2014: ANO EUROPEU DA SAÚDE MENTAL E DO CÉREBRO “É PRECISO OUVIR, ESTAR CURIOSO e aberto à diferença para conseguir ajudar” Durante dez anos no Reino Unido a trabalhar no Serviço Nacional de Saúde Britânico (NHS), João G. Pereira, Doutorado em Psicoterapia pela Universidade de Middlesex, trabalhou tmbém em escolas com o objetivo de educar e sensibilizar para os sintomas da doença mental e os efeitos dos estupefacientes. Hoje, enquanto Diretor Clínico da Casa de Alba, uma comunidade terapêutica direcionada para adultos com perturbações mentais graves, a base está na “construção de relações seguras e de confiança, mas com limites e fronteiras bem estabelecidas, onde se estimula muito a individualidade”, afirmou em conversa com a Revista Pontos de Vista. Vidas com sentido. É este o lema que a Fundação Romão de Sousa abraça diariamente. A saúde mental ainda é um estigma na sociedade portuguesa? De que forma têm contribuído para derrubar barreiras que persistem? Em Portugal, com a informação a um passo de distância, ainda existem barreiras que impedem as pessoas de receber o tratamento de que necessitam? A informação existe mas nem sempre é de qualidade. O que necessitamos é de serviços humanizados e programas profissionais continuados no tempo. É necessário investir na prevenção primária. Na sociedade portuguesa e não só. É um problema global. Vivemos num mundo de inúmeros estímulos e muitas pressões. Não estar apto, informado ou ‘na norma’ autoexclui o indivíduo. É natural, mas não necessariamente saudável, que a pessoa que sofre se queira ‘esconder’, e que a própria sociedade não tenha interesse em ‘descobrir’. Poderíamos dizer que o estigma é co-criado. A perturbação mental, para além de muitas outras coisas, é também uma ‘mensagem’. Uma mensagem de que algo não está bem no mundo (interno e externo) do indivíduo. É uma forma criativa de ser ‘visto’ numa sociedade e, por vezes, numa família que, de forma mais ou menos explícita, não soube acolher a sua individualidade. Isto não significa que andemos à procura de culpados. Acima de tudo, queremos ajudar as pessoas a perceber o papel que têm na construção do problema (e a invertê-lo quando possível). É responsabilidade de todos. É com este tipo de ação educativa e responsabilizante que a Fundação Romão de Sousa pensa contribuir. É preciso ouvir, estar curioso e aberto à diferença para conseguir ajudar. O consumo do número de antidepressivos, a evolução dos suicídios ou o consumo de substâncias psicoativas colocam Portugal entre os países europeus que registam a maior taxa de doenças mentais. O que se está a passar? O consumo de substâncias e, no limite, o suicídio, adormece a consciência de um mundo (intrapsíquico e interpessoal) que é, ou se tornou, intolerável. É intoleravel não sermos reconhecidos pelo Outro, ouvidos ou ajudados a crescer. Seja esse Outro um familiar, um professor ou, num sentido mais geral, o governo de um país. Mas estes são, de facto, os dados apresentados pelo Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental. É um problema multi-fatorial. Para além do contexto histórico-cultural Português e da atual conjuntura politico-financeira existem outras questões de fundo que poderíamos chamar de ‘micro-fatores’ do quotidiano e da relação. A falta de disponibilidade psicológica, o ato de prescrever para abafar sintomas sem perceber a ‘mensagem’, ou a própria ‘colusão’ de alguns agentes sociais ao procurar ‘restringir’ ou ‘interditar’ a pessoa dos seus direitos fundamentais, contribuem para a perpetuação do problema. Isto se acreditarmos que a separação-individuação é um fator protetor da saúde mental. Aliás, tanto a Lei Portuguesa de Saúde Mental como Todos os dias ouvimos falar num aumento de dificuldades para todos os portugueses, que trazem naturalmente mais preocupações. Acredita que deverá haver uma maior educação e sensibilização para a saúde mental? João G. Pereira o Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre o Ano Europeu de Saúde Mental mencionam que se deve reforçar a autonomia das pessoas com problemas de saúde mental através de direitos legais e de abordagens que não substituam as decisões próprias. É urgente inverter esta tendência. 62 No início do meu percurso de dez anos pelo Reino Unido trabalhei em escolas a educar/sensibilizar para os sintomas da doença mental e os efeitos de estupefacientes. Não creio que tenha tido qualquer resultado. Aliás, os estudos demonstram que este tipo de ações não é eficaz. Nestas sessões falava-se essencialmente de sintomas e de doenças, como se fossem questões exclusivamente do domínio biológico, o que a meu ver aumenta o estigma (ao assinalar a diferença) e desresponsabiliza o Outro. Hoje sabemos que a grande maioria dos problemas mentais são relacionais e, como tal, causados ou potenciados ‘em relação’. Em vez de ‘debitar’ informação, parece-me mais importante investir em programas que ajudem as pessoas a relacionar-se de forma saudável e segura desde muito cedo. Programas de prevenção primária a longo prazo e com consistência (que não terminem com a mudança de governos), contratação de psicólogos e outros profissionais para os infantários, escolas primárias e centros de saúde e, de forma mais geral, mudança das men- ESPECIAL IV ANIVERSÁRIO talidades através de bons exemplos. A consistência e a previsibilidade geram segurança. Para alcançar os resultados a que se propõem, qual tem sido a importância de um trabalho de cooperação com outras organizações nacionais e internacionais? De que forma é que esta partilha de conhecimento tem sido essencial para o desenvolvimento de novas terapias e diferentes modelos de atuação? Criámos recentemente uma Comissão Consultiva com especialistas internacionais de Portugal, Espanha e Reino Unido que nos ajudam a ‘pensar’ e a melhorar os nossos programas. Para além disso, participamos em diversos Congressos e Reuniões Científicas e contribuímos com frequência para publicações na área da Saúde Mental. A comunicação é essencial para a construção dos nossos modelos e gostamos de falar com toda a gente independentemente da abordagem ou ‘disciplina’. Não pertencemos, nem queremos pertencer, a nenhum clube. A Fundação Romão de Sousa criou na sua sede, Casa de Alba, uma comunidade terapêutica direcionada para adultos com perturbações mentais graves. A partir do momento em que se entra nestas instalações, o que se pode esperar? Interesse, dedicação e curiosidade. A nossa base é a construção de relações seguras e de confiança, mas com limites e fronteiras bem estabelecidas, onde se estimula muito a individualidade. Apostamos fortemente na formação e na supervisão. Muitos dos nossos profissionais estudaram mais de 10-12 anos a nível universitário e fizeram um longo percurso pessoal para poderem ser sensíveis aos múltiplos ‘micro-aspectos’ das relações. A partir desta base surgem as intervenções. Temos psicoterapia individual e de grupo com psicoterapeutas acreditados, consulta de psiquiatria, enfermagem, trabalho social e ocupacional, bem como um leque variado de terapias expressivas, desporto, equitação, projetos de agricultura na nossa propriedade, entre outros... O projeto é residencial e temos apoio 24 horas por dia. Tendo em conta os desafios que continuam a surgir, qual continuará a ser a linha de atuação da Fundação Romão de Sousa no sentido de continuar a ser uma “aliada” das pessoas que sofrem perturbações mentais graves? Para além do nosso compromisso em estabelecer uma relação segura e de qualidade com os nossos residentes (sem dúvida o maior dos desafios) sentimo-nos na obrigação de avaliar o que fazemos para podermos melhorar. Trabalhamos com várias universidades nacionais e estrangeiras nesse sentido. O Departamento de Psicologia da Universidade de Évora tem sido o nosso maior aliado, o que é ótimo pois estamos muito próximos geograficamente. 63