O Trabalho Social com Famílias nos CRAS

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VI ENAPEGS
EIXO TEMÁTICO 2: GESTÃO SOCIAL, POLÍTICAS PÚBLICAS E TERRITÓRIO
O Trabalho Social com Famílias nos CRAS: Desafios e Potencialidades
para os Próximos Anos
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GANEV, E.
Resumo
Este artigo tem como objetivo participar da interlocução acerca das perspectivas da Política
Nacional de Assistência Social (PNAS), propondo uma reflexão em torno do trabalho social
com famílias realizado atualmente em âmbito nacional, através dos serviços ofertados nos
Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), constitutivos do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) recém-institucionalizado por Lei Federal. Suas referências
incluem diretrizes da própria PNAS e seus fundamentos teóricos no campo do Serviço
Social, estes oriundos da teoria social marxiana. Está organizado em Introdução e três
subtítulos, os quais apresentam, respectivamente: as principais atribuições dos CRAS
previstas nos documentos oficiais; um olhar sobre o cotidiano do trabalho social que vem
sendo realizado nos territórios e, a título de considerações finais, reflexões a partir de uma
visão macrossocial da estrutura de serviços já implantada no país, com dados de maio de
2011. As linhas de reflexão apontam para os riscos inerentes ao processo de
institucionalização – em particular a regressão ao paradigma assistencialista, e para as
possibilidades de materialização de um conceito de cidadania coerente com os ideais de
justiça social.
Palavras-chave: Trabalho Social, Centro de Referência de Assistência Social; justiça social.
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Eliane Ganev. Universidade Cruzeiro do Sul. E-mail: [email protected]
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EIXO TEMÁTICO 2: GESTÃO SOCIAL, POLÍTICAS PÚBLICAS E TERRITÓRIO
Introdução
O presente estudo foi realizado no período em que foi sancionado o Projeto de Lei n°
189/2011, que altera a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei Federal n° 8.742) e
institucionaliza o Sistema Único da Assistência Social (SUAS), em Julho de 2011, ato cuja
repercussão na grande mídia foi inversamente proporcional à sua relevância sócio-política,
de acordo com a discussão que aqui será proposta.
É interessante observar que, mesmo em se tratando da institucionalização de um sistema
de proteção social (que deverá, inclusive, dialogar com outros sistemas já implantados), a
sua ínfima visibilidade midiática o associou, ainda, muito mais ao Programa Bolsa Família,
como se o SUAS tivesse vindo ao mundo apenas para gerir tal Programa; ou ao chamado
Brasil Sem Miséria enquanto plataforma político-partidária efêmera e com finalidades
eleitorais. Tal enquadramento dificulta a compreensão do SUAS enquanto novo elemento
constitutivo da estrutura do Estado brasileiro destinado à operacionalização da Política
Nacional de Assistência Social (PNAS), esta configurada como parte de um amplo esforço
de superação das piores conseqüências das políticas neoliberais que, no final do século XX,
conseguiram o que parecia impossível: agravar as desigualdades sociais historicamente
engendradas no país.
Assim, se por um lado a construção material do SUAS é um processo sócio-político previsto
na própria PNAS e em curso desde há alguns anos, por outro, a sua legitimação jurídica
amplia as perspectivas do sistema, de vir a tornar-se variável significativa dentro daquele
amplo esforço de superação, esforço este que se materializa em distintas direções e não
isento de limites, contradições e revezes postos pela força econômica e poder político dos
melhores e piores representantes locais do capital. E já apresenta resultados e aspectos de
interesse em distintas dimensões da vida social, igualmente pouco visíveis, mas não menos
importantes, conforme pretendemos destacar neste artigo, uma vez que:
a) de forma articulada aos Benefícios e Programas de Transferência de Renda, o
SUAS propicia o acesso, por parte dos seus usuários, a aquisições materiais e
imateriais capazes de modificar o panorama sócio-econômico e cultural em cada
localidade, não só em termos individuais, mas também coletivos, tendo como espaço
privilegiado os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS);
b) embora tão recente historicamente, o sistema configura-se potencialmente
enquanto espaço público e institucional a partir do qual é possível realizar um
mapeamento objetivo e sempre atualizado das expressões contemporâneas e
especificidades da questão social no Brasil (em suas dimensões locais e nacional) de
forma a: conferir visibilidade social permanente aos sujeitos e segmentos
negativamente afetados; não só subsidiar, mas também pressionar a demanda por
políticas públicas que, para serem efetivas, por sua vez recolocam, na agenda política,
a questão mesma da revisão da atual estrutura de distribuição da riqueza socialmente
produzidai;
i
Pauta que historicamente não se concretiza sem a eclosão de movimentos sociais suficientemente
fortes; contudo, a explicitação permanente das contradições econômicas e sociais, que a
consolidação da PNAS sustenta, não deixa de ser fator de estímulo no incessante processo de
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c) fortalece, no âmbito do Serviço Social brasileiro (enquanto o dissemina para outros
âmbitos), o projeto ético-político da profissão em cujo horizonte figura o ideal de uma
sociedade justa e democrática; tanto em função do que até aqui foi pontuado, quanto
por trazer novas e mais elevadas exigências de qualificação da força de trabalho
envolvida na sua implantação. Tal qualificação precisa levar em conta as dimensões
teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa, de sorte a fazer frente a
desafios que, dialeticamente, cada nova etapa dessa implantação nos convida a
enfrentar, visto que novas respostas criam novas necessidades, ao mesmo tempo em
que velhos e persistentes dilemas sociais recolocam em perspectiva soluções nem tão
novas, mas que precisam ser reinventadas e reapropriadas pelas forças sociais como
um todo, inclusa a nossa categoria profissional.
Por outro lado, o SUAS, como qualquer outra construção coletiva que pressiona pela própria
institucionalização, tem de enfrentar os riscos da burocratização; da banalização do
atendimento à população; da perda dos objetivos que nortearam a sua invenção c oletiva; de
vir a tornar-se imensa máquina de reprodução do status quo, através da mera oferta de
aquisições materiais paliativas, comprometendo quaisquer especificidades pedagógicopolíticas nos territórios. Daí a importância de mante-lo em permanente problematização,
agregando ao trabalho profissional cotidiano, para além do intenso trabalho interventivo que
marca estes primeiros anos de sua implantação, as tarefas de discussão e reflexão
coletivas; de sistematização e socialização da produção dos novos c onhecimentos. Afinal,
as aquisições imateriais não são dirigidas apenas à população usuária da política, mas
igualmente aos seus operadores e gestores, visto que o protagonismo sócio-político é
atribuição de todos.
Este artigo pretende desenvolver então as linhas de reflexão acima indicadas, baseando-se
em dois níveis de aproximação do real: o micro e o macrossocial. E tendo em mente, no
plano temporal, que o momento atual (a partir de 2004, quando da aprovação da PNAS e
início de construção do SUAS, portanto, menos que uma década) define-se pela perspectiva
de consolidação (ou não) da ruptura (legal, institucional, operacional, cultural) com o
paradigma assistencialista da assistência social, configurando-se então como experiência
histórica inédita em muitos sentidos, mas em especial naqueles que se referem ao seu
caráter de intervenção continuada no tempo e no espaço dos territórios vividosii, e ainda, ao
seu caráter de intervenção planejada a partir de e orientada para objetivos sócio-políticos
definidos (erradicação da miséria, conforme o discurso governamental e jornalístico da
atualidade), os quais encontram-se em contradição material com a estrutura e o modelo de
organização social plenamente vigentes entre nós.
Desse modo, de início voltaremos o olhar para os espaços em que tal experiência sofrerá,
doravante, seus avanços, recuos, inércias, superações.
CRAS: portas de entrada da questão social na esfera pública local e nacional
gestação destes movimentos, uma vez que, sabidamente, a persistência da questão social implica
materialmente na recriação e ressurgimento de lutas sociais.
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Nas acepções de Santos (1997) e Koga (2003).
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Segundo texto oficial disponível no sítio do Ministério do Desenvolvimento Social (2011),
relativo ao papel dos Centros de Referência (CRAS), estes tem como atribuição exclusiva a
aplicação do “Programa de Atenção Integral à Família – PAIF”. Para tanto, devem:

Prestar serviços continuados de Proteção Social Básica de Assistência Social
para famílias, seus membros e indivíduos em situação de vulnerabilidade
social, por meio do PAIF tais como: acolhimento, acompanhamento em
serviços socioeducativos e de convivência ou por ações socioassistenciais,
encaminhamentos para a rede de proteção social existente no lugar onde
vivem e para os demais serviços das outras políticas sociais, orientação e
apoio na garantia dos seus direitos de cidadania e de convivência familiar e
comunitária;

Articular e fortalecer a rede de Proteção Social Básica local;

Prevenir as situações de risco no território onde vivem famílias em situação de
vulnerabilidade social apoiando famílias e indivíduos em suas demandas
sociais, inserindo-os na rede de proteção social, e promover os meios
necessários para que fortaleçam seus vínculos familiares e comunitários e
acessem seus direitos de cidadaniaiii.
O mesmo texto conceitua o que se entende por acolhimento, acompanhamento em serviços,
ações socioassistenciais e encaminhamentos, enuncia os objetivos de cada tipo de
intervenção e especifica qual é o perfil de famílias que possuem prioridade no acesso a elas.
Resgata ainda os objetivos do PAIF, a saber:

Fortalecer a função protetiva da família, contribuindo na melhoria da sua
qualidade de vida;

Prevenir a ruptura dos vínculos familiares e comunitários, possibilitando a
superação de situações de fragilidade social vivenciadas;

Promover aquisições sociais e materiais às famílias, potencializando o
protagonismo e a autonomia das famílias e comunidades;

Promover o acesso a benefícios, programas de transferência de renda e
serviços sócio-assistenciais, contribuindo para a inserção das famílias na rede
de proteção social de assistência social;

Promover acesso aos demais serviços setoriais, contribuindo para o usufruto
de direitos;

Apoiar famílias que possuem, dentre seus membros, indivíduos que
necessitam de cuidados, por meio da promoção de espaços coletivos de
escuta e troca de vivências familiares iv.
Sabemos que o SUAS prevê dois níveis de proteção social: a básica e a especial, cabendo
aos CRAS materializar o primeiro nível, enquanto o segundo nível fica por conta dos CREAS
iii
iv
MDS (2011).
Idem.
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(Centros de Referência Especializados de Assistência Social), que ofertam serviços
específicos para famílias em situação de violação de direitos. Não detalharemos aqui as
atribuições e objetivos dos CREAS, visto que suas especificidades em relação aos CRAS
não constituem objeto de discussão neste estudo; basta que tenhamos presente que estes
equipamentos e ofertas de serviços, envolvendo a proteção social básica e especial,
configuram-se enquanto as principais (embora não únicas) “portas de entrada” do sistema
que se propõe garantir acesso aos direitos socioassistenciais. Assim sendo, traremos a
seguir algum detalhamento apenas em relação aos CRAS, para fundamentar as análises
que serão expostas.
Sabemos, até pelo pouco tempo de existência destes equipamentos e serviços no Brasil,
que estão em distintos estágios de implantação, em cada localidade. Além disso, em função
das múltiplas diversidades locais: humanas, econômicas, culturais, políticas etc, já existe um
amplo e multifacetado rol de experiências em torno das ofertas de ações e atividades, como
também da construção de fluxos de referência/ contrarreferência e do grau de articulação,
integração e resolutividade da rede socioassistencial em cada território. Temos também
configurado um dilema institucional e político-cultural de monta, pelo fato de uma quantidade
relevante dos equipamentos já instituídos serem operados por instituições privadas e/ou
filantrópicas, e não por administração direta do poder público local. Já temos também certo
acúmulo de produção em termos de artigos, estudos, dados estatísticos, informes e outros
publicamente disponíveis (muitos no próprio sítio do MDS), os quais fazem chegar até nós
notícias sobre toda sorte de acertos e criações, mas também de entraves e distorções das
propostas e concepções desdobradas nas Normas Operacionais Básicas (NOBs) em vigor,
sem contar a existência de certa proporção de fraudes – como em qualquer
empreendimento humano, e ainda, de outros tantos CRAS cuja atuação pouco se distingue
do legado assistencialista e/ou burocrático que marcou a história da assistência social
brasileira.
No entanto, a partir da caracterização de algumas experiências que possam ser
consideradas como relativamente sintonizadas com tudo quanto está preconizado nos
novos marcos legais, e tomando-se alguns números que definem a dimensão da estrutura
pública em construção no país (os quais serão apresentados mais à frente), cabe perguntar
o que podemos inferir como possíveis perspectivas da PNAS e do SUAS para os próximos
anos, em termos de desafios e potencialidades?
Para responder a isto, primeiramente proponho que nos detenhamos a analisar este
processo do ponto de vista de sua cotidianidade local, a partir das indicações do próximo
tópico.
Um dia num CRAS: o trabalho social com famílias em nível micro-social
Tomemos os acontecimentos de uma jornada diária num CRAS, como uma das bases para
discutir as potencialidades sócio-políticas destes equipamentos e serviços (inclusa, como
dissemos, a proteção social especial). Cabe apontar que o relato a seguir oferece, para a
nossa análise, ocorrências reais (num CRAS realmente existente dentro de um território
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urbano que integra uma densa região metropolitana do país), embora aqui tenham sido
inscritas numa narrativa generalizante, cuja única finalidade é resguardar a identidade de
seus protagonistas.
Temos então que, num dia particularmente intenso, logo pela manhã foi realizada na sede
uma “reunião de rede” que, em sua terceira edição, sempre por iniciativa do próprio CRAS,
conseguiu dessa vez mobilizar cerca de quinze representantes de serviços e organizações
locais, a saber: Unidades Básicas de Saúde, escolas e creches, Centro Cultural, ONGs que
atendem idosos e crianças da comunidade (algumas religiosas, de distintos credos, e outras
laicas) e associações de moradores, com o objetivo de socializar informações sobre os
serviços prestados, critérios de atendimento e outros aspectos, bem como de melhor se
articularem entre si para otimizar seus recursos e seu grau de resolutividade face às
demandas que chegam através dos sujeitos atendidos em cada organização e serviço.
Trata-se de um fórum informal e não hierarquizado de intercâmbio e reflexão, mas nem por
isso deixa de afetar positivamente o modo como cada instituição ou equipamento,
isoladamente, opera no território. Anteriormente, mas também a partir destes encontros
periódicos, os seus participantes tem realizado visitas inter-institucionais pontuais, seja para
a discussão conjunta de casos sob acompanhamento (visando à definição conjunta de
estratégias e respostas), seja para conhecer in loco cada parceiro da região, o que também
já está permitindo, em alguns casos, superar dificuldades específicas de operação dos
serviços aí implicados, pois se constata que nem todos os entraves se devem à falta de
recursos financeiros e/ou humanos, e que muitas vezes é possível, horizontalmente,
encontrar respostas que demoram a ocorrer no espaço das relações verticais que cada ator
institucional, solitariamente, está obrigado a freqüentar.
Em seguida a esta reunião, e embora não fosse “dia de acolhimento” naquele CRAS (que
dedica dois dias na semana para as acolhidas individuais; outros dois dias para reuniões de
grupos socioeducativos, visitas domiciliares e/ou institucionais, e busca ativa no território; e
um dia para alternar momentos de estudo, supervisão de estágio, reuniões internas da
equipe para gestão local do serviço e capacitações), por conta da chegada de duas usuárias
de famílias em acompanhamento, uma parte da equipe (técnico em Serviço Social e dois
estagiários em Serviço Social), realizou estes atendimentos na sede.
O primeiro consistiu no retorno de uma jovem com 22 anos de idade, que aqui chamaremos
de Roberta, mãe de dois meninos (2 e 3 anos, respectivamente), que voltou ao CRAS a fim
de buscar apoio para a sua resolução de deixar o companheiro com quem vinha morando
(era esta a sua estratégia para garantir moradia para si e seus filhos, aos quais é muito
ligada, a fim de evitar as ameaças de abrigamento dos mesmos, quando de seu retorno do
Piauí a São Paulo, época em que ambos estavam fora da escola e Roberta transitava entre
duas moradias de algumas de suas irmãs, localizadas na mesma cidade sede daquele
CRAS, sem conseguir adaptação e/ou condições de permanência em qualquer delas). Após
cerca de dois anos de acompanhamento no CRAS, hoje seus meninos estão matriculados
em creches da cidade; ela providenciou seus documentos pessoais e conta com apoio
jurídico para obter novos originais dos documentos dos filhos (no Piauí); foi inclusa em dois
programas sociais, pelos quais recebe pouco mais de R$ 200,00 mensais, mas como o
companheiro “não deixa” que ela trabalhe, Roberta não consegue completar esta renda a
ponto de bancar sozinha um aluguel e demais despesas obrigatórias (o pai dos meninos, ao
que se sabe, permanece no Piauí, mas Roberta não tem idéia de onde e desse modo não
consegue entrar com ação judicial de reconhecimento de paternidade e pensão de
alimentos). No atendimento de hoje, ela retomou o fato de que sua falecida mãe deixou um
pequeno terreno com uma construção de cômodos em dois pisos, atualmente ocupada por
algumas irmãs e sobrinhos de Roberta (no piso superior, onde ela já morou por pouco
tempo) e por um primo solteiro (no piso térreo). Durante o atendimento foi então acionado
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um serviço local de mediação de conflitos, para buscar uma solução de comum acordo que
permita a Roberta e seus meninos ocupar o piso inferior, possibilitando que se desligue de
um relacionamento que lhe é altamente insatisfatório (além de representar certo risco para
ela mesma e as crianças); e alcançar um grau maior de autonomia, protagonismo, autoestima e exercício da cidadania (vale acrescentar que, alguns dias depois deste
atendimento, Roberta se fez espontaneamente presente na Conferência Municipal de Saúde
da cidade, na condição de usuária, e também tem participado assiduamente de um dos
grupos socioeducativos no CRAS).
O segundo atendimento foi para outra mulher, Ana, com cerca de 30 anos de idade, que há
cerca de um ano foi despejada, com seus sete filhos (tendo a filha mais velha 13 anos de
idade, e o caçula, dois anos). Por ocasião desta ocorrência foi acionado um técnico do
CRAS, que acessou serviços de emergência e acompanhou a acolhida dos filhos de Ana
por seus vizinhos, até que fossem encontradas soluções mais permanentes. Ana foi
encaminhada de imediato ao CREAS local e inserida num programa municipal de aluguel
social, o que lhe propiciou, juntamente com sua anterior inclusão em dois outros programas
sociais, uma renda mensal pouco superior a um salário mínimo, com o que ela conseguiu,
em poucas semanas, alugar um conjunto de cômodos, para o qual se mudou com sua prole.
Nos meses seguintes, ela foi inserida em grupo socioeducativo no CRAS (embora não tenha
aderido ainda) e encaminhada (pelo CREAS) para serviço especializado no atendimento a
vítimas de violência doméstica, visto que logo antes do despejo acabara de romper com o
pai de seus filhos caçulas; este constantemente a agredia e às crianças, em momentos de
intoxicação aguda por drogas, das quais se tornou dependente (a partir desta ruptura,
agravaram-se problemas que levaram à insolvência financeira e ao despejo do grupo
familiar). Paralelamente, foi encaminhada para um curso profissionalizante (que vem
pagando com recursos próprios), tendo completado recentemente os módulos de
maquiagem e depilação, sendo que já atende clientes em sua própria moradia. Veio ao
CRAS para o encontro mensal de acompanhamento do caso pela equipe, mostrando-se
entusiasmada com os progressos e expondo seus planos de aumentar a renda a tempo do
término de sua participação no programa de aluguel social (que tem duração máxima de
dois anos). O apoio do CRAS ao seu processo de profissionalização e reaproximação das
crianças parece estar favorecendo a superação de suas resistências aos acompanhamentos
da rede socioassistencial e a sua lenta adesão ao serviço de atenção psicológica a vítimas
de violência, ao qual está levando também os filhos; poucos dias após o atendimento aqui
descrito, Ana participou, pela primeira vez, de reunião do grupo socioeducativo, e foi
encaminhada para atendimento em serviço público de orientação de pequenos
empreendedores.
No mesmo dia, outro técnico do CRAS realizou (em dupla com um estagiário em Psicologia)
algumas visitas domiciliares, tendo apurado que uma das participantes em grupo
socioeducativo, Maria de Fátima, uma senhora com 66 anos de idade, encontrava-se em
crise de depressão; não conseguia dar conta da limpeza da casa e estava privada de
qualquer apoio (não tem filhos e mora com o esposo na mesma casa, porém, vivem
separados de fato, e em inimizade, há anos, sendo que ela, por falta de renda própria, não
se decide a separar-se). Apenas um casal de vizinhos, no final de semana anterior, ajudoua, colocando na calçada “uma porção de móveis velhos, entulho e tranqueiras” para serem
coletados pela “Operação Cata Bagulho” da prefeitura local. Na mesma tarde o CRAS
acionou a UBS de referência, ficando acertado que um Agente Comunitário de Saúde faria
nova visita, a fim de programar atendimentos de urgência e incluir Maria de Fátima em
serviço de acompanhamento psicológico, com o objetivo de apoiá-la até tornar possível
discutir, com ela, desejos, alternativas e viabilidades, com suporte na rede socioassistencial.
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Em outra visita, realizada com a finalidade de dar à Sra. Priscila (com aproximadamente 40
anos de idade e recém referenciada no CRAS) a devolutiva de uma de suas demandas, a
dupla constatou, involuntariamente, que parte das informações por ela prestadas na
acolhida inicial, relativas à composição do grupo familiar e à sua situação material atual, não
correspondiam à realidade encontrada. Priscila mostrou-se constrangida e procurou justificar
as contradições. A dupla de visitadores limitou-se a ouvi-la e a corrigir o respectivo
prontuário, esclarecendo que a situação real não alterava os encaminhamentos dados
inicialmente, pois o perfil da família permanecia dentro dos critérios com os quais o CRAS (e
de resto o SUAS) trabalha para atendimento das demandas; esclareceu também que,
infelizmente, os programas sociais ainda são seletivos, porquanto os recursos a eles
destinados são insuficientes, sendo necessário, ainda, priorizar a inclusão das famílias em
pior situação, o que, por seu turno, mantém a exigência de avaliar a situação econômica e o
potencial de cada família que se candidata para inclusão em tais programas; mas que se
está procurando interferir politicamente para transformá-los em programas universais, isto é,
em direitos de cidadania, garantidos incondicionalmente pelo Estado. E que, como esta
decisão política afeta interesses econômicos, é necessária muita mobilização e ação
coletivas para chegar a ela, de modo que a dupla convidou Priscila para participar da
Conferência de Assistência Social local, a ser realizada em algumas semanas.
Na parte da tarde, foi realizada na sede do CRAS a reunião (mensal) de um dos grupos
socioeducativos, durante a qual foi realizada uma dinâmica de grupo associada à questão
da importância da participação, para, ao final, convidar os membros a se fazerem presentes
na referida Conferência. Em linguagem acessível, o técnico responsável pelo grupo
procurou encontrar e enfatizar, com ajuda dos dezoito participantes (16 mulheres e 2
homens, além de 6 crianças), alguns significados que tal participação poderia ter para cada
um(a). Este mesmo grupo existe e se encontra mensalmente há quase dois anos, estando
em processo de encerramento, para dar lugar a novos participantes a partir de 2012, sendo
critério de participação a sua inclusão em programas de transferência de renda. Os
membros atuais apresentam visíveis mudanças em sua postura, em comparação aos
momentos iniciais de formação do grupo: seja na desenvoltura com que ora expressam
opiniões, no modo como conduzem seu cotidiano familiar (manifestam ter aprendido a ouvir,
argumentar e negociar com filhos e outros adultos da casa, substituindo as estratégias
anteriores, baseadas em “gritaria” e/ou “uns bons tapas” – SIC), seja ainda na motivação
com que comparecem espontaneamente aos encontros (em contraposição às resistências e
maus humores iniciais) e em como se interessam por assuntos “extra-lares” para os quais
não dedicariam atenção anteriormente à existência do grupo, como por exemplo, a citada
Conferência (na própria reunião várias pessoas expressaram como fariam para deixar as
crianças com vizinhos ou parentes, ou programariam mudanças em seus dias de prestação
eventual de serviços de faxina ou construção civil, a fim de conseguirem participar) e
também a sua recente adesão a abaixo-assinado de apoio a uma greve dos servidores
locais por melhores condições de trabalho e reposição salarial. Algumas lideranças parecem
despontar no grupo, e está nos planos da equipe manter o estímulo ao seu protagonismo.
Pouco antes do fechamento da sede, às 16h50, uma das técnicas em Psicologia recebeu
telefonema de um usuário, que fora atendido no CRAS pela primeira vez há algumas
semanas. Tratava-se de Paulo, um jovem adulto com 28 anos de idade, solteiro, que por
ocasião do referenciamento encontrava-se desempregado e em situação de rua, tendo sido
encaminhado para atendimento no albergue local, como também no Centro Público de
Trabalho e Renda, aonde preencheu ficha para candidatar-se a vagas laborais. Ele
telefonou àquela hora para agradecer pelo atendimento e orientações recebidas, em
especial por sua inclusão em programa de transferência de renda, pois acabara de receber
o primeiro recurso mensal (de R$ 80,00), com o qual conseguira já pactuar o aluguel de um
quarto; estava particularmente feliz por ter conseguido também uma colocação como auxiliar
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de limpeza, o que lhe permitiria “tocar” a vida dali em diante, possivelmente realizando
algum dos cursos profissionalizantes oferecidos gratuitamente por uma Fundação local.
Este “dia de CRAS” foi aqui recriado com ocorrências que se deram em mais de um dia e
sofreram alterações em seus detalhamentos, a fim de preservar as identidades e o sigilo dos
casos; mas as intervenções técnicas foram mantidas em sua forma real, de tal sorte que a
descrição acima pudesse ser considerada verossímil e, de algum modo, representativa
daquilo que está sendo coletivamente construído como conjunto de atribuições dos CRAS já
em funcionamento, virtualmente na totalidade dos municípios do país v.
Perguntamos então o que é que dinâmicas cotidianas tais como as acima delineadas a título
de ilustração poderão agregar (a curto, médio e longo prazos, e em escala) à vida destes
indivíduos, de suas famílias, de suas relações de vizinhança e demais relações decorrentes
de seus pertencimentos em seus respectivos territórios? Ocorrerão mudanças capazes de
afetar significativamente as relações intra e interpessoais? Estes efeitos poderão de algum
modo vir a rebater e impactar a própria rede socioassistencial com a emergência de novas
demandas, quiçá mais coletivas e politizadas? Poderão atravessar, nas vidas individuais e
nas relações comunitárias ou sociais locais, outros processos sócio-políticos em curso,
resultando em sensibilizações ou mobilizações que, por seu turno, ganhem novas dinâmicas
e projeções a partir da ação de outros fatores e circunstâncias?
Tais interrogações remetem para a necessidade de vislumbrar, em nível macrossocial,
possíveis desdobramentos, no tempo e no espaço tão diversificado do território nacional,
desse tipo de intervenção local a um só tempo técnica e política, sistemática e
crescentemente qualificada, na vida privada de indivíduos e famílias, como, ao mesmo
tempo, na vida de comunidades específicas e na própria esfera pública local.
É preciso reconhecer e enfatizar o ineditismo dessa cotidianidade local com escala em nível
nacional — e, com isto, a pertinência de projetar possíveis desdobramentos em cada
campo: social, cultural, político, econômico. Isto porque, como sugerimos, a mera existência
da ainda incipiente rede de CRAS/CREAS implica a entrada, na cena pública e no horizonte
de visão da totalidade dos sujeitos sociais, de um volume (historicamente reprimido e
tornado invisível) de demandas e conflitos de interesse que rebatem em cheio contra a atual
estrutura produtora e reprodutora das velhas mega-desigualdades sociais.
Ao eleger as seguranças de convívio, protagonismo, autonomia, fortalecimento de vínculos
familiares e comunitários, e desenvolvimento de projetos coletivos (para além da renda),
como aquelas que devem ser alcançadas e asseguradas por meio das ofertas materiais,
atividades, ações e encaminhamentos prestados pela rede CRAS/CREAS, o SUAS
atravessa e de algum modo enfrenta o campo da subjetividade individual e coletiva; isto é, o
campo de produção e reprodução da consciência social — permeado por muitas outras
variáveis, sem dúvida, mas certamente pela variável das disposições, crenças, humores e
práticas individuais e coletivas que são postas em questão e em movimento pela
intervenção cotidiana das equipes lotadas nestes equipamentos em cada território; campo
este historicamente negligenciado pela virtual totalidade de movimentos sociais e
v
Como dissemos antes, as especificidades dos CREAS não serão aqui problematizadas; bastará
pensarmos nas respostas demandadas da proteção social especial por um cotidiano permeado por
trabalho infantil, dependência e tráfico de drogas, exploração sexual comercial e abuso sexual,
violência doméstica, situação de rua e outras formas de exclusão, vulnerabilidade e violação de
direitos, para imaginar a gama de exigências impostas para as poucas e reduzidas equipes
especializadas. E também a gama de aquisições imateriais, subjetivas, que eventualmente se tornam
acessíveis e podem ser apropriadas pela população usuária desta rede de serviços especializados.
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articulações político-partidárias que em qualquer época da nossa história pretenderam
aproximar-se das utopias implicadas no ideal de justiça social.
Nesta linha de reflexão, o SUAS, em sua continuidade no tempo e no espaço, traz em seu
bojo uma dimensão e um potencial pedagógicos, configura-se como lugar de poder
específico enquanto educador coletivo, fadado, ou a meramente reproduzir, ou a propiciar
transformações, superações, rupturas de paradigmas e co-produção de novas relações
sociais, em seus distintos níveis de intervenção.
De um lado, temos de considerar as especificidades e limites deste edifício institucional e
admitir, por definição teórica, o SUAS como elemento constitutivo do mesmo Estado
nacional historicamente preso pelo umbigo a interesses privados (que, em nosso país,
raramente chegaram sequer a ser tipicamente burgueses). Todavia, de outro lado, até pela
contemporânea e prolongada inércia social à qual fomos submetidos pelo tsunami neoliberal
global vi, o SUAS se coloca como interlocutor com acesso privilegiado ao conjunto das
maiorias humanas que habitam o território nacional e, nas definições clássicas, constituem o
proletariado (só dispõem da própria força de trabalho e da prole). E, em princípio, estas
maiorias politicamente desarticuladas sintonizam potencialmente com os interesses de
transformação social e econômica das estruturas de produção de riquezas.
Desse modo, a postura de cada trabalhador(a) do SUAS (postura ético-política indissociável
da sua bagagem teórico-metodológica e técnico-operativa), seja de que área for (Serviço
Social, Psicologia, Educação, Sociologia e outras) ganha especial relevância no processo de
construção e reconstrução da consciência social em território nacional. Não a partir de uma
perspectiva voluntarista, mas porque faz diferença trabalhar em sentido conservador ou
transformador numa instituição isolada, pública ou privada, submetida apenas às injunções
culturais, econômicas e políticas de seus proprietários, superiores hierárquicos ou elites
políticas locais/localizados, e trabalhar num ou noutro sentido, talvez na mesma instituição,
porém num contexto em que esta se configura, paulatinamente, como pertencente a uma
rede local e nacional, submetida a marcos legais, princípios, diretrizes e normas técnicooperacionasi comuns e construídos coletivamente em instâncias com distintos graus
decisórios (conferências, comissões bi e tripartites, conselhos, fóruns e movimentos). Neste
contexto e momento específicos, o sentido conservador ou transformador das práticas
individuais (e o maior ou menor grau de qualidade teórica e técnica da intervenção) destes
trabalhadores(as) necessariamente compõe forças políticas em movimento numa ou noutra
direção, em todo o território nacional, com muito mais sinergia e rebatimentos do que em
toda a nossa história até então. Pois, ainda que formalmente desarticuladas entre si; ainda
que desconhecedoras umas das outras em suas especificidades e diversidades locais;
ainda que objetivamente dissociadas pela insuficiência temporal de sua existência, ou pela
natureza mesma das intervenções; e ainda que talvez nunca venham a estar formalmente
conectadas entre si, (mas apenas com outras formas locais de relações e movimentos
sociais), o fato é que a somatória destas intervenções locais (que ocorrem, literalmente, à
escala das centenas de milhares ou mesmo de milhões) tem pontos de partida comuns,
enquadramentos teóricos, metodologias e técnicas de intervenção comuns, objetivos
institucionais comuns e, em especial, despertam, sensibilizam, qualificam e mobilizam
valores, interesses e práticas de segmentos e sujeitos que vivem sob circunstâncias de
muitos modos similares, sendo ao menos improvável que tais circunstâncias, ao longo do
vi
Com suas gigantescas ondas de reestruturação produtiva, as quais destruíram todas as antigas
formas de sociabilidade, solidariedade e consciência de classes e, portanto, de resistência e luta
social tal como existiam então (sindicatos/greves, partidos/insurreições e/ou reformas, movimentos
sociais diversos com caráter mais ou menos abrangente em termos geográficos).
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VI ENAPEGS
EIXO TEMÁTICO 2: GESTÃO SOCIAL, POLÍTICAS PÚBLICAS E TERRITÓRIO
tempo, deixem de afetar significativamente as relações (macro) sociais – relações de
classes – em movimento.
Em outras palavras, a direção social assumida nas práticas destes sujeitos, partícipes e
operadores de um mesmo sistema de proteção social, mais do que nunca se torna um
elemento estratégico a ser apropriado e materializado em práticas sociais que poderão
convergir e contribuir, sob circunstâncias específicas, para a emergência e/ou o
fortalecimento, a reinvenção etc, de movimentos e lutas sociais.
Além disso, entendo que o SUAS, em suas dimensões de gestão e de operação de uma
política social específica, expressa certo patamar de consciência social alcançado pela
sociedade em totalidade (ainda que permeado de contradições e resistências) e que o
próprio Estado se vê obrigado a incorporar vii. Patamar alcançado em meio à nossa trajetória
histórica e que, de algum modo, sintetiza o que a sociedade em geral considera (ao menos
jurídica e formalmente) intolerável, o que considera desejável e até onde se dispõe a investir
recursos e esforços para oferecer cuidados paliativos ou superações. Pois sustentar e ser
consequente, no tempo e no espaço, com tal patamar de consciência social expresso no
SUAS, implica a drenagem de certo volume de recursos, obviamente retirados à
acumulação privada, os quais, se por um lado sequer arranham a atual dinâmica de
reprodução do capital, por outro materializam acessos que produzem efeitos e rebatimentos,
não só em termos de sobrevivência física da população expropriada das riquezas
socialmente produzidas, mas, por tudo quanto discutimos até aqui, também e especialmente
no campo da sobrevivência e recriação de identidades, sociabilidades, desejos e projetos
pessoais, coletivos e societários.
E aqui abro um parênteses para refletir sobre o caráter e a qualidade deste certo patamar de
consciência social, posto pela existência e pela permanência do SUAS, tomando como base
o lugar de destaque ocupado pelas mulheres, neste sistema de proteção social e nos
programas atualmente operacionalizados através dele. De fato, tanto o referenciamento
matricial nos CRAS e CREAS, como a inscrição no Cadastro Único para acesso ao
Programa Bolsa Família e a outros programas, e mesmo o contato cotidiano das equipes
com as famílias, dão preferência e estimulam a que as mulheres aí figurem como
responsáveis legais e protagonistas centrais das unidades residenciais e dos grupos
familiares. Seja porque as mulheres pobres passaram a figurar objetiva e massivamente
como provedoras das famílias (por uma gama de circunstâncias que aqui não
detalharemos); seja para propiciar a elas alguma autonomia para fazer frente à nossa
cultura ainda marcadamente machista, ainda que de forma ainda paliativa e compensatória;
o fato é que temos uma política de Estado que confere à mulher um status positivamente
diferenciado face à nossa cultura e história.
Marx, em seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos (1974), ao discutir o problema do
empobrecimento teórico da concepção liberal de trabalho (desenvolvida pelos economistas
clássicos) no contexto da propriedade privada, tematiza sobre a alienação do trabalho sob o
predomínio desta forma de apropriação das riquezas socialmente produzidas; faz a distinção
entre as riquezas materiais e as riquezas “espirituais” humanas, concebendo que a “posse”
(de bens materiais ou imateriais) enquanto finalidade única do trabalho configura a negação
da personalidade (conjunto de capacidades espirituais) da criatura humana; e toma como
exemplo deste empobrecimento conceitual e cultural a relação do homem com a mulher no
contexto da propriedade privada, quer sob o “matrimônio”, que ele define como “uma forma
vii
Para uma contribuição ao debate acerca dos papeis e lugares das políticas sociais – e do Estado
enquanto interlocutor privilegiado no campo das relações sociais, ver o trabalho intitulado Um Estudo
sobre Políticas Sociais a partir de Conceitos de Pierre Bourdieu (GANEV, 2008).
11
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EIXO TEMÁTICO 2: GESTÃO SOCIAL, POLÍTICAS PÚBLICAS E TERRITÓRIO
de propriedade privada exclusiva”, quer sob a forma de prostituição, em que a mulher é
transformada em “presa e servidora da luxúria coletiva” ou em “propriedade comum” ou
comunal. E isto no âmbito de um “comunismo” (imposto, quem diria, pelo regime de
propriedade privada) que o autor define como “destino comum” a todos e qualifica de
“grosseiro e irreflexivo”, pois apenas concebe a posse física imediata (de algo ou de alguém)
como “finalidade única da vida” e, ao mesmo tempo, impõe tal destino a todos os homens.
Tal “comunismo” representa, desse modo, “a negação abstrata de todo o mundo da
educação e da civilização, o regresso ao antinatural”, a uma “simplicidade de homem pobre
e sem necessidades, que não só não superou a propriedade privada, como sequer chegou a
ela” (MARX, 1974, p. 141-2). A partir destas considerações, dirá ainda que
A relação imediata, natural e necessária do homem com o homem, é a
relação do homem com a mulher. Nesta relação natural dos gêneros, a
relação do homem com a natureza é imediatamente a sua relação com o
homem, do mesmo modo que a relação com o homem é imediatamente sua
relação com a natureza, sua própria determinação natural. Nesta relação se
evidencia, pois, de maneira sensível, reduzida a um fato visível, em que
medida a essência humana se converteu para o homem em natureza ou em
que medida a natureza se converteu em essência humana do homem. Com
esta relação se pode julgar o grau de cultura do homem em sua totalidade.
Do caráter desta relação se deduz a medida em que o homem se converteu
em ser genérico, em homem, e se compreendeu como tal; a relação do
homem com a mulher e a relação mais natural do homem com o homem.
Nela se mostra em que medida a conduta natural do homem se fez humana
ou em que medida sua natureza humana se fez para ele natureza. Se
mostra também nesta relação a extensão em que a necessidade do homem
se fez necessidade humana, em que extensão o outro homem enquanto
homem se converteu para ele em necessidade; em que medida ele, em sua
existência mais individual, é, ao mesmo tempo, ser coletivo (MARX, 1974, p.
142-3; grifos do próprio autorviii).
Dirá também o então jovem Marx que “A sociedade é, pois, a plena unidade essencial do
homem com a natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo realizado da
natureza” (MARX, 1974, p. 146).
A partir destes conceitos e reflexões, e voltando à consideração do SUAS enquanto
elemento do Estado nacional na contemporaneidade, penso que o citado resgate da figura
da mulher, operado no e pelo SUAS, por meio das atuais políticas de proteção social, vai
além das inferências de cunho feminista, para significar que, sim, nas atuais relações entre
Estado e sociedade em nosso país existe um patamar de consciência social corretamente
direcionado para o resgate dos indivíduos enquanto seres sociais, propondo implicitamente
que o acesso às riquezas materiais e imateriais seja garantido a todos, mas em primeiro
lugar àqueles mais profunda e extensamente expropriados de tais acessos, começando
pelas mulheres empobrecidas e de tantas formas atacadas por séculos e décadas de
escravismo, colonialismo, racismo, imperialismo, machismo, militarismo e neoliberalismo (!!).
viii
Por ocasião da escrita deste artigo, eu dispunha apenas de um original em espanhol do texto dos
Manuscritos, de forma que traduzi livremente os fragmentos e a citação mais longa, aqui
apresentados.
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EIXO TEMÁTICO 2: GESTÃO SOCIAL, POLÍTICAS PÚBLICAS E TERRITÓRIO
O lugar dado à mulher, na PNAS, no SUAS e nos Programas Sociais aí vinculados (tanto
quanto o lugar dado aí, a partir do ECA, às crianças e adolescentes como seres em
processo de desenvolvimento), expressa que a conduta, não de cada homem em particular,
mas do próprio Estado nacional, se fez de algum modo humana, tendendo a conferir
naturalidade, naturalizar formas mais humanizadas de trato da questão social, posto que
incorporam a natureza humana das demandas. Dito ainda de outro modo, o patamar de
consciência social (contraditório, insuficiente, sujeito a revezes etc) expresso no SUAS,
revela, ainda que em grau mínimo, que “a necessidade do homem se fez necessidade
humana” e que o Estado, mesmo enquanto síntese contraditória e dinâmica das forças em
disputa na vida social, de algum modo teve de reconhecer o outro (as mulheres, as crianças
e adolescentes, nas famílias empobrecidas) como necessidade para si (enquanto síntese da
própria sociedade), como sujeito de direitos incluso no processo de produção e acesso às
riquezas, e não mais como coisa/objeto (de caridade e/ou de repressão). Tal
reconhecimento se materializa já em algum grau, ao menos nas relações cotidianas entre as
equipes técnicas (que “representam” de certo modo o Estado) e a população usuária dos
CRAS, podendo estender-se a tantas outras relações.
E aqui fecho o parênteses dedicado a discutir um aspecto do SUAS que, até aqui, me
parece subestimado no campo das sistematizações e do exercício da crítica com vistas à
perspectiva de transformação social: aspecto a um só tempo cultural, pedagógico e político,
que diz respeito diretamente às nossas práticas cotidianas na contemporaneidade, em
correlação com as perspectivas de transformação e justiça social. Se parece a alguns que
as políticas sociais e, particularmente, os programas que hoje materializam a PNAS através
do SUAS, são passam de versões pasteurizadas do velho assistencialismo; se de fato ainda
engatinhamos e se de fato a proporção dos recursos hoje alocados para tais políticas é
ínfima, espero ter conseguido apresentar argumentos que contribuam para demonstrar
possibilidades outras.
Resta então, como dissemos antes, examinar o mesmo SUAS, não mais por suas “portas de
entrada” do cotidiano, mas por seus contornos estruturais atuais, o que faremos no próximo
tópico.
O SUAS no Brasil em maio de 2011: um olhar sobre o plano macrossocial
O texto institucional do MDS (2011) na Internet relativo aos CRAS retoma as metas
quantitativas de implantação destas unidades básicas de atendimento do SUAS, de acordo
com o número de habitantes de cada cidade, e ainda, as metas de referenciamento e de
atendimento anual de famílias por unidade, conforme a Tabela 1 a seguir:
Tabela 1: Metas quantitativas de implantação e de atendimento dos CRAS ix.
ix
A Tabela 1 foi montada a partir de dados constantes do texto “CRAS Institucional”, disponível no
sítio do MDS, com acesso em 08/03/2011.
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Porte do
Município
Pequeno Porte I
Pequeno Porte II
Médio Porte
Grande Porte
Metrópole
N° de
Habitantes
Até 20 mil
20 a 50 mil
50 a 100 mil
100 a 900 mil
Mais de 900 mil
N° mínimo
de CRAS
1
1
2
4
8
N° de famílias
a referenciar
2.500
3.500
5.000
5.000
5.000
Atendimentos/
ano
500
750
1.000
1.000
1.000
Ainda antes de apreciar tais metas de atendimento, vale apresentar, conforme levantamento
que fizemos junto ao sítio do MDS no mês de maio de 2011, alguns números relativos às
unidades de proteção social básica e especial, então existentes no país: eram 7.232 CRAS
e 2.155 CREAS, distribuídos por todos os estados brasileiros e pelo Distrito Federal, todos
recebendo regularmente repasses do governo federal, conforme a Tabela 2 a seguir:
Tabela 2: CRAS, CREAS e repasses do MDS por estado da Federação x.
Estado
AC
AL
AP
AM
BA
CE
DF
ES
GO
MA
MT
MS
MG
PA
PB
PR
PE
PI
RJ
RN
RS
RO
N° de
Municípios
22
102
16
62
417
184
1
78
246
217
141
78
853
143
223
399
185
224
92
167
496
52
N° de
CRAS
27
124
15
85
543
349
23
117
278
299
172
124
1.002
231
247
491
281
267
373
213
516
61
N° de
CREAS
10
56
7
34
192
104
8
42
105
116
46
58
237
100
98
127
128
53
96
55
102
16
Repasses até
dez/10 (*)
119.341.037,45
622.058.792,66
110.160.554,28
477.641.407,14
2.179.035.427,75
1.256.751.789,88
252.100.639,76
351.262.330,40
831.358.962,01
1.144.934.482,26
483.762.982,46
426.893.939,02
2.332.402.837,42
1.019.925.444,22
599.210.150,32
1.137.939.633,04
1.626.773.230,32
392.879.860,12
1.528.871.909,25
463.167.731,04
987.730.818,37
219.188.852,70
x
A Tabela 2 foi montada a partir de consulta feita estado por estado, no link “MDS em números” do
sítio do MDS, com acesso em 07/05/2011. Incluímos coluna informativa dos CREAS porque, sem
prejuízo de suas especificidades, o trabalho social realizado a partir deles é entendido aqui como
complementar e integrado ao dos CRAS, “somando” literal e figurativamente com o nível de proteção
social básica. Incluímos também uma coluna informando os repasses anuais do governo federal aos
municípios de cada estado, apenas para enfatizar a relevância do fato da Assistência Social ter
alcançado o estatuto de política de Estado, o que permite a disputa por mais orçamento e a
construção coletiva de critérios de acesso aos recursos, como de transparência nas informações ao
público, apenas para mencionar alguns aspectos tão significativos quanto a constatação,
imediatamente visível, da sua ínfima proporção atual, seja em relação ao PIB ou às demandas
sociais. Para uma reflexão acerca do lugar das políticas sociais no fundo público, ver Salvador
(2010).
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RR
15
20
6
56.133.259,36
SC
293
323
87
364.867.265,03
SP
645
800
216
3.851.497.560,60
SE
75
106
34
282.788.648,35
TO
139
145
22
217.850.986,11
(*)Em Reais.
Fonte: www.mds.gov.br/assistenciasocial/mdsemnumeros, acesso em 08/05/2011.
Se fizermos uma projeção meramente especulativa, partindo da hipótese de que 60% dos
CRAS atualmente existentes localizem-se em cidades de Pequeno Porte I e II, enquanto os
demais 40% estejam sediados em municípios de Médio Porte ou maiores, por exemplo; e se
considerarmos as metas de atendimento anual informadas nos documentos legais do SUAS,
teríamos, por um lado, algo em torno de 4.339 CRAS nas pequenas cidades, atendendo em
média 625 famílias/ano, o que totalizaria 2.711.875 famílias atendidas anualmente nestas
localidades; por outro lado, restariam 2.893 CRAS nas demais cidades, atendendo
anualmente um total de 2.893.000 famílias, resultando numa média nacional anual estimada
em 5.604.875 famílias – ou cerca de 22 milhões de indivíduos, se considerarmos uma
família composta, em média, por 04 pessoas.
Tal contingente humano em situação de vulnerabilidade passa a estar cada vez mais
vinculado às equipes técnicas dos CRAS (como também dos mais de 2.000 CREAS e
demais serviços da rede). A partir daquele cotidiano delineado no tópico anterior deste texto,
vemos que tal vínculo vem sendo construído e sustentado por meio de acolhidas e visitas
domiciliares, da participação em encontros socioeducativos, eventos e atividades diversas,
de atendimentos específicos realizados por outros equipamentos e serviços da rede
socioassistencial local (acessados pela via dos encaminhamentos em sistema de referência
e contrarreferência), e de acesso a direitos sociais (mas também a direitos civis, políticos e
econômicos, materializados sob as mais diversas formas).
Ou seja, além da transferência de renda regularmente efetivada por meio dos programas
sociais vigentes, garantindo em escala certas aquisições materiais fundamentais
(basicamente alimentos, água, energia elétrica e medicamentos, mas também aquisições
pontuais relevantes para cada beneficiário em particular, tais como cursos diversos,
pagamento de taxas em concursos públicos, itens de consumo individual longamente
desejados, viagens com finalidades diversas etc), existe também um processo social
multifacetado e dinâmico em curso — e igualmente em escala —, que articula vida pessoal
e convivência familiar e comunitária, participação na vida política local sob formas que vão
muito além do voto ou mesmo das aproximações partidárias (conselhos, conferências,
fóruns, seminários, movimentos sociais e outras), propiciando aquisições imateriais capazes
de, ao longo do tempo e a depender de variáveis ligadas aos contextos local, regional,
nacional e mesmo internacional, afetar significativamente a subjetividade individual e
coletiva, como também as formas e manifestações da consciência social em cada território.
A partir deste conjunto de projeções e considerações podemos pensar nos desafios e
potencialidades do trabalho social com famílias nos CRAS, nos próximos anos, em nosso
país.
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Referências bibliográficas
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Câmara dos Deputados.
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KOGA, D., GANEV, E. e FAVERO, E. (orgs.) Cidades e Questões Sociais. São Paulo,
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KOGA, D.H.U. Medidas de Cidades. São Paulo, Cortez, 2003.
MARX, K. Manuscritos Economia Y Filosofia. Espanha, 1974, Alianza Editorial.
MDS.
CRAS
Institucional.
Disponível
http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/assistencia-social/psb-protecaoespecial-basica/cras-centro-de-referencias-de-assistencia-social/crasinstitucional/?searchterm=o%20que%20é%20o%20cras,
Brasília,
DF. Acesso
08/03/2011.
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MDS
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números.
Disponível
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http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/ascom/index.php?cut=aHR0cDovL2FwbGljYWNvZXMubW
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em 08/05/2011.
SALVADOR, E. Fundo público e políticas sociais na crise do capitalismo. In: Revista
Serviço Social & Sociedade n° 104. São Paulo, Cortez, out/nov. de 2010.
SANTOS, M. Metamorfoses do Espaço Habitado. São Paulo, Hucitec, 1997.
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