Considerações metodológicas sobre o estudo das classes sociais

Propaganda
Considerações metodológicas
sobre o estudo das classes
sociais
João Gabriel Loures Tury
Estudando a dinâmica da sociedade capitalista, Karl Marx
reconheceu o proletariado como a classe capaz de abolir a
propriedade privada e construir uma nova sociedade sobre a
base da socialização dos meios de produção. Um conjunto de
características assumidas no interior das relações sociais
capitalistas asseguravam ao proletariado o papel de sujeito
social da revolução socialista.[1]
Durante o século XX, especialmente após a Segunda Guerra
Mundial, o proletariado se diversificou profissional e
socialmente. Setores do proletariado fora do mundo da fábrica
se massificaram, surgindo grandes contingentes de funcionários
do Estado e de assalariados no setor de serviços, por exemplo.
E, com isso, iniciou-se um debate sobre o papel político que
cada setor proletário cumpriria na luta socialista
revolucionária.
Identificar a classe social ou setor de classe capaz de
colocar abaixo a ordem capitalista é fundamental, já que para
o projeto marxista emancipação só pode ser compreendida como
auto-emancipação. Não há possibilidade de transformação social
se seres humanos, coletivamente, não se insurgirem contra sua
própria exploração e opressão. Portanto, para uma correta
estratégia revolucionária, um partido socialista se defronta
com questões cruciais nos dias de hoje: como caracterizar
sociologicamente os distintos setores do proletariado? As
diferenças existentes entre esses setores sustentariam um
potencial político preponderante de alguma delas na luta
proletária pela revolução socialista?
Sem pretender apresentar uma resposta a estas questões, o
presente texto busca, partindo da discussão sobre o conceito
de classes sociais em Marx, contribuir com a indicação de
caminhos mais adequados para a resolução do problema. De igual
modo, pretende-se criticar os atalhos que, em vez de facilitar
o encontro de uma resposta marxista para a questão, nos
indicam caminhos equivocados.
A questão do método
Uma correta compreensão do conceito de classes sociais requer
o entendimento do processo de construção de conceitos e
categorias no pensamento marxista. É necessário, portanto,
estudar seu método.
Embora não tenha escrito um estudo específico e sistematizado
sobre a questão do método científico, Marx pensou e construiu
um coerente sistema metodológico. A elaboração de seu método
de pesquisa seguiu após um longo processo, desde o início de
seus estudos, na primeira metade da década de 1840, até o
final de sua vida. Pode-se afirmar que na “Introdução” ao
texto Para a Crítica da Economia Política, de 1857, Marx chega
a uma formulação que contém os elementos centrais de sua
metodologia.
A ciência, para Marx, deve procurar compreender o real como
ele é em si. A teoria é a apreensão deste real em si, é a
transposição do movimento realizado pelo objeto na realidade
para a mente do sujeito que conhece. Assim, o primeiro contato
do sujeito com o objeto é o contato com um concreto real. Mas
o que está explícito é apenas sua aparência imediata, apenas
um nível de sua realidade. O conhecimento que se inicia pela
aparência não pode parar nela, pois caso isso ocorra não
reproduzirá o movimento real, tal como ele acontece, ou seja,
não se aproximará da verdade. Para compreendê-lo, o pensamento
deve reconstruir este concreto na consciência, reestabelecendo
mentalmente as relações que o formam na realidade. Ou, em
outras palavras, ir da aparência até a essência do objeto:
compreender sua estrutura e sua dinâmica, que não estão
expostos à primeira vista.
O que permite caminhar da aparência à essência e reconstruir o
objeto real no pensamento é o método dialético, que é “o
método cientificamente exato”. Marx (1982, p. 14) o diferencia
do método dos
economistas do século XVII [que], por exemplo, começam sempre
pelo todo vivo: a população, a nação, o Estado, vários
Estados etc.; mas terminam sempre por descobrir, por meio da
análise, certo número de relações gerais abstratas que são
determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o
valor etc. Esses elementos isolados, uma vez mais ou menos
fixados e abstraídos, dão origem aos sistemas econômicos, que
se elevam do simples, tal como trabalho, divisão do trabalho,
necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as
nações e o mercado mundial. O último método é manifestamente
o método cientificamente exato. O concreto é concreto porque
é a síntese de múltiplas determinações, isto é, unidade do
diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como
processo de síntese, como resultado, não como ponto de
partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e,
portanto, o ponto de partida também da intuição e da
representação.
De início, o dado concreto deve ser analisado, dissecado,
separado internamente em pequenos elementos determinantes, que
serão abstraídos do todo. Este processo de análise permite
organizar a realidade caótica e iniciar o processo de sua
compreensão. Para Marx, esta é a ciência praticada pela
economia política clássica. Mas só isto não basta. Para
conhecer o objeto, os elementos abstratos precisam ser
recolocados num todo concreto, mas agora no pensamento. Um
processo de síntese deve suceder a análise e reconstruir as
relações do conjunto de elementos. Este concreto reconstruído,
diferente do primeiro concreto dado que era objetivo, se
encontra na consciência do sujeito. Quanto mais abstrações
forem realizadas e mais determinações forem identificadas,
quanto melhor a articulação e síntese relacional destas
determinações no pensamento, mais o conhecimento teórico do
objeto se assemelhará ao objeto real, mais próximo da verdade
se estará.
Assim, na teoria marxista, as categorias analíticas (como o
conceito de classes sociais) devem ser uma reprodução ideal o
mais fiel possível da realidade. E como a realidade social é
histórica, a apreensão desta realidade no pensamento não deve
produzir categorias teóricas imutáveis, abstratas. Os
conceitos e as categorias são ideias históricas e
transitórias, pois são o concreto no pensamento. Eles devem
expressar relações reais, não coisas. Isto permite extrair
tendências da realidade, não leis fixas e imutáveis como nas
ciências naturais, mas dinâmicas históricas e sociais,
influenciadas, inclusive, por outras tendências ou
contratendências.[2]
A tese deste texto é que apenas desta forma (como concreto
pensado) o conceito de classes sociais em Marx pode ser
compreendido.
O conceito de classes sociais em Marx
Tal como na questão do método científico, Marx não
sistematizou em um escrito sua teoria sobre as classes
sociais.[3] Este, que é um conceito central do pensamento
marxiano, está disperso no conjunto de seus textos
(filosóficos, de crítica à economia política e históricopolíticos). Assim, diversas interpretações se enveredaram por
simplificar o conceito, sugerindo, em geral, definições
monofatoriais.
Partimos da negação de que a noção de classes sociais pode ser
encontrada na teoria científica de Marx através de uma
definição estática.[4] Nada mais distante do método marxista.
Classes sociais “remete a um sistema de relações estruturado
pela luta” (BENSAÏD, 1999, p. 145). Não é possível conceber as
classes sociais deslocadas das relações conflituosas que as
classes estabelecem umas com as outras. São nestas relações, e
em decorrências delas, que surgem estes agrupamentos humanos.
A tarefa de interpretar o que Marx compreendia como classes
sociais deve reconstruir a concretude das classes a partir da
síntese das abstrações identificadas em suas análises das
relações sociais capitalistas, realizadas no conjunto de sua
obra. Neste intuito, Bensaïd (1999) recupera diversas
determinações, em diferenciados níveis, apreendidas por Marx
no conceito de classes sociais.
A reconstituição do conceito de classes em Marx parte da
desigualdade na relação estabelecida entre grupos de seres
humanos com os meios de produção. Apenas parte deste ponto,
não se conclui nele, sendo este um primeiro nível de
abstração. No Livro I d’O Capital, ao nível da produção, esta
determinação se expressa nas relações de exploração do
operário produtor pelo capitalista industrial, ou seja, pela
extorsão de mais-valia, e, consequentemente, na disputa em
torno do tempo de trabalho necessário e excedente.
Quando se analisa o processo de circulação no Livro II, é
possível notar como Marx passa para outro nível de
determinação. Identifica o conflito de classe na relação de
compra e venda da força de trabalho, entre patrão, à procura
de força de trabalho, e trabalhador, separado dos meios de
produção e vendedor da sua capacidade de trabalho. Assim, por
esta determinação se inclui no proletariado não apenas os
trabalhadores produtivos, já abrangidos pelo Livro I, mas
também os trabalhadores que não são diretamente produtores de
mais-valia.
Ainda n’O Capital, mas agora no Livro III, encontramos uma
nova determinação, ao nível da produção global: não se trata
de uma relação individual entre capitalista e trabalhador,
como aparece nos dois primeiros livros, mas social, através da
qual se estabelece uma divisão desigual da renda na reprodução
global.
Às determinações encontradas n’O Capital se agrega outra, que
se encontra ao nível político e ideológico. Nos conflitos
políticos se expressam as lutas entre as classes sociais. No
entanto, esta projeção das classes sociais na arena política
não acontece de forma pura, direta, sem contradições, como uma
simples manifestações de seus interesses objetivos ou de sua
natureza social. A influência da estrutura de classes nas
representações políticas é mediada pela autonomia relativa do
político frente ao social. Não há um reflexo direto do social
no político. O que, porém, não exclui as classes e a luta de
classes do político, nem impede a identificação desta
determinação específica; apenas torna-a mais complexificada.
A partir da reconstituição de um objeto real por meio de um
conjunto de abstrações intelectuais, é possível compreender o
conceito de classes sociais em Marx como um concreto pensado,
como uma síntese de múltiplas determinações. Fica evidente,
como afirma Bensaïd (1999, p. 163), que
enquanto a sociologia positiva pretende “tratar os fatos
sociais como coisas”, Marx os trata sempre como relações. Não
define de uma vez por todas seu objeto por critérios ou
atributos. Antes segue a lógica de suas múltiplas
determinações. Não “define” uma classe. Antes apreende
relações de conflito entre classes. Não fotografa um fato
social rotulado como classe. Antes visa à relação de classe
em sua dinâmica conflitual. Uma classe isolada não é um
objeto teórico, mas um não senso.
Conclusão
Como afirmamos na introdução, não é objetivo deste texto
apresentar respostas às questões levantadas no início. Estas
respostas devem ser elaboradas com o aprofundamento do estudo
sobre a sociedade capitalista e pelo debate coletivo entre
socialistas revolucionários. Apenas apresentaremos algumas
considerações sobre o caminho mais adequado para respondê-las.
Este caminho deve resgatar fundamentalmente o método marxista
de compreensão da realidade, tão bem resumido por Lenin:
“análise concreta da situação concreta”. Vejamos:
1. Para o marxismo, classes sociais é um conceito concreto.
Burguesia e proletariado existem na realidade, não são
meros instrumentos conceituais. Portanto, qualquer
análise que pretenda definir o potencial político
revolucionário dos setores do proletariado deve
descobrir este potencial concretamente na sociedade.
Estudar as definições que o marxismo apresentou para as
classes sociais e para o proletariado na história é
importantíssimo. Estudar a história e os exemplos de como se
estabeleceram as lutas entre classes sociais também é
fundamental. Contudo, estes estudos não conseguem responder
adequadamente às questões levantadas se não estiverem
relacionados ao desvendamento das relações entre classes na
sociedade em que se está inserido.
Um exemplo pode ilustrar a consideração acima. Leon Trotsky e
Nahuel Moreno compreendiam diferentemente a localização social
e política dos setores assalariados não-fabris. Trotsky, ao
analisar a realidade dos países imperialistas da década de 30
(Alemanha e EUA), opinava que teria surgido uma “nova classe
média” ou “nova camada média”. Esta seria formada por, entre
outros setores, trabalhadores do comércio, funcionários e
empregados técnicos. Já Moreno, cinquenta anos após Trotsky,
período no qual ocorreu uma intensa massificação e
proletarização destes assalariados, afirmava que eles fazem
parte do proletariado, que “os bancários são operários,
pertencem a classe operária” (MORENO, 2015).
Independente de quem esteja certo (ou se os dois estão
corretos), o que nos interessa é o método de análise. Ambos se
afastam de uma análise abstrata, de mera definição, para
procurar na sociedade concreta as relações econômicas, sociais
e políticas que formam as classes sociais. Em sociedades
distintas (continentes e épocas diferente) um mesmo setor
profissional possui localizações sociais e econômicas também
distintas. Nada mais coerente que as conclusões não se
coincidam.
Desta maneira, definir o potencial político dos setores do
proletariado é desvendar as relações de classes existentes
hoje no Brasil; é estudar a realidade social concreta: as
transformações da classe trabalhadora no mundo atual, a
formação do proletariado brasileiro, as mudanças geracionais e
as diferenças regionais, o setor que está se gestando maior
contradição social e potencialidade de lutas, onde está
concentrada a produção de valor na economia brasileira, qual a
dinâmica de luta de cada classe e setor de classe, etc.
2. O conceito de classes sociais, sendo concreto, é uma
totalidade. O marxismo não compreende a realidade
dividida em esferas. A realidade é um todo complexo,
relações de múltiplos elementos.
Embora a relação com os meios de produção seja o elemento
fundamental para o entendimento das classes sociais no
capitalismo, Lenin só pôde caracterizar a aristocracia
operária extrapolando a explicação de classe ao nível da
produção. Identificou outras determinações na configuração de
setores do proletariado, como o montante da riqueza social que
se apropria um determinado setor. Ou, voltando ao exemplo
anterior: enquanto Moreno presencia importantes greves de
professores e bancários que se chocam com os interesses
burgueses na América Latina, na Alemanha observada por Trotsky
estes setores sociais são base social do fascismo. Ou seja, a
atividade política de cada grupo também sugere, ainda que
indiretamente por se tratar de relações mediadas, uma
localização de classe.
Encontrar, na realidade, dinâmicas que sugerem determinado
setor do proletariado como vanguarda do processo
revolucionário só é possível analisando a totalidade de
elementos que formam este grupo social e a sua relação com as
demais classes e setores de classes. Deve-se partir das
relações de produção, elemento estruturante da sociedade
capitalista, mas esta análise deve expandir para outros níveis
da economia, assim como a compreensão da dinâmica de luta, das
instituições políticas e ideologias, etc. É fundamental
relacionar as relações de classes com outras relações sociais
hierárquicas como as de gênero, raciais, de orientação sexual,
regionais, e perceber como se cruzam e formam esta complexa
classe trabalhadora brasileira.
Bibliografia
BENSAÏD, Daniel. “As Classes ou o sujeito perdido”. In: Marx,
o intempestivo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999,
p. 141-174.
LÊNIN, Vladimir Ilitch. O imperialismo: etapa superior do
capitalismo. Campinas, SP: FE/UNICAMP, 2011.
MARX, Karl. Miséria da filosofia: resposta à Filosofia da
Miséria do senhor Proudhon. Porto: Publicações Escorpião,
1976.
________. “Para a crítica da economia política”. In: (Os
economistas). São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 1-132.
________. O capital: crítica da economia política. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, v. VI.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Princípios do Comunismo e
Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Editora Sundermann,
2007.
MORENO, Nahuel. Intervenciones em el Comité Ejecutivo de la
LIT-CIT.
Disponível
em:
<http://www.lct-cwb.be/images/pdfs/Moreno_es/48_NM.pdf>.
Acesso em: 30 de setembro de 2015.
NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São
Paulo: Expressão Popular, 2011.
TROTSKY, Leon. “A chave da situação mundial está na Alemanha”.
In: Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo:
Editora Instituto José Luíz e Rosa Sunderman, 2011, p. 29-48.
________. 90 anos do Manifesto Comunista. Disponível em:
<https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1937/10/30.htm>.
Acesso em: 30 de setembro de 2015.
________. Marxismo em nosso tempo. Disponível em:
<https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1939/marxismo/cap0
1.htm#i11>. Acesso em: 30 de setembro de 2015.
[1]
A localização central do proletariado no processo
produtivo, sua pauperização fruto da exploração promovida pelo
capital, sua revolta contra as condições degradantes de vida,
seu aumento numérico e seu papel político crescente na Europa,
etc., justificavam sua identificação de “classe que traz em si
o futuro”.
[2]
Essa é uma das características que diferencia a teoria
marxista de outras correntes sociológicas, como o pensamento
weberiano. Para Weber e sua metodologia de tipos ideais, os
conceitos não são expressão da realidade, pelo contrário, são
instrumentos analíticos criados pelo intelecto humano para
auxiliar a compreensão da realidade infinita e incompreensível
em si mesma.
[3]
No Livro III de O Capital, sob o título de As Classes,
há uma tentativa de sistematização do conceito de classes
sociais. O manuscrito, no entanto, foi interrompido e deixado
sem conclusão.
[4]
Com o intuito didático muitas vezes foram realizadas
definições do termo, como por exemplo, a clássica definição de
Engels na versão do Manifesto Comunista de 1888. Como um
instrumento de popularização da teoria marxista, estas
definições cumprem seu papel, são úteis. No entanto, não é o
mesmo se o que interessa é o conhecimento o mais exato
possível da realidade, com o intuito de transformá-la.
Download