Universidade Federal de Minas Gerais Programa de Formação de Conselheiros Nacionais Curso de Especialização em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais SENTIDOS DA PARTICIPAÇÃO E REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL: DESAFIOS RELACIONADOS À LEGITIMIDADE E REPRESENTATIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL JUNTO AOS CONSELHOS GESTORES Marcelo Dayrell Vivas Belo Horizonte 2010 MARCELO DAYRELL VIVAS SENTIDOS DA PARTICIPAÇÃO E REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL: DESAFIOS RELACIONADOS À LEGITIMIDADE E REPRESENTATIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL JUNTO AOS CONSELHOS GESTORES Monografia apresentada ao Programa de Formação de Conselheiros Nacionais da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialista em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais. Orientador: Guimarães Prof. Dr. Juarez Co-orientadora: Ms. Letícia Godinho Belo Horizonte 2010 Rocha Ao saudoso João Batista de Oliveira, pelo exemplo de vida e de luta e por todos os anos de militância e política dedicados à promoção e defesa dos direitos humanos. AGRADECIMENTOS À Universidade Federal de Minas Gerais, pela infraestrutura, materiais e troca de conhecimento. Aos meus orientadores, Juarez Rocha Guimarães e Letícia Godinho, pelos esclarecimentos e pelo empenho no refinamento deste trabalho. À Plataforma DhESCA Brasil, pelo apoio nesta especialização, pelo fomento ao debate e pela articulação no âmbito da sociedade civil organizada brasileira. A Maria Elena Rodrigues, pela oportunidade concedida e pelo profissionalismo. A Lúcia Moraes, pela cooperação mútua e pelas discussões nas viagens Brasil afora. Ao Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais, pela colaboração na cessão dos dados e informações e pela presteza de todos os colaboradores, em especial a Beth, Conceição, Juanita e Roberta. Aos verdadeiros amigos, por respeitarem e compreenderem minhas inseguranças, incertezas e silêncios. Ao Márcio e à Cris, à Ana e ao André (Almeida), ao Bruno e ao Fabrício, ao Reinaldo e à Silvia (Sander), à tia Márcia (Ustra) e ao Hudson, ao Tulinho e à Viviane (Mayrink), pelas longas conversas, pela companhia nos momentos difíceis e pelos conselhos pacientes e precisos nas horas incertas. Aos amigos de São Paulo, por preservarem a nossa amizade independentemente da distância. Ao Renan, pelo apoio cotidiano, pelo ombro amigo e pelas discussões acaloradas. À Eloisa, pela contínua disponibilidade, pela firmeza ética e pelos puxões de orelha na hora certa e na medida certa, no âmbito afetivo e profissional. Ao Mateus, pela constante lealdade, pelas duvidosas crises vivenciadas e pelo crescimento compartilhado conjuntamente. Ao Juliano, pelas confidências, pelo companheirismo e por mostrar o valor de uma amizade desinteressada nos meus momentos de descrença. Aos amigos de Minas Gerais, que me acolheram e ainda acolhem em diversos momentos como quem recepciona a um irmão. À mamy Márcia (Martini), pelo porto seguro, pela maternidade adotada e pelas lições sobre política e militância. À Silvinha, pelo carinho fraterno, pelo pragmatismo e pelo incentivo acadêmico. Ao Renato, pelas broncas, pelos conselhos e pela ajuda nas curvas e atalhos. À Carol, pela força, pelo suporte maduro e pela acolhida familiar. Ao Igor e Renan, pelos comentários pertinentes e pela revisão minuciosa deste trabalho. À Pipi, por ser essa irmã-amiga-mãe-colega-sócia-namorada-mulher que me escuta, acolhe, aconselha, ouve, cuida e briga, fazendo com que eu amadureça a cada dia. À minha família, personalizada na figura de minha mãe, meu pai, minha irmã, meu irmão e meu cunhado, pelo cuidado, pelos perdões e pelo porto seguro. Aos meus “sogros”, pelo carinho e pela compreensão. Ao Ialslado, pela dignidade e por fomentar meu crescimento pessoal e por conseguir me mostrar todos os sentimentos e sensações positivas numa relação única e primordial ao meu aprimoramento enquanto pessoa. A Deus, pelos desafios impostos e pela força interior para vivenciá-los. Mas não creias que só tuas decisões sejam acertadas e justas... Todos quantos pensam que só eles têm inteligência, e o dom da palavra, e um espírito superior, ah! esses, quando de perto os examinamos, mostrar-se-ão inteiramente vazios! Por muito sábios que nos julguemos, não há desar em aprender ainda mais, e em não persistir em juízos errôneos... Quando as torrentes passam engrossadas pelos aguaceiros, as árvores que vergam conservam seus ramos, e as que resistem são arrancadas pelas raízes! [...] Somente num país inteiramente deserto terias o direito de governar sozinho! Sófocles, Antígona. RESUMO Dado o papel que a sociedade civil organizada vem assumindo junto à representação política tradicional (MIGUEL, 2003; TATAGIBA, 2002), um desafio apresentado à experiência participativa dos conselhos gestores refere-se à forma como é constituída a representação da sociedade civil nesses espaços. Há, inevitavelmente, que se questionar o fundamento de legitimidade das organizações da sociedade civil que atuam nos espaços participativos conquistados a partir de 1988 (AVRITZER, 2007; AVRITZER; PEREIRA, 2005). Se, por um lado, se observa uma redefinição do papel da sociedade civil (DAGNINO, 2002; 2004), é importante, por outro, questionar e problematizar o papel das organizações da sociedade civil enquanto agentes autorizados a “dar voz” à população e a transmitir os problemas da esfera privada para a esfera pública. A partir de uma revisão da literatura, este trabalho problematiza o fator de legitimação dessas organizações representadas nos conselhos gestores (LAVALLE et al., 2006a e 2006b) e, conjuntamente, analisa a accountability necessária a todos os atores que se apresentam na esfera pública (SÖRJ, 2004; FARIA, 2007; SÖRJ; MARTUCELLI, 2008). Complementando esse estudo, é apresentado um caso concreto – o Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais –, com vista a identificar, a partir da legislação específica e das atas dos foros de eleição, a composição da representação da sociedade civil organizada e o modo como ocorrem os processos de escolha. Palavras-chave: Sociedade civil. Democracia. Participação. ABSTRACT Given the role that the organized civil society has been playing in complementation to that of traditional political agents (MIGUEL, 2003; TATAGIBA, 2002), one of the major challenges concerning the participation experience in the Brazilian local councils of politics consists of legitimating the way the civil society is represented in such political spaces. In other words, it is relevant to raise questions on the legitimacy of Brazilian civil society organizations that have been working within the participation spaces conquered in 1988 onwards (AVRITZER, 2007; AVRITZER; PEREIRA, 2005). As the role of the civil society has been redesigned (DAGNINO, 2002; 2004), it is important to debate the role of civil society organizations as political agents allowed to “give voice” to the population and to transfer problems from the private to the public sphere. Starting from a review of the literature, this study discusses the legitimacy factors accounting for the engagement of such organizations in the Brazilian local councils of politics (LAVALLE et al., 2006a e 2006b), and also analyzes how it impacts on the accountability necessary for all the social agents to perform within the public sphere (SÖRJ, 2004; FARIA, 2007; SÖRJ, MARTUCELLI, 2008). Complementarily, a case study – the Minas Gerais State Council of Social Work – is introduced as a means to identify how the representativeness of the organized civil society is composed and how the election procedures take place. Keywords. Civil Society. Democracy. Participation. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 10 2 REVISÃO DA LITERATURA................................................................................. 12 2.1 Sociedade Civil Organizada e Participação Democrática .............................. 12 2.2 Representação no Interior das Experiências de Participação........................ 17 2.3 Autorização e Legitimidade da Ação: Representação por Afinidade ............. 22 2.4 Pluralização da Representação e Fundamentos da Legitimidade ................. 25 2.5 Desafios da Representatividade e da Legitimidade ....................................... 30 3 METODOLOGIA.................................................................................................... 34 3.1 Natureza da Pesquisa e Coleta de Dados ..................................................... 34 3.2 Metodologia de Análise.................................................................................. 35 4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS ............................................................... 36 4.1 O Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais ....................... 36 4.2 O Processo de Escolha dos Representantes da Sociedade Civil ................. 38 4.3 Análise dos Dados ........................................................................................ 45 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 48 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 51 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS APAE Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais CEAS Conselho Estadual de Assistência Social CMAS Conselho Municipal de Assistência Social FEAS Fundo Estadual da Assistência Social FSM Fórum Social Mundial LOAS Lei Orgânica da Assistência Social MST Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra ONG Organização Não Governamental OP Orçamento Participativo SERVAS Serviço Voluntário de Assistência Social SUAS Sistema Único da Assistência Social 10 1 INTRODUÇÃO A ampliação da participação, marco da redemocratização brasileira, configurou-se com a criação de novos espaços de interação entre os governantes e a sociedade civil. No âmbito da participação nas políticas públicas, os conselhos emergem como uma típica experiência de representação na participação. Arena intermediária entre o Estado e a sociedade civil, os conselhos de políticas são aqueles espaços criados por lei para deliberação dos diversos atores sociais sobre políticas públicas temáticas (AVRITZER; PEREIRA, 2005). Os principais exemplos são os recém-criados conselhos das cidades e os conselhos de criança e adolescente, de saúde, de assistência social e de meio ambiente. Tais conselhos são compostos por membros da sociedade civil e por representantes governamentais, preferencialmente de forma paritária (DAGNINO, 2004; AVRITZER; PEREIRA, 2005; FARIA, 2007). Tais espaços, bastante difundidos, foram agregados por legislações temáticas e compõem um sistema nacional específico, abrangendo a transferência de recursos, entre entes federados, via fundo vinculado ao Conselho. Dado o papel que a sociedade civil organizada vem assumindo junto à representação política tradicional (MIGUEL, 2003), um desafio à efetividade dos conselhos gestores refere-se à forma como é constituída a representação da sociedade civil nesses espaços – o que Lüchmann (2007) chama de “representação nas experiências de participação”. Em outras palavras, há, inevitavelmente, que se questionar o fundamento de legitimidade das organizações da sociedade civil que atuam nos espaços participativos conquistados a partir de 1988 (AVRITZER, 2007). Se, por um lado, se observa uma redefinição do papel da sociedade civil (DAGNINO, 2004) a partir do crescimento da força da mídia e do enfraquecimento dos partidos políticos (SÖRJ, 2004; MIGUEL, 2003; MELO, 2007), é importante, por outro lado, questionar e problematizar o papel concedido às organizações da sociedade civil enquanto agentes autorizados a “dar voz” para a população e transmitir os problemas da esfera privada para a esfera pública. Nesse contexto, cumpre discutir o fator de legitimação dessas organizações representadas nos conselhos gestores e, conjuntamente, discutir como se dá a accountability1 1 Em linhas gerais, accountability refere-se a formas de controle e de prestação de contas a que devem se submeter os detentores de cargos ou funções públicas. 11 necessária a todos os atores que se apresentam na esfera pública. Em nome de quem, como agem e o que fazem os conselheiros não governamentais são pontos que devem ser claramente explicitados pelas organizações da sociedade civil e pelos demais movimentos sociais, sob risco de terem sua atuação questionada e minorada (SÖRJ, 2004; FARIA, 2007). Embora sejam práticas inovadoras e promissoras, os conselhos gestores por si sós, até o momento, não necessariamente implicam uma maior participação da sociedade civil na elaboração, formalização, controle, implementação e execução das políticas públicas, o que vem fomentando diversos estudos acerca das práticas participativas (MIGUEL, 2005; AVRITZER, 2007; LÜCHMANN, 2008). A relação entre Estado e sociedade civil nos conselhos também é determinada pela forma como são escolhidas as entidades de origem dos conselheiros. O procedimento adotado demonstra como se constitui a representação no interior dos conselhos e quais os fundamentos de sua legitimidade (FARIA, 2007). Focaliza-se, no presente trabalho, a relação de representação efetiva desenvolvida entre os membros não governamentais e a sociedade civil, analisandose o fator de legitimação dos atores presentes nos conselhos gestores (TATAGIBA, 2002; AVRITZER; PEREIRA, 2005; SÖRJ; MARTUCELLI, 2008). Em uma análise não procedimental da democracia, o presente trabalho tem por objetivo geral estudar – a partir de uma pesquisa bibliográfica e documental – quais fatores fundamentam a participação de determinados atores sociais (e não de outros) nos conselhos. Considerando-se que os atores participantes são fixados por lei ou por fóruns préformatados que, em muitos casos, são conduzidos pelo Poder Público, a representatividade de tais atores precisa ser redefinida e/ou fundamentada em outros critérios, como conhecimento técnico, militância histórica ou reconhecimento entre outras organizações e movimentos. Mais explicitamente, constitui objetivo específico do trabalho em pauta analisar o mecanismo de escolha e os fundamentos de legitimidade do mandato dos conselheiros não governamentais no Conselho Estadual de Assistência Social em Minas Gerais, responsável pelo planejamento, gestão, execução, fiscalização e controle da política estadual de assistência social. Este trabalho está estruturado em cinco capítulos, incluindo esta introdução, em que são apresentados o tema e a justificativa desta pesquisa, bem como os objetivos gerais e específicos do estudo em pauta. O Capítulo 2 consiste na 12 revisão da literatura, em que se estabelece uma afiliação às teorias da democracia participativa. Nesse Capítulo, apresentam-se os conceitos de sociedade civil organizada e os mecanismos de representação no interior de experiências de participação, além de se discutirem questões como a representação da sociedade civil organizada nos conselhos gestores, a categorização dos argumentos de legitimidade apresentados pelas próprias organizações e os desafios de representatividade e legitimidade da atuação. O Capítulo 3 compreende a categorização e descrição da natureza da pesquisa, da forma de coleta de dados e da metodologia de análise. O Capítulo 4 analisa os dados referentes ao Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais e apresenta uma discussão dos dados frente à literatura especializada. O quinto e último Capítulo corresponde às considerações finais, apresentando-se propostas para fortalecer a participação da sociedade civil organizada e delineando-se as limitações da presente pesquisa. 2 REVISÃO DA LITERATURA 2.1 Sociedade Civil Organizada e Participação Democrática As diversas visões acerca da participação da sociedade civil organizada nas políticas públicas têm relação com o modo como são compreendidos o conceito de sociedade civil organizada e as experiências de participação vivenciadas. Conforme dispõem Arato (1995) e Schoelte (2001), a reconstrução do conceito de sociedade civil ocorrida nas últimas décadas do século XX poderia ter-se dado com base em interpretações fundamentadas em diferentes tradições intelectuais, como Montesquieu, Burke, Tocqueville, Laski ou Parsons. Contudo, os principais trabalhos nesse sentido, tais como aqueles defendidos por Habermas, Lefort, Bobbio e O’Donnel, filiaram-se a tradições análogas ao discurso neomarxista, fundamentando-se nos estudos de Hegel, Marx e Gramsci. O ideário de sociedade civil consolida-se no cenário latino-americano na década de 1970, a partir do enfrentamento aos regimes ditatoriais que se instalaram na região. De maneira geral, a sociedade civil instalou-se no imaginário brasileiro 13 como uma forma de mobilização e organização para alterar, no plano estatal, o status quo então dominado pelos militares. Não obstante, verifica-se que, juntamente com o debate instalado na conjuntura política e econômica vivenciada, o termo tem ganhado novas acepções e significados. A noção de sociedade civil, então, assume novo significado a partir da redemocratização, com a criação e consolidação de novos espaços de participação e luta política, quando os movimentos sociais urbanos (e.g., movimentos de moradia e movimentos de bairro) deixam de ser o elemento central no debate acerca da participação da sociedade civil. Nesse contexto, surgem novos atores a partir de novas formas de associativismos emergentes na cena política. A “autonomia” frente ao Estado deixa de ser um eixo fundante para a sociedade civil, já que, com o fim do regime militar, “[n]ovos e antigos atores sociais [passaram a fixar] suas metas de lutas e conquistas na sociedade política, especialmente nas políticas públicas” (GOHN, 2005, p. 74-75). Essas novas entidades, organizações e instituições, surgidas a partir da redemocratização, passam a ganhar espaço na sociedade civil por meio de uma articulação com o Estado, tomando-lhe, muitas vezes, o papel na oferta dos serviços públicos (DAGNINO, 2004). Tem-se a modificação da forma de participação do cidadão, com a perda de densidade dos sindicatos enquanto atores políticos construtores de identidades coletivas e com a crise dos partidos políticos enquanto espaços de representação de utopias (SÖRJ, MARTITUCCELLI, 2008). Com isso, constata-se ainda a desvinculação entre os movimentos sociais, por um lado, e os sindicatos e partidos políticos, por outro, dado o enfraquecimento sofrido pelos últimos dois atores nos anos 1990: em outros termos, movimentos populares de grande relevância para a sociedade não foram articulados a partir desses tradicionais atores, como a luta pelos direitos civis e políticos, o movimento ecológico e o movimento de mulheres. Ainda a partir da redemocratização, as ONGs (organizações não governamentais) se fortalecem como principais atores da sociedade civil contemporânea, diretamente atuando na mobilização da população e não mais como apoios aos movimentos populares – os quais, na realidade, passam a participar de projetos dessas organizações. A emergência do “terceiro setor”, a partir de empresas, fundações, bancos e artistas famosos, reformula toda a atuação das 14 ONGs “cidadãs” e movimentos sociais, em contraposição às chamadas “entidades do terceiro setor” (GOHN, 2005). As ONGs tidas como cidadãs se orientam por um projeto político2 que busca tanto transformações e mudanças sociais profundas quanto a conquista e a ampliação de direitos, envolvendo amplas camadas da população. Já as entidades do terceiro setor, que ganham notoriedade a partir dos anos 1990, atuam com base em um vago projeto de humanismo e voluntariado, focando-se na atuação junto a populações tidas como vulneráveis (i.e., os mais miseráveis dentre os pobres), em projetos específicos e pontuais executados com pequenos grupos em prazos predeterminados. A partir do final da década de 1990, há o fortalecimento de alguns movimentos e fóruns, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) e o Fórum Social Mundial (FSM), o que recria toda uma organização e processo de mobilização a partir de movimentos sociais dos países do Sul3, que voltaram a ter visibilidade e centralidade como atores que impactam no processo de mudança social. Há, de certo, diversas alterações no escopo desses movimentos, com deslocamento de suas identidades, incorporação de outras dimensões do pensar e agir social e a própria alteração dos projetos políticos, gerando, em alguns casos, redefinição desses projetos a partir da articulação com outros atores sociais (e.g., ONGs e governos) e, em outros, a fragmentação dos próprios movimentos a partir da alteração de suas ideias e pontos de vista centrais (GOHN, 2005): Assim, os anos noventa foram cenário de numerosos exemplos desse trânsito da sociedade civil para o Estado [...] [D]urante esse mesmo período, o confronto e o antagonismo que tinham marcado profundamente a relação entre o Estado e a sociedade civil nas décadas anteriores cederam lugar a uma aposta na possibilidade da sua ação conjunta para o aprofundamento democrático. Essa aposta deve ser entendida num contexto onde [sic] o princípio de participação da sociedade se tornou central como característica distintiva desse projeto, subjacente ao próprio esforço de criação de espaços públicos onde o poder do Estado pudesse ser compartilhado com a sociedade. Entre os espaços implementados durante esse período destacam-se os Conselhos Gestores de Políticas Públicas, instituídos por lei, e os Orçamentos Participativos, que, a partir da experiência pioneira de Porto Alegre, foram implementados em cerca de cem cidades brasileiras, a maioria governadas [sic] por partidos de esquerda, principalmente o Partido dos Trabalhadores (PT). (DAGNINO, 2004, p. 96) 2 3 Adotou-se aqui o termo “projeto político” conforme concebido em estudos de Dagnino (2002; 2004). A ideia de Sul aqui discutida se refere ao Sul político, isto é, aos países da América Latina, Ásia e África. Esse conceito vem sendo trabalhado em espaços de mobilização, como o Fórum Social Mundial (www.fsm.org.br) e o Colóquio Internacional de Direitos Humanos (www.conectas.org/coloquio). 15 Tendo em vista a sua força evocativa como espaço de expressão da esperança por um mundo melhor, a ideia de sociedade civil exerce um papel decisivo na estrutura de percepção dos cidadãos e na função que os atores sociais conferem a si mesmos (SÖRJ; MARTITUCCELLI, 2008). Nesse cenário, é também necessário circunscrever o que se entende por sociedade civil, tendo em vista que se trata de um termo que pode ser interpretado segundo linhas intelectuais e políticas distintas e, por vezes, antagônicas. Parte-se, neste trabalho, do pressuposto de que sociedade civil corresponde à esfera da vida que não foi colonizada pelo ethos instrumental do Estado e do mercado (VIEIRA; DUPREE, 2004). Segundo Schoelte (2001, p. 4), [...] ‘sociedade civil’ aqui se refere ao espaço político no qual associações voluntárias explicitamente buscam dar forma às regras (em termos de políticas específicas, normas mais amplas e estruturas sociais mais profundas) que governam um ou outro aspecto da vida social. Alguns elementos da sociedade civil (geralmente caracterizados como ‘movimentos sociais’) buscam transformações radicais da ordem dominante. Contudo, a sociedade civil também inclui tanto elementos reformistas, que têm por objetivo apenas revisões modestas dos arranjos governamentais já existentes, quanto elementos conformistas, que visam reforçar as regras já estabelecidas. De fato, muitas iniciativas da sociedade 4 civil revelam um misto de tendências radicais, reformistas e conformistas. Tal conceito remete aos estudos de Habermas (1997) acerca do espaço público e sociedade civil organizada, descrevendo a esfera pública política como uma caixa de ressonância na qual ecoam os problemas a serem elaborados pelo sistema político. Esse espaço público deve ser capaz de realizar a percepção no âmbito da sociedade de modo a identificar os problemas e reforçar sua pressão frente ao Estado, isto é, os problemas devem ser também tematizados e dramatizados de forma eficaz a fim de que o complexo parlamentar os assuma e elabore politicamente. Nesse sentido, Habermas (1997, p. 92) conceitua a esfera pública nos seguintes termos: A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. [...] A esfera 4 Tradução do autor para: “[…] ‘civil society’ is taken here to refer to a political space where voluntary associations explicitly seek to shape the rules (in terms of specific policies, wider norms and deeper social structures) that govern one or the other aspect of social life. Some elements of civil society (often characterised as ‘social movements’) seek radical transformations of the prevailing order. However, civil society also includes reformist elements that seek only modest revisions of existing governance arrangements and conformist elements that seek to reinforce established rules. Indeed, many civil society initiatives show a mix of radical, reformist and conformist tendencies” (SCHOELTE, 2001, p. 4). 16 pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana. (grifos como no original) Arato (2002) ressalta que a esfera pública e a sociedade civil existem conjuntamente: a primeira se refere aos processos parcialmente institucionalizados de comunicação, enquanto a segunda consiste nos grupos, associações e movimentos necessários tanto para generalizar a experiência de comunicação como para influir politicamente nesses processos. Assim, na linha dos estudos de Habermas (1997) e de Cohen e Arato (2000), a sociedade civil pode ser compreendida como o espaço público não estatal composto de movimentos, organizações e associações que captam os “ecos” dos problemas sociais na esfera privada e os transmitem para a esfera pública política. Gohn (2005, p. 107-108) elabora um rol, não taxativo, dos principais protagonistas da sociedade civil organizada, tendo em vista que se trata de um termo historicamente construído (i.e., a partir do contexto socioeconômico vivenciado) e em constante transformação: São as ONGs, os movimentos sociais, as comissões, grupos e entidades de direitos humanos e de defesa dos excluídos por causas econômicas, de gênero, raça, etnia, religião, portadores de necessidades físicas especiais; associações e cooperativas autogestionárias de redes de economia popular solidária; inúmeras associações e entidades com perfis variados do Terceiro Setor; fóruns locais, regionais, nacionais e internacionais de debates e lutas para o encaminhamento de questões sociais; entidades ambientalistas e de defesa do patrimônio histórico e arquitetônico; redes comunitárias de bairros, conselhos populares e setores organizados que atuam nos conselhos institucionalizados das áreas sociais. Mas a sociedade civil inclui também algumas empresas e fundações que atuam segundo critérios de responsabilidade social. A maioria atua não apenas de forma endógena, dentro da própria sociedade civil, mas participam [sic] dos espaços e mecanismos de debates dos problemas nacionais em espaços públicos (ainda que sejam especializadas por temáticas de atuação); e muitas estão articuladas à própria gestão pública (nos conselhos gestores, por exemplo). O espaço público das democracias recentes, em especial da América Latina e da África, está sendo gradualmente ocupado por associações, ONGs e movimentos sociais pautados em torno de uma política de accountability social. Trata-se de uma das variadas formas de politização com base na sociedade civil, englobando formas de ação coletiva e de ativismo cívico cuja base consiste no aprimoramento das instituições representativas por meio do fortalecimento dos 17 mecanismos de controle público das ações e da legalidade dos funcionários públicos (PERUZZOTTI, 2006). 2.2 Representação no Interior das Experiências de Participação A expansão democrática para os países do Sul, a partir dos anos 1970 e 1980, envolveu uma relação estreita com movimentos sociais que lutavam não somente pela democratização, mas também pela ampliação da participação. A redemocratização no Brasil, marcada pela Constituição Federal de 1988, coincidiu com a criação de diversos mecanismos de participação que buscaram efetivar uma democracia de resultados (GOUVÊA, 2009). Embora existam procedimentos consolidados de organização do poder nas sociedades atuais, como eleições periódicas e separação de poderes, a democracia deliberativa emerge como uma alternativa de participação dos atores sociais em amplos fóruns de debate e negociação, sem que seja ocupado o espaço de representantes eleitos. Atuando no âmbito da formulação e implementação das políticas na esfera governamental, assim como no planejamento e na fiscalização das ações, os conselhos são órgãos concebidos para influir no Estado mediante as competências conferidas pelas leis reguladoras. Trata-se, portanto, de espaços públicos compostos de forma plural e paritária por atores governamentais e não governamentais. Considerando-se sua natureza deliberativa, os conselhos têm como função a formulação e o controle da execução das políticas públicas setoriais (AVRITZER; PEREIRA, 2005) e podem ainda ser entendidos como uma típica experiência de representação na participação. Com base em Tatagiba (2002), podem-se destacar três características primordiais que distinguem os conselhos gestores de outras experiências de conselhos: Composição paritária e plural: representação de organizações da sociedade civil e agências do Estado, portadoras de valores e interesses distintos e até mesmo antagônicos; Processo dialógico: instrumento de mediação dos conflitos inerentes à natureza dos distintos interesses em jogo; negociação de forma pública e aberta, com argumentos passíveis de serem 18 sustentados publicamente a partir de princípios éticos elementares relacionados à vida pública; Instâncias deliberativas: competência legal para formulação e fiscalização da implantação de políticas, buscando a democratização da gestão; os conselhos gestores têm força legal para influir no processo de produção de políticas públicas, redefinindo prioridades, recursos orçamentários e públicos a serem atendidos, consubstanciando a partilha do poder entre Estado e sociedade civil. Ampla literatura já discute os limites e avanços das teorias da representação e da participação (BOBBIO, 1986; PITKIN, 2006; HABERMAS, 1995; FARIA, 2000; AVRITZER, 1996, 2000; AVRITZER; SANTOS, 2002; O’DONNELL, 1988). Para além das tensões ou combinações entre representação e participação – sejam os mecanismos da democracia deliberativa ou da democracia participativa –, as experiências de participação têm criado novos mecanismos de representação política bastante diversos da representação eleitoral, combinando instrumentos de representação com participação direta e/ou articulando participação com representação da sociedade civil: As instituições participativas que emergiram no Brasil democrático implicaram em [sic] um aumento da representação (Gurza Lavalle, Houtzager e Castello, 2006), seja pelo fato de que os próprios atores sociais passaram a se denominar representantes da sociedade civil, seja por que o Estado passou a lidar institucionalmente com uma representação oficial da sociedade civil. Por aumento da representação, entendo o crescimento das formas como os atores sociais exercem, nessas instituições, a apresentação de certos temas, como a saúde ou interesses urbanos e o fato de que, em instituições como os conselhos de políticas, alguns atores são eleitos com o intuito de exercerem o papel de representantes da sociedade civil. Não é difícil, no entanto, perceber que a representação realizada pelos atores da sociedade civil é diferente daquela exercida na instituição representativa por excelência, isto é, no Parlamento. (AVRITZER, 2007, p. 444) Entretanto, na tentativa de enaltecer ou questionar referidas experiências participativas extremamente positivas do ponto de vista da democratização do debate público, pouca atenção tem sido dada à legitimidade da participação e representação da sociedade civil. Tal legitimidade pode ser contestada por evidências empíricas, em face da heterogeneidade de objetivos, interesses e formas de organização das entidades sociais. Além disso, tendo em vista a influência do 19 contexto na atuação e formulação política desses sujeitos coletivos, a experiência tem desautorizado uma interpretação necessariamente democrática da participação da sociedade civil nas instituições híbridas (LÜCHMANN, 2002, 2007). A vinculação arraigada entre sociedade civil e benevolência para com os interesses genuínos da sociedade, ou – numa representação habermasiana – uma suposta relação imediata entre organizações sociais e o mundo da vida, tem afastado, ou pelo menos adiado, o debate acerca da representatividade das organizações, isto é, em nome de quem e com quais mecanismos de accountability falam tais organizações: Com efeito, estamos tratando de um tipo de representação que, diferente do modelo eleitoral que identifica o representado (eleitor), esboça uma ideia difusa dele mesmo, podendo tanto ser um segmento (ou vários setores da população) quanto a própria entidade indicada para assumir a representação. O caso da representação das ONGs nos conselhos é bastante emblemático, uma vez que, como analisa Sörj (2005), estas organizações apresentam a especificidade dada pelo fato de se constituírem num “ator sem mandato direto de sua base de referência” (Sörj, 2005: 21). Tendo em vista que muitas organizações são escolhidas muito mais em função de seu grau de competência e qualificação do que em virtude de seu vínculo com as bases, altera-se sobremaneira o debate acerca das exigências de prestação de contas, responsividade e sanção. (LÜCHMANN, 2007, p. 154) Assim, a representação (ou representatividade) da sociedade civil vem sendo pouco explorada no campo teórico, e mesmo no campo pragmático de atuação das organizações, não se atentando para as importantes implicações relacionadas com a reconfiguração da sociedade civil e com a participação das entidades sociais na constituição de espaços públicos (DAGNINO, 2004). Há um deslocamento no que se entende por representatividade, seja nos casos de movimentos de massa de grande repercussão, como o Movimento Sem-Terra (MST), seja nos casos das organizações não governamentais (ONGs) ou mesmo nos fóruns e audiências relativas ao orçamento participativo (OP). Em se tratando especificamente do MST e do OP, a representatividade desses sujeitos é, em geral e numa noção clássica de representação, atestada pelo grande número de participantes, enquanto nas ONGs essa discussão perpassa o reconhecimento pelo Estado da competência técnica e/ou o conhecimento específico dessas entidades: Portadoras dessa capacidade específica, muitas ONG passam também a se ver como “representantes da sociedade civil”, num entendimento particular da noção de representatividade. Consideram ainda que sua representatividade vem do fato de que expressam interesses difusos na 20 sociedade, aos quais “dariam voz”. Essa representatividade adviria então muito mais de uma coincidência entre esses interesses e os defendidos pelas ONG do que de uma articulação explícita, ou relação orgânica, entre estas e os portadores destes interesses. (DAGNINO, 2004, p. 101-102) Dentre as experiências participativas brasileiras nesse aspecto, destacam-se os conselhos gestores, tanto por sua obrigatoriedade normativa quanto por sua expansão por diversas cidades. De maneira pontual, os conselhos gestores de políticas públicas são “espaço público de composição plural e paritária entre Estado e sociedade civil, de natureza deliberativa, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais” (TATAGIBA, 2002, p. 54). Há, certamente, diferentes modelos de representação, em regra delineados nas leis de criação dos conselhos, que envolvem o perfil dos segmentos representados e os mecanismos de escolha dos participantes: paridade entre Estado e sociedade civil (e.g., criança e adolescente, e assistência social), ou entre usuários e demais setores (e.g., saúde); escolha dos representantes em fóruns abertos enquanto outros conselhos já têm os segmentos a serem representados definidos previamente pela legislação. O principal parâmetro no qual essa experiência se baseia é a participação de organizações da sociedade civil, além da existência de algum tipo de paridade entre Estado e sociedade civil. Trata-se, portanto, de uma ideia de representatividade que alimenta certa confusão no entendimento acerca dos critérios de legitimidade que estes espaços carregam, na medida em que ora se apela para a legitimidade da representação de pessoas ou setores com “‘uma história feita’ nas ‘lutas’ dos segmentos pró-cidadania” (Tatagiba, 2002); ora se relaciona legitimidade com qualificação e competência dos representantes, como tem sido o caso das ONGs (Dagnino, 2002); ora o critério de legitimidade está ancorado na capacidade dos representantes em “expressar os interesses do respectivo segmento social” (Teixeira, 1996). (LÜCHMANN, 2007, p. 153-154) Destarte, o modelo dos conselhos gestores está diretamente baseado em um princípio da representação que ocorre por intermédio das organizações da sociedade civil. Trata-se da dimensão da participação com foco na representação coletiva, extrapolando a dimensão individual a partir de organizações e associações que ocupam lugares estratégicos na sociedade civil. Inevitavelmente, o debate deve abranger a criação e/ou o aprimoramento de mecanismos de autorização, prestação de contas, responsividade e sanção, ainda que se trate de uma representação sem mandato direto, como salientado por Sörj (2004). 21 Em consonância com Miguel (2003) e tendo-se em mente que a sociedade civil é a base da prática da cidadania, inexiste a possibilidade de uma representação política adequada sem a presença de uma sociedade civil desenvolvida e plural. Ressalte-se, contudo, a abordagem de Dagnino (2004) quanto aos projetos políticos distintos que norteiam a ampliação da participação da sociedade civil. Conforme aponta a autora, existe, por um lado, um projeto neoliberal (diretamente relacionado com os nortes do famoso Consenso de Washington) que implica que o Estado se isenta progressivamente de seu papel de garantidor de direitos e transfere suas responsabilidades sociais para a sociedade civil. Por outro lado, existe também um projeto participativo fundamentado na Constituição Federal e orientado à criação de espaços públicos nos quais haja uma crescente participação da sociedade civil no processo de discussão e deliberação relacionado às políticas públicas, sendo que esse projeto tem íntima relação com a luta contra o regime militar e com a “reconciliação” entre sociedade civil e Estado ocorrida após a redemocratização. Esses dois projetos demandam uma sociedade civil ativa e propositiva, sendo que [e]ssa identidade de propósitos, no que toca à participação da sociedade civil, é evidentemente aparente. Mas essa aparência é sólida e cuidadosamente construída através da utilização de referências comuns, que tornam seu deciframento uma tarefa difícil, especialmente para os atores da sociedade civil envolvidos, a cuja participação se apela tão veementemente e em termos tão familiares e sedutores. A disputa política entre projetos políticos distintos assume então o caráter de uma disputa de significados para referências aparentemente comuns: participação, sociedade civil, cidadania, democracia. Nessa disputa, onde os deslizamentos semânticos, os deslocamentos de sentido, são as armas principais, o terreno da prática política se constitui num terreno minado, onde qualquer passo em falso nos leva ao campo adversário. (DAGNINO, 2004, p. 97) Conforme debatido por Dagnino (2002) em relação à composição do Conselho da Comunidade Solidária, centro das políticas sociais no Governo Fernando Henrique Cardoso, a discussão acerca da representatividade da sociedade civil passa pela confluência entre esses dois projetos políticos, correndose o risco de se reduzir a representatividade à visibilidade social e ao espaço ocupado por determinado ator nos diversos tipos de mídia. Isso não significa, contudo, afastar o debate acerca dos meios de comunicação, sendo de extrema relevância entender os meios de comunicação como uma esfera de representação política. Trata-se, sem dúvida, de um espaço privilegiado de disseminação das 22 diferentes perspectivas e projetos dos grupos em conflito na sociedade, apresentando as vozes dos diversos segmentos políticos e permitindo que o cidadão forme sua opinião política a partir do acesso a valores, argumentos e fatos que estão relacionados com os projetos políticos em disputa (MIGUEL, 2003). 2.3 Autorização e Legitimidade da Ação: Representação por Afinidade A representação da sociedade civil nos espaços participativos passou a ser problematizada mais recentemente, existindo alguns modelos teóricos que buscam fundamentar a legitimidade da representação no interior das experiências de participação. No período imediatamente após a redemocratização, o foco emergencial dos atores sociais se resumia a criar, estabelecer e cristalizar experiências participativas com base na Constituição Federal, muito mais do que discutir fundamentos teóricos ou argumentos de legitimidade das instituições então criadas: O conceito de sociedade civil é daqueles que tem se prestado às mais diferentes interpretações, seja nas discussões acadêmicas, seja na luta política do dia a dia. Salvo melhor juízo, a interpretação que venceu, ao menos na prática dos anos 80, foi a de que “sociedade civil” é tudo aquilo que não é “Estado”. Foi a partir dessa visão, correta em boa medida, que organizações sociais passaram a autodenominar-se “representantes da sociedade civil”. Quem se der ao trabalho de acompanhar como ocorreu a aplicação do conceito verificará que, curiosamente, as centrais sindicais nunca foram classificadas de “representantes da sociedade civil”, mas sim como “entidades sindicais”. Com isso, o conceito ganhou conotação que se poderia dizer “elitista”: OAB, ABI, UNE; algumas organizações que surgiram durante o período pré-constituinte e que atuaram de 1986 a 1988; organizações que espelham o movimento feminista. E algumas que traduzem a reivindicação afro-brasileira. (FERREIRA, 1994, p. 3) Hoje, no entanto, o debate está centrado no tipo de representação exercida pelas organizações da sociedade civil e nos argumentos de legitimidade que buscam fundamentar tal representação. A fim de sistematizar os debates acadêmicos recentes sobre essa temática, esta Seção revisa um estudo de Leonardo Avritzer publicado em 2007, qual seja: “Sociedade Civil, Instituições Participativas e Representação: da autorização à legitimidade da ação”. O autor discute, em um primeiro momento, a diferença entre a representação da sociedade civil e a representação tradicional (i.e., no Parlamento), tendo em vista que a primeira não conta com autorização expressa 23 (dos representados) nem com monopólio territorial5. Em linhas gerais, Avritzer (2007) apresenta um reexame dos fundamentos do debate sobre representação e propõe um conceito de representação relacional, dissociando representação e autorização e descrevendo a representação como um vínculo simultâneo entre atores sociais, temas e fóruns capazes de agregar tais atores. A partir de uma distinção entre formas de representação, sistematizada no Quadro 1, a seguir, o autor defende o conceito de representação por afinidade, a qual é legitimada e autorizada pelos demais atores que atuam da mesma maneira que o representante, isto é, a legitimação se dá pela relação com o tema (ao contrário da representação eleitoral). QUADRO 1 – Formas de Representação na Política Contemporânea Tipo de Representação Eleitoral Advocacia Representação da sociedade civil Relação com o Representado Autorização por meio do voto Identificação com a condição Autorização dos atores com experiência no tema Forma de Legitimidade da Representação Pelo processo Pela finalidade Pela finalidade e pelo processo Sentido da Representação Representação de pessoas Representação de discursos e ideias Representação de temas e experiências Fonte: Avritzer (2007). O primeiro ponto do estudo refere-se à elaboração de um conceito que abarque a representação eleitoral e a extraeleitoral (ou não eleitoral), categorizandose, neste último tipo, as diversas formas de advocacia e de participação exercidas pela sociedade civil. Nesse sentido, Avritzer aponta que o conceito de soberania precisa ser reinterpretado a fim de se assumir que a representação atualmente opera numa lógica de múltiplas soberanias. Em relação à autorização, o autor categoriza três papéis políticos no que diz respeito à representação – agente, advogado e partícipe –, estando cada um relacionado a um tipo diverso de autorização: Em todos os três casos, há o elemento do “agir no lugar de”, tão ressaltado por Hanna Pitkin. O importante é, no entanto, perceber que o “agir no lugar de” varia de perspectiva e pode ser justificado de diferentes maneiras. 5 No que tange à soberania, há, na realidade, uma superposição de competências entre órgãos governamentais e instituições híbridas. 24 No caso do agente escolhido pelo processo eleitoral – o caso clássico de representação –, ele não precisa ser discutido em detalhes neste artigo (Pitkin, 1967). Mas as mudanças recentes são essenciais nos dois últimos casos, e vale a pena discutir a sua legitimidade. (AVRITZER, 2007, p. 456) O que o autor chama de “advocacia de causas coletivas” refere-se a uma advocacia de interesse público que engloba o papel de advocacy propriamente dita, no sentido de pressão e articulação política, e a advocacia judicial estratégica, realizada por organizações da sociedade civil com base na defesa de direitos coletivos e difusos. Essa “advocacia de temas”, também denominada de selfauthorized representation, prescinde da escolha ou de qualquer tipo de autorização, existindo, na realidade, uma afinidade ou identificação com a situação vivida por um grupo de indivíduos, como no caso da Anistia Internacional e do Greenpeace: Na melhor das hipóteses, o que se pode presumir é que, em condições abertas de troca de informações, os atores envolvidos teriam posições diferentes em relação a seus próprios direitos, o que, de toda maneira, é apenas uma suposição. Nesse sentido, o elemento central da advocacia de temas não é a autorização, e sim uma relação variável no seu conteúdo entre os atores e os seus representantes. Se voltarmos a Cícero e sua descrição do papel do procurador, percebemos que a identificação com a causa se tornou mais importante que a autorização explícita para representá-la. (AVRITZER, 2007, p. 457) Quanto à representação da sociedade civil, trata-se do caso dos conselhos gestores, no qual, embora haja eleições para escolha desses representantes, o “eleitorado” pode incluir ou não todas as organizações ligadas ao tema ou mesmo não estar organizado em associações, possuindo características muito específicas de acordo com o espaço participativo em discussão. Enquanto a advocacia de interesse público pode ser tida como uma representação quase coletiva, a representação da sociedade civil é uma forma coletiva não institucionalizada de ação que gera representação: Este último [tipo de representação] não possui as características da igualdade matemática da soberania, tão cara à ideia de representação eleitoral, e não possui o elemento monopolista territorial na medida em que partilha a capacidade de decisão com outras instituições presentes no território. O importante em relação a essa forma de representação é que ela tem sua origem em uma escolha entre atores da sociedade civil, decidida frequentemente no interior de associações civis. Estas exercem o papel de criar afinidades intermediárias, isso é, elas agregam solidariedades e interesses parciais (Warren, 2001). Ao agregarem estes interesses, elas propiciam uma forma de representação por escolha que não é uma representação eleitoral de indivíduos ou pessoas. A diferença entre a representação por afinidade e a eleitoral é que a primeira se legitima em uma identidade ou solidariedade parcial exercida anteriormente. (AVRITZER, 2007, p. 457-458) 25 Não se trata certamente de três tipos independentes de representação, mas de aspectos da representação que mantêm uma relação de legitimação e complementaridade entre si. A eleição decide a maneira como órgãos governamentais se relacionarão com a advocacia e a representação da sociedade civil, mas ações estatais no sentido de ignorar as formas não eleitorais de representação que têm por nascedouro a sociedade civil dificultam ou impedem a implementação da agenda política pelos governantes eleitos. Como aponta Avritzer (2007, p. 459), “[o] futuro da representação eleitoral parece cada vez mais ligado à sua combinação com as formas de representação que têm sua origem na participação da sociedade civil”. 2.4 Pluralização da Representação e Fundamentos da Legitimidade A noção de representação relacional, ou por afinidade, desenvolvida por Avritzer (2007) delimita de maneira bastante favorável a fundamentação teórica acerca da legitimidade da participação. Alguns desafios, contudo, persistem e a literatura política, conforme anteriormente discutido, ainda não se debruçou sobre esse tema. Dentre os recentes estudos acerca da pluralização da representação da sociedade civil e os desafios relacionados à legitimidade e à representatividade das organizações civis, esta Seção aborda três artigos publicados por Adrián Gurza Lavalle e Graziela Castello (sendo os dois primeiros publicados em conjunto com Peter P. Houtzager), a saber: “Democracia, Pluralização da Representação e Sociedade Civil” (2006a), “Representação Política e Organizações Civis: novas instâncias de mediação e os desafios da legitimidade” (2006b) e “Sociedade Civil, Representação e a Dupla Face da Accountability: Cidade do México e São Paulo” (2008). O primeiro artigo trata da representação virtual, ideia fundamentada em Burke (1774)6 e debatida por Avritzer (2007) no estudo apresentado na Seção anterior. Em linhas gerais, os autores defendem que o melhor mecanismo para garantir a representatividade é a existência de um compromisso representativo genuíno, que não se confunde com os dispositivos institucionais formais. 6 BURKE, Edmund. (1774), Speech to the Electors of Bristol at the Conclusion of the Poll. Disponível em: <http://www.ourcivilisation.com/smartboard/shop/burkee/extracts/chap4.htm>. Acesso em: 20 jan. 2010. 26 Avritzer (2007), ao elaborar a noção de representação por afinidade, descarta a contribuição de Lavalle et al. (2006a), em especial pelo fato de a teorização traçada por Burke focar principalmente a representação não eleitoral dos reis europeus. Conforme conclui Avritzer: A questão, no entanto, é que, na ânsia de legitimar uma forma de representação pós-eleitoral, Gurza Lavalle, Houtzager e Castello acabam resgatando um argumento pela legitimidade da representação pré-eleitoral. Ao proceder assim, eles jogam fora a criança junto com a água do banho, não conseguindo propor um conceito de representação que vá além da autorização via eleição. (AVRITZER, 2007, p. 451) Como salientado, opta-se, na presente pesquisa, por adotar o conceito de Avritzer (2007) quanto à representação por afinidade, recuperando-se as pesquisas empíricas realizadas por Lavalle et al. (2006b) e Lavalle e Castello (2008) quanto aos argumentos de legitimidade das organizações da sociedade civil. Com base em survey realizado com entidades da cidade de São Paulo e/ou da Cidade do México, os dois últimos artigos mencionados compõem estudo sobre as funções da representação política na perspectiva de inovação democrática, impactando diretamente na reconfiguração da representação. Tais pesquisas abordam ainda a conexão entre as novas formas de representação política e os mecanismos de accountability a elas associados (LAVALLE; CASTELLO, 2008). Lavalle et al. (2006b) sistematiza três grupos de variáveis relacionadas com as atividades de representação exercidas pelas organizações pesquisadas, quais sejam: (i) apoiar candidatos políticos; (ii) possuir título de utilidade pública; e (iii) realizar atividades de mobilização e reivindicação perante programas, órgãos ou instâncias do governo7. A seguir, destaca-se a relevância dessas pesquisas, que consiste na categorização empreendida por Lavalle et al. (2006b) quanto aos argumentos de legitimidade, os quais são posteriormente retomados e mais bem explicitados em Lavalle e Castello (2008). Enquanto Lavalle et al. (2006b) analisam exclusivamente entidades da cidade de São Paulo com compromissos de representação e averiguam quais são os argumentos de legitimidade utilizados pelas organizações pesquisadas, Lavalle e Castello (2008), utilizando-se também da mesma base teórica, abordam a dupla face 7 Lavalle e Castello (2008) não replicam semelhante análise para o estudo dos dados coletados em relação à Cidade do México. Essas variáveis não foram foco de análise do presente trabalho, tendo em vista que centram nas atividades de representação, e não no argumento de legitimação. 27 da accountability societal com base na primeira pesquisa sobre São Paulo e na adição de dados de uma survey realizada na Cidade do México. Nas duas pesquisas mencionadas, destaca-se que 73% das organizações na cidade de São Paulo se consideram “representantes da sociedade civil organizada”, no conceito de representação presuntiva adotado pelos autores (i.e., os conselheiros presumem-se representantes), ao passo que, na Cidade do México, somente 58% das organizações entrevistadas se assumem como representantes. Nesse universo, os motivos pelos quais tais organizações se sentem representantes foram sistematizados em seis argumentos de legitimidade, a saber: Argumento eleitoral: as organizações defendem que mecanismos de eleição de suas lideranças ou diretoria fundamentam sua representatividade. Tal argumento se atenta mais ao procedimento formal (eleição) do que efetivamente à legitimidade da representação; Argumento de identidade: as organizações apresentam a coincidência de identidade com seus representantes, considerando, em geral, atributos pessoais, como gênero, raça e orientação sexual; Argumento de filiação: as organizações alegam que foram criadas especificamente com o objetivo de representar os indivíduos presentes no ato de sua criação; Argumento de serviços: as organizações argumentam que oferecem benefícios aos seus representados, como tratamentos médicos, distribuição de bolsas e cestas básicas e realização de cursos profissionalizantes; Argumento de proximidade: as organizações afirmam que implementam uma relação horizontal com seus representados a fim de exercer ações de empoderamento, emancipação e protagonismo e, assim, estimular sua participação direta na dinâmica dos trabalhos da entidade; e Argumento de intermediação: as organizações declaram que exercem o papel de intermediárias entre os representados e os 28 espaços de representação (em geral, o poder público), nos quais se reivindica a efetivação de direitos (e não favores ou serviços beneméritos). Dentre os argumentos apresentados, os três primeiros (i.e., filiação, identidade e eleições) são frequentes nas pesquisas relacionadas a teorias tradicionais da representação, mas tiveram pouca ocorrência na população pesquisada. Já os argumentos seguintes (i.e., intermediação, serviços e proximidade) têm relação com a representação presuntiva e, em alguns casos, podem não ser compatíveis com o padrão democrático. Cabe ainda tecer algumas considerações acerca dos argumentos de legitimidade apresentados. O argumento eleitoral tem fundamento no modelo de representação política tradicional e, no caso da sociedade civil organizada, certamente goza dos mesmos déficits e limitações já apontadas pela literatura política quanto à representatividade. O argumento de filiação tem maior ocorrência entre entidades de coordenação e fundamenta-se na relação estabelecida entre os representantes e os representados (tal como ocorre nos sindicatos). O argumento de identidade, embora tenha sido utilizado de forma minoritária, vem gozando de maior debate público e conta com poucos mecanismos de accountability, responsividade e sanção, sendo tais mecanismos atributos inerentes a uma lógica democrática (não obstante, no âmbito da sociedade civil, a representação por argumento de identidade possa ser extremamente positiva na correção da representação política na gestão das políticas públicas). O argumento de serviços se afasta de maneira radical das exigências democráticas, tendo em vista que se estabelece uma lógica de distribuição de serviços pelo representante, sem o estabelecimento de quaisquer mecanismos de controle ou de sanção. Cabe destacar que esse argumento é o mais recorrente entre entidades assistenciais tanto no Brasil quanto no México, possivelmente em razão do histórico de surgimento da política de assistência social, com prestação de serviços assistencialistas à população carente. 29 O argumento de proximidade traz a ideia do empoderamento e a possibilidade de que os representados se expressem diretamente, viabilizando alguns mecanismos de accountability e tendo grande relação com a luta contra o autoritarismo e com a atuação da Igreja Católica no âmbito da sociedade civil (em especial a ação desenvolvida pelas pastorais nas áreas urbana e rural). O argumento da intermediação desloca o fundamento do representado para o espaço de representação e traz novos elementos ao debate das teorias da representação. É de se ressaltar o foco no Estado e, em especial, no estabelecimento de mecanismos de intermediação entre os interesses dos representantes e o poder público, ainda que inexista uma relação direta com o público a ser representado. A intermediação foi utilizada como fundamento de legitimidade em todos os tipos de organizações pesquisadas em São Paulo – ONGs, entidades assistenciais, associações de base e entidades de coordenação –, sem grande variação entre elas. Esse argumento tem relação com a advocacia de interesse público apresentada por Avritzer (2007), tratando-se de uma representação sem mandato expresso (portanto, sem autorização) estabelecida por afinidade de temas. Os desafios relacionados aos mecanismos de controle e sanção são semelhantes àqueles apresentados em debates atuais sobre a accountability das organizações não governamentais. Lavalle e Castello (2008) discutem ainda os mecanismos de controle (cf. Seção 2.5). Se a accountability tem relação com a prestação de contas e com a possibilidade de sanção, deve-se problematizar a quem as organizações que representam a sociedade civil nos espaços de participação prestam contas, a fim de avaliar a qualidade dessa representação: Nesse sentido, modalidades de controle societal, nas quais se encontram organizações civis que representam interesses, espaços de interlocução institucionalizados e faculdades decisórias com caráter vinculante, revelamse altamente exigentes em um duplo sentido. Por um lado, satisfazem as expectativas mais elevadas do ideário da democracia participativa, cujos expoentes acusam frequentemente as insuficiências e distorções que nesses espaços minam a “participação” e obstaculizam tentativas autênticas de “partilhar o poder” – segundo a influente formulação de Dagnino (2002). Mas, por outro lado, impõem exigências a respeito da representatividade, responsividade e sanção dos que falam em nome dos demais, suscitando a velha questão do controle dos controladores. (LAVALLE; CASTELLO, 2008, p. 68) 30 Na análise apresentada no Capítulo 4, busca-se não apenas descrever a categorização dos argumentos de legitimidade abordados pelas organizações, mas também identificar como se verifica a lógica da representação, tendo em vista que os atores se apresentam em instituições híbridas tanto como autorrepresentantes quanto como defensores dos interesses de uma categoria mais ampla e etérea, qual seja: a sociedade civil organizada. Portanto, essa representação tem que ser legítima não somente frente ao Estado, mas também frente aos representados. 2.5 Desafios da Representatividade e da Legitimidade De maneira geral, verifica-se, na composição dos conselhos, uma participação coletiva, isto é, a autoapresentação das organizações agregada a uma forma de representação coletiva, envolvendo organizações escolhidas para representarem outros grupos sociais. Essa representação pretensamente tem por fundamento a legitimidade dessas organizações em defender determinadas causas sociais, sendo, em geral, um mandato livre na perspectiva de representação de interesses gerais (LÜCHMANN, 2005; 2007). Se muitos conselheiros, conforme apontam pesquisas realizadas nos conselhos do Nordeste, ainda fundamentam sua representatividade nos processos eleitorais pelos quais chegaram ao poder (FARIA, 2007; ALMEIDA, CUNHA, 2009a), as condições em que tais procedimentos ocorrem precisam ser repensadas com vistas à democratização e diversificação, permitindo que diferentes organizações possam disputar as vagas de representantes nos conselhos. Para além da caracterização teórica da representação da sociedade civil, os dois desafios apontados de forma mais enfática têm sido “1) como lidar com a ausência de mecanismos formais de autorização que garantam a igualdade política e consentimento de todos os cidadãos? e 2) quais são as possibilidades de accountability política desses mecanismos?” (ALMEIDA; CUNHA, 2009a) Destarte, a legitimidade da representação tem relação direta com a participação ativa dos demais grupos organizados, no que tange à mobilização nos procedimentos relativos à autorização e à prestação de contas. Assim, torna-se 31 possível e viável que a representação da sociedade civil seja precedida de um debate público e de avaliações das ações adotadas: [A] qualidade e a legitimidade da representação vão depender do grau de articulação e organização da sociedade civil, ou seja, da participação. Os fóruns de discussão de políticas públicas e de definição e escolha dos representantes, no caso dos conselhos, ou as assembleias regionais e temáticas, no caso do orçamento participativo, podem ser exemplos de espaços públicos que promovem esta conexão entre representantes e representados. (LÜCHMANN, 2007, p. 166) A efetividade dos espaços participativos tem, em linhas gerais, relação direta com a maior representatividade dos atores sociais envolvidos: a partilha do poder entre Estado e sociedade civil é diretamente proporcional à maior representatividade e legitimidade das organizações envolvidas (DAGNINO, 2002). Ressalta-se, contudo, que a noção de representatividade de movimentos de massa, como o MST, e de experiências participativas, como o OP, distam da conotação que o termo possui em referência a ONGs e conselhos gestores. No caso das ONGs, a representatividade parece ter relação direta com determinado saber técnico ou tipo de competência que advém de determinado conhecimento relativo a um tema específico ou segmento social, seja por relação atual ou anterior. Como demonstrado nas pesquisas de Lavalle et al. (2006b) e Lavalle e Castello (2008), tais organizações se veem como representantes da sociedade civil por expressarem interesses difusos na sociedade e intermediarem essa relação entre as demandas e seus destinatários (em regra, o poder público): O segundo problema suscitado pelas ONGs é o da representação. Elas não fundamentam sua legitimidade na representação numérica dos cidadãos, mas no ethos moral e no valor intrínseco das causas que defendem. Contudo, à medida que algumas ONGs ou outras organizações da "sociedade civil" passam a se autoproclamar a expressão da “sociedade civil organizada", reproduzem todos os erros e os defeitos das antigas organizações vanguardistas. Essa visão supõe que preexiste uma "sociedade civil" desorganizada, homogênea e naturalmente virtuosa e que falta, somente, dar-lhe voz. Mas as contradições da sociedade se reproduzem no nível das ONGs. Por que critério uma ONG seria mais representativa que outra? Qual é o fundamento da legitimidade de uma ONG e não de outra para “representar” uma “causa” em foros internacionais? (SÖRJ, 2004, p. 80) Dagnino (2002; 2004) entende que esse deslocamento do sentido de representatividade, além de não ser ingênuo por servir ao projeto político neoliberal (conforme anteriormente exposto), é fomentado pelos governos e pelas agências internacionais, evitando o diálogo direto com os movimentos sociais, talvez por um 32 receio de politização. Esse contexto, por sua vez, fortalece a identificação entre ONGs e sociedade civil, ou entre sociedade civil e terceiro setor. Retomando o que foi exposto na primeira Seção deste Capítulo, o afastamento entre as ONGs e os movimentos sociais, ou mesmo entre as ONGs e o seu público-alvo, cria uma situação de prestação de contas e responsividade somente para com os financiadores, sem qualquer accountability frente à sociedade civil da qual essas organizações se dizem porta-vozes. Também chamando a atenção para essa nova compreensão da representação política, Sörj e Martituccelli (2008) distinguem um traço primordial na atuação das ONGs contemporâneas se comparadas com as organizações filantrópicas tradicionais, a Igreja, os partidos revolucionários e mesmo ONGs como a Cruz Vermelha: a pretensão da representatividade. Trata-se daquilo que os autores chamam de representação sem delegação, ou de autodelegação sem representação (no sentido clássico): O principal ator da sociedade civil contemporânea são as ONGs. O que são as ONGs? As associações da sociedade civil (clubes culturais e esportivos, organizações profissionais e científicas, grupos maçônicos, instituições filantrópicas, igrejas, sindicatos, etc.) existiram ao longo do século XX. Essas organizações representaram diretamente (ou pelo menos se esperava que representassem) um público determinado, sendo que as ONGs contemporâneas afirmam sua legitimidade na base da força moral de seus argumentos e não por sua representatividade. Trata-se então de algo novo, de um conjunto de organizações que promovem causas sociais sem receber o mandato das pessoas que dizem representar. (SÖRJ; MARTITUCCELLI, 2008, p. 131 – grifos como no original) Na linha dos estudos de Avritzer (2007), verifica-se que o fundamento da representação da sociedade civil organizada se dá por critérios alheios ao conceito tradicional de representação. Trata-se, certamente, da defesa de causas de interesse público em relação às quais, supostamente, os demais atores sociais também gozam da mesma posição política. Sörj (2004) aponta a impossibilidade de representação da sociedade civil dada sua própria constituição: O uso do conceito de “sociedade civil” tal como praticado por alguns de seus autoproclamados representantes é a própria negação do conceito de espaço público. Se a "sociedade civil" é uma dimensão da esfera pública, ela não pode ser "representada" por nenhum grupo, o que significaria o abandono da ideia de uma esfera aberta. A esfera pública é pública pois constitui espaço de diálogo, de encontro de opiniões diferentes, que ninguém pode representar e do qual nenhum ator pode se apropriar, já que estaria destruindo seus próprios fundamentos, homogeneizando uma realidade cuja existência é a diversidade. (SÖRJ, 2005, p. 72) 33 Retomando Habermas, o que Sörj (2005) destaca é a dificuldade de se pensar a representação a partir da compreensão da esfera pública como uma estrutura comunicativa do agir orientado para o entendimento. Por outro lado, a criação de espaços de deliberação política e a possibilidade de tematização de novas questões possibilitam a constituição de uma esfera pública na qual estejam presentes os anseios emancipatórios da sociedade civil (MORAES, 2006). Por conseguinte, tem-se que os procedimentos que definem a forma de participação da sociedade civil organizada nas instituições híbridas devem, necessariamente, ser pensados a partir de mecanismos democráticos, tomando-se o cuidado de problematizar o grau de representação, representatividade e, sobretudo, legitimidade das organizações escolhidas: Além da qualificação técnica, a qualificação política da representação da sociedade civil envolve um aprendizado crucial nestes novos espaços que trazem, como parte da sua novidade, a convivência direta com uma multiplicidade de atores portadores de concepções e interesses diversos. Essa diversidade é acentuada no caso de espaços de deliberação de políticas como os Conselhos Gestores, mas está presente mesmo nos espaços relativamente mais homogêneos (ou dos quais se esperaria uma maior homogeneidade) como o Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), o CCMD ou o MST e seus simpatizantes. O reconhecimento da pluralidade e da legitimidade dos interlocutores é requisito não apenas da convivência democrática, em geral, mas especialmente dos espaços públicos, enquanto espaços de conflito que têm a argumentação, a negociação, as alianças e a produção de consensos possíveis como seus procedimentos fundamentais. (DAGNINO, 2002, p. 285) Assim sendo, a representação no interior das experiências de participação tem possibilitado atender às exigências democráticas da pluralidade, mesmo que, em alguns casos, se permita a composição por grupos antidemocráticos, exatamente em razão de o direito à participação nas decisões políticas ser de extrema relevância para as teorias da democracia participativa. Consoante salienta Raichelis (1998), o modelo dos conselhos gestores ainda está em construção e hoje se configura como um acúmulo histórico de experiências. Ainda que não seja o modelo definitivo, trata-se de um processo em constante avaliação, no qual ainda estão sendo ponderados os custos da participação e quais os limites e possibilidades que cada experiência local vem demonstrando (TEIXEIRA; TATAGIBA, 2007). 34 3 METODOLOGIA 3.1 Natureza da Pesquisa e Coleta de Dados Este trabalho, de natureza descritiva e qualitativa, consiste em um estudo de caso referente à representação da sociedade civil organizada nas instituições participativas. A fim de apurar a institucionalização da participação da sociedade civil e o modo como têm-se dado os processos de escolha de organizações, optou-se por delimitar duas fontes de dados complementares, a saber: (i) legislação específica aplicável, incluindo resoluções e normas emanadas pelo próprio Conselho em referência ao procedimento eleitoral; e (ii) atas dos espaços de escolha das entidades a integrar o Conselho como representantes da sociedade civil organizada. O conceito de legislação aqui adotado abrange a lei criadora do Conselho, bem como os respectivos decretos, regimentos internos e resoluções do Conselho que tratem da matéria. O primeiro passo foi o contato, em Minas Gerais, com os Conselhos Estaduais que estão relacionados com a gestão de políticas públicas e integram um sistema nacional específico já consolidado, quais sejam: assistência social, criança e adolescente, e saúde8. O recorte se deu em conselhos estaduais a fim de analisar instituições que têm maior autonomia e impacto na gestão das políticas, tendo em vista que os conselhos municipais podem adotar determinado formato de atuação em face de características locais específicas. Não foram bem-sucedidos os pedidos de dados junto ao Conselho Estadual de Saúde e ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, os quais não responderam à solicitação em tempo hábil que possibilitasse a realização da pesquisa. O Conselho Estadual de Assistência Social (CEAS) aceitou apoiar esta pesquisa e forneceu todas as atas, normativas e dados solicitados. Em seguida, foi realizada a análise da legislação específica aplicável ao CEAS. Buscou-se apurar a regulação legal da participação e analisar como ela é prevista, objetivando-se ainda um maior conhecimento do funcionamento do Conselho. A pesquisa se deu a partir dos portais legislativos disponibilizados nos 8 Os conselhos do meio ambiente e das cidades não foram consultados por ainda não estarem consolidados em um sistema nacional com um fundo específico. 35 sítios eletrônicos do próprio Conselho, da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais (à qual o Conselho está vinculado) e da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Para tal pesquisa, foram inseridos como parâmetros de busca o nome completo e a sigla do Conselho Estadual. No início de novembro de 2009, foi formalizada a solicitação do acesso às atas, a qual foi dirigida à presidência e à secretaria executiva do Conselho Estadual, garantindo-se o sigilo das informações que fossem sensíveis e que pudessem gerar implicações para a política de assistência social. A secretaria executiva, com autorização da presidência, disponibilizou farto material para consulta e extração de cópias, incluindo todas as atas de reuniões do Conselho desde sua fundação. Foram selecionadas as atas relativas aos processos eleitorais, haja vista a previsão na própria lei do CEAS de registro em atas específicas, e as normas e resoluções relativas aos fóruns de escolha dos representantes, sendo extraídas cópias de todo o material relevante. Considerando-se que podem ter ocorrido alterações no processo eleitoral desde a fundação do Conselho Estadual, foram analisados todos os documentos acerca do procedimento eleitoral, buscandose verificar quais os mecanismos de escolha adotados em cada novo mandato. 3.2 Metodologia de Análise A metodologia de análise dos dados deste estudo buscou: 1. investigar, a partir da análise da legislação e das atas, qual(is) fator(es) fundamenta(m) e legitima(m) a atuação de determinados atores sociais junto ao conselho gestor da área da assistência social em Minas Gerais; 2. analisar como funciona o mecanismo de escolha dos conselheiros não governamentais no Conselho Estadual de Assistência Social (CEAS) de Minas Gerais; e 3. identificar, a partir do estudo de caso, a existência de discussões e debates acerca da natureza e legitimidade do mandato dos conselheiros não governamentais. 36 A análise dos dados coletados partiu da metodologia qualitativa de análise de conteúdo, considerando-se a presença ou ausência de determinada característica na legislação e atas. De acordo com CaregnatoI e Mutti (1996), a análise de conteúdo pode ser realizada por meio do método de dedução frequencial ou análise por categorias temáticas: enquanto a primeira consiste na quantificação da ocorrência repetitiva de uma mesma palavra, a segunda, realizada no presente estudo, envolve o desmembramento do texto em unidades e a classificação dessas unidades em categorias comuns. Referida categorização baseou-se na revisão da literatura apresentada, sobretudo nos fundamentos de legitimidade evidenciados por Avritzer (2007), Lavalle et al. (2006b) e Lavalle e Castello (2008). A forma de escolha dos representantes da sociedade civil nos conselhos gestores obedece a certa regulamentação legal, seja de forma taxativa – a legislação indica quais organizações e movimentos estarão representados no Conselho – ou de forma procedimental – a legislação indica como se dará tal escolha. A análise da legislação específica aplicável ao CEAS consistiu na primeira etapa da coleta de dados. Buscou-se, por um lado, constatar a previsão legal de tal participação e analisar como ela é prevista e, por outro, verificar se a participação prevista corresponde à prática efetiva do Conselho. Considerando-se a dinâmica e forma de funcionamento dos conselhos gestores, os processos de escolha dos representantes da sociedade civil costumam ocorrer em reuniões ou fóruns, com algum nível de formalização coordenado pelo próprio conselho ou pelo órgão gestor. Por essa razão, foram analisadas as atas das reuniões que formataram a composição do Conselho Estadual de Assistência Social (CEAS) desde a sua formação. 4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS 4.1 O Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais A participação da sociedade civil na gestão da política de assistência social foi prevista na Constituição Federal, em seu art. 204, inc. II. A Lei Orgânica da 37 Assistência Social (LOAS) repete o dispositivo constitucional, fixando como diretriz a “participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis” (art. 5º, II, Lei nº 8.742/1991). Assim, em grande parte dos dispositivos da LOAS, estão previstas a participação e a deliberação pelos conselhos gestores no respectivo nível federativo (municipal, estadual ou federal). O art. 16 da LOAS estabelece os conselhos como instâncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo de assistência social, sendo instituições de caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil. Além disso, a própria lei estabelece como condições para os repasses de recursos para os demais entes federados: (i) funcionamento de conselho de assistência social, de composição paritária; (ii) instituição de fundo de assistência social, com orientação e controle dos respectivos conselhos de assistência social; e (iii) implementação de plano de assistência social, sendo que os conselhos e fundos devem estar em pleno funcionamento. Em Minas Gerais, a Lei Estadual nº 12.262/1996 estatuiu a política estadual de assistência social e criou o Conselho Estadual de Assistência Social (CEAS), seguindo moldes semelhantes àquele estabelecido pelo art. 16 da LOAS. Dentre as competências do CEAS, destaca-se a aprovação da política estadual de assistência social e do Plano Estadual de Assistência Social, bem como a convocação da Conferência Estadual de Assistência Social, conforme estabelecido pelo art. 13 da referida lei estadual. Também competem ao CEAS: a normatização e regulação das ações e serviços, públicos e privados, da assistência social; o registro das entidades de âmbito intermunicipal; e o acompanhamento, avaliação e fiscalização dos serviços de assistência social, em especial quanto ao acesso da população a esses serviços. Em se tratando da gestão dos recursos dessa área, a Lei atribui ao CEAS a aprovação e fiscalização do orçamento, da transferência de recursos, da celebração de convênios, assim como o gerenciamento do Fundo Estadual de Assistência Social (FEAS). O Regimento Interno resume tais atribuições ao definir o CEAS como “órgão deliberativo, controlador, normativo, consultivo, de caráter permanente, com participação paritária entre Governo e Sociedade Civil”.9 9 Considerando-se o recorte proposto, este trabalho não busca detalhar as competências legais do CEAS nem mesmo as atribuições atinentes ao Conselho relativas à implementação e à gestão do 38 A normativa estadual estabelece que o CEAS é composto de 20 membros, dos quais 10 são representantes de órgãos governamentais e os demais são representantes de entidades não governamentais. A representação governamental é dividida entre sete representantes de Secretarias Estaduais, um representante dos Secretários Municipais e dois representantes governamentais dos Conselhos Municipais de Assistência Social. A própria Lei Estadual nº 12.262/1996 divide a representação não governamental em segmentos, sendo: a) 2 (dois) de entidades de usuários da assistência social, de âmbito estadual; b) 2 (dois) de entidades de defesa dos direitos de beneficiários da assistência social, de âmbito estadual; c) 1 (um) de entidades representativas das instituições filantrópicas prestadoras de serviços de assistência social, de âmbito estadual; d) 1 (um) de entidades representativas das instituições privadas não filantrópicas prestadoras de serviços na área de assistência social, de âmbito estadual; e) 2 (dois) de entidade representativa de trabalhadores na área de assistência social, de âmbito estadual; f) 2 (dois) representantes não governamentais dos conselhos municipais de assistência social. Esses representantes são eleitos em fórum próprio, com registro em ata específica, conforme disposto na própria lei. O Decreto Estadual nº 43613/2003, que dispõe sobre a composição de Conselhos de Políticas Públicas do Estado de Minas Gerais, manteve a mesma divisão dos segmentos feita pela lei criadora do CEAS, o que também é repetido no regimento interno do Conselho. 4.2 O Processo de Escolha dos Representantes da Sociedade Civil Conforme disposto na Seção anterior, os instrumentos normativos relacionados ao CEAS regulam de maneira ampla a composição do Conselho e determinam que a escolha dos representantes da sociedade civil deve se dar por eleição realizada em fórum próprio e registrada em ata específica. Esse mecanismo é reiterado pelo Regimento Interno quando prevê, em seu art. 6º, o funcionamento da suplência, em caso de vacância, faltas, ausências ou impedimentos, bem como reiteradas faltas injustificadas. A substituição do representante, regida também por Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Com foco na gestão da política da assistência social, a análise aqui empreendida se restringe ao processo de escolha das organizações da sociedade civil para composição do Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais. 39 esse dispositivo, pode ocorrer mediante nova indicação do órgão governamental ou, no caso da sociedade civil, mediante nova eleição pela respectiva categoria. Dados esses procedimentos, foram analisados os documentos referentes ao processo eleitoral de escolha dos representantes da sociedade civil no CEAS, em especial os regulamentos eleitorais. Além disso, foram verificadas as atas, resoluções e publicações na Imprensa Oficial que apresentam e regulam a sistemática de escolha, desde a fundação do Conselho, para os mandatos 1997/1999, 1999/2001, 2001/2003, 2003/2005, 2005/2007, 2007/2009 e 2009/2011. O processo de escolha, organizado de forma eleitoral, foi detalhado pela Resolução nº 007/1996, a qual prevê que as entidades, para participarem como eleitoras, devem se cadastrar munidas da documentação exigida. Cada processo eleitoral definiu quais documentos eram exigíveis: por exemplo, enquanto o primeiro e quarto processos eleitorais exigiram documentação semelhante àquela requerida para registro da entidade no CEAS, o segundo e terceiro exigiram somente dois atestados de funcionamento fornecidos por Conselhos Municipais de Assistência Social (CMAS), o que demonstra a regularidade da entidade e sua atuação em mais de um município. Em algumas atas analisadas, verificou-se que os conselheiros eleitos consideraram a documentação exigida como um possível fator impeditivo da participação de um maior número de entidades nos procedimentos eleitorais. Após a fase de habilitação como eleitoras, as entidades podem se candidatar a uma das vagas no CEAS, devendo para tanto apresentar pedido de registro de candidatura no prazo estabelecido pela Resolução. Ressalte-se que o processo eleitoral escolhe 20 representantes, sendo 10 titulares e 10 suplentes, e cada organização cadastra-se mediante as categorias estabelecidas pela Lei Estadual. As eleições ocorrem durante um dia, sendo que cada entidade tem direito ao número de votos correspondente à categoria de vagas a ser preenchida. Cabe destacar que, nos dois primeiros processos eleitorais, as entidades escolhiam representantes nas seis categorias previstas como representação da sociedade civil; a partir de 2000, contudo, os representantes não governamentais dos conselhos municipais passaram a ter votação em separado, sendo realizada em conjunto com a escolha dos representantes governamentais dos CMAS. Em geral, foram realizadas palestras no início dos trabalhos no dia da eleição, logo após a explicação 40 do processo eleitoral. Em seguida, cada entidade dispunha de determinado tempo para sua apresentação e procedia-se ao processo de votação durante todo o dia. Encerrado o horário predeterminado, iniciava-se imediatamente a apuração e eram então definidos os eleitos como titulares e suplentes. Somente após a eleição, a entidade indicava o representante no Conselho, o que atesta que a representação no Conselho é institucional e não pessoal (sendo vedada ainda a participação de pessoas que estivessem vinculadas à Comissão Eleitoral). Foram analisadas as atas dos processos eleitorais, assim como as primeiras atas de reuniões ordinárias e extraordinárias do Conselho, a fim de verificar a existência de discussões e deliberações acerca da noção de representação nas experiências de participação. Em linhas gerais, os debates registrados nas atas perpassavam a tentativa de identificar fatores e motivos que limitavam ou impediam a participação de um maior número de organizações nos processos eleitorais, ressaltando-se um interessante debate acerca da natureza e da necessidade de parceria com o Serviço Voluntário de Assistência Social (SERVAS)10. Chegou a ser instituído, no período de 1997 a 1999, um grupo de trabalho específico sobre a vacância de representações no Conselho. Os debates desse grupo se centraram na baixa divulgação do CEAS, na exigência excessiva de documentos para habilitação das entidades candidatas e eleitoras e também na fraca articulação da sociedade civil organizada. Esse diagnóstico gerou um segundo processo eleitoral ainda durante o primeiro mandato, a fim de preencher as vagas remanescentes de titulares e suplentes. Nesse período, os conselheiros ainda estavam debatendo a função do CEAS, existindo registros restritos nas atas analisadas, tais como: “papel do CEAS: estimular, incentivar, definir políticas, fomentar criação de Conselhos” (cf. ata da terceira reunião ordinária, realizada em 8 de maio de 1997) e “o papel principal do Conselho é apreciar e aprovar propostas 10 O SERVAS é uma associação civil sem fins lucrativos que tem como objetivo promover e executar ações sociais em Minas Gerais, podendo ser equiparado às organizações assistenciais de beneficência coordenadas pelas primeiras-damas nas diversas unidades da Federação. Fundado em 1951 pela então primeira-dama do Estado, Sarah Kubitscheck, para dar apoio à maternidade e à infância, o SERVAS posteriormente estendeu seu trabalho para a área educacional. Em 1956, a entidade foi desvinculada do Governo Estadual e, a partir de 1966, passou a apoiar programas de geração de emprego e renda. Destaca-se que, embora se trate de órgão não governamental, o SERVAS é presidido pela esposa do Governador ou do Vice-Governador, ou ainda por pessoa indicada pelo Chefe do Poder Executivo, além de receber recursos estatais (por determinação de decreto) e de ser fiscalizado pela Auditoria Geral do Estado. 41 que venham do Governo do Estado nesta área” (cf. 12ª plenária ordinária, realizada em 6 de março de 1998). A seguir, sistematiza-se a composição do Conselho Estadual de Assistência Social em relação à representação da sociedade civil organizada desde a sua criação. 3º mandato 2001/ 2003 2º mandato 1999/ 2001 1º mandato 1997/ 1999 Mandato Categorias Conselho Central da Sociedade São Vicente de Paula Vaga Associação dos Deficientes do Oeste de Minas Vaga Federação dos Aposentados e Pensionistas de Minas Gerais Associação dos Deficientes Físicos do Oeste de Minas Associação dos Deficientes do Oeste de Minas Federação das APAEs Federação das APAEs Vaga Federação das Associações dos Deficientes de Minas Gerais Federação das APAEs T S T S T S ENTIDADES DE USUÁRIOS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL Federação das Associações de Moradores de Minas Gerais Associação Nacional de Gerontologia Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Federação das Associações de Deficientes de Minas Gerais Inspetoria São João Bosco Associação Cristã de Moços Associação de Apoio a Criança e ao Adolescente Cáritas Brasileira Federação Brasileira das Instituições de Excepcionais, de Integração Social e Defesa da Cidadania Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais / Serviço Social da Indústria Associação Cristã de Moços Vaga Vaga Vaga Federação Brasileira das Instituições de Excepcionais, de Integração Social e Defesa da Cidadania Vaga Associação Cristã de Moços NÃO FILANTRÓPICAS Vaga FILANTRÓPICAS Centro de Recuperação e Reabilitação das Vítimas do Álcool e das Drogas Federação das Associações de Moradores de Minas Gerais Associação Nacional de Gerontologia Federação das Associações de Moradores de Minas Gerais ENTIDADES DE DEFESA DOS DIREITOS DE BENEFICIÁRIOS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL ENTIDADES REPRESENTATIVAS DAS INSTITUIÇÕES PRIVADAS PRESTADORAS DE SERVIÇOS Associação Microrregional dos Assistentes Sociais do Circuito das Águas – AMAS Sindicato dos Psicólogos Conselho Regional de Serviço Social Sindicato dos Trabalhadores em Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas Vaga Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde Vaga Vaga Vaga Conselho Regional de Serviço Social Vaga Conselho Regional de Serviço Social ENTIDADES REPRESENTATIVAS DE TRABALHADORES NA ÁREA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL 42 CMAS Itajubá CMAS Belo Horizonte CMAS João Monlevade CMAS Campo Belo CMAS Curvelo CMAS Divinópolis CMAS Mariana CMAS Betim CMAS Contagem CMAS Ipatinga CMAS Ipatinga CMAS Belo Horizonte (CMAS) REPRESENTANTES NÃO GOVERNAMENTAIS DOS CONSELHOS MUNICIPAIS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL QUADRO 2 – Organizações da Sociedade Civil no Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais Conselheiro 6º mandato 2007/20 09 5º mandato 2005/20 07 4º mandato 2003/20 05 Mandato Categorias Vaga Federação das Associações de Moradores de Minas Gerais S Instituto dos Missionários Sacramentinos de Nossa Inspetoria São João Bosco Federação dos Aposentados e Pensionistas Associação Profissionalizante do Menor de Belo Horizonte Associação dos Deficientes Físicos do Oeste de Minas Associação de Deficientes de Betim T Associação Jesuíta de Educação e Assistência Centro de Integração Empresa Escola Vaga Cáritas Brasileira Federação das APAEs Ação Social Arquidiocesana S Centro de Integração Empresa Escola Serviço Social da Indústria Federação Brasileira das Instituições de Excepcionais, de Integração Social e Defesa da Cidadania Sindicato das Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas de Minas Gerais Serviço Social da Indústria Instituto dos Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora Associação dos Deficientes Físicos do Oeste de Minas Inspetoria São João Bosco Serviço Social da Indústria Associação Cristã de Moços Instituto dos Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora Federação dos Aposentados e Pensionistas Associação dos Deficientes Físicos de Betim Ação Social Arquidiocesan a Federação dos Aposentados e Pensionistas de Minas Gerais União Brasileira de Educação e Ensino S T Federação Brasileira das Instituições de Excepcionais, de Integração Social e Defesa da Cidadania Inspetoria São João Bosco União Brasileira de Educação e Ensino Cáritas Brasileira NÃO FILANTRÓPICAS Associação dos Deficientes Físicos do Oeste de Minas FILANTRÓPICAS Federação das APAEs ENTIDADES DE DEFESA DOS DIREITOS DE BENEFICIÁRIOS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL T ENTIDADES DE USUÁRIOS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL ENTIDADES REPRESENTATIVAS DAS INSTITUIÇÕES PRIVADAS PRESTADORAS DE SERVIÇOS CMAS Cataguases Sindicato dos Psicólogos Sindicato dos Psicólogos Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde Conselho Regional de Serviço Social Sindicato dos Trabalhadores das Instituições Beneficentes, Vaga CMAS Varginha CMAS Belo Horizonte CMAS Três Marias CMAS Três Marias CMAS Sete Lagoas CMAS Timóteo CMAS Juiz de Fora CMAS Três Marias CMAS Ipatinga (CMAS) CMAS Contagem CMAS Betim Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde 43 REPRESENTANTES NÃO GOVERNAMENTAIS DOS CONSELHOS MUNICIPAIS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Sindicato dos Trabalhadores em Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas Sindicato dos Psicólogos Conselho Regional de Serviço Social Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde Conselho Regional de Serviço Social ENTIDADES REPRESENTATIVAS DE TRABALHADORES NA ÁREA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL QUADRO 2 – Organizações da Sociedade Civil no Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais Conselheiro S T Movimento das Donas de Casa e dos Consumidores de Minas Gerais Vaga Associação Profissionalizante do Menor de Belo Horizonte Federação das APAES Vaga Social Associação dos Deficientes Físicos do Oeste de Minas Federação dos Aposentados e Pensionistas Senhora ENTIDADES DE DEFESA DOS DIREITOS DE BENEFICIÁRIOS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL Vaga ENTIDADES DE USUÁRIOS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL Associação Jêsuíta de Educação e Assistência Social Inspetoria São João Bosco FILANTRÓPICAS Sindicato das Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas de Minas Gerais Serviço Social da Indústria NÃO FILANTRÓPICAS ENTIDADES REPRESENTATIVAS DAS INSTITUIÇÕES PRIVADAS PRESTADORAS DE SERVIÇOS Fonte: elaborado pelo próprio autor, com base no material disponibilizado pelo CEAS. Legenda: T – titular; S – suplente. 7º mandato 2009/20 11 Mandato Categorias Sindicato dos Trabalhadores das Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde Religiosas e Filantrópicas 44 CMAS Lagoa Santa CMAS Três Marias Sindicato dos Psicólogos CMAS Juiz de Fora CMAS Ipatinga (CMAS) REPRESENTANTES NÃO GOVERNAMENTAIS DOS CONSELHOS MUNICIPAIS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Conselho Regional de Serviço Social ENTIDADES REPRESENTATIVAS DE TRABALHADORES NA ÁREA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL QUADRO 2 – Organizações da Sociedade Civil no Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais Conselheiro 45 A proposta é identificar quais organizações da sociedade civil participaram do CEAS durante os sete mandatos exercidos até a presente data. Essas informações estão apresentadas no Quadro 2 (cf. páginas 41 e 42), que ainda registra as organizações suplentes, tendo em vista que tais conselheiros também podem participar das reuniões e ter direito a voz, não podendo, contudo, votar nem ocupar lugar à mesa do Conselho, quando presente o titular. 4.3 Análise dos Dados A partir dos dados coletados, é possível sistematizar quais organizações da sociedade civil têm ocupado os espaços de representação junto ao conselho gestor da área da assistência social em Minas Gerais. Uma das lacunas verificadas refere-se a um processo de discussão e debate públicos sobre o papel do Conselho e a representação da sociedade civil nesse espaço. A escolha nítida pelo mecanismo eleitoral afasta as justificativas acerca da representação no interior do CEAS dos outros fundamentos de legitimidade, inclusive da noção tradicional das entidades assistenciais de prestação de serviços à comunidade (LAVALLE et al., 2006b; LAVALLE; CASTELLO, 2008). As organizações, no CEAS, são eleitas pelos seus pares para ocupar tal representação, sequer sendo aprofundado o debate acerca dos fundamentos de legitimidade da representação como trabalhado em Avritzer (2007). Aquelas entidades que têm interesse em participar do processo de escolha podem se cadastrar previamente; contudo, inexiste um debate aprofundado sobre o papel da representação, nem mesmo acerca do papel do CEAS. Resta claro que tais análises decorrem da leitura das atas, por serem documentos oficiais que “registram o processo de deliberação e são devidamente aprovad[o]s pelos seus participantes, o que indica que eles concordam com o registro e a forma como foi realizado” (ALMEIDA; CUNHA, 2009b). Sabe-se, contudo, que muitas discussões não são registradas em atas, ou o são de maneira pontual. Eventuais debates ocorridos em determinado processo eleitoral podem não ter sido transcritos nas atas, mas também não implicaram mudanças significativas nos procedimentos de escolha, ao menos não de maneira institucionalizada e publicizada pelas resoluções do CEAS e regulamentos eleitorais analisados. 46 Outra consideração cabível é em relação à baixa participação dos atores sociais na escolha dos representantes do CEAS. Na grande parte dos processos eleitorais, o número de entidades eleitoras foi pouco superior ao número de entidades candidatas, isto é, as organizações que participaram dos fóruns de eleição foram aquelas que se candidataram acrescidas de um reduzido número de organizações somente eleitoras. Por esses mesmos motivos, falta de candidaturas implicaram mandatos com representações suplentes vagas. Assim, a entidade eleita para titularidade foi a única candidata, existindo ainda titularidades vagas no primeiro e no sétimo mandato. Embora essa baixa participação não invalide o papel do CEAS quanto ao controle social, trata-se de ponto de interesse ao debate, tendo em vista que o modelo de conselhos gestores pode não estar atendendo aos anseios da sociedade civil organizada quanto à ampliação da participação (RAICHELIS, 1998; TATAGIBA, 2002). Ainda no que se refere à composição do CEAS, há certa alternância de categorização das entidades: há ocorrências de organizações eleitas como entidade de usuários da assistência social em um mandato e como entidades de defesa dos direitos de beneficiários da assistência social em outro mandato; ou entidades representativas das instituições privadas prestadoras de serviço em um mandato e entidades de defesa dos direitos de beneficiários da assistência social em outro mandato; e ainda organização eleita como entidade filantrópica em um mandato e como não filantrópica no mandato seguinte. Isso pode ocorrer tanto por conta de mudança da atuação da organização, ou pela atuação em mais de um segmento, ou ainda pela mudança de critérios de classificação em cada regulamento eleitoral. De fato, a alteração de tais critérios pode ser um mecanismo efetivo para embasar a representação nas atividades efetivamente desenvolvidas, e não somente em sua existência jurídico-formal. Ainda não está clara a representação dos segmentos sociais atendidos pela assistência, como crianças e adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. Embora na maior parte dos mandatos estejam presentes organizações com atuação específica nessa temática, a fixação legal dos grupos a serem representados no CEAS (e, em geral, nos conselhos gestores da assistência, já que o modelo decorre da LOAS) pode estar limitando uma maior participação e uma maior representatividade das organizações da sociedade civil (ALMEIDA; CUNHA, 2009a; 47 2009b). Esse parece ser o caso, em especial, do último mandato analisado: há uma nítida migração das entidades que foram eleitas tradicionalmente como entidades de usuários da assistência social e que foram candidatas como entidade de defesa dos direitos de beneficiários da assistência social no mandato 2009-2011, verificando-se inclusive vacância de uma titularidade e de duas suplências naquela categoria original11. Verifica-se, ainda, de maneira geral, a permanência do mesmo grupo de entidades atuando como representantes da sociedade civil no CEAS. Durante os sete mandatos analisados, constata-se a participação de 30 organizações da sociedade civil, sendo que 43% delas atuaram na posição de conselheiros titulares ou suplentes em três ou mais mandatos. Destaca-se a participação do Conselho Regional de Serviço Social e da Associação dos Deficientes Físicos do Oeste de Minas, eleitos em todo o período, e da Federação das APAES, que atuou em seis mandatos. Foram conselheiros em cinco mandatos o Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde, o Sindicato dos Psicólogos, o Serviço Social da Indústria, a Inspetoria São João Bosco, a Federação dos Aposentados e Pensionistas de Minas Gerais e a Federação das Associações de Moradores de Minas Gerais. Além disso, participando de quatro mandatos, foram constatadas as presenças do Sindicato dos Trabalhadores das Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas, da Associação Cristã de Moços e da Federação Brasileira das Instituições de Excepcionais, de Integração Social e Defesa da Cidadania. Na medida em que não há alternância na ocupação dos cargos, verifica-se uma restrita participação social, tendo em vista que não há novas entidades envolvidas no processo de escolha. Quanto à natureza institucional, observa-se ainda uma participação constante de ramificações da Igreja Católica, em especial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, da Cáritas Brasileira e da Ação Social Arquidiocesana, além de organizações de cunho católico sem vinculação jurídica direta com a Santa Sé, como a Associação Cristã de Moços, o Instituto dos Missionários Sacramentinos de 11 A migração das entidades para categorias diversas de representantes gerou distorções no processo de representação no Conselho no mandato 2009-2011, como parece indicar a eleição do Movimento das Donas de Casa e dos Consumidores como representantes dos usuários da assistência social, tendo sido a única entidade candidata naquela categoria. Cabe destacar que o segmento de donas de casa e o segmento de consumidores não são tradicionalmente atendidos pela política de assistência social (cf. art. 2º da Lei nº 8.742/1993). 48 Nossa Senhora, a Associação Jesuíta de Educação e Assistência Social e o Conselho Central da Sociedade São Vicente de Paula. Tal fato por si só não pode ser interpretado de maneira negativa, haja vista o papel exercido por setores da Igreja Católica na luta pela redemocratização e também na área da assistência social (LAVALLE; CASTELLO, 2008). No mesmo sentido, destaca-se a grande participação de entidades sindicais no CEAS, inclusive com reiterados mandatos, o que não necessariamente significa que tais sindicatos mantenham seu papel de representação dos interesses da sociedade, como era verificado na primeira metade do século XX (SÖRJ; MARTITUCCELLI, 2008). Quanto aos Conselhos Municipais de Assistência Social, cumpre observar que, como a partir do terceiro mandato passou-se a ter escolha de representantes apartada das organizações da sociedade civil, encontra-se, na verdade, uma representação híbrida, isto é, o CEAS em certa medida possui representação governamental, representação da sociedade civil e um terceiro tipo de representação que corresponde aos Conselhos Municipais da Assistência Social, sendo dois representantes governamentais e dois representantes não governamentais. Esse fato pode ser verificado em especial pela falta de registro da entidade de origem do conselheiro municipal não governamental – o que o legitima a participar aqui é a atuação no CMAS, e não o fato de ser atuante em entidade de cunho estadual ou não. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os conselhos gestores são espaços participativos, criados por lei, no qual Estado e sociedade civil organizada compartilham a gestão das políticas públicas. O presente trabalhou buscou discutir como é constituída a representação da sociedade civil, problematizando o fator de legitimação dessas organizações representadas nos conselhos gestores. O conceito de sociedade civil adotado baseou-se em Habermas (1997) e em Cohen e Arato (2000), sendo o espaço público não estatal composto de movimentos, organizações e associações que transmitem para a esfera pública os problemas sociais captados na esfera privada. 49 Dado que os debates sobre representação da sociedade civil vêm sendo realizados de forma restrita, este trabalho buscou realizar revisão bibliográfica sobre os mecanismos de autorização, prestação de contas (accountability), responsividade e sanção, focando nos fundamentos de legitimidade das organizações da sociedade civil atuantes junto aos conselhos. Nesse sentido, destacou-se a proposta de representação relacional ou por afinidade (AVRITZER, 2007), de acordo com a qual se pauta a legitimação no procedimento adotado, na relação com o tema e no vínculo simultâneo entre atores sociais. Dissocia-se, destarte, a representação em duas modalidades12: representação eleitoral e representação da sociedade civil (não eleitoral). Em seguida, analisou-se a categorização proposta por Lavalle et al. (2006b) e por Lavalle e Castello (2008) quanto aos argumentos de legitimidade das organizações da sociedade civil. A partir de survey realizada com entidades sociais da cidade de São Paulo e/ou da Cidade do México, os dados foram sistematizados em seis argumentos de legitimidade, quais sejam: argumento eleitoral; argumento de identidade; argumento de filiação; argumento de serviços; argumento de proximidade; e argumento de intermediação. Tais argumentos auxiliam na compreensão do sentido de representação presuntiva, isto é, no entendimento das motivações pelas quais as organizações se veem como representantes da sociedade civil. Os estudos de Avritzer (2007), de Lavalle et al. (2006a; 2006b) e de Lavalle e Castello (2008) são convergentes ao compreenderem a representação da sociedade civil para além da autorização ou do mandato expresso. Tais estudos, portanto, se aproximam da proposta de Sörj e Martituccelli (2008) ao entenderem que a representatividade das organizações tem relação com seu reconhecimento pelos demais atores sociais em razão de determinado saber técnico ou tipo de competência que advém de algum conhecimento relativo a um tema específico ou segmento social, seja por relação atual ou anterior. O estudo de caso realizado buscou, por sua vez, analisar como têm-se dado os processos de escolha de organizações no conselho gestor da área da 12 Embora o autor apresente ainda a advocacia de causas coletivas como modalidade de representação, trata-se de uma atuação na qual não se insere o debate da legitimidade e que, consequentemente, prescinde de autorização. 50 assistência social em Minas Gerais, considerando sua obrigatoriedade legal decorrente da Lei Orgânica da Assistência Social. Conforme salientado, inexiste um processo de discussão aprofundado ou realização de debates públicos sobre o papel do Conselho, nem mesmo sobre a função de representação da sociedade civil nesse espaço. Foi verificada a baixa participação dos atores sociais na escolha dos representantes do CEAS, restrita às organizações candidatas e a um pequeno número de entidades eleitoras não candidatas, com reduzida alteração do grupo de organizações representantes da sociedade civil que compõem o Conselho desde a sua formação. Diversos mandatos tiveram representações suplentes vagas, destacando-se a vacância ocorrida no último mandato analisado (2009/2011), o que pode ensejar um afastamento do modelo de conselhos gestores em relação aos anseios participativos da sociedade civil organizada. A continuidade das discussões apresentadas pode e deve envolver outras instituições híbridas e outros atores sociais. A presente pesquisa focou-se na análise das atas de reuniões e na normativa aplicável ao Conselho Estadual de Assistência Social, não abrangendo entrevistas aos conselheiros a fim de captar suas percepções sobre como e em que medida o próprio conselho representa a sociedade civil. Além disso, a ampliação para outros conselhos temáticos ou ainda para conselhos de outros Estados pode demonstrar quadro diverso àquele ora apresentado. Ademais, a pesquisa não apresentou nova categorização específica para os fundamentos de legitimidade da representação nos conselhos gestores, adotando modelo sistematizado por Lavalle e Castello (2008). Por fim, compete destacar que a experiência dos conselhos está institucionalizada em todo o país e o desafio consiste em vislumbrar e criar mecanismos de sanção e prestação de contas para as organizações da sociedade civil, estabelecendo-se espaços permanentes de diálogo e deliberação entre representantes e representados. A abertura dos conselhos gestores a uma maior participação social, com uma maior divulgação e flexibilização dos critérios formais de candidatura, pode vir a conceder maior efetividade e representatividade a tais instituições híbridas. A sistematização da experiência dos conselhos municipais e estaduais pode também contribuir no aprimoramento da gestão participativa das políticas públicas, considerando a restrição da participação democrática verificada no modelo atualmente adotado. 51 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Débora Cristina Rezende de; CUNHA, Eleonora Schettini Martins. O potencial dos conselhos de políticas na alteração da relação entre Estado e sociedade civil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, XIV, 2009, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: SBS, 2009a. ALMEIDA, Débora Cristina Rezende de; CUNHA, Eleonora Schettini Martins. A produção de conhecimento sobre os conselhos de políticas: alguns desafios metodológicos. In: AVRITZER, Leonardo; SILVA, Eduardo Moreira (Org.). Metodologias e Participação. 1. ed. Belo Horizonte: FAFICH, 2009b. p. 57-83. ARATO, Andrew. Ascensão, declínio e reconstrução do conceito de sociedade civil: orientações para novas pesquisas. 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