a teoria do contrato e o pensamento político-jurídico da

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REVISTA CIENTÍFICA DA UFPA – EDIÇÃO Nº 03, MARÇO, 2002
A TEORIA DO CONTRATO E O PENSAMENTO POLÍTICO-JURÍDICO
DA FILOSOFIA KANTIANA
Dersú Georg Menescal Pereira (Bolsista PIBIC/CNPq, [email protected])
Profª. Drª. Ângela Maroja (Orientador, Departamento de Filosofia/CFCH-UFPA,
[email protected])
ABSTRACT
With this work, we return to the modern contractualist doctrines, in order to
understand Kant’s prominence position, as a follower of Rousseau, in the
panorama of the contemporary philosophy politics. We can detach as a
Kant’s heir and follower of the doctrines contractualists, John Rawls, for
example, who wrote A theory of justice. This theoretician recognizes that
he substantiated his notion of justice as equity in the concept of autonomy
from the will (morally determined will) of Kant. This theoretician and, like
himself, Jürgen Habermas had given a political reach to the kantian notion
of autonomy from the will, transforming moral autonomy in political
autonomy.
INTRODUÇÃO
Nosso ponto de partida nesse trabalho retoma a famosa declaração de Kant a
respeito de Rousseau, quando aquele define este último como “o Newton de filosofia
moral”. Ora, sabemos que na filosofia, as reflexões práticas, tradicional e
inevitavelmente, desembocaram em uma indagação de alcance político, com o
pensamento jurídico ocupando um papel mediador entre os dois termos da relação
que assim se constituiu entre a filosofia moral e a filosofia política.
Podemos dizer que Rousseau, autor do Contrato social, juntamente com
Kant, que escreveu uma Doutrina do direito, buscaram uma única raiz para explicar
a relação mútua entre o domínio privado do exercício da liberdade e o domínio
público, onde se constitui a capacidade dos cidadãos de se “autodeterminarem”
democraticamente. Em sua obra Direito e democracia, Habermas expõe este
princípio único, a saber, “... a idéia da autolegislação, que significa [tanto] autonomia
moral para a vontade particular... [quanto]... para a formação coletiva da vontade [é]
o significado da autonomia política...”1.
A aproximação entre o domínio privado e público do exercício da liberdade,
ou seja, entre a moral e a política, tendo como termo médio o direito, promovida pela
filosofia kantiana, influenciou diversos teóricos modernos de filosofia política, dentre
eles podemos destacar John Rawls e Jürgen Habermas.
Habermas compreende que o direito tem um papel mediador entre as
reivindicações políticas e as exigências morais. Segundo o que ele expõe em sua
obra Direito e democracia “a vontade política de uma comunidade jurídica, que
também deve estar em harmonia com idéias morais, é a expressão de uma forma de
vida compartilhada intersubjetivamente, de situações de interesses dados e de fins
pragmaticamente escolhidos”2. Disso podemos concluir que, o direito apesar de
necessariamente dever estar de acordo com normas morais, tem de expressar fins
1
HABERMAS, J. Direito e Democracia, entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro
1997. Vol. I, Cap. IV, pp. 190-198.
2
Idem. V ol. I, Cap. IV, pp. 190-198.
1
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pragmáticos, ou seja, tem de fazer referência a questões de segurança, partilha de
bens (propriedade) e estilos de vida.
Através da noção da posição original, que é o fundamento da teoria da justiça
como equidade de Rawls, a autonomia moral kantiana, isto é, a liberdade e
independência que o sujeito racional tem de seguir os princípios provindos de sua
razão, ganha uma dimensão pública. Rawls teoriza uma situação inicial hipotética,
na qual pessoas racionais (e autônomas) se associam em uma comunidade política,
escolhendo os princípios regentes das suas instituições sociais de modo que eles
sejam publicamente aceitos e valham para todos os associados. Dessa forma, os
homens exercem sua autonomia em uma sociedade política, na qual vivem de
acordo com princípios racionais que eles escolheram em uma posição eqüitativa,
exercendo, assim, a sua natureza de “seres racionais iguais e livres, com liberdade
de escolha”3. O resultado é que, os princípios escolhidos nessa situação incluem
todos na cooperação social, colocando-os em uma situação social de igualdade.
Com este projeto, nosso intuito foi o de examinar a questão da justiça no que
diz respeito à legitimidade do Estado moderno, tomando como referência a doutrina
contratualista de filosofia política, mais especificamente Kant e Rousseau.
Entendemos que a coordenação entre moral e política concebida pelas teorias
políticas tanto de Rousseau quanto de Kant, é a pedra de toque para o
entendimento da constituição do Estado justo na modernidade.
MATERIAIS E MÉTODOS
Os procedimentos metodológicos que foram utilizados nessa pesquisa obedeceram
as regras que são próprias da investigação filosófica. Isso significa que se tratou de
uma pesquisa eminentemente bibliográfica que foi desenvolvida a partir de
identificação das fontes bibliográficas (sobretudo as fontes primárias), leitura e
interpretação das mesmas.
RESULTADOS
Primeiramente, devemos iniciar ressaltando a importância do fundamento moral da
teoria político-jurídica kantiana no panorama da filosofia política contemporânea.
Podemos dizer, com a ajuda de Wolfgang Kersting em seu artigo Política, liberdade
e ordem, que Kant, em oposição à tradição de filosofia política, exclui de sua teoria
político-jurídica qualquer tipo de fundamento egoísta como a conquista, a
autopreservação, ou a preservação de interesses particulares. Kant funda a sua
teoria em preceitos morais4, ou seja, no respeito recíproco e nas noções de dever e
liberdade.
Para compreendermos o fundamento moral da teoria jurídica kantiana,
devemos compreender que, para Kant, existe um direito que deriva da natureza
racional humana, de sua capacidade moral de se autodeterminar segundo leis
universais, se desprendendo de qualquer interesse particular e influência externa
(leis naturais, contingências, etc). Kant afirma em sua obra Doutrina do direito que
3
4
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 281.
Diz Kersting a respeito da filosofia de Kant: “Na história antecessora da filosofia prática fundamentos
e primeiros princípios se traduziam em idéias objetivas, em uma constituição normativa do cosmos,
na vontade de Deus, na natureza do homem, ou na prudência a serviço do interesse próprio; mas
Kant estava convencido que esses pontos de partida eram sem exceção inadequados para a
fundação de leis práticas incondicionais ... Seres humanos devem somente obedecer a sua própria
razão; nisto reside a sua dignidade como também a sua exata e árdua vocação moral.” KERSTING,
Wolfgang. Politics, freedom, and order: Kant’s political philosophy. Cambridge: Cambridge
University Press, 1994 (The Cambridge companion to Kant). p. 342.
2
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esse direito é “a liberdade (independência do arbítrio de outro), na medida em que
possa conviver com a liberdade de todos, segundo uma lei universal”5. Não
podemos deixar de perceber que esse direito parece ter sido extraído do imperativo
categórico kantiano, ou seja, da lei moral. Reproduzindo a primeira formulação do
imperativo categórico, exposta por Kant na Fundamentação da metafísica dos
costumes, podemos ler: “... Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao
mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”6. Já a segunda formulação,
exposta na mesma obra, entrevê o sujeito moral em relação com qualquer outro,
estabelecendo por esse viés, as bases do chamado respeito recíproco. Eis a
segunda formulação: “... Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua
pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e
nunca simplesmente como meio”7. Podemos perceber que o preceito kantiano do
direito, exposto acima por nós, obedece perfeitamente à exigência de universalidade
da primeira formulação do imperativo moral, exigindo a subsunção da ação à lei
universal e, conseqüentemente, concebendo a validade do preceito para todos (se o
homem é livre deve respeitar a liberdade de qualquer outro). No que se refere à
segunda formulação do imperativo moral, o princípio do direito parece também
traduzi-la, defendendo a pessoa humana como fim tanto no que diz respeito à
independência dos arbítrios uns com relação aos outros, como no que concerne à
convivência das liberdades dos sujeitos do direito.
Podemos perceber, também, a subordinação do direito com relação à moral
em Kant comparando a lei universal do direito, exposta por ele na sua obra Doutrina
do Direito, com as duas formulações, já expostas por nós, do imperativo categórico,
que expressam a lei moral. A lei universal do direito é assim expressa: “... age
exteriormente de modo que o livre uso do teu arbítrio possa se conciliar com a
liberdade de todos, segundo uma lei universal...”8. Parece que a lei universal do
direito está contida no imperativo categórico moral, seguindo o preceito do respeito
recíproco expresso na segunda formulação do imperativo categórico, e de
universalidade expresso na primeira formulação, substituindo apenas a motivação
moral, que é interna, pela legalidade externa, que seria própria das normas jurídicas.
Efetivamente, o que diferencia a legislação jurídica da moral, que para Kant
são leis racionais e universais, é o fato de que, enquanto a lei universal do direito se
refere somente às ações, a lei moral enfatiza o papel da motivação propriamente
moral da vontade. A legislação jurídica só exige ações em conformidade com a lei,
não exigindo que a vontade traduza o motivo do respeito pela lei. Assim, a legislação
moral exige que a vontade seja motivada pela própria moralidade, sendo somente
então as ações derivadas dessa vontade, ações verdadeiramente morais9. Podemos
5
KANT, Emmanuel. La Métaphisique des Moeurs. 1ª ed. Paris: Éditions Gallimard, 1986 (Oeuvres
Philosophiques). I, Divisão da doutrina do direito, §B, p. 487.
6
KANT, Emmanuel. Fundamentação da Metafísica dos costumes. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural,
1974 (Col. Os Pensadores). Segunda Seção, p. 223.
7
Idem. Segunda Seção, p. 229.
8
KANT, Emmanuel. La Métaphisique des Moeurs. 1ª ed. Paris: Éditions Gallimard, 1986 (Oeuvres
Philosophiques). I, Introdução a doutrina do direito, §C, p. 479.
9
Kant fala a respeito das leis morais o seguinte: “Essas leis da liberdade são chamadas de morais,
de forma a serem distinguidas das leis naturais ou físicas. Quando se referem somente a ações
externas e a sua legalidade, são chamadas de jurídicas. Porém, se, além disso, exigem que as
próprias leis sejam os princípios determinantes da ação, então são chamadas de éticas na acepção
mais própria da palavra. E então diz-se que a simples conformidade da ação externa com as leis
jurídicas constituí sua legalidade ; sua conformidade com as leis éticas é a sua moralidade.”. Idem.
Introdução a metafísica dos costumes, II, p. 458.
3
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concluir, portanto, que do ponto de vista jurídico a questão da motivação da vontade
não é importante.
Podemos ainda acrescentar à nossa hipótese inicial em favor da ligação entre
política e moral na filosofia kantiana, alguns argumentos levantados por Kant em sua
obra Projeto de paz perpétua. Aqui, Kant aproxima a moral da política por meio da
noção de publicidade que ele reconhece como sendo essencialmente ligada à noção
de direito. A ligação entre a publicidade e o direito é expressa por Kant da seguinte
maneira: “todas as ações relativas ao direito do outro, cuja máxima não é suscetível
de publicidade, são injustas”10. Isso também implica a identificação da idéia de
justiça com a de publicidade. Em outros termos, toda máxima que tem a pretensão
de se constituir como lei jurídica deve ser publicamente reconhecida e aceita para se
configurar como tal, do contrário, será injusta. Kant, então, compõe o acordo entre
moral e política, ficando o direito como o termo mediador entre elas, centrando tal
ligação na identificação entre justiça e publicidade. Nas palavras do próprio Kant, na
obra citada há pouco: “Todas as máximas que possuem em seu efeito a
necessidade de publicidade, concordam com a moral e a política combinadas”11.
Portanto podemos concordar com Jürgen Habermas, em sua obra Direito e
democracia, que “no medium do direito... aos argumentos morais vêm acrescentarse razões pragmáticas e éticas”12, ou seja, o direito faz a mediação entre as
questões morais, que dizem respeito à justiça e as questões políticas, as quais
envolvem interesses comuns e fins coletivos pragmáticos.
Fundando a sua teoria político-jurídica sobre um alicerce moral, Kant rompe
com determinada tradição da filosofia política, como Maquiavel, Hobbes e Locke, a
qual admitia como princípios de suas teorias outras razões, as quais, de ordem
pragmática, teriam primazia sobre a preocupação com o que é justo. Maquiavel, por
exemplo, constituiu a política como a arte da conquista louvando os homens
(principalmente os príncipes ou governantes) mais pelo seu poder de conquista do
que pelo seu respeito pelos outros. Citemos um trecho da obra O Príncipe, o qual
demonstre essa admiração que Maquiavel parece demonstrar pelo princípio
expansionista da ação política: “É, de fato, muito natural e comum o desejo de
conquistar. Quando, podendo, os homens o realizam, merecem ser louvados e não
criticados...”13. É esta tendência expansionista da ação política que denominamos
em filosofia política como darwinismo social e político.
Ao transformar a política em uma espécie de “jogo” pela conquista do poder
Maquiavel termina por separar, como, aliás, Kersting ressalta, a política da moral14.
Assim concebida, o objetivo da política não é, efetivamente, em primeira instância, a
justiça, mas sim manter os homens dominados, ou unidos sob o poder coercivo do
governo de um Estado forte.
10
KANT, Emmanuel. Projet de paix perpétuelle. 1ª ed. Paris: Éditions Gallimard, 1986 (Oeuvres
Philosophiques). Apêndice, II, p. 377.
11
Idem. Apêndice, II, p. 382.
12
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre facticidade e validade. Rio de janeiro: Tempo
brasileiro, 1997. Vol. I, cap. IV, pp. 190-198.
13
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 2ª. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996 (Clássicos). Cap. III,
p.14.
14
Ao falar de Kant, Kersting o compara a Maquiavel e conclui: “Kant revoga a separação de
Maquiavel entre moral e política, e por reintegrar a filosofia política sob a autoridade da razão pura
prática recriou a antiga unidade entre moral e política...” KERSTING, Wolfgang. Politics, freedom,
and order: Kant’s political philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1994 (The
Cambridge companion to Kant). p. 343.
4
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Para Hobbes, outro exemplo, os homens fundaram associações políticas
(associações civis, Estados) com o intuito de se resguardar da violência recíproca.
Violência recíproca essa que Hobbes admitiu ser fruto da condição natural das
relações humanas, a qual seria então uma condição de perpétua hostilidade mútua.
Hobbes define essa condição natural em sua obra O Leviatã como: “uma guerra que
é de todos os homens contra todos os homens”15.
Essa condição de guerra perpétua, de violência mútua despertaria nos
homens um sentimento de medo com relação a todos os outros homens, já que
todos poderiam vir a ser vítimas de violência a qualquer tempo. Hobbes expressa,
em sua obra O Cidadão que “... ninguém considera que lhe faça bem uma guerra de
todos contra todos...” e acrescenta que “... devido ao medo que sentimos uns dos
outros, entendemos que convém nos livrarmos dessa condição...”16. Portanto, é com
a função de garantir a segurança que os homens fundam o Estado, extinguindo a
guerra perpétua presente no estado natural da humanidade, e substituindo nos
homens o sentimento de medo pela busca de tranqüilidade. Portanto, em Hobbes,
como bem diz Paul Ricoeur, em sua obra O Justo, o que importa “... não é a justiça,
mas sim a segurança”17. A segurança é valorizada às expensas da justiça.
Para Locke, o Estado tem a função de manter e defender a propriedade
particular. Segundo esse pensador, os homens têm um certo direito natural à
propriedade, que é fundado no seu trabalho. Nas próprias palavras de Locke, em
sua obra Segundo tratado sobre o governo: “... cada homem tem uma propriedade
em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O
trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode dizer-se, são propriamente
dele”18. É para defender essa propriedade que os homens fundam o estado civil.
Nas palavras do próprio Locke, na mesma obra: “O objetivo grande e principal... da
união dos homens em comunidades, colocando-se eles sob governo, é a
preservação da propriedade”19. A questão principal na teoria política desse pensador
também não é a justiça e sim a preservação da propriedade privada. Os homens
unem-se em sociedade civil com o objetivo, em princípio egoísta, de assegurar a sua
propriedade e não de assegurarem o respeito recíproco ou de promoverem a justiça
e a igualdade social.
Todos esses autores colocam como prioridade outros princípios ou bens (a
conquista ou virtude militar, a prudência e a propriedade) no lugar da justiça, coisa
que Kant jamais admitiria.
Juntamente com Jean-Jacques Rousseau, Kant funda a sua teoria política
sobre princípios morais, colocando a justiça acima de qualquer outro bem. Para
Rousseau, que nesse sentido o antecedeu, o estado civil é erigido, antes de tudo,
para assegurar a igualdade de direito entre os seus cidadãos, estando,
intuitivamente, a idéia de igualdade associada, para nós, à de justiça20. Em suas
próprias palavras, extraídas de sua obra O contrato social: “... em vez de destruir a
15
HOBBES, Thomas Leviatã. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1974 (Col. Os Pensadores). Capítulo
XIII, p. 79.
16
HOBBES, Thomas. Do Cidadão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998 (Col. Clássicos). cap. I, §
13, p. 34.
17
RICOEUR, Paul. Le Juste. Esprit, 1995, p. 29-40.
18
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Col. Os
Pensadores). Capítulo V, p. 51.
19
Idem. Capítulo IX, p. 88.
20
Rousseau parece identificar igualdade e justiça, como deixa transparecer nessa passagem: “... a
igualdade de direito e a noção de justiça que ela produz...” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato
Social. São Paulo. 3ª ed, 1999. Martins Fontes (Coleção Clássicos). Livro II, cap. IV, p. 40.
5
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igualdade natural, o pacto fundamental substitui, ao contrário, por uma igualdade
moral e legítima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os
homens, e, podendo ser desiguais em força ou em talento, todos se tornam iguais
por convenção e de direito”21. Portanto, podemos aplicar à teoria política de
Rousseau e de Kant a afirmação de Jürgen Habermas de que “a justiça não é um
valor entre outros valores”22, já que a noção de justiça nesses pensadores não
concorre com outros valores, ela tem primazia sobre qualquer outro valor.
Já que a teoria político-jurídica kantiana e a teoria política rousseauniana são
fundadas sobre princípios morais, ou seja, dando primazia sobre a justiça com
relação a outros valores, a sociedade civil, sob a ótica desses pensadores, não pode
ser entendida como um espaço de desigualdades, de exclusão, de dominação do
homem pelo homem. Ao contrário disso, os homens associam-se em comunidades
políticas para se respeitarem mutuamente, para que sejam considerados como
cidadãos, e cidadãos aos moldes da teoria política Aristotélica, ou seja, possuindo “o
direito de voto nas assembléias e de participação no exercício do poder público em
sua pátria”23. Em suma, os homens associam-se em comunidades para exercerem
sua autonomia política.
Devemos, então, afirmar, junto com Paul Ricoeur, que a justiça deve ser
entendida como a partilha não só de bens que tenham valor comercial, mas deve ser
a partilha de encargos, direitos, papéis e tarefas24, tudo isso, possuindo uma
importância política.
O corpo político, em Kant e em Rousseau parece ser então, antes de tudo,
um corpo moral, que, como disse o último, deve assegurar o respeito recíproco, a
liberdade e a igualdade entre os homens, forçando os homens a serem livres25.
CONCLUSÃO
No nosso entender, a sintonia entre política e moral, tendo como termo médio o
direito tem, na filosofia kantiana, como conseqüência, tornar a justiça o bem público
por excelência. A política deve refletir moralidade, por meio do direito, porque a
própria possibilidade do estado jurídico (o estado de direito), segundo Kant, é a
justiça pública26. Por isto é que Kant defende que a política deve ter como máxima
maior a moralidade e a justiça, como ele mesmo expõe em sua obra Projeto de paz
21
Idem. Livro I, cap. IX, p. 30.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre facticidade e validade. Rio de janeiro: Tempo
brasileiro, 1997. Vol. I, cap. IV, pp. 190-198.
23
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo. 2ª edição, 2000. Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Livro
II, p. 42.
24
Ao se referir ao conceito de justiça, Ricoeur expõe: “A aplicação da regra de justiça às interações
humanas supõe que se possa tomar a sociedade como um vasto sistema de distribuição, isto é, de
partilha de papéis, de encargos, de tarefas, bem além da simples distribuição no plano econômico
de valores mercantis”. RICOEUR, Paul. Le Juste. Esprit, 1995, p. 29-40.
25
Diz Rousseau a respeito do pacto social, que tem como fundamento assegurar a igualdade e a
liberdade: “a fim de que o pacto social não venha a se constituir, pois, um formulário vão,
compreende ele tacitamente esse compromisso... aquele que se recusar a obedecer a vontade
geral a isso será constrangido... o que significa apenas que será forçado a ser livre...” ROUSSEAU,
Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo. 3ª ed, 1999. Martins Fontes (Coleção Clássicos).
Livro I, cap. VII, p. 25.
26
Diz Kant a respeito da relação entre estado jurídico e justiça pública: “O estado jurídico é aquela
relação dos homens entre si que contém as condições únicas sob as quais cada um igualmente
pode participar de seu direito de forma partilhada, o princípio formal da possibilidade desse estado,
considerado segundo a idéia de uma vontade universalmente legislativa, se chama justiça pública...
KANT, Emmanuel. La Métaphisique des Moeurs. 1ª ed. Paris: Éditions Gallimard, 1986 (Oeuvres
Philosophiques). I, Doutrina universal do direito, §41, p. 572”
22
6
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perpétua: “... a verdadeira política não poderia dar um passo, sem antes prestar
homenagem à moral”27.
Atualmente Rawls, herdeiro da filosofia kantiana, em sua obra Uma teoria da
Justiça, retoma a noção de justiça como bem público. Fundando a autonomia
política na autonomia moral, e fundando os princípios políticos (das instituições) sob
princípios morais, Rawls transforma a aplicação da justiça, ou seja, a partilha dos
direitos, deveres, encargos e benefícios sociais, no objeto primário das instituições
sociais. Para Rawls “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais”28 e “a
prática pública da justiça é um valor comunitário”29. Entretanto (e este é sem dúvida,
um dos aspectos mais problemáticos de sua teoria), Rawls pretende que sua
concepção de justiça tenha uma eficácia meramente política, pois, de outro modo,
seria incompatível com o pluralismo ético-moral que caracteriza as sociedades
contemporâneas.
Podemos perceber, por meio da filosofia rawlsiana, que a filosofia kantiana, e
a prioridade do justo sobre qualquer outro valor que ela encerra, tornou-se ponto de
referencia para a discussão da configuração do Estado justo na filosofia política
moderna.
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PLATÃO. A República. Belém. 3ª edição, 2000. Editora Universitária UFPa.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
27
KANT, Emmanuel. Projet de paix perpétuelle. 1ª ed. Paris: Éditions Gallimard, 1986 (Oeuvres
Philosophiques). Apêndice, II, p. 376.
28
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 3.
29
Idem. p. 588.
7
REVISTA CIENTÍFICA DA UFPA – EDIÇÃO Nº 03, MARÇO, 2002
RICOEUR, Paul. Le Juste. Esprit, 1995.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da
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Pensadores).
_____, Jean-Jacques. O Contrato Social. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999
(Col. Clássicos).
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