VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 O ESTIGMA E A LOUCURA: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS A PARTIR DE ERVING GOFFMAN Camila Muhl1 As relações entre estigma e os transtornos mentais já foram amplamente discutidas, como nos trabalhos de Nunes e Torronté (2009), Loch (2011) e Martins et al (2013), esse trabalho não se dispõe, portanto, a esmiuçar ainda mais essa relação. O objetivo desse estudo é mostrar que as pessoas com transtornos mentais são estigmatizadas, ou podem vir a ser, de maneira muito particular em relação às outras pessoas com estigma e se, conforme nosso argumento, essas pessoas são estigmatizadas de uma forma diferenciada, o método de investigar como ocorre esse processo com as pessoas com transtornos mentais também precisa ser pensado nessa particularidade. Para pensar esse processo de atribuição de um estigma e seu estudo posterior, vamos voltar à obra de Goffman, e realizar uma análise teórica. Goffman (1988) entende que um estigma surge de uma discrepância entre a identidade social virtual - as características que imputamos a um indivíduo - e a identidade social real – as características que esse indivíduo de fato apresenta: quando olhamos um estranho a nossa frente, e percebemos atributos que o torna diferente dos outros, ele passa a ser incluído numa categoria menos desejável, reduzindo-o a uma pessoa estragada, diminuída, o termo estigma então é usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas na realidade se trata apenas dos atributos propriamente ditos, mas das relações, já que “Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso” (GOFFMAN, 1988, p. 06). A partir da definição de estigma como a situação em que o indivíduo está inabilitado para a aceitação social plena, Goffman (1988) separa as pessoas com um estigma em duas categorias, por um lado, temos as pessoas desacreditadas, aquelas em que o motivo de serem estigmatizadas fica visível em qualquer encontro face a face, e de outro, temos as pessoas desacreditáveis, que apesar de terem um motivo para serem estigmatizadas, esse não é aparente, e portanto, essas pessoas podem manipular a informação a seu respeito, evitando que as outras pessoas descubram o seu atributo depreciativo. Todo o trabalho que Goffman (1988) apresenta sobre o estigma tem como base essa divisão, como a forma de resposta – os desacreditados precisam controlar a tensão enquanto os desacreditáveis precisam manipular a informação – as estratégias utilizadas em relação ao estigma – os desacreditáveis usam do “encobrimento” para que seu estigma passe despercebido enquanto os desacreditados usam do “acobertamento” onde fazem grandes esforços para que seu atributo depreciativo apareça menos – e mesmo a carreira moral e a metodologia de estudo serão diferentes entre esses dois casos. Essa classificação parece não estar completamente adequada as pessoas com transtornos mentais, pela intermitência destes: quando uma pessoa está em surto o seu transtorno mental fica evidente em qualquer contato interpessoal, ela pode ser classificada como desacreditada, mas se os sintomas estiverem em remissiva, o que é habitual em alguns transtornos ou que pode ser efeito do uso de medicação adequada, o transtorno mental já não é facilmente identificado, a pessoa assume o status de desacreditável, e pode manipular a informação ao seu respeito, escondendo seu sofrimento psíquico, possíveis internações em Instituições Psiquiátricas e seu atendimento na rede de atenção à saúde mental. As pessoas com transtornos mentais podem assumir então os dois papéis, tanto de desacreditadas como de desacreditáveis, possibilidade esta que não está prevista na obra de 1 Universidade Federal do Paraná Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 Goffman. O campo de estudo dos transtornos mentais é cheio de controvérsias e polêmicas, sobretudo no que diz respeito a uma conceituação de doença mental, então, para os fins desse estudo, utilizou-se como critério para definir uma pessoa com transtorno mental como aquela que apresenta alterações mórbidas de personalidade, conduta, humor ou pensamento, conforme apresentados na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 10, 2007). Já na tipologia proposta por Goffman (1988), os transtornos mentais são classificados como um estigma de culpa de caráter individual, que dizem respeito às paixões, a vontade fraca e as crenças falsas. Nesse mesmo tipo de estigma também estão incluídos a prisão, os vícios, o desemprego e a homossexualidade; a associação a esses outros atributos depreciativos pode ser explicada com a internação, no século XVII, nas grandes instituições psiquiátricas não só das pessoas com transtornos mentais, mas também de todos os indivíduos que causavam algum incomodo na sociedade e todas essas “culpas” acabam por recair sobre os transtornos mentais (FOUCAULT, 2008). A carreira moral do indivíduo com transtorno mental será diferente da carreira moral das pessoas com outros estigmas (GOFFMAN, 1974) e também a metodologia de estudo do estigma precisará ser adequada para dar conta do estudo das pessoas com transtornos mentais. Considera-se central a questão do método de estudo do estigma, já que é a partir de um método bem elaborado e bem fundamentado que se torna possível uma pesquisa que traga dados e resultados fidedignos e válidos. Goffman (1988) elabora o método para estudar o estigma através da comparação entre os quadros de referência e a rotina diária da pessoa com estigma. Os quadros de referência dizem respeito aos grupos sociais e as normas em que a pessoa está inserida. A escolha pela rotina diária se dá por ser ela que vincula as diversas situações sociais de que ela participa, já que, em sua obra, Goffman (2007) se preocupa com as interações e as relações de proximidade, propondo e executando uma microssociologia. O método de estudo do estigma é aplicado a partir da divisão desacreditado/desacreditável: se a pessoa é uma pessoa desacreditada, o foco do estudo deve ser procurar o ciclo cotidiano de restrições que essa pessoa enfrenta quanto a sua aceitação social; se for o caso de uma pessoa desacreditável, deve-se buscar as contingências com que se depara na manipulação da informação sobre a sua pessoa. Diante da já explicitada potencialidade da pessoa com transtorno mental poder se apresentar ora como desacreditada e ora como desacreditável e da impossibilidade de ter os dois status simultaneamente, surge a necessidade de pensar como adequar o método de estudo do estigma as pessoas com transtornos mentais: para não excluir a divisão proposta por Goffman (1988) é necessário que o pesquisador se dedique em um momento inicial a analisar cada caso de pessoa com transtorno mental individualmente para identificar em qual das duas posições da classificação a pessoa se situa. Concluímos então que para aplicar a metodologia proposta por Goffman (1988) aos transtornos mentais é necessário acrescer uma nova etapa, anterior as outras, que consista no diagnóstico situacional da pessoa com transtorno mental, e, a partir da identificação como desacreditada e desacreditável é possível prosseguir com a análise do caso especifico. REFERÊNCIAS CID 10 - Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10. Ed. São Paulo: EDUSP, 2007. FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Lisboa: Texto & Grafia, 2008. Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petropolis: Vozes, 2007. 233 p. GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988. 158 p. _____. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974. 316 p. LOCH, Alexandre Andrade et al . O estigma atribuído pelos psiquiatras aos indivíduos com esquizofrenia. Rev. psiquiatria clínica, São Paulo, v. 38, n. 5, 2011 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010160832011000500001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 04 Out. 2013. MARTINS, Gizele da Conceição Soares. et al. O estigma da doença mental e as residências terapêuticas no município de Volta Redonda – RJ. Texto contexto - enfermagem. Florianópolis, v. 22, n. 2, Junho 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010407072013000200008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 04 Out. 2013. NUNES, Mônica; TORRENTÈ, Maurice de. Estigma e violências no trato com a loucura: narrativas de Centros de Atenção Psicossocial, Bahia e Sergipe. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 43, supl. 1, Agosto 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003489102009000800015&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 04 Out. 2013. Curitiba –08 de novembro de 2013