A TEORIA DA AÇÃO DIALÓGICA NO NOVO CENÁRIO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA Alexsandro Medeiros1 Edilson Albarado2 Estamos vivenciando um novo contexto no processo de redemocratização do Brasil que se iniciou desde o movimento das diretas já na década de 80. Por um lado a sociedade civil organizada, através de movimentos sociais, organizações nãogovernamentais, associações de bairros, movimentos populares, têm participado de uma forma mais direta na gestão da coisa pública, seja ela municipal, estadual ou nacional e no âmbito do poder legislativo e do executivo. Por outro lado, as manifestações das últimas semanas do mês de junho vêm mobilizando a sociedade de uma forma raramente vista no atual contexto da nossa democracia, levando às ruas toda sua insatisfação e indignação com a forma como as decisões políticas vêm sendo elaboradas ao longo de décadas. São esses dois aspectos desse cenário político nacional que pretendo refletir nessa apresentação a partir de uma leitura freireana da realidade social. No que diz respeito ao primeiro aspecto nossa democracia, apesar de representativa, tem criado mecanismos que permitem uma maior participação da sociedade civil (organizada ou não) na gestão da coisa pública. O modelo atual de democracia no Brasil, que Boaventura de Sousa Santos (2002) chama de democracia liberal, representativa, “não garante mais que uma democracia de baixa intensidade [...] na distância crescente entre representantes e representados e em uma inclusão política abstrata feita de exclusão social” (p. 32). Daí a necessidade de se pensar novos modelos, como a democracia participativa ou democracia popular, “protagonizada por comunidades e grupos sociais subalternos em luta contra a exclusão social e a trivialização da cidadania” (ibidem, p. 32). Essa democracia participativa não exclui a representatividade mas é pensada a partir de uma maior participação da sociedade civil junto aos representantes eleitos através do sufrágio universal. Mas para que a sociedade civil possa participar desse novo modelo é preciso que ela esteja preparada para dialogar com nossos representantes. Por isso acreditamos que a pedagogia dialógica freirena não pode ser pensada apenas como um “método” de ensino-aprendizagem a ser utilizado na sala de aula, e sabemos que o próprio Freire não limitava sua pedagogia dentro do contexto escolar, mas também como um “método” que precisa ser utilizado nessas novas “ágoras” de discussão e participação popular: seja nas casas legislativas (Congresso Nacional, Assembleias Legislativas, Câmaras Municipais) através dos mecanismos ali existentes de participação popular, como por exemplo, as Audiências Públicas; seja no âmbito do Poder Executivo, através, por exemplo, dos Conselhos de Políticas Públicas (saúde, educação, assistência social etc.). “É impossível a neutralidade da educação [...] Ela é política” (FREIRE, 1996, p. 110). Não se pode estar no mundo de forma neutra, apolítica, e, como cidadãos, precisamos estar preparados para participar destes espaços de discussão política de interesse social e coletivo. A própria Constituição de 1988 prevê e assegura o controle participativo da gestão pública pelos cidadãos de várias formas e em alguns casos atribui, inclusive, 1 Professor Assistente da UFAM e Pesquisador FAPEAM. Mestre em Filosofia pela UFPE. Contato: [email protected] ou [email protected]. 2 Professor substituto da [email protected] UFAM. Licenciado em Pedagogia pela UFAM. Contato: competência legislativa ao eleitor para dar início ao processo de formação da lei. Essa participação é assegurada em nível federal (art. 61, § 2º), estadual (art. 27, § 4º) e municipal (art. 29, XI e XIII; art. 31, § 3º). A Constituição de 1988 é permeada “de dispositivos que efetivamente asseguram a plenitude da participação popular, por diversos meios, na própria gestão da coisa pública, de tal modo que se pode dizer que existe uma missão constitucional da sociedade civil” (BORGES, 2008, p. 02 – grifo da autora). Ora, sabemos que a pedagogia freireana é conhecida, principalmente, por sua crítica à pedagogia tradicional e ao estilo “bancário” de transmissão de conhecimento. Sendo esta última um modelo de educação que se baseia naquilo que Freire chama de “cultura do silêncio”, ela não pode ser adequada a esse modelo de democracia participativa. Já na educação problematizadora, homens e mulheres, em lugar de serem recipientes dóceis de depósitos, são investigadores críticos, em diálogo com a sociedade. A educação bancária é desumanizadora pois anula uma característica essencial do ser humano: o diálogo. O diálogo é uma exigência existencial, um fenômeno humano ou, em outras palavras, o homem é um ser de palavra. “Quando tentamos um adentramento no diálogo como fenômeno humano, se nos revela algo que já podemos dizer ser ele mesmo: a palavra” (FREIRE, 1987, p. 77 – grifo do autor). Neste sentido, podemos dizer que o diálogo não apenas constitui a essência do ser humano, uma exigência existencial, que dá autenticidade ao ser do homem mas, também, é condição sine qua non para toda e qualquer sociedade que se pretenda democrática. Daí a exigência de uma Educação dialógica que possa ser pensada para além do âmbito escolar: uma educação para a democracia, para os direitos humanos, para o exercício pleno da cidadania, fundada na palavra e no diálogo. A crítica freirena à educação bancária se dá em favor do pensar autêntico que só pode se realizar pela comunicação, ou melhor, pela intercomunicação. “Daí que não deva ser um pensar no isolamento, na torre de marfim, mas na e pela comunicação” (FREIRE, 1987, p. 64). No que diz respeito ao segundo aspecto mencionado logo no início da nossa apresentação, a pedagogia freireana também deve ser pensada como uma teoria que orienta o agir o humano em sociedade, como temos visto ultimamente nas mais recentes mobilizações pelo Brasil. Ora, a Pedagogia freireana pode ser entendida como uma Pedagogia Humanista que luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, ou ainda: uma Pedagogia dos homens empenhando-se na luta pela sua libertação. Tal seria, de acordo com Paulo Freire, a grande tarefa humanista e histórica dos “oprimidos”: buscarem recuperar sua humanidade e sua libertação das contradições sociais. Libertação a que os oprimidos não chegarão pelo acaso, mas pela práxis, pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Uma práxis que não é nem puro ativismo ou mero verbalismo, mas uma ação baseada em uma razão reflexiva, centrada no sujeito que dialoga com o mundo, consigo e com os outros (FREIRE, 1976; 1996). Sem este conhecimento e esta práxis, é impossível a superação das contradições sociais. A teoria da ação dialógica freireana se baseia em quatro princípios fundamentais: colaboração, união, organização e síntese cultural (FREIRE, 1987). O eu dialógico não se constitui sozinho mas com o tu. A ação dialógica não se faz sem a comunhão com o povo e a comunhão provoca a colaboração. A teoria da ação dialógica se funda na colaboração, na união dos oprimidos entre si, e destes para a sua libertação e na organização com as massas populares. A realidade social (objetiva) existe como produto da ação dos homens (subjetiva). Homens e mulheres são produtores desta realidade e transformá-la é tarefa nossa, através da colaboração, união, organização e síntese cultural que é a modalidade de ação com que, culturalmente, se fará frente à força da própria cultura, enquanto mantenedora das estruturas alienantes da sociedade. De acordo com essa teoria da ação dialógica, o homem é o ator transformador de sua própria história: na construção de sua práxis, na luta e no enfrentamento dos conflitos sociais, no engajamento que o impulsiona em suas conquistas a buscar um mundo melhor, o homem tem de transformar-se num sujeito da realidade histórica em que se insere, humanizando-se, lutando pela liberdade e pela desalienação. Os homens são seres da práxis e que emergem do mundo objetivando-o, podendo conhecê-lo e transformá-lo com o seu trabalho. Dessa forma, acreditamos que o século XXI exige uma atuação mais contundente dos seres humanos nessa busca pela sua humanização e a pedagogia freirenana pode contribuir bastante neste processo inclusive no sentido de que devemos estar conscientes de que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 1987, p. 52). Referências Bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 17. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, 2001. BORGES, Alice Gonzalez. Democracia Participativa. Reflexões sobre a natureza e a atuação dos conselhos representativos da sociedade civil. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, n. 14, jun/jul/ago, 2008. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. ____. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura). ____. Pedagogia do Oprimido. 31. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. SANTOS, Boaventura de Sousa [org.]. Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Vol. 1.