 2010; BOSCHETTI, 2009). Em conformidade com o parágrafo único do artigo 194 da CF 88, é de competência do Poder Público a organização da seguridade social, com base nos princípios: 58 I. universalidade da cobertura e do atendimento; II. uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III. seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV. irredutibilidade do valor dos benefícios; V. equidade na forma de participação no custeio; VI. diversidade da base de financiamento; VII. caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados (CF 88, Título VIII, Capítulo II, Seção I, art. 194, parágrafo único). Esse modelo de seguridade social provocou mudanças na natureza do sistema de proteção social na medida em que passou a ser implementado pelo Estado, desvinculando-se parcialmente do formato contratual-contributivo que caracteriza a previdência ao adotar uma concepção mais abrangente, incluindo a saúde e a assistência (PEREIRA, 2008). Behring e Boschetti (2009) ao fazer uma leitura de cada um dos princípios anteriormente citados, aponta que o princípio da „universalidade da cobertura e do atendimento‟ não significa que toda população iria a gozar dos direitos igualmente, isto é, os seus princípios não se aplicam da mesma forma a todas as políticas, sendo o principio orientador da saúde a universalidade da cobertura e do atendimento – é direito de todos; como eixo diretivo da assistência social destaca-se a seletividade e distributividade – é devida a quem dela necessitar e como fundamento da reforma da previdência social tem-se a uniformidade e a equivalência dos benefícios – é um direito oriundo de uma contribuição direta anterior, permanecendo a lógica do seguro, mas sem vinculação a um emprego. A „uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços‟ asseveram a unificação dos regimes urbanos e rurais, pois por meio de contribuição os trabalhadores rurais passam a ter direito aos mesmos benefícios e serviços dos trabalhadores urbanos (BEHRING & BOSCHETTI, 2009). 59 O princípio da „seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços‟, segundo Behring e Boschetti (2009), indicam a possibilidade de estabelecer benefícios e serviços norteados pela “discriminação positiva” e não trata apenas dos direitos assistenciais, mas também abre essa opção de tornar seletivos os benefícios tanto das políticas de saúde quanto da política de previdência. Quanto à „irredutibilidade do valor dos benefícios‟, aponta que nenhum benefício deve ser inferior ao salário mínimo e que este deve ser reajustado de forma a não ter seu valor rebaixado pela inflação. A „diversidade da base de financiamento‟ reafirma o sistema de repartição simples para a seguridade social, sendo esta financiada pela folha de salários, pela contribuição sobre o lucro líquido e o faturamento da empresa, competindo ao Estado complementação em caso de déficit no caixa da seguridade social, com recursos fiscais. Por fim, Behring e Boschetti (2009), ao examinar “o caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados” (art. 194, inciso VII), afirma que este garante que aqueles que financiam e gozam dos direitos (os cidadãos) devem participar das tomadas de decisão, “isto não significa, por outro lado, que os trabalhadores e empregadores devem administrar as instituições responsáveis pela seguridade social. Tal responsabilidade continua sob a égide do Estado” (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.158). Os princípios apresentados deveriam possibilitar a mudança na trajetória de ações fragmentadas, desarticuladas e pulverizadas para as políticas de saúde, previdência e assistência social, “no sentido de articulá-las e formar um sistema de seguridade social amplo, coerente e consistente, com predomínio da lógica social e não da lógica contratual do seguro” (BOSCHETTI, 2009, p. 330). Porém, segundo Boschetti, a onda neoliberal que assolou o país, não deixou isso acontecer, em função de uma série de 60 elementos conjunturais e estruturais, determinando uma política voltada para o crescimento econômico em detrimento do avanço social. 61 2. DEFININDO CONCEITOS: ASSISTENCIALISMO E ASSISTÊNCIA 2.1 Assistencialismo x Assistência O debate entre os conceitos de assistência e assistencialismo perpassam no senso comum uma grande confusão e equívocos. Historicamente, a assistência social tem sido vista como uma ação tradicionalmente paternalista e clientelista do poder público, associada às Primeiras Damas, com um caráter de "benesse", transformando o usuário na condição de "assistido", "favorecido" e nunca como cidadão, usuário de um serviço a que tem direito. É preciso diferenciar os conceitos de assistência e assistencialismo. A assistência “sugere atenção e apoio qualificado a alguém por parte de quem detém as credenciais e as condições (materiais e profissionais) para tanto” (PEREIRA, 1996, p.11) e tem como objetivo “a promoção do homem e integração das diferentes faixas da população no processo de desenvolvimento, por meio de ações técnicas, racionalmente planejadas” (SPOSATI et al, 2010, p.57). O significado do termo assistencialismo, segundo o dicionário: 1 Soc. O conceito e a prática de organizar e prestar assistência a membros ou camadas mais carentes de uma sociedade, ao invés de atuar para a eliminação das causas de sua carência. 2 Pej. Pol. Sistema ou prática populista, que circunstancialmente proporciona certos benefícios aos pobres com vistas ao seu aliciamento eleitoral. (fonte http://www.dicionarioinformal.com.br/assistencialismo/) Sposati (1995) afirma que assistencialismo é um contraponto do direito, é o acesso a um bem através de uma benesse, de doação, isto é, 62 supõe sempre um doador e um receptor, que se transforma em dependente e devedor. Segundo Sposati (1995), a assistência é uma possibilidade de proteção social através de subsídios, apoio, orientação e referência, que pode se dar tanto nas relações sociais informais, quanto através de legislações sociais que garantam direitos exigindo que o Estado financie um conjunto de serviços e benefícios. No campo das relações sociais a assistência deriva da solidariedade social que é distinta da filantropia, já no campo governamental é política pública de proteção que emana do padrão ético e civilizatório que uma sociedade deseja garantir a todos (SPOSATI, 1995). “A assistência é vista até como necessária por alguns, mas vazia de „consequência transformadora‟” (SPOSATI et al, 2010, p.67), pois sua operacionalidade vem com sentido de provisoriedade, guardando um traço conservador, ao tratar a população de modo paternalista e burocrático, reproduzindo a dominação e repassando os serviços como benefícios que o Estado concede. A assistência como papel do governo supõe a transferência ou o acesso a um bem, produzido e/ou financiado pelo Estado, face a algumas précondições (SPOSATI, 1995). O Estado pelo princípio da subsidiariedade só atua quando a família não puder fazer. Neste caso, a assistência é vinculada à demonstração da pobreza, da miséria ou da impossibilidade de comprar mercadorias ou produtos e serviços no mercado, adquirindo o caráter compensatório e correndo o risco de se transformar em ajudas eventuais sem garantir direitos (SPOSATI, 1995, p. 2). Norberto Alayón (1995), ao fazer a sua análise, considera como assistencialismo as atividades sociais que ao longo da história as classes dominantes implementaram para reduzir a miséria que geravam e para perpetuar o sistema de exploração do trabalhador. Nesta perspectiva, o assistencialismo incide em uma atividade que recebeu diferentes influências históricas na lógica do capitalismo, em que “o assistencial torna-se a única 63 face possível do capitalismo a justificar as desigualdades sociais” (SPOSATI et al, 2010, p. 69). De acordo com Sposati (2010), a assistência à população através de benefícios, não deixa de ser uma forma de o Estado mascarar a dívida social que possui com a população. “As ações das políticas sociais são, ao mesmo tempo, reforço da exclusão e esperança enquanto possibilidade de usufruto de bens e serviços” (SPOSATI et al, 2010, p. 72). Na perspectiva desse movimento duplo, acaba se convertendo em possibilidade de mobilização popular pela conquista e apropriação de bens e serviços. Para a população há um sentido ilusório de que os bens e serviços representam uma solução para sua necessidade, porém o assistencialismo se torna presente no movimento inclusão-exclusão enquanto descola o incluído dos seus pares, do seu universal, da sua situação de classe, tratando-o como um particular. Torna-se presente, ainda, quando se atribui como mediador da inclusão o poder burocrático instituído, que concede ou não o serviço (SPOSATI et al, 2010, p. 75). Superar essa visão implica não apenas em uma mera questão técnica, mas é fundamental que se faça mudanças na leitura e na execução das políticas sociais. “A assistência configura, portanto, uma resposta à questão social” (SPOSATI et al, 2010, p. 77). Pois, de acordo com Sposati (2010), universalizar os serviços não é somente inserir toda a população na condição de sujeitada, porque a questão não é assistência para todos, mas ter claros “os direitos que são escamoteados pela face aparente da assistência” (SPOSATI et al, 2010, p. 76). Sposati afirma que, o assistencialismo está presente nas políticas governamentais, nas ações das entidades sociais, e, tem sido “cúmplice da ação de muitos políticos que trocam o voto pelo apadrinhamento até mesmo, de um prato de comida” (1995, p. 3). Contudo, a assistência segundo Sposati (1995), não é necessariamente uma política para o „pobre não morrer de fome‟, ela pode e deve ser uma área de ação que garanta direitos a todos os cidadãos, afinal, “a 64 gente não quer só comida”22. “Temos que ter formas de acesso à riqueza socialmente produzida em nosso país” (SPOSATI, 1995, p.2). 2.2 Conceito de Assistência Social e sua trajetória no Brasil Concordamos com Pereira (1996), ao afirmar que “falar sobre Assistência Social não é fácil”, ao contrário é uma tarefa complexa e polêmica, pois, inúmeros são os fatores que contribuem para essa complexidade, porém a assistência é marcada por uma conceituação inovadora, mas também por heranças históricas que constituem a cultura política brasileira (COUTO, 2010). É preciso analisar essa temática despindo-se dos discursos intrínsecos, assim, faz-se necessário discuti-la ultrapassando as visões reducionistas. Pereira (1996) considera que é possível definir duas modalidades de Assistência Social no modo de produção capitalista - uma stricto sensu e outra, lato sensu. Esta última modalidade, sendo aquela que, por estar respaldada tanto no movimento da sociedade quanto em garantias legais, integra efetivamente o projeto político das demais políticas de proteção social. Além disso, constitui a feição verdadeiramente social das políticas de bem-estar capitalistas (PEREIRA, 1996, p.40). Ela segue em direção ao modelo institucional redistributivo por caracterizar-se, por sua vocação, para as necessidades sociais, como um meio e não um fim em si mesmo, por ser redistributiva, e por depender da participação da sociedade no seu desenvolvimento. Em contraposição, a Assistência Social stricto sensu, segue os princípios do modelo meritocrático-particularista por estar focalizada para o problema individual do pobre; ter um fim em si mesma; fazer de tudo um pouco junto aos excluídos da atenção especializada das demais políticas que são tidas como universais; ser contingencial, distributiva e funcional ao fortalecimento do capitalismo à medida que “não se constitui em arena de conflito entre os interesses contrários, e nem impõe limites ao princípio da 22 Trecho da música “Comida” dos Titãs. 65 rentabilidade econômica”(PEREIRA, 1996, p.42), o que a impede de transformar-se em direito. Pereira (1996) alerta sobre equívocos metodológicos pelos quais o tema vem sendo analisado, a Assistência Social precisa ser discutida de forma dialética, não tratada como fenômeno linear, de forma isolada, isenta de contradições. Dentro dessa perspectiva, a Assistência Social precisa ser discutida sob três aspectos, os quais a diferenciam das práticas prestadas anteriormente, sendo analisada como direito social, como política pública e como componente da Seguridade Social. O fato de ser garantida legalmente pressupõe a inter-relação com as demais políticas públicas, que por sua vez exigem a intervenção ativa do Estado. Esta intervenção lhe proporciona o status de direito, ultrapassando as ações de caráter moral ou práticas de direitos individuais ou pessoais. Essa intervenção não se limita à distribuição de bens materiais, pois abrange outros bens, os quais Pereira (1996) classifica como intangíveis voltados para as necessidades cognitivas e emocionais básicas do ser humano, tais como: a informação, a convivência familiar e comunitária saudáveis, a capacitação profissional e intelectual, a participação e controle do poder político, a prestação de serviços sociais e instituições de projetos e programas de investimentos sociais como forma complementar de combate à pobreza (PEREIRA, 1996, p. 71). Ao considerá-la como Política Pública equivale a transformá-la em um programa ou estratégia de ação, tornando-a um conjunto de mecanismo e procedimentos mediante os quais se elabora a agenda do que virá a ser pauta de prioridades políticas a ser posta em prática de forma planejada e escalonada no tempo. Isso requer: formulação de política; tomada de decisão; determinação de objetivos e critérios; identificação e comparação de alternativas que, por sua vez, vão exigir pesquisas e diagnósticos para subsidiar escolhas e decisões; avaliação, para aferir impactos associados às decisões, e definições precisa de recursos (PEREIRA, 1996, p. 71). 66 Essa particularidade faz com que a Assistência Social não seja guiada por impulsos meritocráticos e sim operacionalizada de acordo com princípios e diretrizes prescritos na LOAS. Ao compor o tripé da Seguridade Social com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a Assistência Social adquiriu um lugar próprio no conjunto de políticas sociais juntamente com a Previdência e Saúde. Assim ela passou a ser definida como: Um tipo particular de política social que se caracteriza por: a)genérica na atenção e específica nos destinatários; b)particularista, porque voltada prioritariamente para o atendimento das necessidades sociais básicas; c)desmercadorizável; d)universalizante, porque, ao incluir segmentos sociais excluídos no circuito de políticas, serviços e direitos, reforça o conteúdo universal de várias políticas sócio-econômicas setoriais (PEREIRA, 1996, p.29). A Assistência Social, pelo menos em tese, deixou de ter um caráter imediatista, ou de ser resultado da “boa vontade” dos governantes, o que se expressou nos artigos 203 e 204 da CF 88: Artigo 203 – A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: 1.a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; 2.o amparo às crianças e adolescentes carentes; 3.a promoção da integração ao mercado de trabalho; 4.a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e promoção de sua integração à vida comunitária; 5.a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou tê-la provido por sua família, conforme dispuser a lei. Artigo 204 – As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no artigo 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: 67 1.descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e a execução dois respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; 2.participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis (BRASIL, 1988). Tal formulação, apesar de ter fácil compreensão no plano formal, torna-se de difícil assimilação e processamento no plano político, seja nas arenas de decisão ou no âmbito da aplicação prática do direito. A Assistência Social, semelhante a qualquer política, constitui uma representação de interesses. É evidente que na sua formulação e no seu desenvolvimento estão denotadas demandas e necessidades distintas, de delicada conciliação (PEREIRA, 1996). Outro desafio consiste em regulamentar os dispositivos previstos e materializá-los por meio de legislação própria, pois não basta assegurá-los somente no plano jurídico formal, afinal, essa relevante conquista enfrenta uma grande ameaça: “virar letra morta”, o que só veio acontecer cinco anos mais tarde, em Dezembro de 1993 com a Lei Orgânica de Assistência Social. A regulamentação da Assistência Social se caracterizou como um processo marcado por um período de idas e vindas de batalhas processuais e vetos presidenciais. As palavras de Pereira expressam muito bem este período, em especial sobre o veto integral do presidente Collor, em 1991, quando o processo de debate e renegociações teve que ser reiniciado. Tudo indica que a assistência social como direito de cidadania no Brasil já nasceu fadada ao insucesso ou, pelo menos destinada a conviver com insólitas incoerências institucionais. (...) A proposta de Lei da Assistência Social foi totalmente vetada por ser considerada inconstitucional e ferir o interesse público em seu intento de transferir um benefício de prestação continuada em dinheiro aos idosos e pessoas portadoras de deficiência carentes (PEREIRA, 1996, p.93). Finalmente, em 1993, a LOAS foi sancionada e os artigos 203 e 204 da Constituição de 1988 foram regulamentados, embora com alguns cortes, pelo então presidente Itamar Franco. Art. 2º - Parágrafo Único. A assistência social realiza-se de forma integrada às políticas setoriais, visando ao enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos sociais, ao provimento de condições para 68 atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais (BRASIL, 1993). Assim, as funções da LOAS consistem em assegurar o que foi declarado na Constituição, ou seja, transformar as disposições declaradas de direitos em disposições asseguradas de direito; definir, detalhar e explicitar a natureza, o significado e o campo próprio da assistência social, a fim de compatibilizá-la com o estatuto da cidadania. Segundo Pereira (1996), a composição da LOAS foi sistematizada tendo como referencial os pressupostos de que a Assistência Social deveria seguir as necessidades sociais e não as demandas do mercado e da lógica do lucro e da acumulação privada, devendo, sim, garantir o acesso e usufruto dos mais pobres aos bens, serviços e direitos que constituem o patrimônio da sociedade, que é constituído por todos, sendo-lhe conferida o caráter de política pública. Pode se dizer que a aprovação da LOAS foi um momento de avanços democráticos, quando foi retomada a construção do modelo constitucional, fundado na existência de um sistema descentralizado composto de conselhos gestores, com participação comunitária e na existência de fundos de assistência em cada esfera governamental, além dos conselhos de defesa dos direitos. Segundo Pereira (1996), a LOAS é um documento juspolítico – jurídico e político, que expressa no seu conteúdo, aparentemente neutro, uma série de contradições que caracterizam a história da assistência social desde a Poor Law, entre os séculos XV e XIX, até os dias atuais, passando pelas políticas sociais do WelfareState, do pós Segunda Guerra Mundial. Nela está inserida a reprodução de antigos embates em torno da questão social e de velhas resistências em transformar a proteção ao pobre em direito de cidadania. Historicamente essa política caracterizou-se por ações centralizadas no governo federal, pulverizadas, descontínuas, fragmentadas e com poucos recursos e pela inexistência da transparência e de prestações de contas do que era feito. Para Sposati et al (2010), a assistência social foi orientada pelo assistencialismo, ou seja, um relacionamento doador-receptor, em que o 69 doador tem controle da distribuição caso a caso, conhece o receptor e pode cortar ou rejeitar a ajuda, não sendo, portanto, uma relação formal ao direito por parte de todos. O reconhecimento legal da assistência social como direito social, mostrou a possibilidade de ruptura com o caráter assistemático e descontínuo que marcava seu passado. Ademais, não existia nenhuma forma de controle, o que levava os políticos a utilizá-la como forma de autopromoção ou cabresto político, gerando, assim, práticas cada vez mais clientelistas e populistas. Nesse sentido, a LOAS, ao regulamentar as disposições constitucionais, assegurou à assistência social o caráter de política social, e aos seus usuários tornarem-se detentores de direitos por meio da prestação de serviços e benefícios sistemáticos e continuados, e de programas e projetos, que devem contar com recursos materiais e financeiros regulares e obrigatórios. Esses direitos são passíveis de serem reclamados por qualquer cidadão, pois a condição do usuário passa de cliente de uma assistência espontânea para sujeito de direito à proteção devida pelo Estado (PEREIRA, 1996). Sendo assim, foi atribuída uma nova compreensão para a Assistência Social. Os avanços desde então foram graduais e significativos. Dentre eles destacam-se: a) A criação do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) – Decreto 1.605, de 25/08/1995, que implantou as regras para financiamento dessa política, definindo, entre outros, as fontes, os mecanismos e os critérios objetivos de transferência dos recursos entre as esferas governamentais. Desde então, todo recurso destinado à área de assistência social deve, necessariamente, passar pelos Fundos Nacional, Estaduais e Municipais, e sua aplicação deve responder às necessidades sociais identificadas e expressas nos Planos Municipais e Estaduais de Assistência Social (art. 30 da LOAS); b) Efetiva implantação e funcionamento dos respectivos Conselhos de Assistência Social, que se constituem em instâncias importantes de 70 participação e de criação de novas relações políticas entre Estado e sociedade civil; c) Aprovação dos Planos de Assistência Social, instrumento técnico que viabiliza o controle das ações governamentais em todas as esferas, as quais estão previstas nas despesas do Fundo, podendo ser acompanhado pela população, representada pelos conselheiros da sociedade civil. O reordenamento político institucional prevê uma forma de gestão compartilhada e descentralizada, de modo que as ações devem responder às necessidades identificadas da população local. As conferências, conselhos e fundos, bem como os planos, constituem os mecanismos que compõem o sistema descentralizado e participativo e, ao fortalecer a esfera pública, objetivam a construção da autonomia e da transparência na elaboração da política e na implementação e avaliação de seus serviços, benefícios, programas e projetos (BEHRING & BOSCHETTI, 2009). Em 2004, já no governo Lula, foi construída em consonância com a LOAS, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Efetivamente, a PNAS é resultado de intenso e amplo debate nacional, é um instrumento decisivo, que vai consolidar a condução do trabalho a ser realizado. Apresenta como diretrizes: a) descentralização políticoadministrativa; b) participação da população, na formulação das políticas e no controle das ações; c) primazia da responsabilidade do Estado na condução da Política de Assistência Social e d) centralidade na família para concepção e implementação dos benefícios, programas e projetos (BRASIL, 2004). A PNAS expressa exatamente a materialidade do conteúdo da Assistência Social como um “pilar do Sistema de Proteção Social Brasileiro no âmbito da Seguridade Social” (BRASIL, 2004, p. 11), que vem com a perspectiva de implantar o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Como consequência da formulação da PNAS/2004 e da decisão da IV Conferência Nacional de Assistência Social, depois de amplo debate, foi reafirmada a construção e normatização do SUAS, aprovadas em julho de 71 2005 pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) por meio da Norma Operacional Básica (NOB) nº 130, de 15 de julho de 2005. O SUAS está voltado à articulação, em todo o território nacional, das responsabilidades, dos vínculos e da hierarquia do sistema de serviços, benefícios e ações de assistência social, de caráter permanente ou eventual, executados e providos por pessoas jurídicas de direito público, sob o critério da universalidade e da ação em rede hierarquizada e em articulação com iniciativas da sociedade civil (BRASIL, 2004; BRASIL, 2005). A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e o SUAS, em especial em seu modo de gestão, tem como desafio dar materialidade à política, conforme os princípios da LOAS. O SUAS refere-se à retomada da centralidade do Estado na garantia da existência de serviços estatais como articuladores do serviço socioassistenciais necessários. É preciso apontar os objetivos da PNAS que reforçam a nova construção da política de assistência social, que deve ser articulada e integrada às demais políticas sociais setoriais, visando enfrentar as desigualdades e garantir os mínimos sociais, na perspectiva da universalização dos direitos sociais (BRASIL, 2004). Para isso, objetiva: 1.prover serviços,programas, projetos e benefícios de proteção social básica e/ou especial para as famílias, indivíduos e grupos que deles necessitarem; 2.contribuir com a inclusão e a equidade dos usuários e grupos específicos ampliando o acesso aos bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em áreas urbana e rural; e 3.assegurar que as ações no âmbito da assistência social tenham centralidade na família e garantam a convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2004, p. 33). É possível afirmar que a PNAS e o SUAS alteram as referências conceituais, a estrutura organizativa e a lógica de gestão e controle das ações na área e prever a existência de: 1. Serviços: atividades continuadas, definidas no art. 23 da LOAS, que visam à melhoria da vida da população e cujas ações estejam voltadas para as necessidades básicas da população, observando os objetivos, princípios e diretrizes estabelecidas nessa lei; 72 2. Programas: compreendem ações integradas e complementares, tratadas no art. 24 da LOAS, com objetivos, tempo e área de abrangência, definidos para qualificar, incentivar, potencializar e melhora os benefícios e os serviços assistenciais, não se caracterizando por ações continuadas; 3. Projetos: definidos nos arts. 25 e 26 da LOAS, caracterizam-se como investimentos econômicosociais nos grupos populacionais em situação de pobreza buscando subsidiar técnica e financeiramente iniciativas que lhes garantam meios e capacidade produtiva e de gestão para a melhoria das condições gerais de subsistência, elevação do padrão de qualidade de vida, preservação do meio ambiente e organização social, articuladamente com as demais políticas públicas. 4. Benefícios: benefício de prestação continuada (BPC) – previsto na Loas e no Estatuto do Idoso, consiste no repasse de um salário mínimo ao idoso (a partir de 65 anos) e à pessoa com deficiência que comprovem não ter meios para suprir sua subsistência ou tê-la suprida por sua família; benefícios eventuais – são previstos no art. 22 da LOAS e visam ao pagamento de auxílio por natalidade ou morte, ou para atender às necessidades advindas de situações de vulnerabilidade temporária, com prioridade para a criança, a família, o idoso, a pessoa com deficiência, a gestante, a nutriz e nos casos de calamidade pública; transferência de renda – programas que visam ao repasse direto de recursos dos fundos de assistência social aos beneficiários, como forma de acesso à renda, visando aos combate à fome, à pobreza e a outras formas de privação de direitos que levem à situação de vulnerabilidade social, criando possibilidades para a emancipação, o exercício da autonomia das famílias e dos indivíduos atendidos e o desenvolvimento local (BRASIL, 2004). O SUAS parte do pressuposto de que o acesso à política de assistência social se dará na condição de sujeito de direitos, os quais se constroem e garantem-se na coletividade, mas tem como centralidade a família, tentando romper com a lógica individualista de prestação de serviços assistenciais. 73 A organização dos serviços dentro do SUAS aponta para a necessidade de garantir a qualidade de acesso na condição de direito e de enfrentar o grande desafio de romper com uma cultura instalada e enraizada na sociedade brasileira, especialmente no que se refere ao tratamento da pobreza baseado em um viés conservador que não permite a instalação de uma cultura de direitos sociais (COUTO, 2010). Para romper com a lógica voluntarista e de senso comum que tem alocado os recursos humanos nos serviços assistenciais, faz-se necessário a utilização de ferramentas gerenciais e de profissionalização, exigindo um novo perfil de profissional, sendo sua qualificação permanente – vital instrumento: a NOB/RH. Em 2011, sob a lei 12.435, é instituído oficialmente o Sistema Único de Assistência Social – SUAS, como sistema brasileiro para a área. Na mesma lei, a Assistência Social altera seus objetivos incluindo a Vigilância Socioassistencial23, a Defesa dos Direitos24, além de prever a intersetorialidade no enfrentamento da pobreza, para a garantia de mínimos sociais, o atendimento em contingências e a promoção da universalidade dos direitos. Mesmo após o seu reconhecimento legal, a Assistência Social continua a ser acometida por muitas resistências na sua implementação. Além do mais, trata-se de uma política em constante conflito com as formas de organização do trabalho. É imprescindível compreender que muitas de suas características são o resultado de uma conjuntura política, social e econômica mundial, permeada pela ideologia neoliberal, que se tem colocado como modelo hegemônico vigente. Para Mota (1995), as mudanças das reformas no sistema de Seguridade Social brasileiro se desenvolvem sob o comando da classe burguesa, que além da força e coerção, dotam de novos conteúdos as concepções políticas e históricas dos trabalhadores brasileiros, como a 23 A vigilância socioassistencial, que visa a analisar territorialmente a capacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos. 24 A defesa de direitos, que visa a garantir o pleno acesso aos direitos no conjunto das provisões socioassistenciais. 74 instituição da figura do cidadão consumidor, em detrimento do cidadão trabalhador; salienta, ainda, que nesse processo, com todas as suas contradições, emerge um modo de enfrentamento das desigualdades sociais baseado na “cultura da solidariedade social”, que se representa em “políticas de combate à pobreza”, “comunidades solidárias” ou expansão dos “programas de assistência social”. É na estreita fronteira entre direitos e carências – fio da navalha, figura adotada por Telles (1998), que os programas de transferência de renda transitam. 75 3. PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA: NOVA CONFIGURAÇÃO DE PROTEÇÃO SOCIAL? 3.1. Fundamentos Teóricos e Concepções dos Programas de Transferência de Renda não Contributivos – Um debate internacional O conceito de Programa de Transferência de Renda será entendido como uma transferência monetária a indivíduos ou a famílias, mas que também associam a essa transferência monetária, componente compensatório, outras medidas situadas principalmente no campo das políticas de educação, saúde e trabalho (SILVA et al, 2011, p.22) O debate internacional sobre o Programa de Transferência de Renda (PTR) vem se intensificando nas duas últimas décadas, em consequência das grandes transformações na economia, com repercussões diretas no mundo do trabalho, tendo apresentado um grande número de desemprego e dos chamados trabalhos precarizados. As transformações econômicas e do mundo do trabalho refletiram diretamente no processo de mudanças sociais, especialmente na sociabilidade da sociedade salarial, identificando a necessidade de um redimensionamento do WelfareState (Castel, 2010), assunto já discutido no primeiro capítulo. Segundo Silva (1997), o WelfareState – sustentado pelo pleno emprego e o crescimento econômico – vem sendo questionado por não conseguir dar respostas satisfatórias no âmbito da economia globalizada. É nesse contexto que o debate internacional sobre o PTR ganha expressão. Em vários países ampliou-se a discussão sobre esse programa, como estratégia das políticas sociais em face às novas demandas postas ao WelfareState no contexto de crise da sociedade salarial, ou seja: buscam-se alternativas para fazer face a incapacidade e inadequabilidade do WelfareState em responder os desafios de uma economia e uma sociedade dual, cuja separação básica não é mais só entre capitalistas e trabalhadores, mas também entre os que detém ou não o trabalho (SILVA, 1997, p.28). 76 A crescente propagação dos PTR expressa uma mudança no desenho dos programas e benefícios sociais (SILVA, 1997). É importante ressaltar que a ideia de instituírem benefícios monetários que atendam às principais necessidades da população mais pobre das sociedades capitalistas não é propriamente uma novidade. Essa ideia vem sendo instalada ao longo da história, com iniciativas vinculadas aos fenômenos do pauperismo e da pobreza na sociedade industrial inglesa, com lei instituindo o que hoje chamamos de renda mínima 25, mostrando que as desigualdades sociais tem uma longa trajetória e possível de ser encontrada em diferentes sociedades no decorrer da história do capitalismo (PEREIRA, 2009; BEHRING & BOSCHETTI, 2009). Suplicy (2002) afirma que os fundamentos básicos de sustentação do direito a uma renda básica independente do trabalho tem raízes no campo religioso: no Alcorão, no Budismo e no Velho Testamento da Bíblia Sagrada; em filósofos clássicos, como Confúcio e Aristóteles; em pensadores revolucionários como Marx – “A cada um de acordo com sua capacidade, a cada um de acordo com suas necessidades” (apud SUPLICY, 2002, p.33). Identifica Thomas More, em sua obra “Utopia” (1516), a importância desses programas por assegurar a todos o mínimo de sobrevivência digna. Economistas clássicos, Adam Smith, Thomas Malthus, David Ricardo e Karl Polanyi também são defensores de programas de transferência de renda, porém, com concepções diferentes. O debate internacional sobre renda mínima foi retomado em diversos países europeus, principalmente na década de 1980, como consequência do aumento do desemprego e da crise do WelfareState, originando concepções e propostas distintas. No que tange às diferentes modalidades dos programas de transferência de renda, encontram-se questões relacionadas com o conteúdo social desses programas previstos no seu conceito original: “constituir uma 25 Renda mínima é entendida como transferência monetária a indivíduos ou a famílias, prestada condicional ou incondicionalmente; complementando ou substituindo outros programas sociais, objetivando garantir um patamar mínimo de satisfação de necessidades básicas (SILVA, 1997, p.16). 77 política distributiva que concretiza, perante o cidadão, um direito à posse incondicional de um montante de recursos monetários para a sua sobrevivência, independentemente de seu vínculo com o trabalho” (PEREIRA, 2008, p.114). Lavinas e Varsano (1998) apresentam três posições que estruturam a polêmica. A primeira defende a incondicionalidade de uma renda de subsistência, também denominada de benefício universal ou renda de cidadania, e sustenta o estabelecimento de um valor mínimo de renda ao alcance de todos os indivíduos, sem que lhe seja exigida nenhuma contrapartida. Essa posição possui duas vertentes: 1.baseado na garantia de um imposto de renda negativo (IRN)26 a todos aqueles que não dispõem do mínimo para sua sobrevivência e 2.denominado Renda Mínima Universal (RMU), que tem como objetivo a transferência incondicional de uma renda básica de mesmo valor a todos os indivíduos. Uma segunda posição refuta essa visão que admite a vigência de uma sociedade que não teria o direito ao trabalho para todos, ou seja, uma sociedade de desiguais. O argumento principal dessa linha de raciocínio reside na ameaça de que a renda transferida, por ser incondicional, venha a se tornar um fator de degradação do trabalho, que pode provocar redução dos salários e dos direitos que lhe são constitutivos, o que aumentaria, portanto, o assistencialismo. Segundo Castel (2010), tal opção pode conduzir a um paradoxo, pois o trabalhador desempregado que não for também beneficiário de renda mínima tende a ser preterido no mercado de trabalho por outro que reúna essas características e aceite, assim, um nível de remuneração menor. Outra consequência indireta seria a supressão de um salário mínimo estabelecido por lei e, hoje, referencial na definição das condições mínimas de vida de um trabalhador. Porém, a crítica mais contundente é feita por Rosanvallon (1998), para quem a renda incondicional termina por referendar a exclusão. O autor afirma que “a inserção pelo trabalho deve continuar a ser pedra angular da luta contra a exclusão”, pois o trabalho tem a função de reprodução material e também social e, por esse motivo, é necessário se 26 “Consiste em atribuir às famílias, abaixo da linha da pobreza, uma renda variável complementar, conforme a renda proveniente do trabalho” (SILVA, 1997, p.45) 78 empenhar muito mais na “reinvenção da ideia do direito do trabalho do que na formação de um direito a uma certa renda” (ROSANVALLON, 1998, p.104). Uma terceira abordagem insiste nas limitações da transferência de renda como política de combate à pobreza e das desigualdades. Defende a ampliação da proteção social indispensável em bases mais solidárias e universais, não subordinadas ao exercício de uma atividade formal que implique, automaticamente, adesão a um sistema de contribuição. O argumento é que a universalização do direito à saúde, habitação, aposentadoria e outros direitos sociais devem prevalecer, o que propiciaria uma reforma substantiva de previdência, de modo a implantar um sistema não excludente. Silva (1997), baseando-se nas classificações gerais realizadas pelos autores Milano (1998), Goujon (1994) e Euzéby (1991), que apresentam tendências e orientações das diversas modalidades dos PTR, identifica três correntes de fundamentação teórica. A primeira corrente vem de uma perspectiva liberal/neoliberal que considera os Programas de Transferência de Renda como mecanismo compensatório e residual, eficiente no combate à pobreza e ao desemprego e enquanto uma política substitutiva dos programas e serviços sociais e como mecanismo simplificador dos Sistemas de Proteção Social (SILVA et al, 2011, p.42). Assim, a esquerda sustenta a necessidade de introduzir a compensação monetária como uma política que complementa as históricas conquistas do mundo do trabalho, que aumentaria os direitos de cidadania. Defende que certos programas poderão ser substituídos, mas a estrutura do WelfareState, e o marco legal-institucional de proteção ao trabalho devem ser mantidos e complementados por algum tipo de programa de transferência de renda (SILVA, 1997). A segunda corrente é de uma perspectiva de natureza progressista/distributiva que considera os Programas de Transferência de Renda enquanto mecanismos de redistribuição da riqueza socialmente produzida e como uma política de 79 complementação aos serviços sociais básicos já existentes e voltada para a inclusão social (SILVA et al, 2011, p.42). Para Silva (1997), a corrente distributivista propõe a renda mínima como um mecanismo que possibilita a racionalização na forma de distribuição de renda, e visa combater a pobreza relativa, com vistas à constituição de uma sociedade livre, na qual também a distribuição do trabalho seja igual para todos. A terceira corrente tem uma perspectiva que “percebe os Programas de Transferência de Renda como mecanismo provisório para permitir a inserção social e profissional dos cidadãos, numa conjuntura de pobreza e de desemprego” (SILVA et al, 2011, 42). Os PTR que conjugam a renda mínima à ideia de inserção ou reinserção profissional e social referem-se a uma tentativa de instituir uma nova relação entre emprego e WelfareState, de forma que todo o cidadão que enfrente dificuldades no mercado de trabalho tem direito a uma alocação monetária, permitindo-lhe manter sua dignidade e independência, no propósito de superar a passividade que tem marcado os sistemas de proteção social (ROSANVALLON, 1998). É importante notar que os PTR podem ter conformações que perpassam as características das diversas formas “puras” de se alocar renda mínima. Verifica-se que as modalidades de PTR adotadas nos países capitalistas desenvolvidos são as mais variadas de um país para o outro,especialmente sob a perspectiva das restrições à população alvo, mediante as condições de acesso (idade, tempo de residência, contrapartidas) ou referente ao montante do benefício e sua fórmula de cálculo; do tipo de cobertura (individual ou familiar); do prazo de recebimento do benefício (ilimitado na maioria dos casos, ainda que não poderia ultrapassar seis meses); da forma de financiamento (integralmente coberto pelo Estado ou parcial/gradualmente financiados pelos municípios ou outras esferas subnacionais); ou ainda, de seu perfil exclusivo ou complementar a outras prestações de serviços sociais (LAVINAS & VARSANO, 1998, p.8). Desse modo, independente das várias formações que os PTR possam apresentar, sua implementação não deve vir desvinculada de medidas de caráter estrutural, pois, se assim o for, expressam uma justiça residual e periférica, que se guia por uma visão harmoniosa da sociedade, encobrindo as 80 lutas sociais contra as desigualdades sociais e adiando as possibilidades de mudanças intrínsecas e efetivas. 3.2. A trajetória dos Programas de Transferência de Renda não Contributivos no Brasil O debate sobre os PTR no Brasil se estabelece no contexto de hegemonia do projeto neoliberal, com o reordenamento do frágil Sistema de Proteção Social, quando a Constituição Federal de 1988 parecia estabelecer a universalização dos direitos sociais. Esse período foi demarcado pela restrição aos programas sociais em âmbito nacional, pelo debate sobre a descentralização dos programas sociais, observando-se a demanda crescente de políticas de enfrentamento da pobreza, intensificada com a crise econômica da década de 1980 e com as medidas e ajuste da economia nacional às exigências do capital internacional, nos anos 1990. É diante de uma conjuntura “de crescimento do desemprego, da insegurança nas grandes cidades, do reconhecimento da baixa qualificação da nossa mão de obra para atender as demandas do modelo de produção e num quadro de índice de pobreza em que as crianças e os jovens são os mais atingidos” (SILVA et al., 2011, p.44-45), que vem se sustentando o debate e a prática dos PTR no Brasil. Segundo Suplicy (2002), foi o professor Antônio Maria da Silveira o autor da primeira proposta de garantia de renda mínima no Brasil, em seu artigo “Redistribuição de Renda”, em 1975. Suplicy apresenta, ainda, a proposição de Edmar Lisboa Bacha e Roberto Mangabeira Unger, de 1978, que segue a mesma linha do autor anterior, afirmando: que a reforma agrária e uma renda mínima por meio de um imposto de renda negativo deveriam ser instituídos como instrumentos fundamentais de democratização da sociedade brasileira. Só poderia haver democracia política se houvesse um limite aos extremos de desigualdade e erradicação da miséria (SUPLICY, 2002, p. 120). Apesar das propostas dos autores acima citados, a temática referente aos PTR ficou esquecida no âmbito do debate brasileiro sobre a questão social. Somente a partir de 1991 passou a fazer parte da agenda 81 pública, tornando-se um elemento importante do debate nacional, com a aprovação, no Senado Federal, do Projeto de Lei 80/1991, de autoria do senador Eduardo Suplicy, que instituía um Programa de Garantia de Renda Mínima Brasileiro de abrangência nacional. Mesmo contando com a aprovação no Senado em 1991, apenas em 2004, ou seja, treze anos depois, o Projeto de Lei 80/1991 foi convertido na Lei 10.835, de 8 de janeiro de 2004, de caráter universal: Art. 1º É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário. De acordo com Lavinas (2005), tal determinação é “lei e deve ser cumprida. Deveria ter entrado em vigor em 1º de janeiro de 2005”, mas continua “dormindo em berço esplêndido”, ou seja, é lei sem efeito. A partir de 1992, movida por um novo cenário político, surge a Campanha da Cidadania de Ação Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, com caráter de sensibilização pública para a emergência do enfrentamento da questão social e para a exigência de formulação de políticas de assistência social, orientadas pela noção de cidadania e em conformidade com o paradigma de proteção social pela Loas (SILVA et al, 2011). Em 1995, o governo Fernando Henrique Cardoso apresentou ser prioridade em seu mandato a estabilização econômica, querendo inserir o país na economia globalizada. Com essa intenção, adotou uma política neoliberal que marcou novos rumos para o trato da questão social, especificamente a pobreza. O Plano de Combate à Miséria foi substituído pelo Programa Comunidade Solidária (PCS), cuja característica principal era a focalização conservadora, norteada pela concentração do enfrentamento da pobreza somente nos municípios com os maiores índices de miséria, que coincide com a implantação de algumas iniciativas locais de PTR, destacando-se as do 82 governo do Distrito Federal e das prefeituras municipais de Campinas 27 e Ribeirão Preto28 (POTYARA, 2008; SILVA et al, 2011). O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) foi assinalado pela proliferação de programas de transferência de renda, de iniciativa do governo federal com implementação descentralizada nos municípios. Destaca-se o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), criado em 1996. A crescente visibilidade das iniciativas localizadas nos programas de transferência de renda compeliu a apresentação de diversos projetos de lei, com o objetivo de estender essas experiências a todo território nacional. Em 2001, com essas iniciativas criou-se o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à educação, denominado de Bolsa Escola, além dos Programas de Auxílio-Gás e Bolsa-Alimentação, que segundo Lavinas (2004b), esses programas, com exceção do BPC e da RMV, de caráter permanente, consistiam em grande parte, auxílios monetários, na forma de “bolsas” (safety nets) dirigidas a clientelas específicas, com peso de renda compensatória tendo como objetivo assegurar uma rede de proteção vital mínima, no plano da subsistência, e sendo garantidas por meio de comprovação de insuficiência de renda aguda. No discurso federal, esses PTR “passam a ser considerados eixo central de uma „grande rede nacional de proteção social‟ implantada no país, sendo estes implementados de modo descentralizado em quase todos os 5.561 municípios brasileiros” (SILVA et al, 2001, p.100-101) A partir de 2003, iniciou-se o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, marcado por inovações institucionais e promessas de mudanças, objetivando o fortalecimento da área assistencial, com a criação do Ministério da Assistência Social29 e do Gabinete de Segurança Alimentar da Presidência da República. Mesmo antes de empossado, Lula já tinha definido o combate à 27 Primeira cidade que implantou um programa de renda mínima, denominado Programa de Garantia de Renda Mínima – PGRFM, implementado em março de 1995. (SILVA, 2011) 28 Município brasileiro onde também houve implementação do PGRFM, em 1995. 29 Ministério da Assistência Social (MAS) foi criado em janeiro de 2003, pela Medida Provisória 103, de 1º de janeiro de 2003, homologado pela Lei 10.683, de 28 de maio de 2003. 83 fome como carro chefe de sua política social, lançando na mídia o Programa Fome Zero30. Pode-se considerar a iniciativa mais importante da área social do governo federal a integração da política de combate à fome com políticas de transferência de renda e de assistência social (SILVA et al, 2011). O primeiro procedimento adotado pelo presidente Lula, foi a criação do Programa Bolsa Família (PBF). O segundo procedimento adotado foi a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS, mediante a Lei 10.868, de 13 de maio de 2004, assumindo um conjunto amplo e estratégico de políticas e programas, o que representou um avanço significativo, tendo em vista a organização de um sistema estruturado e coerente de proteção social para as populações em situação de risco ou de vulnerabilidade social (SILVA et al, 2011). Percebe-se aqui alguns avanços e limites que os PTR no Brasil vão ganhando dentro do Sistema de Proteção Social brasileiro, sobretudo na Política de Assistência Social. As reflexões desenvolvidas, a seguir, colocam pontos caracterizadores e problematizadores fundamentais para uma análise. 3.3. Caracterizando os Programas de Transferência de Renda não Contributivos no Brasil No campo social, o Governo Federal vem propondo, mais precisamente desde 2001, o desenvolvimento do que se chamou de “Rede de Proteção Social”31. Consistia num esforço articulador de programas, notadamente compensatórios, tendo como centro principal os programas de transferência de renda, entre eles a RMV, o BPC, o Peti, o Bolsa Escola, o Bolsa-Alimentação, o Auxílio-Gás, acrescidos, no governo Lula, do programa do Cartão Alimentação (SILVA, 2011). Concebido para formulação, acompanhamento e avaliação dos programas sociais direcionados à população em situação de extrema pobreza, 30 Esse programa pressupunha, entre outros aspectos, a transferência de renda para famílias em situação de extrema pobreza, a qual poderia ser utilizada somente na compra de produtos alimentícios estabelecidos pelo governo. 31 A Rede de Proteção Social é entendida por Silva et al (2011) como o conjunto de programas sociais do Governo Federal, com prevalência dos Programas de Transferência de Renda. 84 foi criado, pelo Decreto 3.877, de 24 de julho de 2001, o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. Começou a ser implantado em setembro de 2001 e foi o instrumento utilizado para cadastrar e identificar os prováveis beneficiários de todos os programas da Rede de Proteção Social, ou seja, as “famílias em situação de extrema pobreza de todos os municípios brasileiros, objetivando a focalização das políticas públicas nessa população” (SILVA et al, 2011, p. 105). Segundo o MDS, no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), devem ser cadastradas na base de dados, as famílias com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa. Famílias com renda superior poderão ser incluídas no Cadastro, desde que sua inclusão esteja vinculada à seleção ou ao acompanhamento de programas sociais implementados pela União, estados ou municípios. A base de informações do CadÚnico pode ser usada pelos governos municipais, estaduais e federal para obter o diagnóstico socioeconômico das famílias cadastradas. Dessa forma, o CadÚnico possibilita a análise das principais necessidades das famílias cadastradas e auxilia o poder público na formulação e gestão de políticas voltadas a esse segmento da população (BRASIL, 2010). Uma análise sobre os PTR implementados pelo governo federal remete ao reflexo das experiências exitosas municipais de renda mínima (Bolsa Escola), implantados a partir de 1995 e, consequentemente, ao contexto de ampliação do debate nacional, observando-se que as primeiras iniciativas federais concretas de uma política de implantação desses programas tiveram seu início em 1996. O governo Lula avaliou que, apesar desses programas terem significado um avanço nas políticas sociais brasileiras, eles ignoraram a existência de programas semelhantes conduzidos por estados e/ou municípios, não conseguindo superar problemas tradicionais, como a pulverização de recursos, o elevado custo administrativo, a sobreposição de público-alvo, a ausência de coordenação e de perspectiva intersetorial (COHN e FONSECA, 2004). 85 É importante registrar que o entendimento acerca dos PTR é que estes são destinados a efetuar uma transferência de renda monetária direta do governo a indivíduos ou famílias que carecem de um mínimo vital pra satisfazer suas necessidades básicas (LAVINAS, 1998). Ou, ainda: são aqueles destinados a efetuar uma transferência monetária, independente de prévia contribuição, a famílias pobres, assim consideradas a partir de um determinado corte de renda per capita familiar, predominantemente no caso dos programas federais, de meio salário mínimo (SILVA et al, 2011, p.135). A partir da articulação interministerial, coordenada pela Casa Civil da Presidência da República, formulou-se novo programa, denominado Bolsa Família. Criado pela Lei 10.836/2004, o Programa Bolsa Família - PBF teve por finalidade a unificação dos procedimentos de gestão e execução de quatro programas federais: Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Educação – Bolsa Escola (Lei 10.219/2001); Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Saúde – Bolsa Alimentação (Medida Provisória 2.206/2001); Programa Auxílio-Gás (Decreto 4.102/2002) e Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA (Lei 10.689/2003). Além disso, o Programa configura-se como gestor do Cadastro Único para os programas do governo federal, com o intuito de cadastrar, com formulário próprio e único, as famílias em situação de pobreza e extrema pobreza em todos os municípios brasileiros. Trata-se do suporte administrativo para a realização da unificação das políticas de transferência de renda (SILVA et al, 2004). Nesse sentido, o PBF passou a centralizar os recursos destinados aos demais programas, trabalhando contra a fragmentação da ação social e da ampliação de sua dotação orçamentária. Foi realizado uma análise de leis, decretos, medidas provisórias, portarias ministeriais, manuais e relatórios, para uma melhor compreensão dos elementos que caracterizam os programas de transferência de renda de âmbito federal, com o propósito de compreender a situação anterior e posterior à unificação. 3.3.1 Programa Bolsa Escola O Programa Bolsa Escola, instituído pela Lei 10.219, de 11 de abril de 2001, e regulamentado pelos Decretos 3.823, de 28 de maio do mesmo 86 ano, e 4.313, de 24 de julho de 2002, substituiu o Programa de Garantia de Renda Mínima da Lei 9.533/1997. O Ministério da Educação (MEC) era responsável pela gestão do Bolsa Escola, que tinha como fonte de financiamento o Fundo de Combate à Pobreza. O Programa beneficiava as famílias residentes no município, com renda per capita inferior ao valor fixado nacionalmente, definido em meio salário mínimo, e que tivesse sob sua responsabilidade criança de 5 a 15 anos de idade (antes era de 7 a 14 anos), matriculadas em estabelecimento de ensino fundamental regular, com frequência escolar igual ou superior a 85%. Cada família elegível tinha o direito de receber R$15,00 por criança, até o máximo de três filhos, totalizando R$45,00 (art. 2º, II, da Lei 10.219/2001). O Bolsa Escola foi um dos programas com maior número de famílias atendidas, bem como de municípios abrangidos. Poderia até ser considerado universal. 3.3.2 Bolsa Alimentação Em 2001, tem-se também a criação do Programa Bolsa Alimentação, regulamentado pelo Decreto 3.934, de 20 de setembro de 2001, destinado à promoção das condições de saúde e nutrição de gestantes, nutrizes e crianças de 6 meses a 6 anos e 11 meses de idade, mediante a complementação da renda familiar para melhoria da alimentação. Podiam ser beneficiários do programa, crianças, filhos de mães soropositivas para o HIV/AIDS, desde o seu nascimento e crianças na faixa etária de 6 meses a 6 anos, desde que pertencentes a famílias com renda per capita mensal inferior a meio salário mínimo. Constituía de uma bolsa no valor de R$15,00 mensais por beneficiário, até o limite de três beneficiários por família, ou seja, até R$45,00 por família (arts. 1º e 2º do Decreto 3.934/2001). A permanência do beneficiário no Programa Bolsa Alimentação era de seis meses, que podia ser renovada, desde que a família cumprisse a agenda de compromissos, que compreendia a participação da família beneficiada em ações básicas de saúde, com enfoques preventivos, tais como pré-natal, vacinação, acompanhamento do crescimento e desenvolvimento, 87 incentivo ao aleitamento materno e atividades educativas de saúde (art. 2º do Decreto 3.934/2001). Competia ao Ministério da Saúde (MS) a coordenação, o acompanhamento, a avaliação e o controle das atividades necessárias à execução do programa, assim como a fixação do montante de bolsas disponíveis para cada município com base em dados provenientes de estudos socioeconômicos, epidemiológicos e nutricionais (arts. 3º e 4º do Decreto 3.934/2001). 3.3.3 Auxílio-Gás O último programa de transferência criado no governo Fernando Henrique Cardoso, foi o Auxílio-Gás, instituído em 13 de maio de 2002, por meio da Lei 10.453, e regulamentado pelo Decreto 4.102, de 24 de janeiro de 2002. De responsabilidade do Ministério de Minas e Energia (MME), o Programa era destinado a subsidiar o preço do gás liquefeito de petróleo às famílias de baixa renda, isto é, famílias cuja renda per capita era inferior a meio salário mínimo mensal – mas não existia nenhuma restrição quanto à composição da família, de forma que o número das famílias potencialmente beneficiárias desse programa era bem superior ao número das famílias do Bolsa Escola e do Bolsa Alimentação – inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. Uma das críticas a esse Programa é que o valor não seria utilizado pelas famílias no objetivo proposto, ou seja, na compra do botijão de gás, seja por conta do valor reduzido, se comparado ao preço do botijão, seja por buscarem alternativas como cozinhar com lenha, para utilizarem o dinheiro com necessidades mais imprescindíveis, como a alimentação (IPEA, 2002). 3.3.4 Cartão Alimentação No governo de Lula, foi instituído o Programa Nacional de Acesso à Alimentação (PNAA) ou Cartão Alimentação, mediante a publicação da Medida Provisória 108, de 27 de fevereiro de 2003, posteriormente, convertida na Lei 10.689, de 13 de junho de 2003, estabelecidas no campo das Políticas 88 Especificas que integram o Programa Fome Zero, o qual, na sua formação, abrangia varias ações de combate à fome e de promoção a segurança alimentar, classificadas em: específicas que garantiam acesso direto à alimentação, como Programas de Transferência de Renda, Programa Nacional de Banco de Alimentos; Programas de Restaurantes Populares etc.; estruturais voltadas a combater as causas da fome, como Reforma Agrária, Programa de Geração de Emprego e Renda, Fortalecimento da Agricultura Familiar, Previdência Universal, Qualidade da Educação etc. e locais que visam garantir o abastecimento alimentar nos estados e nos municípios, através da construção participativa de uma Política de Segurança Alimentar Nutricional, cuja expressão máxima é o Conselho Nacional de Segurança Alimentar – Nutricional Consea; restaurantes populares, bancos de alimentos, modernização dos equipamentos de abastecimento, parceria com varejistas, apoio à agricultura familiar e à produção para o autoconsumo (YASBEK, 2004). A proposta era articular duas frentes de atuação, uma de caráter emergencial, para superar a fome e a outra para proporcionar meios para as famílias, pelo trabalho, superarem a condição de pobreza. De acordo com a legislação, o PNAA visava garantir recursos financeiros ou o acesso a alimentos em espécie a pessoas em situação de insegurança alimentar, que se traduz como “a falta de acesso à alimentação digna, em quantidade, qualidade e regularidade suficientes para a nutrição e a manutenção da saúde da pessoa humana” (1º do art. 1º da Lei 10.689/2003). Destaca-se que, nesse Programa, incluíam-se, no cálculo para a sua concessão, os rendimentos oriundos de outros PTR governamentais, o que não ocorria nos programas anteriormente descritos. A realização de tal procedimento tornava-o com maior focalização na renda per capita familiar. 3.3.5 A unificação: o Programa Bolsa Família O Programa Bolsa Família (PBF) foi criado sob a justificativa de combater a miséria e a exclusão social, além de promover a emancipação das famílias mais pobres. Foi lançado como um programa de combate à fome e à pobreza em 20 de outubro de 2003, mediante publicação da Medida Provisória 89 132, convertida em Lei 10.836, de 9 de janeiro de 2004, e regulamentada pelo Decreto 5.209, de 17 de setembro de 2004. Trata-se da unificação de quatro PTR – Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxilio-Gás e o Cartão Alimentação – de grande porte e abrangência nacional, em um único Programa de Transferência de Renda com Condicionalidades. O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o País. O Bolsa Família integra o Plano Brasil Sem Miséria (BSM), que tem como foco de atuação os 16 milhões de brasileiros com renda familiar per capita inferior a R$ 70 mensais, e está baseado na garantia de renda, inclusão produtiva e no acesso aos serviços públicos. O PBF integra a Política de Renda Mínima do Governo Federal, sendo, aqui definido no âmbito da política de assistência social, especialmente pelo seu caráter não contributivo e por se destinar ao público-alvo dessa política. Segundo corrobora a Norma Operacional Básica (NOB/2005), que disciplina a gestão da PNAS e normatiza o SUAS, a transferência de renda, no Brasil, passa a integrar a rede socioassistencial a partir do desenvolvimento de programas que objetivam o repasse de pecúlio aos beneficiários. Conforme disposto na NOB, a proposição dos programas de transferência de renda é garantir acesso à renda objetivando o combate à fome, à pobreza e outras formas de privações de direitos, que levem à situação de vulnerabilidade social, criando possibilidades para a emancipação, o exercício da autonomia das famílias e indivíduos atendidos e o desenvolvimento local (MDS/SNAS/NOB/SUAS, 2005, p.21). A gestão do PBF ocorre de maneira compartilhada, implicando princípios da execução intersetorial e descentralizada, mediante a coordenação de esforços dos três níveis de governo, com atribuições articuladas e complementares estabelecidas na documentação de orientação do Programa, observada a intersetorialidade, a participação comunitária e o controle social (art. 8º da Lei 10.836/2003). Os recursos são repassados diretamente aos beneficiários por meio de cartão magnético bancário, fornecido pela Caixa Econômica Federal. Esta 90 tem a função de agente operador do Programa, mediante remuneração e condições a serem pactuadas com o governo federal, obedecidas as formalidades legais. Conforme exposto no site do MDS, o PBF é considerado pelos seus idealizadores uma inovação e uma evolução em relação aos PTR existentes no Brasil, por se propor a: 1. Proteger o grupo familiar ao invés do individuo; 2. Aumentar o valor monetário do benefício em relação aos programas remanescentes; 3. Aumentar significativamente o montante destinado a programas dessa natureza, não sendo possível a redução do valor transferido em relação ao benefício dos outros programas; 4. Exigir maior compromisso das famílias atendidas e 5. Permitir uma gestão que reduz substancialmente os sistemas administrativos e de controle dos atuais programas, possibilitando uma fiscalização mais eficiente, contribuindo para o combate a eventuais fraudes. O principal objetivo é contribuir para a superação da pobreza e especialmente da extrema pobreza, baseando-se na articulação de três eixos: 1. Diminuição imediata da pobreza, por meio da transferência direta de renda; 2. Promoção do acesso das famílias aos serviços básicos nas áreas de saúde, educação e assistência social, por meio das condicionalidades, contribuindo para as famílias romperem o ciclo da pobreza entre gerações; 3. Inserção das famílias beneficiadas em ações e programas complementares dos governos, nas suas três esferas, e da sociedade para a superação da situação de vulnerabilidade (Cartilha do Bolsa Família, 2011). O primeiro eixo se propõe aliviar a pobreza e leva em consideração a renda per capita familiar, a quantidade e a idade dos filhos. Segundo Silva et al (2011), houve uma rigorosa redução do valor da renda per capita adotado como parâmetro para a definição de uma linha de pobreza como critério de acesso das famílias ao Programa Bolsa Família. Tal fato “pode significar 91 desvalorização crescente adotado para classificação da indigência e da pobreza” (SILVA et al, 2011, p.144). A redução do valor da renda per capita teve como objetivo aumentar o número das famílias beneficiadas e atender ao “universo” das famílias miseráveis. De qualquer forma, o que se observa comumente em todos os programas de transferência de renda é o estabelecimento de uma linha de pobreza baseada no princípio de menos elegibilidade, reduzindo a pobreza à miséria ou à indigência, ou seja, à pobreza absoluta (PEREIRA, 1996). É importante destacar que o Bolsa Família imputa o cumprimento de condicionalidades ou contrapartidas que devem ser realizadas pelo grupo familiar beneficiado. O seu descumprimento ocasiona efeitos gradativos que vão desde a advertência da família, passando pelo bloqueio do benefício, podendo chegar ao cancelamento se o descumprimento foi repetido em cinco períodos consecutivos (MDS, 2011). Segundo a Cartilha do Bolsa Família, esses são os compromissos do beneficiário: Crianças de até sete anos devem manter o calendário vacinal em dia; Mulheres grávidas devem realizar consultas de pré-natal; Crianças e adolescentes de seis anos a 15 anos devem ser matriculados na escola e ter frequência mínima de 85% das aulas; Jovens de 16 e 17 anos devem ser matriculados na escola e ter frequência mínima de 75% das aulas (Cartilha do Bolsa Família, 2011, p.8 e 9) Em relação a esses compromissos, perguntamos como efetivar os direitos sociais básicos às famílias, quando o que se observa é uma atuação estatal mínima, que gradativamente abre espaço para a iniciativa privada, e para a implantação de políticas essenciais, como o caso da saúde e da educação, às quais tem acesso um número restrito de pessoas com condições de pagar pelo serviço (SILVA et al, 2011). Os argumentos apresentados na Cartilha do Bolsa Família (2011) para a exigência dessas condicionalidades destacam que funcionam como um direito, no sentido de tornar possível o acesso às demais políticas sociais, contribuindo para o aumento da autonomia das famílias e na possibilidade da inclusão social destas, além de apresentar a ideia de romper com o caráter 92 assistencialista e clientelista que tem marcado a política de assistência social no Brasil. Ao analisar as legislações e manuais sobre o PBF, observamos que não estão claras em seus conteúdos as orientações para que se concretize a articulação desses programas com outras políticas sociais, especificamente educação, saúde e trabalho. De maneira geral, presenciamos a lógica perversa de cobrança da família por um direito social e a prática de velhos critérios viciosos: menos elegibilidade, uso de questionário, ou seja, comprovações rigorosas de pobreza, bem como de obrigações por parte do beneficiário, o que vai conformando a assistência social e, consequentemente, os programas de transferência de renda em “armadilhas da pobreza” (PEREIRA, 2008). A utilização desses critérios converte esses programas em ações seletivas e restritas aos absolutamente pobres, deixando desamparadas consideráveis parcelas de cidadãos vulneráveis à exclusão social. Os Programas Complementares ao Programa Bolsa Família são definidos como ações direcionadas às famílias beneficiárias do Programa, que tem como objetivo o desenvolvimento de capacidades e a oferta de oportunidades para auxiliar na superação da situação de vulnerabilidade social (MDS/SENARC, 2009, p.4). O objetivo é potencializar os efeitos proporcionados pelas transferências de renda na redução das desigualdades, promovendo um salto qualitativo que conduza as famílias de uma situação de redução da pobreza, para a superação sustentada de qualquer forma de vulnerabilidade (MDS/SENARC, 2009, p.4), porém, para que essa intencionalidade seja materializada, faz-se necessário potencializar ações entre as políticas setoriais, com ênfase na geração de emprego e de distribuição de renda. As ações levam em consideração o perfil das famílias, suas vulnerabilidades e potencialidades, buscando atender suas necessidades em áreas como acesso ao conhecimento, acesso ao trabalho e renda e melhoria das condições habitacionais. Entre os programas articulados em nível federal, 93 podemos citar o Programa Brasil Alfabetizado (Alfabetização), o Próximo Passo (qualificação profissional nas áreas da construção civil e turismo), o Programa Nacional da Agricultura Familiar (desenvolvimento rural e fortalecimento da agricultura familiar), o Programa Nacional de Microcrédito/Programa Crescer (concessão de crédito orientado e acompanhado), Crediamigo e Agroamigo (concessão de crédito orientado e acompanhado para população rural) e o Programa Nacional de Acesso Técnico e Emprego – Pronatec (cursos do SESI e SENAC de formação inicial e continuada para a inserção no mercado de trabalho) (MDS/SENARC, 2009). Estes programas as assentam numa vertente distinta representada pela LOAS, e ganharam importância por serem vistas como alternativa, e não como complementares, a uma política associada aos objetivos de garantir os mínimos sociais (CARDOSO Jr. E JACCOUD, 2005, p.228). Em que pesem os avanços e os impactos positivos para os quais tem sido reconhecida a importância dos PTR, devido à sua participação na mudança de percentuais da população que vive em situação de pobreza absoluta, a centralidade impressa às ações focalizadas de transferência de renda para o combate à pobreza extrema provoca uma tensão específica no campo da assistência social. 94 4. ANALISANDO O PROGRAMA BOLSA FAMILIA. Com base no estudo realizado, é possível analisar a direção do Programa Bolsa Família – PBF; ou seja: corrobora com as conquistas sociais presentes na Constituição Federal de 1988 e a LOAS, fortalecendo a Política de Assistência Social, ou é mais um instrumento das atuais orientações do projeto neoliberal para ações assistencialistas (compensatórias) do Estado? O Programa Bolsa Família, criado através da medida provisória nº 132/2003, transformado na Lei 10.836/2004 e regulamentado pelo Decreto 5.209/2004, é o principal Programa de Transferência de Renda do governo federal. Tem por objetivos: combater a fome, a pobreza e as desigualdades por meio da transferência de um benefício financeiro associado à garantia do acesso aos direitos sociais básicos de saúde, educação, assistência social e segurança alimentar; promover a inclusão social, contribuindo para a emancipação das famílias beneficiárias, construindo meios e condições para que elas possam sair da situação de vulnerabilidade em que se encontram (BRASIL, 2006). Entendemos aqui que o formato de uma dada política ou programa social é “resultante de um complexo processo de intermediação de interesses, representados sob as mais variadas formas organizacionais e com diferentes graus de poder de influência na agenda governamental” (SENNA et al, 2007, p.87). Expressa, desse modo, uma opção política construída sob certas condições materiais, a partir dos embates e alianças forjadas por atores sociais diversos com capacidades também distintas de interferência no processo decisório de formulação de políticas públicas. No Brasil, o tema da pobreza e destituição social vem assumindo lugar de destaque na agenda pública nas últimas décadas, não só em face do número alarmante de pobres como também pela centralidade adquirida pela discussão em torno da capacidade estatal em promover maiores níveis de equidade e justiça social. A natureza e a direção desse tipo de programa social só podem ser desvendadas, em sua plenitude, quando devidamente articuladas ao modelo 95 econômico vigente, em particular, à sua política econômica e aos seus impactos sociais. Isto significa dizer que, para além de seus efeitos (reais) amenizadores da extrema pobreza e da pobreza, considerar essa política apenas em si mesma, fora dessa articulação, implica, necessariamente, em reificá-la – tendo como resultado a despolitização do debate. A avaliação do referido programa perpassa, essencialmente, pela análise de seus fundamentos. Elencam-se duas possibilidades fundantes para o Programa Bolsa Família: os direitos constitucionais ou as premissas liberais. Nos direitos constitucionais regulamentados conforme a CF 88, a Assistência Social é um direito constitutivo, junto à saúde e à previdência, da Seguridade Social, cujos princípios de universalidade, qualidade, descentralização e a responsabilidade do Estado em financiar e gerir as políticas sociais estão assegurados. As premissas neoliberais apresentam-se como estratégia de desmonte das políticas sociais enquanto direito social (cujos princípios contrapõem-se aos conquistados na Constituição de 88 e na LOAS). Nessa perspectiva, o direito passa a ser entendido como benefício e assim serve de aporte para políticas clientelistas, focalizadas e precárias. O que antes era dever do estado passa por um processo de privatização, re-mercantilização e re-filantropização e a descentralização, projeto de autonomia dos municípios na elaboração e gestão de políticas sociais de acordo com as particularidades de cada um, ganha outra roupagem e a Lei de Responsabilidade Fiscal torna-se carro chefe da municipalização (YASBEK, 1998). Para realizar essa análise foram elencados os seguintes indicadores: Investimento em políticas sociais; Focalização x Universalidade; Condicionalidades; Clientelismo: política pública e uso eleitoral; Há respostas às condições de pobreza?; O olhar na família e na mulher; Descentralização e a Intersetorialidade; Ações complementares. Tais elementos foram elencados a partir de nossas leituras. A- Investimento em políticas sociais A alocação de recursos para as políticas sociais, mais específico para a seguridade social, tende a ser segundo Soares (2000 apud BEHRING 96 &BOSCHETTI, 2009, p.164) “pró-cíclico e regressivo”, ao invés de se constituir como anticíclico, que conforme Behring et al (2009) “permite apenas a existência de mecanismos compensatórios que não alteram profundamente a estrutura das desigualdades sociais” (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.164). Com poucos investimentos, há a tendência de cair a qualidade das políticas sociais, impossibilitando a implementação de políticas universais. O PBF unificou pequenos programas de repasse de renda, com isso ampliou as fontes de recursos, podendo ter participação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – Ministério da Educação, do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, dotações do Ministério da Saúde, Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico - CIDE e dotações do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS (BRASIL, 2006). No seu documento oficial, o referido Programa apresenta como objetivo a promoção de segurança alimentar; de saúde; a erradicação do trabalho infantil e da evasão escolar, justificando esses recursos de várias áreas. As intervenções pontuais que alteram direta e indiretamente os índices estatísticos, como o caso da educação e da saúde, podem ser traduzidas em resultados positivos. Quando isso acontece, elementos centrais, a serem contemplados nas políticas sociais perdem a sua importância. No caso do programa em pauta, os problemas vinculados à educação e ao trabalho infantil aparentemente estão resolvidos com a freqüência escolar; a promoção da saúde é controlada pelo cartão de vacinação das crianças e a segurança alimentar é provida por ações educativas oferecidas pelos governos federal, estaduais e municipais (CARTILHA DO BOLSA FAMILIA, 2011). Contudo, essas ações mascaram os verdadeiros quadros sociais, na medida em que negligenciam questões referentes aos debates sobre a qualidade do ensino (o número de escolas por habitante, a quantidade e a qualidade dos professores, etc.), as condições dos sistemas públicos de oferecer eficaz tratamento de doenças e promoção da saúde (redes de saneamento básico, número de postos de saúde e a qualidade do atendimento oferecido na rede pública de saúde), e a implementação da segurança alimentar (que é pensada através de medidas paliativas, como aproveitamento 97 de resto de alimentos, e que transforma em dispensável a discussão sobre a concentração de renda, por exemplo) (SILVA, 2007). Essas características respostas das políticas focalizadas neoliberais; e pontuais atendem são umas superficialmente das às demandas sociais, mas alteram os índices estatísticos. Os investimentos em políticas sociais são cada vez menores e cada vez menos universais, contudo, a alteração positiva dos índices sociais indica êxito, o que reforça a ideia de “melhoria por baixo custo”, legitimando, assim, a inversa proporcionalidade de investimentos na economia e no social, ou seja, a liberação de recursos para o capital privado, algo que leva à redução de investimento público em políticas sociais. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA32, os investimentos em políticas sociais do governo estão diretamente relacionados ao aumento do Produto Interno Bruto (PIB) e são alavancas para o crescimento com distribuição de renda, foi o que revelou o estudo publicado em fevereiro de 2011. Em seu Comunicado nº 75, o IPEA destacou a importância que os gastos sociais adquiriram no Brasil para o crescimento da economia e a redução das desigualdades. Segundo o estudo – que usou como base dados o ano de 2006 – cada R$ 1 gasto com educação pública gera R$ 1,85 para o PIB, e o mesmo valor investido na saúde gera R$ 1,70. Foram considerados os gastos públicos assumidos pela União, pelos estados e municípios. Ao comparar tipos diferentes de gasto social, a publicação concluiu que aquele destinado à educação é o que mais contribui para o crescimento do PIB, levando em conta a quantidade de atores envolvidos nesse setor e os efeitos da educação sobre setores-chave da economia. Mesmo diante de estudos como esse, o Orçamento Federal para 2013 tem um percentual de acréscimo maior para a Assistência Social do que para a Educação. 32 O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) é uma fundação pública federal vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Suas atividades de pesquisa fornecem suporte técnico e institucional às ações governamentais para a formulação e reformulação de políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiros (www.ipea.gov.br) 98 O orçamento para a Saúde subiu 10,7%, de R$ 71,7 bilhões para R$ 79,3 bilhões. O orçamento da Educação entre custeio e investimentos será 14,4% maior do que foi neste ano. Subirá de R$ 33,3 bilhões para R$ 38,1 bilhões. Já o plano Brasil Sem Miséria, uma bandeira de campanha da presidenta Dilma Rousseff para acabar com a miséria absoluta no País terá um orçamento de R$ 29,9 bilhões, sendo R$ 23,18 bilhões destinado para atender 13,8 milhões de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família (BRASIL, 2012). A sustentação financeira com ampliação e universalização dos direitos, assim, como a consolidação da seguridade social, e da política social brasileira dependem da reestruturação do modelo econômico, com investimentos no crescimento da economia, geração de empregos estáveis com carteira de trabalho, fortalecimento das relações formais de trabalho, redução do desemprego, forte combate à precarização, transformação das relações de trabalho flexibilizadas em relações de trabalho estáveis, o que, consequentemente, produzirá ampliação de contribuições e das receitas da seguridade social e, sobretudo, acesso aos direitos sociais (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.172173). B – Focalização x Universalidade Segundo Pontes (2004), o Programa Bolsa Família "é a tensão entre as polaridades estrutural-emergencial; universalização-focalização" (PONTES, 2004, p.44) que se apresentam nas bases das ações da maioria dos programas sociais. Segundo este autor, o discurso dessa tensão baseia-se no argumento da escassez dos recursos, o que justificaria a elegibilidade dos mais pobres (PONTES, 2004, p. 44). Esse discurso é perverso e enganoso, pois desvia a análise das políticas sociais das questões estruturais de uma sociedade excludente, legitimando a exclusão: É neste momento que o discurso monetarista e suas conhecidas práticas saneadoras fazem um enorme dano as políticas sociais, porque são entendidas como „complementares‟ a política econômica, drenando-se valiosos montantes de recursos para o pagamento da dívida externa. [...] Assim que o focalismo do PBF pode lembrar o nítido focalismo „emergencial‟ utilizado pelo “Comunidade Solidária” do governo FHC (PONTES, 2004, p.44). 99 Lideram o grupo dos defensores das políticas focalizadas, as organizações internacionais: Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), Banco Mundial, Banco Intermericano de Desenvolvimento (BID), Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD) e o Fundo Mundial Internacional (FMI). Estas defendem concepções de pobreza limitadas ao corte de renda, através das chamadas linhas de pobreza. A concepção de focalização que fundamenta a reflexão aqui desenvolvida compreende, em sentido geral, focalização como o "direcionamento de recursos e programas para determinados grupos populacionais, considerados vulneráveis no conjunto da sociedade"(SILVA, 2010, p.63). Há que se considerar que a concepção de focalização no contexto das reformas dos programas sociais na América Latina tem sido orientada pelo ideário neoliberal, significando medidas meramente compensatórias aos efeitos do ajuste estrutural sobre as populações vulneráveis, marcando assim, a interrupção de uma luta em prol da construção da universalização de direitos sociais com ações universais (SILVA, 2011). A universalização de políticas sociais é entendida “como um processo de extensão de bens e serviços considerados essenciais”. No sentido da ótica neoliberal, a universalização se contrapõe à focalização que direciona bens e serviços a determinados segmentos da sociedade, previamente definidos, com maior ênfase a população pobre e extremamente pobre, o que significa, “a desestruturação de grandes políticas universais” (SILVA, 2010, p. 64). Estudos sobre o Programa Bolsa Família evidenciam elevado poder de focalização desse Programa (SOARES et al, 2007; PNAD, 2006). Refletindo a focalização que orienta o PBF, consideramos “como mais problemático os critérios de elegibilidade” (SILVA, 2007, p. 9) utilizados para a inclusão das famílias, além da centralidade na renda para classificar famílias pobres e extremamente pobres no conjunto de indicadores da Cepal e da Organização Mundial da Saúde - OMS, o limite de renda indicado para inclusão dessas famílias é muito baixo, e tende a impossibilitar a inclusão de famílias que, apesar de situadas em uma faixa de renda um pouco acima do valor definido 100 também estão em situação de pobreza. Entendemos que “o critério único da renda para dimensionar a pobreza é insuficiente para perceber a pobreza enquanto fenômeno complexo e multidimensional” (SILVA, 2007, p. 14) A linha de pobreza é estabelecida a partir da renda familiar, cujo valor é de, no máximo, R$ 140,00 per capita. O Programa tem como população alvo dois grupos. O primeiro, pertencem as famílias com renda per capita abaixo de R$ 70,00 – consideradas extremamente pobre –para as quais é concedido o benefício mensal fixo de R$ 70,00, mais o benefício variável de R$ 32,00, podendo receber até cinco benefícios. O segundo grupo, estão as famílias com renda per capita entre R$ 70,01 até R$ 140,00, que tem direito ao benefício variável de R$ 32,00, podendo receber até cinco benefícios. A ênfase em políticas de transferência de renda focalizadas na pobreza absoluta33 pode interferir no avanço empreendido para transformar a assistência social em elemento integrante das políticas sociais de caráter universal, e da seguridade social, isto porque a LOAS prevê a Assistência Social como direito do cidadão e dever do Estado, que deve prover os mínimos sociais a quem dela necessitar. Propor mínimos sociais é estabelecer o patamar de cobertura de riscos e de garantias que uma sociedade quer garantir a todos seus cidadãos. Trata-se de definir o padrão societário de civilidade. Neste sentido ele é universal e incompatível com a seletividade ou focalismo. (SPOSATI,1997, p. 10). Pereira (2008) ao se referir ao primeiro artigo da LOAS, situa uma controvérsia quanto à provisão de mínimos e às necessidades básicas a serem satisfeitas. Segundo a autora, embora os termos mínimos e básicos pareçam ser equivalentes, no plano político-decisório constitui uma temeridade; sendo necessário, portanto, esclarecer os termos prescritos na Lei. A autora ainda sugere a utilização do termo básico ao invés de mínimos, pois segundo a sua defesa mínimos e básicos são conceitos diferentes, sendo o primeiro 33 Segundo a Declaração das Nações Unidas emitido na Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento Social, em 1995, a pobreza absoluta é "uma condição caracterizada por uma grave privação de necessidades humanas básicas, como alimentos, água potável, instalações sanitárias, saúde, residência, educação e informação. Isto depende não só do rendimento, mas também do acesso aos serviços" (www.onu.org) 101 identificado com menos, menor, “(...) identificados com patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção social (...)”. Já o segundo conceito, preconiza algo fundamental, primordial “(...) básico que na LOAS qualifica as necessidades a serem satisfeitas (necessidades básicas) constitui o pré-requisito ou as condições prévias suficientes para o exercício da cidadania(...)” (PEREIRA, 2008, p.26). Embora a LOAS prescreva os mínimos sociais como sendo abrangentes, como direito de todos os cidadãos, não se referindo apenas as condições de sobrevivência dos indivíduos, na realidade isso não ocorre. O que temos são mínimos sociais de acordo com sua própria nomenclatura, que já se faz mínimo e menor, garantidos por uma proteção social fragmentada, seletiva, focalista. C – Condicionalidades O Programa Bolsa Família exige uma contrapartida de seus beneficiários. Segundo a Lei nº 10.836, a continuidade do acesso à transferência de renda “dependerá do cumprimento, no que couber, de condicionalidades relativas ao exame pré-natal, ao acompanhamento nutricional, ao acompanhamento de saúde, à freqüência escolar de 85% (oitenta e cinco por cento) para crianças e 75% para adolescentes em estabelecimento de ensino regular, sem prejuízo de outras previstas em regulamento.” (artigo 3º). O Decreto nº 5.209, que regulamenta a Lei que cria o Programa Bolsa Família, considera “a participação efetiva das famílias no processo educacional e nos programas de saúde que promovam a melhoria das condições de vida na perspectiva da inclusão social.” (artigo 27). Ao passo que “cabe aos diversos níveis de governo a garantia do direito de acesso pleno aos serviços educacionais e de saúde, que viabilizem o cumprimento das condicionalidades por parte das famílias beneficiárias do Programa” (artigo 27,parágrafo único). O mesmo decreto especifica que são responsáveis pelo acompanhamento e fiscalização do cumprimento das condicionalidades: I. O Ministério da Saúde, no que diz respeito ao acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil, da assistência ao pré-natal e ao puerpério, da vacinação, bem como da vigilância alimentar e nutricional de crianças menores de sete anos; 102 II. O Ministério da Educação, no que diz respeito à freqüência mínima de oitenta e cinco por cento da carga horária escolar mensal, em estabelecimento de ensino regular, de crianças e adolescentes de seis a quinze anos. §1º Compete ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome o apoio, a articulação intersetorial e a supervisão das ações governamentais para o cumprimento das condicionalidades do Programa Bolsa Família, bem assim a disponibilização da base atualizada do Cadastramento Único do Governo Federal aos Ministérios da Educação e da Saúde. (artigo 28) As diretrizes e normas para o acompanhamento das condicionalidades devem ser disciplinadas em atos administrativos dos três ministérios envolvidos. Os Estados, Distrito Federal e Municípios, seguindo as orientações dos Ministérios, também deverão acompanhar e fiscalizar as condicionalidades. O conteúdo e praticidade das condicionalidades merecem destaque; vale, sobretudo, levantar alguns questionamentos: • A população, ou o público-alvo têm acesso aos centros de saúde e às escolas? Esse acesso é fácil? Eficiente? • A educação alimentar e o acompanhamento do estado nutricional são, de fato, eficazes na manutenção da saúde? A renda destinada às famílias é suficiente para a composição de um cardápio suficiente para satisfazer as necessidades básicas? Todos os municípios brasileiros gozam de saneamento básico? • Existem profissionais capacitados e orientados em todos os municípios para debaterem temas como a educação alimentar? Os profissionais de saúde estão disponíveis para fazer o acompanhamento periódico dos participantes do programa? • E quem não recebe ainda o benefício, ou nunca vai receber porque não se enquadra no perfil, vai ficar de fora? Não será atendido? As condicionalidades existentes vinculam-se basicamente à matrícula escolar mantendo a frequência em dias e à vacinação infantil. Essas condicionalidades, na verdade, são obrigatoriedades que repercutem nos 103 resultados e índices mundiais. Os cálculos do IDH 34 referentes à escolaridade consideram apenas a relação numérica de matrículas realizadas, sem levar em conta as condições e permanências das crianças na escola. Essas medidas vêm elevando os índices sociais, o Brasil ocupa a posição 84ª do ranking do IDH dentro de um grupo de 187 países, segundo uma pesquisa publicada pela Organização Mundial das Nações Unidas – a ONU em 2011 (fonte: www.onu.org.br). Os problemas sociais e a inoperância do Estado em resolvê-los são marcados pelos programas sociais, o que pode interferir nos índices estatísticos. O IDH é uma fonte importante, enquanto indicador social, cujos valores numéricos são privilegiados. Contudo, políticas como o Programa Bolsa Família podem influir estatisticamente na realidade, porque, além de alterar a renda, também mascaram a qualidade do acesso à escolaridade; esse é um dos fatores que mais sofre alteração, visto que para participar e permanecer no programa os dependentes menores de 18 anos tem que estar matriculados e frequentando regularmente o ensino regular. Assim, há alteração em índices como alfabetização, evasão escolar e índice de escolaridade do país. Vale ressaltar que os problemas sociais resolvidos assim podem indicar somente as mudanças nos índices, podendo ser usado para justificar a redução de investimento sem políticas sociais e a ampliação de investimento em políticas econômicas neoliberais. Segundo Silva (2011), as condicionalidades definidas pelos Programas de Transferência de Renda, instituídas por municípios, estados e pelo governo federal e reafirmadas pelo PBF pretendem garantir acesso a direitos sociais básicos no sentido de potencializar impactos positivos sobre a autonomização das famílias atendidas. Mesmo assim, apresentam problemas e desafios a serem considerados. Primeiro, ferem o princípio da não condicionalidade peculiar ao direito de todo cidadão a ter acesso ao trabalho e 34 IDH é medido a partir de indicadores de educação (alfabetização e taxa de matrícula), longevidade (esperança de vida ao nascer) e renda (PIB per capita). O índice varia de 0 (nenhum desenvolvimento humano) a 1 (desenvolvimento humano total). Regiões com IDH até 0, 499 têm desenvolvimento humano considerado baixo; aquelas com índices entre 0, 500 e 0, 799 são consideradas de médio desenvolvimento humano; regiões com IDH maior que 0,800 têm desenvolvimento humano considerado alto. 104 a programas sociais que lhe garantam uma vida com dignidade; segundo, os serviços sociais básicos oferecidos pela grande maioria dos municípios brasileiros, mesmo no campo da educação, da saúde e do trabalho são insuficientes, quantitativa e qualitativamente, para atender às necessidades das famílias beneficiárias dos Programas de Transferência de Renda. Nesse sentido, as condicionalidades deveriam ser impostas ao Estado, nos seus três níveis e não às famílias, visto que implicam e demandam a expansão e a democratização de serviços sociais básicos de boa qualidade, que uma vez disponíveis seriam utilizados por todos, sem necessidade de imposição e obrigatoriedade. Silva (2006) afirma, que o que poderiam ser desenvolvidos seriam ações educativas, de orientação, encaminhamento e acompanhamento das famílias para a adequada utilização dos serviços disponíveis. Assim, segundo a autora, as condicionalidades, ao contrário de restrições, imposições ou obrigatoriedades, significariam ampliação de direitos sociais (SILVA, 1997). Soares (2004) chama a atenção para a gravidade da ideia de condicionalidades, que cria critérios generalizados de seleção, comprovação da pobreza e condições para o acesso aos programas sociais: os pobres passam a ser objeto focalizado de programas sociais que adotam como estratégia de „inclusão‟ as linhas de pobreza ou de indigência, cujos valores monetários separam os „pobres‟ dos supostamente „não pobres‟. Esses programas terminam por excluir vastos setores, igualmente precarizados em suas condições de trabalho e de vida, por estarem „acima da linha‟. Além da comprovação da pobreza, os candidatos aos programas têm que se comprometer com uma série de „condicionalidades‟ que deixam de constituir-se em direitos universais (como o acesso à escola e aos serviços de saúde), mas em “obrigações” (SOARES, 2004, p.5-6). Segundo Pontes (2004), é muito comum nos programas sociais a existência de "critérios e contrapartidas, nítidas violações da liberdade individual em nome da educação social" (PONTES, 2004, p. 45). Caso as condicionalidades não sejam cumpridas, a família recebe uma carta de advertência. O poder público local envia um assistente social até a família para detectar as causas do descumprimento e, se for necessário, algum encaminhamento para a rede socioassistencial. Caso o descumprimento persista, segue-se uma série decrescente de bloqueios dos benefícios, duas interrupções dos benefícios (a cada 60 dias sem pagamento suplementar) e, 105 finalmente, se procede, a exclusão do Programa Bolsa Família. Este procedimento demora cerca de um ano. Entretanto, é importante destacar que essas condicionalidades precisam ser mais bem discutidas para que elas não sejam conflitantes com a perspectiva dos direitos. Nesse sentido, os resultados das condicionalidades podem ser considerados controversos. Para alguns, o direito de acesso a condições necessárias à sobrevivência deve ser um direito incondicional. Por outro lado, o acesso à educação e a medidas de atendimento básico à saúde são também direitos fundamentais que devem ser garantidos a todo cidadão (SILVA, 2010, p. 129) Essa questão é discutida por Silva et al (2011), quando ela afirma que as condicionalidades nos programas de transferência de renda são dever do Estado, nos três âmbitos, em que devem expandir e democratizar os serviços básicos e de boa qualidade, disponibilizando-os para toda a população. Contudo, a crítica às condicionalidades, mais do que discutir se estão corretas ou não, se são aplicáveis ou não, deve apresentar-se em um tema fundamental que é a qualidade dos serviços públicos prestados à população que possuem direta vinculação com o cumprimento daquelas, ou seja, a educação e a saúde. D – Clientelismo: política pública e uso eleitoral De acordo com Druck e Filgueiras (2007) o distanciamento das políticas sociais da concepção de direito conquistado e garantido por lei e a sua vinculação com a prática da ajuda, possibilita seu uso eleitoral ou clientelista por governos, principalmente das prefeituras, além de governos estaduais e federal, mediante a “concessão” dos “benefícios”, com a contraproposta arrecadação de votos. Além da sujeição ao patrimonialismo; assegurando o caráter assistencialista. Dois pontos, no mínimo, podem e merecem ser abordados e problematizados: 106 1- A política social governamental assume um caráter de política pessoal, quem promove o Programa Bolsa Família não é o Estado, e sim o Governo Federal personificado: Lula/Dilma. E assim, as propostas governamentais implantadas como ações pessoais são uma das estratégias que desvinculam a política social como direito e pode levar à promoção nominal de um governante ou representante do governo. Para o projeto neoliberal este fato se torna apropriado, pois as análises da população circundam sobre os políticos e não sobre a política. Do ponto de vista político, de acordo com Marques e Mendes (2006), a implementação do Programa Bolsa Família permitiu que o governo Lula estabelecesse fortes vínculos com a população por ele beneficiada, direta ou indiretamente, o que explica sua alta popularidade em várias regiões do país. Se, por um lado, não há como negar que a população mais pobre está atualmente em melhores condições do que antes, por outro cabe destacar a provisoriedade do Programa, na medida em que as prestações pecuniárias não constituem um direito e ele pode ser alterado conforme as mudanças políticas. Em outras palavras, trata-se de um programa de governo. Marques e Mendes (2006), ainda, afirmam que a relação política estabelecida é direta – presidente/eleitor –, sem mediação de partidos ou outras instituições da democracia formal, uma das características de todos os tipos de populismo. Não por acaso, as maiores votações em Lula foram nos estados em que há, absoluta ou proporcionalmente, um maior contingente de beneficiados do Programa Bolsa Família. Não acredito que tenha alguém que ame o povo brasileiro mais do que eu (Frase do ex-presidente Lula, em comício em Salvador – Ba, para a campanha eleitoral de 2012; Jornal Diário do Nordeste, 25 de outubro de 2012). 2- A ampliação da cobertura, em 2006, de 2, 3 milhões de famílias no Programa Bolsa Família, perto do período eleitoral, é uma forma de promoção do governo que foi usada na campanha de reeleição do presidente Lula. Em outras reportagens os títulos são: Eleição fez governo antecipar gastos com Bolsa Família (Jornal “O Globo”, 30 de junho de 2006, Coluna O 107 País, página 4) e Correios vão entregar Cartões do Bolsa Família, faltando quatro meses para a eleição, o governo Lula gastará o equivalente a 31 milhões de reais. (Jornal “O Globo”, 11 de junho de 2006, Coluna O País, página 11). Algo similar aconteceu em maio do ano corrente, quando a presidenta Dilma Rousseff, no segundo domingo de maio – dia das mães, lançou o Brasil Carinhoso35. E – Há respostas às condições de pobreza? Orientada por estudos de Silva (2001, 2003, 2005), compreendemos que o desenvolvimento da Política Social brasileira tem um conjunto amplo e variado, porém, descontínuo e insuficiente, de programas sociais direcionados para a população mais empobrecida, que vem se modificando a partir dos anos 2000. No processo de construção de políticas públicas para enfrentamento da pobreza no Brasil, desde 2004 temos o Programa Bolsa Família e muitos estudos tem procurado dimensionar o impacto do PBF, evidenciando uma significativa e contínua diminuição da pobreza e da desigualdade desde então. Segundo informações acessadas no site do MDS 36, a ministra Tereza Campello avaliou que houve uma queda da desigualdade e o maior crescimento da renda entre os mais pobres, foram os principais resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2011. Essa pesquisa aponta que a renda dos 10% mais pobres da população aumentou 29,2%. De modo geral, houve redução no crescimento do rendimento conforme o valor da renda aumentava. Com isso, o Índice de Gini para os rendimentos de trabalho recuou de 0,518 em 2009 para 0,501 em 2011 (quanto mais próximo de zero, menor é a concentração de renda). “A 35 O novo programa do Governo Federal chamado de Brasil Carinhoso, que tem o objetivo central de beneficiar em torno de 2 milhões de famílias que tenham crianças de até 15 anos em sua formação. O programa Brasil Carinhoso integra o Bolsa Família, e visa atender famílias que se encontram em extrema pobreza, que chegam a somar 50% do total de pessoas que se encontram nessa situação de extrema pobreza, cuja renda mensal geralmente é inferior a R$ 70,00 reais(www.mds.gov.br) 36 Acesso no mês de novembro de 2012; www.mds.gov.br. 108 desigualdade de renda entre ricos e pobres tem diminuído de forma sistemática na última década e, com ela, as desigualdades regionais”, apontou a ministra. A ministra ressaltou que os resultados da PNAD são do ano passado. “Hoje, podemos afirmar com certeza que os dados de 2012 já são melhores.” Somente com o Brasil Carinhoso foi possível reduzir em 40% a extrema pobreza no país. Entre as crianças de até 6 anos, o impacto foi ainda maior: 62% saíram da miséria. “O Brasil mostra ao mundo que é possível crescer e incluir ao mesmo tempo e que a inclusão dos mais pobres contribui para o crescimento do país.” De acordo com a ministra, um dos principais feitos do Bolsa Família foi garantir "que as famílias tivessem comida três vezes por dia". Mas o impacto do programa foi, além disso, ao contribuir para redução da desigualdade social no período de 2001 a 2011, conforme estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD. O Brasil ainda é um dos 12 países mais desiguais do mundo, mas chegou a 2011 ao menor nível de desigualdade de renda medido pelo índice de Gini desde os registros nacionais iniciados em 1960. O trabalho do IPEA, detalhado por seu presidente, Marcelo Cortês Neri (2012), coloca o Bolsa Família como um dos principais responsáveis pela redução da desigualdade. O fator mais importante foi o trabalho, que contribuiu com 58% da redução da desigualdade. Depois vem a Previdência, com 19%; o Programa Bolsa Família, com 13%; os benefícios de prestação continuada, com 4% e outras rendas, como aluguéis e juros, com 6%. Segundo o estudo, sem as políticas redistributivas patrocinadas pelo Estado, a desigualdade teria caído 36% menos na década. A pesquisa realizada pelo IPEA (IPEA, 2010)37 sobre pobreza, desigualdade de renda e políticas públicas no mundo e no Brasil nos anos 37 A pesquisa tem como principais fontes de dados, para as informações internacionais: Nações Unidas (Banco Mundial e World IncomeInequalityDatabas - WILD) e nacionais, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE e dados dos Ministérios do Planejamento, Orçamento e Gestão (Sigplan) e da Fazenda (Siafi) (www.ipea.gov.br). 109 recentes aponta como causas da diminuição consistente da pobreza e da desigualdade uma combinação de fatores: continuidade da estabilidade monetária, a maior expansão econômica e o reforço das políticas públicas, com destaque à elevação real do salário mínimo, a ampliação do crédito popular,reformulação e alargamento dos programas de transferência de renda aos extratos de menor rendimento. O estudo considera que o Brasil se destaca no cenário mundial, apesar de não ser um país que tenha registrado o mais rápido decréscimo das taxas de pobreza e de desigualdade de renda até 2005, por vir conseguindo diminuir, ao mesmo tempo, ambas as taxas, observando-se maior redução da pobreza do que da desigualdade. Assim, mantida a tendência, o Brasil pode superar a pobreza absoluta; reduzir para 4% a taxa nacional de pobreza e o Índice de Gini poderá ficar em 0,488 até 2016, colocando o Brasil no patamar dos países desenvolvidos (IPEA, 2010). Apesar de todas essas pesquisas, tendo a renda como indicador de maior relevância para medir a pobreza, é necessário olhá-la “como um fenômeno de natureza complexa, [...] o acesso a políticas públicas como educação, saúde, habitação, saneamento, moradia são exemplos de indicadores que influenciam os diferentes níveis de pobreza” (PEIXOTO, 2011, p. 3) Para o enfrentamento da pobreza e das desigualdades sociais, o Brasil é orientado pelo Banco Mundial para que os gastos sociais sejam focalizados nos mais pobres. No entanto, dada a primazia do desenvolvimento econômico via mercado, sendo o desenvolvimento social uma consequência do primeiro, a focalização das políticas sociais mais pobres, através da transferência direta de renda, não visa as necessidades dos sujeitos, mas o fortalecimento do consumo, portanto, do mercado (PEIXOTO, 2011, p. 13). Segundo Mota (2010), o programa de transferência de renda tem elevado o acesso de bens e serviços, como: geladeira, fogão, televisão. Entretanto, o acesso a infra-estrutura (abastecimento de água; coleta de lixo; iluminação pública, saneamento básico) mesmo tendo aumentado, ainda não é 110 suficiente, pois como mostra a PNAD 2011, ainda temos 47,8% de brasileiros sem saneamento básico. Segundo Peixoto (2011), para que se garanta uma rede de serviços apropriada, levando em consideração as necessidades heterogêneas do público-alvo e dos territórios brasileiros, se faz necessário tomar providências que interajam políticas focalizadas de transferência de renda com políticas públicas estruturais e universais, sustentadas na dimensão do direito. Entendemos a partir dos dados relacionados acima, que é real a diminuição da pobreza, considerando a renda per capita do PBF. Contudo, o maior desafio seja o aumento de investimentos em políticas sociais de caráter estrutural (educação, saúde, habitação, saneamento básico) para que de fato sejam efetivadas todas as propostas que o Programa Bolsa Família traz para a diminuição da pobreza e da extrema pobreza. F – O olhar na família e na mulher Dentro da esfera da proteção social, a família garantiu a centralidade nas políticas sociais, em que a identificação das mulheres com a família, dada a naturalização dos papéis de gênero, permitiu que Estado, mercado e sociedade construíssem alianças que, muitas vezes, reforçam o lugar das mulheres como responsáveis diretas pelo bem estar familiar (PEIXOTO, 2010, p,143). A unificação proposta com a instituição do Programa Bolsa Família, conforme seus idealizadores, deve estar voltada para melhor focalização nas famílias vulneráveis. O foco deve ser a família pobre, que constitui a unidade de atenção e não mais o indivíduo visto isoladamente. Considerada como unidade básica de atendimento - pela lei que criou o Bolsa Família – a família é entendida, para fins de destinação do Programa como: a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco ou afinidade, que formem um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se mantém pela contribuição dos seus membros. (BRASIL, 2004, p. 1). A proposta do Programa é, portanto 111 dar proteção integral a todo o grupo familiar, e não apenas a alguns de seus membros. Adianta muito pouco dar apoio a um membro da família sem levar em consideração os demais. Assim, o Bolsa Família considera todo o grupo familiar e, junto com os recursos financeiros para a complementação da renda, vai estimular as famílias beneficiadas a frequentar e utilizar os serviços da rede pública de saúde, de educação e da assistência social, oferecendo apoio e oportunidades a todos os seus membros. (BRASIL, 2004, p. 4). Entendo que a concepção de família a ser considerada nos programas sociais deve ser aquela que a compreenda como uma instituição histórica e, portanto, dinâmica, situada no contexto socioeconômico de sua época, assumida como instituição que pode ostentar diversas formas de organização no decorrer do processo histórico. Portanto, qualquer programa social direcionado para a família deve levar em conta essa diversidade de composições dos grupos familiares, se pretende alcançar as famílias brasileiras, como parece apontar a concepção de família definida no desenho do Programa Bolsa Família. Num esforço para compreender as razões pelas quais ocorre a retomada da família como prioridade de intervenção nas duas últimas décadas, Carvalho (1997) argumenta que a abordagem sobre o tema família adquire novas especificidades em razão do reconhecimento de uma inequívoca situação de desemprego estrutural que afeta a já frágil capacidade das famílias enfrentarem os desafios de reprodução social de seus membros. Nesse sentido, são grandes as expectativas de se alcançar melhores resultados a partir da implementação de programas e políticas que considerem a família como sujeito importante no processo de proteção social. Dissemina-se, então, a ideia de que os programas sociais tem maior possibilidade de otimizar recursos quando passam a focar a família em vez do indivíduo. Como defende Draibe (1997), a decisão de se tomar a família como unidade de intervenção está respaldada no argumento de que as políticas de proteção à família teriam maior potencial de impactar as condições de vida da população pobre. A inclusão das famílias no Programa Bolsa Família ocorre mediante a análise de suas rendas declaradas ao Cadastro Único para programas sociais do Governo Federal e ao serem beneficiadas, as famílias passam a receber o valor estabelecido através de um cartão magnético. O benefício é 112 sacado em estabelecimentos bancários ou casas lotéricas e, em geral, a titular do cartão é a mulher, de acordo com o § 14 da Lei 10.836/0438. A definição, pelo Governo, da mulher ser a representante prioritária da família remete necessariamente ao campo das relações de gênero, posto que tal consideração possa ocorrer em virtude da experiência feminina em lidar historicamente com o cotidiano doméstico – embora na contemporaneidade assista-se não raro, a alterações de papéis entre homem e mulher no contexto da família - e por isso pressupõe possuir ela maior desenvoltura para „resolver‟ questões relativas ao lar (AZEREDO, 2010). Além da condição de mulher, sempre associada ao papel de mãe, cuja responsabilidade no cuidado com os filhos parece uma imposição da ordem da natureza, limita as oportunidades de construção de outros marcadores identitários necessários à ordem civilizatória (AZEREDO, 2010). Porém, é importante salientar que a valorização social da maternidade tem sido um dos fenômenos que, historicamente, tem garantido a naturalização dos papéis desempenhados pelas mulheres, na sociedade. As mudanças na condição feminina, no interior das famílias, não foram suficientes para deslocar o lugar das mulheres como as principais responsáveis pela educação dos filhos (PEIXOTO, 2010, p.66) As questões que se colocam são: o fato de a mulher ter acesso ao benefício ser porta-voz da família junto ao Programa, altera as relações de gênero circunscritas no âmbito familiar? E ainda, o lugar ocupado pela mulher no Programa tem significado uma forma de contribuição em direção ao empoderamento feminino? O Programa Bolsa Família, carrega em seu próprio nome a marca desse lugar de destaque que a família ocupa, seja como esfera de provisão do bem-estar de seus membros, seja como um dos pilares de sustentação do Programa, uma vez que as condicionalidades e os recursos serão administrados no interior da família (PEIXOTO, 2010, p. 148-149). 38 § 14. O pagamento dos benefícios previstos nesta Lei será feito preferencialmente à mulher, na forma do regulamento. 113 Porém, segundo a mesma autora, na esfera desse Programa e das políticas sociais, não há qualquer concepção universalista e idealizadora acerca da família. G – Descentralização e a Intersetorialidade Desde 1980 foi introduzida na agenda pública a descentralização enquanto “condição fundamental para a democratização e controle social desses programas” (SILVA et al, 2011, p. 212). Esse princípio é mencionado na Constituição de 1988 e tornou-se hegemônico ao ser incorporado pelo ideário neoliberal na década de 1990 (SILVA et al, 2011). Para os neoliberais, descentralização significa muito mais uma possibilidade de transferência de responsabilidade da esfera do Governo Federal para os municípios, nem sempre acompanhada dos recursos necessários, ou transferência de responsabilidades para a sociedade, sob justificativa de parcerias (SILVA et al, 2011, p. 213). Sobre o Programa Bolsa Família, no entendimento de seus idealizadores, sua unificação representa uma evolução dos Programas de Transferência de Renda por incluir a perspectiva da responsabilidade partilhada entre a União, estados e municípios num único programa, representando um passo adiante e importante no campo das Políticas Sociais. Art. 8º A execução e a gestão do Programa Bolsa Família são públicas e governamentais e dar-se-ão de forma descentralizada, por meio da conjugação de esforços entre os entes federados, observada a intersetorialidade, a participação comunitária e o controle social (BRASIL, 2004). Fonseca (2003 apud SILVA et al, 2004, p. 136) ressalta que, conforme Portaria nº 246, de 20 de maio de 2005, a implementação do Programa Bolsa Família se dá de forma descentralizada nos municípios que aderem ao Programa, através da assinatura do Termo de Adesão, o qual indica o gestor municipal e o comitê ou conselho municipal de controle social. Em âmbito nacional, o Programa é coordenado pela Secretaria de Renda de Cidadania do MDS. No entanto, pensar em descentralização em um país como o Brasil, faz-se necessário considerar seus limites. Podemos destacar a grande 114 diversidade dos 5.565 municípios brasileiros, a maioria tem população inferior a 10 mil habitantes, que sobrevivem praticamente subsidiados por recursos do fundo de participação, que são transferidos pelo Governo Federal, que assim gera limites em termos materiais e de recursos humanos, para uma boa gerência (SILVA et al, 2011). A isso, soma-se o cotidiano de uma prática administrativa marcada pelo patrimonialismo e uma prática política clientelista, além da fragilidade da organização popular, limitando o poder de real participação e controle social sobre as ações municipais (SILVA et al, 2011, p. 214215). Porém, a descentralização é “promissora quando coloca a possibilidade de participação ativa da população local nos programas sociais” (SILVA et al, 2011, p. 213), para fiscalização das políticas sociais. O Governo Federal tem um índice de qualidade da gestão descentralizada do Programa Bolsa Família. O Índice de Gestão Descentralizada (IGD) varia de 0 a 1 e é composto pelas variáveis relativas às informações sobre frequência escolar, acompanhamento dos beneficiários nos postos de saúde, cadastramento correto e atualização cadastral. Cada uma das quatro variáveis representa 25% do IGD. Este índice pretende estabelecer um ranking das experiências de implementação do PBF no âmbito local, premiando aquelas bem-sucedidas e incentivando a gestão da qualidade através do repasse de recursos financeiros extras para as prefeituras que alcançarem desempenho acima de 0,4 do índice. Segundo Silva et al (2011) o curso do processo de descentralização na área social apresenta ritmos diferenciados tanto no que se refere à transferência de responsabilidades para os estados e municípios quanto às diversas políticas sociais setoriais. Uma das consequências deste processo é que as áreas que mais avançaram em direção à descentralização se deparam hoje com limites estruturais da sociedade brasileira que, apesar das conquistas realizadas, necessitam de enfrentamento intersetorial, através da conformação de uma rede de proteção social. O objetivo explícito do Programa Bolsa Família em associar transferência de renda à garantia do acesso aos direitos sociais básicos remete 115 à consideração da natureza intersetorial da assistência social que abre a possibilidade de estabelecer interfaces com as demais políticas públicas, tendo em vista atender às necessidades do seu público-alvo em seu conjunto. Dito de outro modo, o escopo da assistência social é o social “e não um aspecto desse social, o que equivale a afirmar que nesse escopo cabem todos os recortes ou „setores‟ das outras políticas”. (PEREIRA, 2004, p. 58). Portanto, atua em todas as necessidades de reprodução social dos cidadãos excluídos, enquanto as demais políticas sociais têm um corte setorial. Pereira (2004) destaca o caráter genuinamente complexo, abrangente, interdisciplinar e intersetorial expresso no adjetivo social que qualifica a assistência, é justamente por ser interdisciplinar e intersetorial que, na prática, é a política pública mais afeita a estabelecer interfaces e vínculos orgânicos com as demais políticas congêneres (sociais, econômicas), tendo em vista a universalização do atendimento das necessidades sociais no seu conjunto. (PEREIRA, 2004, p. 59). No geral, os usuários dos programas sociais têm necessidades em diferentes áreas da vida social e em diferentes faixas etárias, portanto essa política visa atingir toda a família e não apenas um de seus membros. Assim, o fato de o Programa Bolsa Família propor-se a possibilitar o acesso das famílias aos serviços sociais básicos aponta para a necessidade dos seus implementadores buscarem a articulação intersetorial mediante o estabelecimento de interfaces com os demais programas existentes e políticas sociais de modo a atender a família integralmente e não de forma fragmentada. H – Ações complementares Além das condicionalidades sociais, o Programa Bolsa Família prevê a participação das famílias em ações complementares ao Programa, denominadas de programas complementares que objetivam “o desenvolvimento de capacidades e a oferta de oportunidades para auxiliar na superação da situação de vulnerabilidade social”. (BRASIL, 2009). A intenção do Governo é desenvolver ações regulares voltadas para a efetivação de capacidades das famílias cadastradas no Cadúnico, principalmente as beneficiárias do Programa Bolsa Família, com o objetivo de contribuir para a 116 superação da pobreza e da vulnerabilidade social em que se encontram através de programas. Os programas complementares federais são coordenados pelos ministérios setoriais, entre os quais, pode-se citar o Programa Brasil Alfabetizado, o Plano Setorial de Qualificação e Inserção Profissional (PlanSeQ) − que em fevereiro de 2010, começou a se chamar Próximo Passo, o Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural (PROMINP), o Programa Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF B), programas de micro-crédito e o Programa Nacional de Acesso Técnico e Emprego – Pronatec (cursos do SESI e SENAC de formação inicial e continuada para a inserção no mercado de trabalho). Desde a criação do PBF em 2003, vários dispositivos legais explicitam a necessidade da implementação dos programas complementares e do adensamento de políticas públicas voltadas às famílias beneficiárias, dispondo também sobre a alocação de recursos do IGD e sobre as atribuições dos entes federados enquanto articuladores com órgãos e instituições, governamentais ou não-governamentais, para o fomento à implementação de programas complementares ao PBF. No entanto, apesar da existência de todas as normatizações, não há qualquer sanção prevista nos instrumentos legais aos entes federados caso não haja a oferta destes programas da mesma forma que ocorre quando o município não alcança a meta estabelecida de acompanhamento das condicionalidades (deixa de receber o IGD). Senna et al (2007) ressalta que não há definição de estratégias de implementação dos programas complementares, pois ocorre uma ausência de indução de programas de geração de emprego e renda. Em relação a contribuição concreta para o desenvolvimento da autonomização das famílias, a natureza das ações não permite a possibilidade do que poderia considerar-se uma capacitação capaz de alavancar a autonomização das famílias, constituindo-se este aspecto possivelmente em um dos mais problemáticos no desenvolvimento do Bolsa Família, mesmo que a articulação com programas estruturantes se constitua em elemento central na própria proposta do Programa (SILVA, 2010). Compreendemos, contudo que, para as famílias alcançarem sua emancipação, a ênfase deve estar direcionada ao trabalho, que sejam criadas 117 formas e condições para que os indivíduos libertem-se de situações de privação, pobreza e carência através do seu trabalho - que deve ser central numa perspectiva emancipatória. A partir das diversas ações implementadas pelo Programa direcionadas às famílias como: transferência de renda, ações complementares, incentivo ao acesso a políticas públicas de saúde e educação, questiona-se, o Programa Bolsa Família colabora para a concretização da PNAS ou continua como prática assistencialista? A questão que se coloca refere-se à capacidade do Programa Bolsa Família atuar como mecanismo de superação da pobreza e não meramente de sua manutenção num determinado nível, dada a existência de fatores, segundo Silva et al (2008), limitantes quando a proposição é mais que administrar ou controlar a pobreza, mas a sua superação. Há que se considerar os desafios a serem enfrentados para melhoria do desempenho do Programa no combate à pobreza como a não inclusão de todas as famílias elegíveis, isto é, que atendem aos critérios de elegibilidade definidos, o corte de renda muito baixo para inclusão das famílias e o valor monetário transferido às famílias, ainda insuficiente para atender a suas necessidades básicas (SILVA, 2005). Entretanto, mesmo com os limites postos para efetivo enfrentamento da pobreza das famílias, contidos no desenho do Programa Bolsa Família, não é impropriedade afirmar que o Programa adquiriu, ao longo de sua dinâmica de implementação, grande dimensão quantitativa no Brasil, atendendo, como visto, a um público quantitativamente significativo, alcançando uma cobertura jamais vista na história da política social brasileira. É importante ter presente que o Programa Bolsa Família é um programa estratégico no enfrentamento da pobreza no Brasil, e como um programa de transferência de renda é apenas uma das ações implementadas pelo Estado de forma descentralizada nos estados e municípios brasileiros, devendo estar articulado a outras políticas públicas, visando minimizar a situação de vulnerabilidade social - intensificada pela forte concentração de renda no país - expressa no cotidiano das famílias (SILVA et al, 2011). 118 Para além da transferência de renda, posto que a transferência por si só não garante que a família pobre saia da situação de pobreza, como visto, a centralidade na família destacada no Programa Bolsa Família aponta para o entendimento de que o Estado deve dispensar às famílias, via políticas públicas, as atenções necessárias para que tenham condições de processar proteção a seus membros, visto que a proposta do Programa não se limita a propiciar o alívio imediato da pobreza, mediante transferência de renda, propondo-se, inclusive, a garantir o acesso das famílias aos direitos sociais básicos: saúde, educação, assistência social e segurança alimentar. Contudo, a fragilidade do sistema de proteção social brasileiro, marcado fortemente pelo seu caráter residual e emergencial, impõe limites ao atendimento das necessidades das famílias pobres, aliados aos limites de se enfrentar uma questão de natureza estrutural como a pobreza, que pressupõe investimento em políticas de geração de emprego e renda, segurança alimentar, reforma agrária, dentre outras. 119 CONSIDERAÇÕES FINAIS Internacionalmente, o debate sobre programas de transferência de renda situou-se no contexto de mudança da sociedade salarial, denotando-se crescente ruptura entre trabalho, tempo e renda, com consequentes rebatimentos sobre o funcionamento do WelfareState. Entretanto, a base histórica desse debate está relacionada com a visibilidade da questão social a partir da primeira metade do século XIX, como fenômeno das sociedades capitalistas. Nesse contexto, dois mecanismos de integração dos trabalhadores na sociedade salarial ampliada nos países desenvolvidos foram determinantes na estruturação das políticas sociais: o pleno emprego, preconizado pela política keynesiana e a cobertura dos riscos sociais (doença, invalidez, desemprego), mediante instituição do WelfareState, idealizados por Beveridge. Após os “anos gloriosos do pós-guerra”, esses riscos são incluídos na agenda de reformas instituídas após a década de 1970. Na perspectiva dessas reformas, a política de transferência de renda é apresentada como uma das alternativas para o enfrentamento da pobreza crescente, decorrente principalmente das práticas neoliberais privatizantes e liberalizantes. Ressaltamos que o resultado da orientação produtiva flexível no âmbito das economias capitalistas, sob o ideário neoliberal, tem constituído um paradoxo entre o crescimento das economias e o aumento do desemprego estrutural e a precarização do trabalho que, em última instância, têm engendrado novas bases para a questão social – denotando uma renovação da velha questão social, inscrita na própria natureza das relações sociais capitalistas sob outras roupagens e novas condições sócio-históricas de sua produção/reprodução na sociedade contemporânea, aprofundando suas contradições (IAMAMOTO, 2001, p. 18). No Brasil, esse debate também se insere numa conjuntura de hegemonia do projeto neoliberal, com o reordenamento do frágil modelo de seguridade social, quando a Constituição Federal de 1988 parecia abrir espaço para a universalização dos direitos sociais. Presenciou-se, então, o crescimento do desemprego, de insegurança nas grandes cidades, do 120 reconhecimento da baixa qualificação dos seus trabalhadores e do recrudescimento da pobreza. Sob a determinação da nova ordem do capital na perspectiva da globalização e da reforma do Estado brasileiro, as ações estatais no campo da assistência social vem sendo redesenhadas no sentido de sua focalização nos segmentos em situação de pobreza absoluta e, em ações centradas, predominantemente, nos programas de transferência de renda, conforme demonstrado na análise realizada sobre os recursos investidos nestes programas. Ressaltamos que, apesar do crescimento do volume do gasto social, especialmente com esses programas, os níveis alcançados resultam insuficientes para satisfazer as necessidades de amplos setores da população. A focalização do gasto social na extrema pobreza e na pobreza deixa de fora uma grande parcela de pobres, pois a focalização a partir de linhas de pobreza, exclusivamente baseadas na renda familiar, apresenta o problema de não considerar inúmeras famílias que porventura estejam acima da linha demarcada, mas que permanecem em situações de vulnerabilidades. Esses programas, focalizados desse modo, permitem a “inclusão” do beneficiado não por direito, mas sim por ser mais pobre que o “vizinho”, não sendo garantido, portanto, a base de igualdade necessária a uma política social. A focalização e a seletividade parecem contraditórios com a ideia de direito e o valor do benefício é considerado insuficiente para o atendimento das necessidades básicas que ultrapassem ao da reprodução biológica das famílias. Além disso, esses programas requerem o cumprimento de contrapartidas de seus benefícios. Questão controversa, pois, para alguns, tal vinculação constitui em um mecanismo de proteção aos direitos à educação e à saúde, estimulando o exercício do direito dos mais pobres aos serviços públicos universais, para outros – é o que defende esse trabalho – é que tais exigências ocultam a dimensão constitucional do direito à sobrevivência digna, independentemente de qualquer “merecimento” para obtê-la. 121 Observa-se que os programas implementados pelo governo federal seguem uma perspectiva político-ideológica orientada por pressupostos liberais, mantenedores dos interesses do mercado, apresentando um caráter compensatório, tendo como regra a focalização na extrema pobreza, obscurecendo “as origens econômicas e políticas da pobreza, considerando os padrões de redistribuição de riqueza, rendas e poder dentro da sociedade” (STEIN, 2005, p.378). Esse movimento parece afastar-se, gradativamente, do paradigma da seguridade social definido na Constituição Federal de 1988, da concepção de direito para reforçar medidas focais de proteção social aos segmentos mais vulneráveis da população. Não há dúvida que a implantação do Programa Bolsa Família em todos os municípios brasileiros provocou uma melhora nas condições de vida de milhões de brasileiros que a eles tem acesso. É fato o impacto que esses programas causam nas famílias beneficiadas, o efeito de alívio, ao conceder a obtenção ou ampliação de uma renda, até então inexistente ou insignificante quando proveniente do trabalho, sendo, em muitos casos, esses programas a única possibilidade de obter renda, mesmo que baixa. Todavia, reconhecendo o mérito e os efeitos distributivos dos programas de transferência de renda, na análise do IPEA, através de seu presidente Marcelo Neri (2012), fica notória a pouca representatividade do PBF no contexto geral da distribuição da riqueza, visto que a melhoria dos níveis desta distribuição está fortemente embasada nos benefícios concedidos pela Previdência39, e que, quando comparados a esses benefícios, o PBF apresenta um volume financeiro pequeno, não sendo, em consequência, o fator determinante para a referida melhoria. Os programas de transferência de renda com condicionalidades mostram-se conservadores, e desprovidos da noção de direito. Neste sentido 39 Benefícios concedidos pela Previdência:Aposentadoria Especial; Aposentadoria por tempo de contribuição; Aposentadoria por invalidez; Aposentadoria por idade; Auxílios doença, acidente e reclusão; Pensões por morte; Salário família; Salário maternidade e o Benefício de Prestação Continuada – BPC – LOAS. 122 não efetuam uma ruptura com a lógica neoliberal. São programas que, transitam “no fio da navalha, essa estreita fronteira entre direitos e carências”, (TELLES, 1998, p. 22). E é neste ponto que se encontra o maior desafio desse programa, que: diz respeito às mediações políticas entre o mundo social e o universo público dos direitos e da cidadania. Essas mediações, a serem construídas e reinventadas, circunscrevem um campo de conflito que é também de disputa pelos sentidos de modernidade, cidadania e democracia. Disputa que diz respeito também ao sentido político e desdobramentos possíveis de programas de enfrentamento à pobreza [...] Pois, no fio da navalha em que transitam, suas promessas de cidadania dependem grandemente da fundação da política como espaços de criação e generalização de direito (TELLES, 1998, p. 22). Há que compreender que esses programas se constituem necessariamente um paliativo que, em si, não atacam as causas da pobreza, apenas tornam menos adversas as condições de vida dos mais pobres, reduzindo, em alguma medida, os altos níveis brasileiros de miséria e pobreza, mas não se constituem uma resposta à questão social, pois não são capazes de agir nas causas desse fenômeno. Não garantem emprego, não asseguram direitos e não tem efeito sobre a socialização da riqueza socialmente produzida. Na sociedade em que o capitalismo radicalizou seu fundamento básico – progredir economizando trabalho – uma política de transferência de renda, quando desvinculada de medidas de caráter estrutural, não representa senão uma justiça residual e periférica, que se orienta por uma visão harmoniosa da sociedade, obscurecendo as lutas contra as desigualdades sociais e postergando as possibilidades de mudanças radicais. Na verdade, o atendimento de outras carências não vinculadas diretamente à renda, tais como acesso ao saneamento básico, atendimento de saúde, educação, transporte, informação, direitos de cidadania, são tão urgentes e, em muitos casos, mais urgentes que o aumento da renda e do consumo privado das famílias. Nesse sentido, é necessário que a assistência social transponha as fronteiras de uma ação isolada e/ou limitada e aumente sua integração às demais políticas setoriais, pois é justamente sua característica “interdisciplinar e intersetorial que a faz estabelecer interfaces e vínculos orgânicos com as 123 demais políticas sociais no seu conjunto” (PEREIRA, 2004, p. 59). Ademais, é requerido conhecer o espaço dos programas de transferência de renda implementados pelo governo federal brasileiro; assegurar visibilidade orçamentária; reorientar o gasto social com eles; garantir competência técnica e institucional; fazer com que sejam reconhecidos como direitos do cidadão, além de virem acompanhados por uma ampliação do acesso das famílias atendidas aos serviços e bens públicos, permitindo que estas saiam da sua condição de vulnerabilidade. Ao final dessa trajetória, é possível verificar que a questão social que aflige o Brasil requer mais que a implementação de políticas assistencialistas/compensatórias de transferência de renda que complementem políticas universais, mas que sejam articuladas a uma política macroeconômica e que o Estado, além de promover a geração de emprego e renda, cumpra o papel de redistribuição de renda e garanta expansão e democratização dos serviços sociais das redes públicas, tornando possível o acesso dos pobres, dos desempregados e dos precarizados, por meio do direito à políticas sociais. Desse modo, o viés liberal que tem demarcado os programas de transferência de renda no Brasil, limitando-os a perspectivas marcadamente assistencialista/compensatória, poderia ser superado por uma perspectiva distributivista, ou seja, quando os programas de transferência de renda, que são indispensáveis em países com as características de incidência de pobreza e desigualdade de renda do Brasil, forem entendidos apenas como um dentre os muitos componentes de uma política de assistência social e amplo desenvolvimento econômico de distribuição de renda. 124 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALAYON, Norberto. Assistência e assistencialismo: controle dos pobres ou erradicação da pobreza? São Paulo: Cortez, 1995. AZEREDO, Verônica Gonçalves. Entre paredes e redes: o lugar da mulher nas famílias pobres.Revista Serviço Social e Sociedade.n.103 São Paulo: Cortez, jul/set, 2010. BARRETO, Alcyrus Vieira Pinto; HONORATO, Cezar de Freitas. Manual de sobrevivência na selva acadêmica. 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