CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO DE 2007 EVENTOS MIDIÁTICOS E FATOS JURÍDICOS – UMA TRÉPLICA José Eisenberg1 Na primeira quinzena de junho, o jornal O Globo publicou dois artigos dialogando sobre a complexa e ambígua relação entre a mídia e o judiciário. No primeiro artigo, publicado no dia sete, o Desembargador Luiz Felipe Salomão, motivado pelos recentes eventos em que o judiciário foi mobilizado na defesa dos direitos civis de indiciados por crimes investigados pela Polícia Federal, critica os critérios de julgamento e condenação prévia operados pela mídia. Em um segundo artigo, publicado cinco dias depois, o jornalista Dimmi Amora refuta argumentos do artigo do desembargador, defendendo o papel investigativo da mídia, cujos procedimentos e critérios de julgamento, por vocação, seriam distintos daqueles adotados pelo judiciário. Esse texto é uma modesta tréplica. Há algo sobre como a mídia e o judiciário valoram o mundo, e sobre como cada um concebe seu papel na construção social da realidade, que merece uma reflexão mais aprofundada. O tema, aliás, não é nosso, é global. Por todos os lados, testemunhamos a um afastamento do mundo da opinião e do mundo dos juízos autoritativos dos Estados nacionais. Escândalos jornalísticos rivalizam com decisões judiciais para definir os parâmetros da formação da opinião pública acerca de conflitos sociais judicializados. De um lado, a mídia persegue narrativas que tenham um longo fio condutor que empurre a audiência de seus veículos para amanhã e além. De outro, um judiciário acuado e fragilizado pela suas próprias improbidades, busca proteger seus procedimentos e valores, como a igualdade perante a lei e um devido processo legal, de uma potencial devassa sem critérios que a mídia realiza para reproduzir sua indústria de narrativas escandalosas. Essa aparente distância entre a construção de eventos midiáticos e de fatos jurídicos é complexa porque esse afastamento é ambíguo. Entre o evento midiático e o fato jurídico existe uma vala comum na forma como a mídia e o judiciário constroem, processam e valoram a realidade social. Tanto a mídia quanto o direito criam sua própria tradução do real; uma tradução normativa, cujos valores emanam da própria leitura que fazem do mundo da vida. Eventos midiáticos podem ser assim adjetivados porque descrevem o tratamento 1 Professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e membro da coordenação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES). 1 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO DE 2007 conferido à realidade pelas instituições do mundo da opinião que controlam a informação circulante. Fatos jurídicos, por sua vez, são jurídicos precisamente porque foram admitidos nos procedimentos das instituições do direito; gozam de uma fé pública que nem todo fato social tem em nosso ordenamento jurídico. Da mesma forma, eventos sociais nem sempre desfrutam da mesma visibilidade que eventos midiáticos. As dissonâncias e ambigüidades que hoje emanam das vozes do judiciário e da mídia são um reflexo inequívoco da distância dos olhares dessas duas instituições perante nossa realidade social. Elas são visíveis, por exemplo, na forma como expressões idênticas adquirem sentidos muitos distintos no cotidiano de escritórios de advocacia e nas redações de imprensa nos Estados Unidos. Pergunta o advogado do escritório: “Do we have a case?”, enquanto pergunta o editor do jornal: “Do we have a story?”. Num caso, o caso, no outro, a estória. Em ambos, contudo, uma postura investigativa que requer uma tradução. No caso jurídico, o fato social converte-se quando reescrito de acordo com os procedimentos e normas que regem o Estado de Direito, a começar pelos direitos civis daqueles que podem ser julgados de forma autoritativa, isto é, com uso de coerção legítima. No caso da narrativa jornalística, o fato social converte-se quando reescrito de acordo com os procedimentos e normas do manual de redação. Mas isto é de baixa relevância quando comparado à verdadeira tradução que se dá na espetacularização da narrativa que a torna sedutora a um público que, cada dia mais desconfiado das instituições do Estado, vê nelas sempre e apenas o próximo escândalo já esperado, pois a corrupção afinal, lhes é endêmica. Quando esses dois universos de tradução se encontram diante de um mesmo fato social, muitas vezes a complexidade e ambigüidade da relação desse “casal infernal” produz um encontro infeliz. Surgem desses encontros o que chamo de “quasecasos jurídicos”: narrativas complexas e já bastante elaboradas nos céleres processos de digestão da informação jornalística, mas que ainda não chegaram ao mesmo estágio de processamento institucional, ou grau de juridificação, no caso dos processos legais que, por mais célere que sejam, sempre contêm ritos e procedimentos que jornalistas podem ignorar, mas não juízes. Em uma mídia cada vez mais orientada a um modelo de entretenimento competitivo e interativo, a tribunalização dessas narrativas torna-se inevitável. Quando o caso está quase juridificado, rapidamente a opinião pública, até mesmo a mais esclarecida, já construiu um quase-caso jurídico, pleno de pré-julgamentos sobre “processos” que, às vezes, ainda nem tramitam no 2 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO DE 2007 âmbito do judiciário. Nesta conjuntura particular, o decisor do judiciário depara-se com um “quase-caso” que já contém como um de seus elementos constitutivos, uma cobertura ostensiva por parte da mídia da narrativa em tela, composta primordialmente de eventos midiáticos que não são, pelo menos ainda não, fatos jurídicos. Quase-casos jurídicos tornam difícil a convivência entre a mídia e o judiciário, o casal infernal da metáfora de Robert Badinter, na referência do Des. Salomão. A vida infernal deste casal de tantos encontros pode ser uma simples casualidade luhmaniana – subsistemas que se encontram acidentalmente na hermenêutica autista do real que cada um produz. Pode ser, entretanto, que as rinhas desse casal sejam resultado da miopia que compartilham em não enxergar com a clareza necessária a dependência mútua que define suas relações no mundo contemporâneo. As nossas mídias corruptas não têm a autoridade moral necessária para acusar o judiciário de conivência, ativa ou passiva, com a corrupção política. Os nossos magistrados, por sua vez, precisam afirmar uma postura menos corporativa se querem ser reconhecidos pelos formadores de opinião em geral, e pela mídia em particular, como produtores eficientes de justiça. Incluso nessa dependência mútua, não esqueçamos, a transparência que cada instituição exige da outra e que sempre esbarra na opacidade que ambas compartilham. Sinto um certo incômodo republicano quando leio argumentos como os apresentados pelo jornalista Amora em sua réplica, que parecem querer tribunalizar a sociedade em todos as suas esquinas, utilizando-se de uma antropologia que prega a justiça inerente às relações cotidianas que, na verdade, se fossem libertadas das amarras jurídicas do Estado, a mim parece que nos levaria a uma sociedade pósmedieval, onde ser linchado pela “família, vizinhos, empresas”, seria apenas outra forma de aplicar a pena inscrita no confinamento severo, educativo e presumidamente ressocializante imposto pelas mãos implacavelmente (in) justas e (in) eficientes do Judiciário. E assim criam-se quase-casos jurídicos. Quase-casos porque a mídia já os julgou em seus tribunais sociais autoconstituídos no seio de sua audiência. Quasecasos porque perante o escrutínio pseudomoralista da opinião pública, tendo sido exposta sua própria fragilidade nos temas em que os “escândalos” do presente estão pautados, fundamentalmente corrupção e vida privada. O judiciário, nesses quasecasos, frequentemente se porta como se fosse impotente. Espelho da sociedade da 3 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO DE 2007 qual emana, são dele também os vícios e virtudes que ela contém, e assim silencia uma instituição que tem o dever de não calar. 4