PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP José Cláudio Pavão Santana As Leis Fundamentais do Maranhão: Densidade jurídica e valor constituinte. A contribuição da França Equinocial ao constitucionalismo americano. DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2008 II PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP José Cláudio Pavão Santana As leis fundamentais do Maranhão: Densidade jurídica e valor constituinte. A contribuição da França Equinocial ao constitucionalismo americano. DOUTORADO EM DIREITO Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do titulo de Doutor em Direito, Direito Constitucional, sob a orientação do Professor Doutor ANDRÉ RAMOS TAVARES. SÃO PAULO 2008 III Banca Examinadora ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- IV Para Gustavo e Guilherme, filhos-amigos, frutos do amor e razões da existência. Para meus pais, Vera-Cruz e Newdys (“in memoriam”), Com gratidão e saudade intermináveis, mas a certeza de um reencontro. Para meus irmãos, José Newton (“in memoriam”), José Sérgio e José Reinaldo, com saudade e afeto. Ao Professor André Ramos Tavares, com gratidão e admiração, pelo conhecimento repartido, pelo incentivo, pela orientação e atenção de sempre. V Aos companheiros de jornada da PUCSP, Dimitri Sales e Pedro Buck, para quem reservo o melhor dos sentimentos: a amizade, cantada nestes meus versos: Chorei, sofri... Sorri, cantei..., Doeu..., mas valeu! José Cláudio Para Newton Pavão (“in memoriam”), saudoso avô, que pôs em tela o céu e o mar mais belos de São Luís. Para Mário Martins Meirelles (“in memoriam”) e Milson Coutinho que me estimularam muito, após falar-lhes do tema, nascido de uma memorável conversa com meu pai. Ao Professor Ricardo Aroso Mendes (“in memoriam”), que me fez substituí-lo na disciplina Direito Constitucional UFMA, uma lembrança viva. na VI José Cláudio Pavão Santana As leis fundamentais do Maranhão: Densidade jurídica e valor constituinte. A contribuição da França Equinocial ao constitucionalismo americano. RESUMO O presente trabalho trata da formação do constitucionalismo Americano. no Discute Continente o pré- constitucionalismo e a natureza das Leis Fundamentais do Maranhão como contribuição ao constitucionalismo. Palavra-chave: Constituição. Fundamentais. Direito Constitucional. Constitucionalismo. Leis VII José Cláudio Pavão Santana The fundamental laws of Maranhão: Density legal and constitutional value. Equinocial France's contribution to the American constitutionalism. SUMMARY The present work deals with the formation of the constitutionalism in the American continent. It argues the daily pay- constitutionalism and the nature of the Basic Laws of the Maranhão as contribution to the constitutionalism. Keywords: Constitution. Laws. Constitutional Constitutionalism. law. Basic VIII “Senhores, vede como os próprios índios fincam este estandarte de França em sua terra, colocando-a na posse do Rei; e juram todos viver e morrer conosco, como verdadeiros súditos e fieis servidores de Sua Majestade.” Daniel de Ravardière la Touche, Senhor de La IX SUMÁRIO a) O tema ................................................................................... XI b) Os limites da pesquisa.............................................................. XI c) Justificativa ............................................................................ XIII d) Metodologia ........................................................................... XVI e) Bibliografia ............................................................................XVII 1. Introdução .............................................................................. 1 2. O fato histórico ....................................................................... 4 2.1. O empreendimento ................................................................ 9 3. A concepção das Leis Fundamentais .......................................... 15 4. O Constitucionalismo ............................................................... 22 5. Pré-constitucionalismo: Em busca de um conceito ...................... 37 6. Fragmentos históricos do Estado e do Direito ............................. 46 6.1. O movimento hebreu ............................................................. 47 6.2. Grécia .................................................................................. 48 6.3. Roma ................................................................................... 49 6.4. Do Absolutismo ao Estado Moderno ....................................... 49 7. Estado Constitucional de Direito ............................................... 60 8. Constituição formal, material e substancia ................................. 65 9. Principais documentos do pré-constitucionalismo ....................... 87 9.1. A “Magna Charta Libertatum ................................................. 87 9.2. A Petição e a Declaração de Direitos ...................................... 94 X 10. Manifestações pré-constitucionais no Continente Americano ..... 98 10.1. O Pacto do “Mayflower ....................................................... 98 10.2. A Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia ...............102 11. Manifestações constitucionais no Continente Americano ...........111 11.1. A Declaração de Independência e a Constituição dos Estados Unidos da América ......................................................................112 12. As Leis Fundamentais da Ilha do Maranhão ..............................116 13. Natureza das Leis Fundamentais ..............................................131 13.1. Cláusulas de origem ou fundamento ......................................160 13.2. Cláusulas de incidência .......................................................163 13.3. Cláusulas de salvaguarda .....................................................164 13.4. Cláusulas da companhia e da sociedade .................................165 13.5. Cláusulas de proteção dos índios ..........................................167 13.6. Cláusulas do sistema de penas ..............................................168 14. Densidade jurídica (valor constituinte) das Leis Fundamentais ..179 15. Considerações finais ..............................................................185 16. Conclusões ............................................................................188 Bibliografia ................................................................................191 Anexos .......................................................................................198 “Magna Charta Libertatum ...........................................................198 Petição de Direitos ......................................................................211 Leis Fundamentais do Maranhão ...................................................214 Petição dos franceses da França Equinocial a François de Razilly ....218 O Pacto do “Mayflower ................................................................220 Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia ........................... 221 A Declaração de Independência dos EUA ...................................... 224 A Constituição dos Estados Unidos da América .............................. 228 XI PLANO DA PESQUISA: a) O tema: A presente pesquisa que é apresentada como condição para obtenção do título de Doutor em Direito junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo é fruto de uma curiosidade despertada desde o curso de graduação em Direito da Universidade Federal do Maranhão. Indagava-se sobre se o constitucionalismo havia se formado no Continente Americano somente a partir da Declaração de Direitos do Bom Povo da Virginia? Haveria alguma outra manifestação formal elaborada em terras americanas que possa ter antecedido aquela? Em existindo, qual o seu significado para o Direito Constitucional? O tema centra-se no estudo das Leis Fundamentais do Maranhão escritas e publicadas em 1º de novembro de 1612 pelos franceses que se estabeleceram na Ilha de São Luís com o propósito de fundar a França Equinocial. Essa normativa é examinada e contraposta aos principais documentos históricos e avaliação sobre sua natureza essencial como contribuição à formação do constitucionalismo. b) Os limites da pesquisa: O estudo da formação do constitucionalismo registra como norma emblemática desse acontecimento histórico no Americano a Declaração do Bom Povo da Virgínia de 1776. Continente XII Contudo, identifica-se na América como norma antecedente o Pacto do “Mayflower”, datado de 11 de novembro de 1620, donde constam princípios para o estabelecimento de um governo próprio que, de uma forma ou de outra, serviram, senão de modelo, ao menos como inspiração para todos os documentos que são pilares da sociedade americana do norte. Ocorre que ao advento do Pacto do “Mayflower” já haviam sido proclamadas as Leis Fundamentais do Maranhão em 1º de novembro de 1612 por obra dos fundadores da França Equinocial, onde foi estabelecido o Forte de São Luís, hoje capital do Estado do Maranhão. Propunham um conjunto de previsões com bases fundamentais divinas, reais e coloniais, prevendo regras de conduta que se encontram hoje reproduzidas nos principais documentos constitucionais dos Estados democráticos. Tais leis foram escritas em solo brasileiro, distinguindo-se, por isso, de documentos anteriores e originários da Coroa Portuguesa que, à época, não reservava a necessária atenção ao norte do Brasil, segura que estava de seus direitos possessórios decorrentes do Tratado de Tordesilhas. Diante desses fatos é pertinente perquirir acerca da primazia dessas leis no Continente Americano, deslocando-se o eixo do constitucionalismo do norte para o sul, como forma de avaliar a sua essência constitucional, reescrevendo-se, assim, a história da formação do constitucionalismo no Continente Americano. Mas não se trata de um estudo sobre o constitucionalismo brasileiro, à vista da delimitação que é feita acerca desse conceito. A pesquisa cinge-se ao exame da norma estudada, buscando sustentação na formação do constitucionalismo em seus mais diversos matizes e enfrentamentos. Esses objetivos podem ser assim sintetizados: a) Analisar o estudo da formação do constitucionalismo, refletindo as contribuições existentes no Continente Americano, particularmente em face das Leis Fundamentais do Maranhão, de modo a XIII alcançar uma nova visão sobre a formação do constitucionalismo na América. b) Discutir as limitações doutrinárias sobre a matéria, buscando elementos que permitam inaugurar um novo panorama de ensino sobre o tema no estudo do Direito Constitucional. c) Comprovar a natureza pré-constitucional das Leis Fundamentais do Maranhão identificando-lhe pontos convergentes com as disposições constantes nos principais monumentos normativos clássicos citados nos estudos acerca da formação do constitucionalismo. d) Demonstrar a eventual influência desses preceitos em diversos dispositivos constitucionais presentes na Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. e) Defender, a partir das conclusões alcançadas acima, a necessidade de ser estabelecida uma nova prática no ensino do Direito Constitucional no Brasil particularmente quanto a sua formação e desenvolvimento. c) Justificativa: A formação constitucional no Continente Americano (e na Europa) decorre do Direito Constitucional Americano, tendo como ícone a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia. É no Continente Americano onde devem ser buscadas as atuais constituições escritas afirma Georg Jellinek 1 – de onde a Revolução Francesa buscou inspiração, através da aceitação de algumas idéias, que foram (re) introduzidas no Continente Europeu e difundidas pelos demais Estados. Esse fato histórico tem permeado os manuais propedêuticos e as obras especializadas de modo quase uniforme, como se não houvesse 1 Teoria general del estado. México: FCE, 2000, p. 470. XIV nenhuma outra contribuição antecedente relevante para a compreensão e formação do Direito Constitucional no hemisfério sul deste imenso continente. Essa convergência doutrinária, se por um lado consegue preservar certa unidade didática, por outro esconde dos operadores do Direito no Brasil e no mundo a contribuição deixada pelos franceses que já exploravam a costa das terras que mais tarde seriam denominadas de Ilha de Vera-Cruz, Terra de Santa Cruz e finalmente Brasil. E isto mesmo antes do seu descobrimento. Ignorando esses fatos históricos a doutrina reduz como contribuições clássicas ao constitucionalismo a “Magna Charta Libertatum” (1215-1225), a “Petition of Rights” (1628), o “Habeas Corpus Amendment Act” (1679), o “Bill of Rights” (1688). Incluem, ainda, a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (1776), e a Declaração de Independência dos Estados Unidos. Todos, de uma forma ou de outra, são monumentos jurídicos apresentados como manifestações formais que iriam influir na construção da primeira Constituição das Américas, e não se pretende, aqui, infirmar sua relevância para o desenvolvimento ulterior do constitucionalismo. Desse conjunto monumental de documentos que procuravam traduzir os ideais iluministas no Continente Americano, ganha destaque, particularmente, a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia. A doutrina majoritária tem sustentado que o fenômeno do constitucionalismo foi anunciado no Continente Americano pela primeira manifestação formal de declaração de direitos, que influenciou, decisivamente, a primeira Constituição em sentido cronológico, pois, sem dúvida, o primeiro documento escrito que estabelecia regras para o homem e para o Estado, com a conotação hoje conhecida. A despeito disso, entretanto, propusemo-nos discutir a formação do constitucionalismo de maneira muito mais ampla, sem a ilusão da exaustão, de modo a perquirir-lhe as origens históricas, através XV de manifestações que contribuíram decisivamente para o quadro que recebe destaque no século XVIII. Foi pensando nessa perspectiva de pesquisa que resolvemos questionar a formação do constitucionalismo a partir desta observação de ordem histórica, partindo de indagações que não calam: Teria o constitucionalismo se formado no Continente Americano somente a partir da Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia? Houve alguma outra manifestação formal elaborada em terras americanas que possa ter antecedido aquela? Em existindo, qual o seu significado para o Direito Constitucional? A questão talvez parecesse despiciente, desde que os mais autorizados autores nacionais e estrangeiros já se manifestaram amplamente sobre o assunto. Contudo, é merecedora de atenção, na medida em que o Brasil pode ter oferecido contribuição significativa ao estudo da formação do constitucionalismo, tendo em vista, sobretudo a expansão do domínio francês, ansioso por fundar a França Equinocial como sucedânea da França Antártica. Coube aos franceses, em 1612, através da Carta patente de 1º de outubro de 1610, que estabelecia fosse “fundada ao sul da linha Equinocial uma colônia com a extensão de cinqüenta léguas para cada um dos lados do forte” e que Daniel de la Touche a constituísse. As coroas de Portugal e Espanha tinham como procedimento comum expedir cartas aos aventureiros que além de conceder-lhes o direito de exploração de terras, também estabeleciam um conjunto de normas que deveriam ser adotadas no relacionamento com os nativos das terras conquistadas. Tais cartas, geralmente, estabeleciam competências criminais e cíveis, com fundamento no conjunto normativo originário e vigente na corte. Assim, os conquistadores não dispunham de qualquer competência para elaborar normas que pudessem ser consideradas, ao menos no Continente Americano, como tendo sido por si elaboradas. E isto é no que difere a descoberta do Maranhão. XVI A instituição das Leis Fundamentais do Maranhão pelos franceses, quando as Ordenações Portuguesas eram fonte de aplicação do Direito no Continente Brasileiro explorado, permite-nos identificar o prenúncio do constitucionalismo no Continente Americano, mesmo que acanhado em relação aos preceitos contidos na Declaração de Virgínia, pois firmados em um ideário só bem mais tarde nascido e desenvolvido no continente europeu. A proposição, portanto, a par de mergulhar em perspectiva inovadora sobre o tema justifica-se como uma tentativa de contribuir também para uma visão conceitual renovada do valor constitucional de normas da natureza da que ora examinamos. d) Metodologia: A metodologia do trabalho consistiu em leitura, produção das respectivas anotações para futura consulta, com produção mensal de textos que reproduziram cada um dos tópicos constantes da estrutura da tese elaborada. Adotou-se na produção formal do texto o critério de incluir notas de roda-pé como remissão às obras citadas, sendo a mesma técnica utilizada para explicações eventualmente impositivas acerca de autores, obras ou assuntos abordados. Fez-se citação direta, em itálico, sempre que o texto dê continuidade a uma idéia ou argumento desenvolvido, com o cuidado de mencionar a fonte obedecendo ao critério geral de roda-pé. Optou-se por manter as citações em língua original, como cautela a riscos desnecessários. Os anexos impuseram-se tendo em vista os contrapontos estabelecidos entre a principal norma estudada e os demais instrumentos jurídicos. XVII e) Bibliografia: A bibliografia sobre o Direito Constitucional é extensa, recolhendo-se para exame, além das revistas especializadas, os livros didáticos usualmente utilizados no Brasil, além de obras estrangeiras que tratem da formação do constitucionalismo. Há uma bibliografia dispersa sobre os fatos históricos publicadas por editoras do Maranhão e nacionais que permitem identificar o tema ora proposto, bem como possibilita exercitar a problemática proposta. Assim sendo, optou-se por subdividir a bibliografia em uma específica e uma geral, separando pela natureza de cada uma delas. A primeira relaciona as obras que se dedicam ao fato histórico. A segunda, abrangente do Direito Constitucional. A pesquisa inclui órgãos científicos do Brasil e do exterior, particularmente em Portugal e França, que possuem registros históricos imprescindíveis ao desenvolvimento do trabalho. A utilização da INTERNET, com a cautela imposta aos trabalhos científicos, e o acesso ao Arquivo Público do Estado do Maranhão constituem-se, desenvolvimento do trabalho. também, recursos indispensáveis ao -1- 1. INTRODUÇÃO: O estudo da história segue um padrão que envolve a delimitação de acontecimento numa escala de tempo como fator de situação do sujeito. Quer isto dizer que fatos são vinculados a datas que se sucedem. Muitas são as críticas em torno dessa prática uma vez que não se pode, com precisão, estabelecer marcos limitadores nesse sentido. Contudo, há uma função nisto. Serve como recurso didático, auxiliando o conhecimento em geral. Quando se está diante de investigação científica que reúna história e direito, razão maior existe para lançar mãos desse recurso. É útil formar-se uma interligação entre momentos históricos aparentemente diversos, mas que podem guardar proximidade. Nesse sentido a doutrina tem convergido para sistematizar a evolução da humanidade em períodos assim classificados: Idade Antiga (século V – 476 d.C.); Idade Média (do século V até o século XV – 1453 d.C.); Idade Moderna (1453 – 1789) e Idade Contemporânea (1798 até o presente). Haja cientificidade ou não na proposta, observada a prática acadêmica, desde logo fique claro que os fatos que servem de objeto deste estudo situam-se no século XVII. Pretende-se questionar a formação do constitucionalismo a partir de uma observação de ordem histórica desconhecida da maioria do público que estuda o presente tema. -2Não se trata de um estudo do constitucionalismo brasileiro, o que demandaria o exame do assunto a partir de sua Constituição de 1824 e das demais normas que a precederam, originárias de Portugal. A pesquisa parte do relato de viagem de Claude d’Abbeville, capuchinho francês que integrou a expedição que tinha por objetivo fundar a França Equinocial no norte do Brasil 2. De observações náuticas, ambientais, antropológicas, religiosas e políticas, nada escapou aos olhos do frade, que reduziu tudo na obra publicada posteriormente sob o título de História da missão dos frades capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas 3. Do exame da obra constatou-se que as normas que são objeto da presente pesquisa nunca foram estudadas sob o enfoque ora empreendido, permitindo, por isso mesmo, a averiguação inovadora acerca de sua natureza constituinte. É que “[...] a obra de cristianização não se desvincula da tomada de posse e o messianismo universal justifica convenientemente os próprios interesses do príncipe francês” 4. A pesquisa, portanto, pretende analisar o estudo da formação do constitucionalismo, refletindo sobre as principais contribuições existentes no Continente Americano, particularmente em face das Leis Fundamentais escritas no Maranhão, ponto central da pesquisa, de modo a alcançar uma nova visão sobre a formação do constitucionalismo na América. 2 Ferdinand Denis registra os capuchinhos que integraram a expedição, em ordem de importância: Padre Ivo d’Evreux, padre Claude d’Abbeville, padre Arsênio de Paris e padre Ambrósio de Amiens, na apresentação da obra Viagens ao norte do Brasil. São Paulo: Siciliano, 2002, p. 28. 3 Publicada em Paris, em 1614 por François Huby, livreiro do palácio, conforme Roger Chartier, no prefácio com o título de Os capuchinhos do Maranhão, na obra O Brasil francês: as singularidades da França Equinocial, 1612-1615, de DAHER, Andréa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 14. 4 CHARTIER, Roger, obra e local citados, p. 15. -3Enfatiza, outrossim, a natureza constituinte da norma em apreço, buscando estabelecer uma análise em torno de seus principais dispositivos. Discute as limitações doutrinárias sobre a matéria, buscando elementos que permitam oferecer subsídios para inaugurar um novo panorama de ensino sobre o tema no estudo do Direito Constitucional. Propõe-se, ainda, a comprovar a natureza pré-constitucional (conceito que é enfrentado) das Leis Fundamentais do Maranhão identificando-lhe pontos convergentes com as disposições constantes nos principais monumentos normativos clássicos citados no estudo da formação do constitucionalismo. Demonstra, ademais, a presença de preceitos em diversos dispositivos constitucionais presentes na Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, particularmente no seu capítulo em torno dos direitos fundamentais, que se encontravam já na norma que serve de fonte de pesquisa. Defende, outrossim, a necessidade de ser estabelecida uma nova prática no ensino do Direito Constitucional no Brasil particularmente quanto a sua formação e desenvolvimento no Continente Americano. -4- 2. O FATO HISTÓRICO: O cenário da Europa do século XV era de crise do feudalismo com a concentração de poder político fundado (o que parece ser contraditório) no policentrismo constituído pela concessão de feudos às principais classes existentes. A Igreja católica e o séqüito soberano recebiam terras para que fossem cultivadas e, em contrapartida, viam-se compelidos a entregar-lhe indenização pelo uso que lhe permitisse a sustentação do reinado. A relação feudal configurada na máxima “nulle terre sans seigneur”. As terras do Novo Continente passaram, então, a ter importância fundamental para a manutenção da hegemonia Luso-Ibérica. A alternativa era expandir o domínio territorial para demonstrar pujança política, objetivo alcançado notadamente pela conquista de novas terras. É registro de Vasco Mariz 5 que: “Os p apas, d e cer to modo, só consid er av am a pr eponder ân c ia ib ér ica sobr e esses descobr imen to s. D esd e 1438, u ma bu la p apal conced eu ao r e i d e Por tug al a soberan ia e a au tor id ade a b so lu t a so b r e to d a s a s t e r r a s a d escobrir no Atlân tico, ou sej a, d o cabo d e N ão a t é a s Í n d ia s i n c lu s iv e. O an á te m a e a e x co mu n h ão a me a ç a v a m a q u e le s q u e c au sa ss e m e mp e c i lho s a o s por tugu eses nas su as conqu is tas. A Bu la Romanu s Pon tife x , do Pap a N icola u V, confir ma v a, a 8 d e j aneiro d e 1454, esse pr iv ilég io. 5 La Ravardière e a França Equinocial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 16. -5Essa atitude b a lan ça em f avor da Esp anha co m o pon tif icado d e Calix to III, u m Bo rg ia, d e or ig em ar agonesa. No en tan to, em 1481, no Tratado d’A lcaçov as, o s reis espanhóis pro metem n ão in terf er ir no s descobr imen tos por tugu eses e, no me smo ano, a bu la A e t erne R ég i s, do P ap a S ix to IV, con c ede o arqu ip é lago d e Cabo Verde a Por tugal.” O “direito de descoberta” outorgado aos navegadores europeus encontra na “Bula Iter Coetera” (4 de maio de 1493) de Sua Santidade o Papa Alexandre VI a fonte para as conquistas das terras americanas, ratificando a bula “Romanus Pontifex”. Dele advém a ameaça de: “[..] ex co munh ão de qu alquer es tra nge iro qu e s e av en tura s se n as conc es sõ es ‘d esd e s e mp re’ lu so- esp anho las ; es tas d ecisõ e s são subo rd in adas à obr ig ação de supr ir a s n ec es s id ades d a Igr ej a. Em conseqüên c ia desse r igor p ap a l, os ou tros países p assar am a ag ir fur tivamen te, como a Ing laterr a. Em 1514, a bu la Proecelse D e vo tion s ed Indefe ssum con f ir ma v a os dir e itos por tugu eses.” 6 O Tratado das Tordesilhas (7 de junho de 1494) concede a Portugal e Espanha o direito de exploração do Novo Continente. Sua existência havia sido posta em dúvida por Francisco I de França. “Os ingleses contestaram a validade de Tordesilhas e praticam a pirataria oficial como corsários” 7. 6 MARIZ, Vasco, La Ravardière e a França Equinocial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 17. KARNAL, Leandro et ali. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007, p. 39. 7 -6Sobre a irresignação de Francio I Vasco Mariz 8 destaca que: “Só em 1533 u m b ispo fran cês, Jean lê V eme u r d e Tilliers, ob té m d e Cle me n te VI I, u m Mé d icis , d ec lar açã o d iz endo qu e a q u e l as b u la s só s e r ef er i a m a o s c o n t inen t es j á c o n h e c id o s e n ão às terras aind a por d e scobr ir po r ou tr as co roas. Ficou f a mo so o p ro testo do r ei Fr an cisco I em 1537, dur an te a v isita do s emb a ixadores de Car los V, p ed indo- lhes p ar a v er as c láu su la s do te s ta me n to de Adão qu e o ex c lu íam d a p ar tilh a do mu ndo .” O Tratado de Tordesilhas tinha a configuração que pode ser assim sintetizada: « a) Ser ia tr açad a u ma linha d iv isór ia de pó lo a pó lo d istan te 370 léguas do arqu ip élago de Cabo V erd e, p ar a o este, p er ten cendo a p ar te o c id en ta l a Espanha e a or ie n tal a Por tug al; b) U ma d e le gação d e igu a l nú me ro de astróno mo s, p ilo to s e ma r inh e iros d e a mb a s a s n a cion a lid ade s d evia f ix ar es sa linh a no pra zo de dez me s e s ; c) Gar an tia -s e ao s n aveg ador es esp anhó is o d ir e ito de p assag em para ocid en te, ma s só esse; d) U ma vez qu e estav a en tão em cur so a segund a v iag em d e Cr is tóv ão Co lo mbo, estipu lav a-se qu e ser iam d e sober an ia esp anho la as ter ras por ele achad as até 20 d e Junho par a lá de u m li mite de 250 léguas a oeste de Cabo V erd e, r ev er tendo a f avor d e Por tug al quaisqu er d escob er ta s f e itas d en tro d esse limite ou depo is d e le ma s ef ectuad as em d a ta po ster ior àquela e até ao semi me r id iano d ef in itivo d as 370 léguas, ún ico a consid er ar d epo is de 20 de Junho; e) Os con tratan tes c o mpro me tia m- s e a não r ecor rer ao «S an to Pa dre n e m a ou tro n enhu m legado ou pr elado » p ara alterar estas dispo s ições, an te s 8 MARIZ, Vasco. La Ravardière e a França Equinocial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 17. -7s e ped ia ao pap a qu e a s r atif ic ass e na su a ex ac ta for ma » ( in D icionário d e H istória dos descob rimen to s po rtugu eses, vo l. II) . Essa credencial do Sumo Pontífice, contudo, não era suficiente para afastar as investidas de outros povos conquistadores sobre as terras prometidas. Elizabeth I, por exemplo, “[...] concedeu permissão a sir Walter Raleight para que iniciasse a colonização da América” 9. “Desde 1503, os marinheiros franceses eram atraídos pelo Brasil” classificados como “a) aventureiros e negociantes até meados do século XVI, b) colonizadores até o ano de 1614, corsários até 1712” 10. A atenção de Portugal era, nitidamente, muito mais voltada para suas conquistas no Continente Africano, onde as explorações de suas riquezas e as possibilidades de expansão marítima punham sob vigilância um domínio então mais visível aos interesses imediatos do reino lusitano. Registra Carlos de Lima 11 que na costa norte do Brasil: “Nau s fr ancesas, por tugu esas, espanho las, etc. ma n tinh a m in tensa ativ id ade econô mica, carr eando p ar a a Europ a as r iqu ezas d a co sta br asileira: só um in v entar io de u ma nau (La P e l er in e ) dá con ta qu e for a m 5.000 to ros d e pau -brasil, i n ú me r o s ma c a c o s e p ap ag a ios e 3 . 0 0 0 p e le s d e o n ça ; e tr ez en to s quin ta is d e a lgod ão v iajar am e m ou tr a.” 9 KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007, p.40. 10 MARIZ, Vasco. La Ravardière e a França Equinocial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 20. 11 História do Maranhão, 2a. ed. revista e ampliada. São Luís: Instituto Geia, 2006, p. 66. -8Vasco desbravadores, Mariz 12 armadores, arrola um marinheiros, número significativo negociantes, de corsários, aventureiros, piratas, que se lançaram em aventuras marítimas em busca de conquistas, particularmente das riquezas do Brasil, das Índias e do Canadá, pontificando que: “Desde 1516, o r e i D. Manu el qu eixav a- se d as ações do s a r ma d o r es f r anc e se s a F r anc i s co I q u e r ef u tou a s u a r e c la m a ç ão e, algun s ano s d epo is , r espond ia a D . Jo ão III : ‘N ão sou eu qu e m lh e f az a gu err a, ma s J e an Ango 13. Tr a te co m e le. ” A instituição de um Estado fundado em bases cristãs 14 já havia sido objeto do desejo francês de ampliar seu domínio territorial. Disso são exemplos diversas experiências coloniais no Continente Americano. Na América do Norte o Canadá (1535-1543) e a Flórida (1562-1565). Na América do Sul, particularmente, no Brasil, são emblemáticos os exemplos da França Antártica (1555-1560) rememorada na figura de Nicolas Duran de Villegagnon, e a França Equinocial (16121615) na pessoa de Daniel de la Touche. A despeito da descoberta do Brasil pelos portugueses em 1500, o litoral norte não dispunha de efetiva colonização lusitana, diante da significativa extensão do continente. “A região visada, no norte do Brasil, é praticamente desconhecida dos portugueses e os franceses 12 La Ravardière e a França Equinocial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, pp. 20/21. MARIZ, Vasco. La Ravardière e a França Equinocial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 21 reserva especial registro para Jean Ango, natural de Dieppe, como sendo um grande conquistador de tesouros na América. 14 DAHER, Andréa. O Brasil francês: as singularidades da França Equinocial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 35. A autora fala em “República Cristã” referindo-se a França Antártica, nota de roda-pé 2. 13 -9traficam por lá sem dificuldade desde longa data” 15. Mário Martins Meirelles 16 destaca que as terras do Maranhão 17 “ficaram, durante todo o século XVI, praticamente abandonadas pelos portugueses e só visitadas por piratas e corsários, notadamente ingleses, franceses e holandeses”. Coube aos franceses, em 1612, através da Carta Patente de 1º de outubro de 1610 18, que estabelecia fosse “fundada ao sul da linha Equinocial uma colônia com a extensão de cinqüenta léguas para cada um dos lados do forte que constituísse” 19 a descoberta do Maranhão, do que nos dá notícia Claude d’Abbeville 20, padre capuchinho que acompanhou os conquistadores franceses. Vasco Mariz 21 refere-se à Carta-Régia de Luis XIII a La Ravardière, mandada redigir pela regente da França Maria de Médicis como sendo de 1º de outubro de 1611. 2.1. O EMPREENDIMENTO: O cenário de conquistas da Nova Terra é repleto de relatos. A apresentação de Mário Guimarães Ferri e a introdução de Rodolfo Garcia à obra de Claude d’Abbeville 22 na edição utilizada neste trabalho fazem sinteticamente o registro histórico das tentativas de 15 DAHER, Andréa. O Brasil francês: as singularidades da França Equinocial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 48. 16 Holandeses no Maranhão. São Luís: PPPG, Ed. Universidade Federal do Maranhão, 1991, p.41. 17 Eloy Coelho Netto na obra Geo-História do Maranhão, São Luís: SIOGE, 1985, p. 43 - lembra que já em 1493, antes do descobrimento do Brasil, João Coelho estivera nas terras do Maranhão. 18 MEIRELLES, Mário Martins, ob. cit, p. 66, nota 3, acentua que “A primeira Carta Patente, ainda de Henrique IV, autorizando a fundação de uma colônia francesa no norte do Brasil, data de 8/5/1602, e a favor de René-Marie de Montbarrot que, associando-se a La Ravardière, seria por este sucedido, na concessão, por Carta Patente de 3/7/1605, que então seria ratificada por aquela de 1610”. 19 Eloy Coelho Netto. Geo-História do Maranhão, São Luís: SIOGE, 1985, p. 45, reportando-se a Mário Martins Meirelles, na obra França Equinocial. 20 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, pp. 122/125/ 21 La Ravardière e a França Equinocial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p.185. 22 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, pp. 7/8 e 9/12, respectivamente. - 10 colonização do Brasil pelos franceses: a primeira, já mencionada, buscava a fundação da França Antártica; localizada ao sul do país, teve como expoente a figura de Villegaignon; a segunda, ao norte, precisamente no Maranhão, conquanto historicamente registre a figura de Daniel de la Touche como ator principal do empreendimento, recebe dos autores mencionados o registro de que Jaques Riffaut idealizou a colonização do Maranhão, onde foi fundada a França Equinocial. Jaques Riffaut era um navegador e aventureiro francês que no final do século XVI esteve na costa norte do Brasil traficando. Era prática comum à época, a despeito de existir o Tratado das Tordesilhas. Sua frota era composta de três navios, dos quais dois foram perdidos. O infortúnio e a desunião entre os homens precipitou o retorno de Jaques Riffaut à França, inobstante todo o seu convencimento da possibilidade de grandes conquistas nas terras que desbravara com o auxílio dos índios. O naufrágio do seu navio principal e a limitação de espaço impuseram que parte da tripulação fosse deixada em terra, alguns tendo se tornado prisioneiros de Feliciano Coelho, Capitão-mor da Paraíba. Dentre os que permaneceram estava Charles des Vaux, figura proeminente para o empreendimento que culminou com a fundação da França Equinocial, pois firmou estreito relacionamento com os índios e se tornou “[...] um fervoroso propagandista das riquezas da região que devassara, e das vantagens de sua colonização por franceses”. É a partir da descrição histórica de Claude d’Abbeville 23 acerca do empreendimento para a viagem às terras do Maranhão que se elabora o cenário das respostas a serem dadas às indagações formuladas neste trabalho. 23 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, pp., p. 22/23. - 11 Para o capuchinho a figura de Charles des Vaux representa um marco fundamental ao empreendimento, descrevendo-lhe como: “ [ . . . ] n a tu r al d e S a i t e- M au r e e m Tur en n e , q u e e m c o mp anh i a d e ou tro s fr an ceses guerreou co m o s índ ios contra ou tr as tr ibo s e tão cor ajosame n te se comp or tou que alcan çou no táveis v itór ias. Confor ma ndo- se sempre co m o s u sos e costu mes do p a ís, aprend eu a língua dos índ io s. Apó s êsses br avos f e ito s em d iv erso s e p er igoso s co mb ates e u ma longa estada n a reg ião , ob servou ele a beleza e as d e lícias d a terra, sua fertilidade e f ecund id ad e em tudo o que o ho me m p ode desej ar tan to co m r ef er ên c i a a o p r a z er d o cor p o , em v i r tu d e d a a me n id ad e do c l i ma , co mo e m r e laç ão à aqu is i ç ão d e ime n s a s r iq u ez as suscetív eis d e ser e m transpor tad as p ar a a Fr an ça. Ob tendo por ou tro lado a pro messa dos índios d e ser conv er terem ao C r is t i an i s mo , e v en d o a c e i to o o f er ec i me n to d e lh e s env ia r d e F ran ça u ma p es soa qu alif icad a a f im d e gov ern a- los e d efe ndelos con tr a seus in imigos, porqu an to ju lg avam o temp eramen to fr an cês ma is do que o s ou tros seme lh an te s aos seu, p e la dou çura das r e la çõ es, o sr . d es V aux, delib erou vo ltar à F ran ça .” O retorno de Charles des Vaux à França foi fundamental para o empreendimento. Seu relato minucioso sobre as potencialidades naturais e as riquezas das terras feitas ao rei Henrique, o Grande, fizeram despertar em Daniel de la Touche, Senhor de la Ravardière, um súbito interesse, a ponto de desistir da exploração de Caiena, para onde estava credenciado por nomeação real. Relata-nos d’Abbeville 24 que “la Ravardière, o almirante François de Rasilly, senhor des Aumers, e Nicolas de Harlay 24 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 10. - 12 de Sancy, barão de la Motte e de Gros-Bois, foram nomeados tenentes generais do rei nas Índias Ocidentais e terras do Brasil, pela Rainha regente Maria de Médicis”. Mas o empreendimento para a fundação da França Equinocial não se deu imediatamente com o retorno de Charles des Vaux. Seu relato serviu apenas para que Sua Majestade Henrique IV, o Grande, determinasse que o senhor de la Ravardière aqui viesse para comprovação dos relatos feitos. A desventura aguardou la Ravardière ao retornar à Franca, encontrando no assassinato do monarca (maio de 1610), seu protetor, grave empecilho ao início da jornada que desejava fazer, tendo que aguardar até o ano de 1611, “no reinado de Luís XIII e da Rainha Regente, sua mãe” 25 de quem recebe a nomeação de “lugartenente do rei no Maranhão’ junto a François de Razilly” 26. Conquanto a Regente Maria de Médicis tenha confirmado os títulos outorgados a la Ravardière recusa-se a financiá-lo na empreitada, razão por que ele “[...] se associa aos católicos François de Razilly e Nicolas Sancy, bem aceitos na Corte, e deve aceitar a participação de uma missão de padres capuchinnhos para evangelizar os índios” 27. Somente em 1612, partindo do porto de Cancale, em uma frota constituída apenas de três navios: “Régente, comandada por la Ravardière, com o pavilhão do almirante de Rasilly, Charlotte, comandada pelo barão de Sancy, e Sainte Anne, pelo cavaleiro de Rasilly” 28. 25 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 23. 26 DAHER, Andréa. O Brasil francês: as singularidades da França Equinocial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 50. 27 FORNEROD, Nicolas. Sobre a França Equinocial. São Luís: Aliança Francesa / Academia Maranhense de Letras, 2001, p. 17. 28 D’ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 10. - 13 A fundação do Forte de São Luís deu-se a 8 de setembro de 29 1612 , sob as pompas características dos conquistadores, com a força simbólica reservada à instauração do poder e própria de cada conquistador, como destaca Patrícia Seed 30: “O do mín io co lon ial sobr e o Novo Mundo foi instaur ado por me i o d e p r át i c a s b a s ic ame n t e c er imo n i a is — o s co lon i zad o r es f in ca r a m c r u ze s, e s tan d ar te s, b an d e ir a s e b r a sõ es , ma r ch ar a m em p rocissõ es, apanharam u m torr ão do so lo, me d ir am as e s tr e l as, d es en h ar a m ma p a s, p r o f e r ir a m a l g u ma s p a l av r a s o u p ermaneceram e m silêncio . Embora a força militar te nha efetiv amen te assegur ado seu poder sob re o Novo Mundo, o s europeu s dos sécu los XVI e XVII tamb ém acr ed itavam e m seu d ir e ito d e gov ernar. E cr iaram p a r a si própr io s esses d ireitos emp r egando p a lav ras e g esto s sign if icativo s que algu ma s vezes pr ec ed er a m, aco mp anh aram ou tr as a v ez es conqu is ta suce der a m, militar. e Mas ou tr as a inda esses g esto s s imb o lic a me n te s ign if ic a tivo s n ão for a m s e mpr e o s me s mo s.” Mas a fundação da colônia francesa não se deu como um processo em que o colonizador estabelece unilateralmente seu desejo de posse, ao menos sob a ótica do relato que nos dá subsídio à pesquisa. Com efeito, Charles des Vaux firmara um compromisso com os índios, em troca da conversão ao cristianismo, de mandar-lhes da França “uma pessoa qualificada a fim de governa-los e defende-los contra seus inimigos...” 31. É a partir dessa idéia compromissária (pactual) que toda a organização político-administrativa da colônia vai 29 Sobre a discussão acerca da fundação da cidade de São Luís, veja-se LACROIX, Maria de Lourdes Lauande – A fundação francesa de São Luís e seus mitos. São Luís: EDUFMA, 2000. 30 Cerimônias de posse na conquista européia do novo mundo, (1492-1640). São Paulo: Ed. UNESP, 1999, p. 10. 31 D’ABBEVILLE, Claude, História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 22. - 14 ser estruturada, tendo-se em conta as discussões, as promessas, os compromissos, os rituais que ocorreram até a concepção e formalização das Leis Fundamentais do Maranhão, escritas no Continente Americano, o que torna singular o objeto deste estudo. Bem a propósito d’Abbeville 32 registra essa conjugação de forças na implantação simbólica do Estado Equinocial: “Depo is qu e os própr io s índ ios p lantaram a Cruz co mo símbo lo d a alian ç a etern a que f aziam co m nosso D eus e do d esejo que te s te munh av a m de per tenc er ao cr is tian ismo , d e mo s- lh es a en tend er que isso n ão bastava, qu e era pr eciso ( a f im d e qu e o s fr an ceses não os ab andon assem j a ma is) co locar , b e m em su a te rr a, pe lo s me s mo s me ios, a s arma s d e F ran ça jun to da Cruz . Po is assim co mo esta er a o sinal de que hav íamo s to ma do po sse d a ter ra e m no me d e JE SUS CRISTO , es se s es tand ar tes se r ia m t a mb é m u m a ma r c a d e u ma l e mb r a n ç a d a so b e r an i a d o r e i d e Fran ça e u m testemunho (p ela su a aceitação) d a ob ed iên c ia qu e p r o me t i a m p ar a s e mpr e e à sua p er p e tu id ad e à S u a M aj es t ad e Cr is tian íss ima . ” Instituídos os símbolos representativos do poder impunha-se a composição formal da expressão da formação do Estado da França Equinocial. É o que se passa a examinar. 32 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 122. - 15 - 3. A CONCEPÇÃO DAS LEIS FUNDAMENTAIS: Os fatos históricos talvez não merecessem maior destaque no estudo da formação do constitucionalismo no Continente Americano, não fosse por particularidade que nos despertou a atenção: Os fundadores da colônia tiveram a diligência de estabelecer regras cujo propósito, em última instância, em muito se assemelham aos documentos aqui mencionados antes do surgimento da Constituição Americana. Muitas delas, aliás, estão presentes em documentos constitucionais passados, como, também, na atual Constituição da República Federativa do Brasil. As coroas de Portugal e Espanha, como de resto os demais paises conquistadores, tinham como procedimento comum expedir aos conquistadores cartas que além de conceder-lhes o direito de exploração de terras, também estabeleciam um conjunto de normas que deveriam ser adotadas no relacionamento com os nativos das terras conquistadas. Tais cartas, geralmente, estabeleciam competências criminais e cíveis, com fundamento no conjunto normativo originário e vigente na corte. As colônias britânicas “eram singulares, totalmente diferentes das que foram mantidas por Espanha, França ou nações da antiguidade 33”. A migração lhes assegurava os direitos como se estivessem na Europa, mas careciam de poderes especiais para edificação, plantação etc., o que era assegurado pela concessão das Cartas Coloniais (eram cartas reais), destacando-se a Carta da Virgínia (1606) como o “instrumento mais antigo a desempenhar um papel na evolução constitucional dos 34 americanos” . 33 SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 34. 34 SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 35. - 16 Como registra Marcelo Cerqueira 35: “Mu itas colôn ias ing lesas na América foram in icialmen te constitu íd as co mo co mp anh ias come rciais e ma io r parte delas por “Car ta s” ou “Estatutos” d itado s p e la Coro a. Tais ‘ Car tas’ (...) podem ser consid er ad as co mo as pr imeir a s C o n s t i tu i çõe s d as co lô n i a s ‘ s eja p o r q u e e r a m v i n cu la tó r i as p ar a a l eg i s la ção co lon i a l, s ej a p o r q u e r eg u l av a m a s e s tru tu r as jur íd icas fund amen ta is d as própr ias Co lôn ias’ . En tão esta s Constitu ições amiúd e exp ressame n te d ispunh am qu e as Co lôn ias pod iam, certamen te, aprov ar su as p róprias leis , ma s s ob a cond iç ão d e qu e e s tas leis fos s e m ‘r azo áv e is’ e, co mo que s ej a, ‘n ão c on trá r ia s às le is do Re ino d a Ing la ter ra’ e, por consegu in te, ev iden teme n te, n ão con tr ár ias à von tade supr ema d o Par l a me n to ing l ês . ” Mas esses documentos, como alerta o mesmo Marcelo 36 Cerqueira , continham limitações claras, a saber: “O governo ing lês – d iferen temen te dos gov erno s d e Por tug al e d e E sp an h a – l i mi t a v a- se a con c eder c ar ta s p a te n te s a q u em s e d ispu s es se ao s r is co s da co lon iza ç ão. As Car ta s r égia s atr ibu ía m amp lo s poder es aos co lon izador es sobre as colôn ias qu e fund avam. [. .. ] Os primeiros colonos começaram com c e r ta s garantias constitu c ionais do s seu s d ir e itos. Conqu an to as car ta s p a ten tes d es se m a o s fund ador es o d ir e ito d e gov erna r e le g is lar, d e le s s e 35 36 A constituição na história, origem e reforma. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1993, p. 28. A constituição na história, origem e reforma. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1993, p. 34. - 17 e x ig ia que f i ze s se m as sua s leis co n f o r me as le i s da Ing laterra.” Assim, faltava-lhes (aos conquistadores) competência para elaborar normas que pudessem ser consideradas, ao menos no Continente Americano, como tendo sido elaboradas por aqueles, dada à vinculação e limitação destacadas. E isto é o que difere a França Equinocial. A Europa já conhecia a “Magna Charta Libertatum”, cuja referência é frequentemente relembrada pelo pioneirismo de norma com conteúdo constitucional aproximado dos moldes do que mais tarde viria a construir o Estado Moderno. Sua essência, aliás, é relembrada como espécie de classificação já clássica de constituição material. Bernard Schwartz 37, sobre a “Magna Charta Libertatum”, destaca seu pioneirismo e função limitadora da soberania do poder constituinte: “ Ne la é que s e en con tra p e la pr ime ira v ez , n a h is tór ia ing les a, u m in stru me n to escr ito arr ancado d e u m sober ano pelo gro sso d a co mu n idade po liticamen te articu lad a, com o obj etivo d e imp or pr eceitos co mp u lsór ios que nem me s mo o soberano pod ia v io lar. É na Magn a Carta qu e se encon tra o g erme do pr in cíp io b ásico d e qu e h á d ireitos ind iv idu ais fundame n tais qu e o Estado, por ma is sob er ano qu e sej a, n ão pod e infr ing ir .” Essa função de limitação que sempre foi o jogo dialético entre o homem e as previsões normativas a impor-lhe ou facultar-lhe 37 Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, pp. 12/13. - 18 condutas, inspiraria todo o mundo como referencial obrigatório nas concepções de direitos. É necessário registrar que o cotidiano dos nativos nas terras do Maranhão tinha consuetudinário de d’Abbeville 38), cuja regulação normas através (leis interpretação de e de um sistema policiamento, aplicação residia no informal e dizer de nas sessões realizadas a cada noite na Casa Grande, instalada no centro da aldeia e que funcionava como verdadeiro parlamento. Cada aldeia possuía seu chefe ou principal, figura cujos atributos era ser: “ [.. . ] e m g er a l o ma is va len te c ap itã o, o ma is exp er ime n tado, o qu e ma ior nu me ro d e pro ezas fêz n a guerra, o qu e ma ssacrou ma io r nú me ro d e in imig o s, o qu e po ssu i ma io r nú me ro d e mu l h e r e s , ma i o r f a mí l i a e ma i o r n ú me r o d e e s c r a v o s a d q u ir ido s gr aças ao seu v a lor própr io, é o ch efe de todo s, o pr in cipal; n ão eleito pùb licamen te ma s em v ir tude da fama conqu is tad a e da conf ian ç a qu e n ê le depo sitam. Limita- s e o pod er do chefe à or ien tação dos d ema is por me io de conselhos, pr in cipalmen te nas reun iõ es qu e f azem tôdas as no ites n a Ca s a Gr ande do cen tro da a ld e ia . Depo is d e ac e so u m grandde fogo, utilizado à gu is a d e candeia e p ara fu ma r, arma m suas r êd es d e algodão e, deitados, cada qu al co m seu cach imbo n a mã o, pr in cip iam a d iscur sar, co me n tando o qu e se passou dur an te o d ia e lembr ando o que lhes cab e f azer no d ia segu in te a f avor da p az ou d a gu err a, par a r eceb er seus amigo s ou ir ao encon tro dos in imigos, ou p ar a qualqu er ou tro n egocio u rgen te, o q u e r eso lv e m d e acôr d o co m a s i n s tr u çõ e s d o P r inc ip al e m g er a l s eg u ida s à r is ca . ” 38 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 255. - 19 Nesse cenário em que o poder político já se pronunciara em favor da instituição de uma nova ordem com bases cristãs, vai-se construir um conjunto normativo pautado na estrutura das leis fundamentais do reino medievais de que fala Paulo Ferreira da Cunha 39. A instituição das Leis Fundamentais do Maranhão pelos franceses não seria diferente. O que a torna particular como objeto de estudo, ratifique-se, é sua concepção e formalização que guardam peculiaridade significativas para a análise do pré-constitucionalismo. Desde a associação entre Daniel de la Touche, Senhor de Ravardière e François de Razilly (1610) através de contrato ratificado por Luis XIII e sua mãe, Maria de Médicis, resta clara a competência dos associados para elaborarem normas com o objetivo de regular condutas muito além das previsões contidas nas leis dantes mencionadas, sendo lícito concluir que o fundamento legitimador de competência legislativa reside já na competência de “[...] fazer balizas e departamentos de terra, estabelecer leis, polícia, [...] por terem os mesmos poder e autoridade, assim como nos pareceu pelo contrato celebrado entre eles no dia quatro do referido mês de outubro” 40. A eles (La Ravardière e Razilly) junta-se Nicolas de Harlay, Senhor de Sancy, que também é signatário das Leis Fundamentais, todos, em: “Cer imô nia celebr ad a no Louvr e, cuj a d a ta per manece i mp r e c is a, a f l â mu l a r e a l é co n f ia d a ao s ‘ lu g are s- t enen te s d o r e i’, co m a pro messa d e leald ade e a ord e m d e construir u m for te – qu e s e rá d enomin a do Santa Ma ria, em h o men age m à 39 Teoria da constituição. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 2002, vol. I, p. 105. DAHER, Andréa. O Brasil francês: as singularidades da França Equinocial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 50. 40 - 20 r a inha. N asce assim u ma nova Fran ça, Equ ino cial, no Palácio do Louvr e, em 1610 .” ch amad a Fr ança 41 Fugindo ao costume da época, as Leis Fundamentais do Maranhão foram concebidas, escritas e tornadas públicas em território brasileiro no dia 1º de novembro de 1612 pelos franceses, e “Depois de publicadas, foram estas ordenações registradas e guardadas no arquivo geral deste Estado e Colônia, para servirem no futuro de leis invioláveis e fundamentais e a elas se recorrer quando necessário.”, o que ocorreu no último dia de novembro de 1612 42, tornando-se fato singular e fundamental na formação constitucional da América. Há que se ter em mente, e a isto se retornará oportunamente, que as Leis Fundamentais do Maranhão (1 o de novembro de 1612) guardam conformação com a estrutura formal das cartas reais. “A fundação de colônias por carta real era um desenvolvimento natural numa época em que propriedade, poderes e imunidades eram geralmente concedidos através de tais instrumentos” 43. Nisso reside a feição temporânea, uma vez ajustar-se a norma ao feitio formal da época. Schwartz 44 dá feição ao que chama de razões para a concessão da “Magna Charta Libertatum” (com apoio em Sir Edward Coke) como sendo as seguintes: “1) a honra de Deus; 2) pela saúde da alma do rei; 3) para elevação da Santa Igreja; e 4) para a melhoria do reino”. Sob certo aspecto a feição das Leis Fundamentais segue o mesmo modelo, pautado nos fundamentos que davam suporte ao poder da 41 DAHER, Andréa. O Brasil francês: as singularidades da França Equinocial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 p. 52. 42 D’ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 129. 43 SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 35. 44 Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 13. - 21 época. Assim é que as Leis Fundamentais podem ser divididas da seguinte maneira: a) artigos relativos à glória de Deus; b) artigos relativos à honra e serviço do Rei; c) artigos referentes à companhia. Esse modelo estrutural das Leis Fundamentais possibilita, a princípio, sob o aspecto cronológico, afirmar que se trata da primeira manifestação orgânico-constitutiva escrita com natureza fundamental no Continente Americano do sul de que se tem notícia, vocacionada à instituição de uma sociedade politicamente organizada. Esta asserção, contudo, encontra no cenário constitucional sério óbice. Basta que se opte por compreender a formação do constitucionalismo a partir das revoluções modernas, ou então a partir da Constituição Americana, pioneira enquanto documento consolidado de direitos. Este, aliás, tem sido o entendimento mais freqüente nas obras de Direito Constitucional: o constitucionalismo, portanto, como obra do final do século XVIII. E o período que o antecede, poderia ser denominado como pré-constitucionalismo? - 22 - 4. O CONSTITUCIONALISMO: O Direito Constitucional reserva significativo enfoque ao termo que dá epígrafe a este tópico. Constitucionalismo sempre existiu? Tendo existido qual o seu grau de significância? Não tendo existido, em que momento histórico teria surgido? São questões que se apresentam e recebem da doutrina diversas abordagens. Alguns o consideram fruto do Estado Moderno, posto inexistir com a mesma conotação sempre. Outros o vêem em todos os momentos da evolução histórica do Estado com o mesmo significado e a mesma carga semântica. Outros, ainda, vêem na classificação histórica fracionada sua melhor configuração, sendo lícito, assim, falar-se em constitucionalismo antigo, constitucionalismo moderno, constitucionalismo constitucionalismo medieval, contemporâneo, constitucionalismo pós-moderno. Há os que falam em constitucionalismo globalizado. De Bobbio 45 constitucionalismo merece o registro de que: “ [.. . ] não é hoje te r mo neu tro d e uso me rame n te d es cr itivo, d ado qu e eng lob a e m s eu s ign if ica do o v a lor qu e an tes e s tava imp líc ito na s p a lav ras Con s titu iç ão co mp lexo d e con c epçõ es po líticas, e e cons titu c ion a l de v a lores (u m morais), pro cur ando s ep ar ar as s olu çõ es con ting en te s (por ex e mp lo, a mo n arqu ia constitu c ional) d aqu elas qu e for am semp r e suas c ar a c ter í s t i ca s p er ma n ent e s. ” 45 Dicionário de política. Editora Universidade de Brasília: Brasília, 1997, p. 247. - 23 - Para Karl Loewenstein 46 a história do constitucionalismo: “[...] no es sino la búsqued a por el ho mb re po lítico de las limitacion es al pod er ab solu to ej ercido po r los d etetador es d el pod er, as í c o mo e l e sfu er zo de es tab lec er uma j u s tif ica c ión e sp ir itu a l, mo r a l o étic a de la au to rid ad em lug ar de l so me timien to ciego a la facilid ad d e la au torid ad ex is ten te.” Nesse sentido, inicialmente, constitucionalismo poderia ser compreendido como a constante (ou quem sabe eterna) busca de equilíbrio entre as forças de comando de uma sociedade política. Por isso é que Karl Loewenstein registra a presença de constitucionalismo desde os tempos remotos, apresentando modelos que contribuíram para a consolidação desse fenômeno histórico, como será adiante examinado, sob a epígrafe “FRAGMENTO DO ESTADO DE DIREITO”. Assenta Maurizio Fioravanti 47 que constitucionalismo é: “[...] con ceb ido co mo el conjun to de doctr in as que a prox ima dame n te a p ar tir de la mita d d e l sig lo XVII se h an d ed ic ado a r ecup er ar em e l hor izon te de la con stitu c ión de los mo d erno s el asp ecto d e l lítime y de la g aran tia.” 46 47 Teoría de la constitución. Ba rcelon a: Ed itor ial Ar ie l S. A., 1986, p. 150 . Constitución. Madrid: Editorial Trotta S. A., 2001, p. 85. - 24 Num segundo momento, então, constitucionalismo tem enfatizada sua natureza ideológica, conquanto preservando o objetivo de estabelecer o equilíbrio na relação do exercício do poder. Buscando-se empreender uma configuração categórica à multiplicidade de concepções, sem, contudo, castrar-lhes a pertinência, é instrumento fundamental a sistematização do Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional que registra o verbete “constitucionalismo”, ao encargo da professora Maria Cecília Paiva Cury 48 como o: “Mov imen to ger ador das constitu içõ es no sen tido mo derno, que pr ega a necessid ad e de u m g overno limitado, gar an tidor d e d ir e itos fund a me n ta is e org an izado d e acordo c o m o pr inc ip io d a sep ar ação do s pod eres.” Conquanto doutrinariamente consigne que a expressão possui ao menos quatro sentidos, quais sejam: “ N u ma p r ime i r a a c e p çã o , ind ic a - s e c o mo mo v ime n to p o lí t i c o s o c i a l, d e o r ig e m h i s tó r i c a r e mo ta , v is a n d o a l i mi t a ç ã o d o pod er arb itr ár io. S er ia, as s im, uma r e spo s ta ao arb ítrio da s mo n arqu ias ab so lu ta s, propondo a sub missão do Estado ao d ir e ito. Em u ma segunda acepção, con ceitu a- se co mo r e iv ind icação de qu e o te x to constitu c ional sej a escr ito e tenh a f o r ç a j u r íd ic a sup er io r . H á, a in d a, a c o mpr een são d es t e t e r mo c o mo ind i ca ç ão d e p r o p ó sito s la te n te s e a tu a i s d a f u n çã o e po siç ão e po siç ão d a Con stitu iç ão n as d iver s as s o c ied ade s. P or f im a co mpr een s ão de qu e s e tr a ta d a evo lu ção h is tór icoconstitu c ional d e u m dado Estado. 48 Dicionário de direito constitucional brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 69. - 25 Em ter mo s r igoroso s, Não há u m constitu c ionalismo, ma s tan tos constitu cionalismo s qu an tos mo v ime n to s con s titucion a is e x is tir a m, ca da qua l com s u a esp e cif ic idad e. ” 49 Num terceiro momento, então, constitucionalismo configuraria um marco temporal do aparecimento das constituições modernas, preservando-se, contudo, o mesmo objetivo de estabelecer uma zona demarcatória de extensão do exercício do poder. A despeito da pertinência dos entendimentos reproduzidos prefere-se falar em pré-constitucionalismo, categoria cuja justificativa conceptual oportunamente será abordada. Falar-se em pré-constitucionalismo exige que se aborde primeiro a categoria constitucionalismo como meio de se alcançar a idéia matriz deste trabalho que é saber sobre a formação histórica desse período de fundamental e especial significado para o estudo do Direito Constitucional. Constitucionalismo remete à idéia de ordenação jurídica, portanto de Constituição, norma fundante de uma sociedade cuja concepção é resultado de uma ação voluntária e racional instituída com o propósito orgânico. Tem claro objetivo de limitação do poder político: “Em um sentido ontológico se deberá considerar como el telos de toda constitución la criación de instituciones para limitar y controlar el poder” 50. A formalização do poder do Estado se dá através do Direito, razão por que a Constituição o institui, o define e o delimita, sendo esta 49 Dicionário de direito constitucional brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 69. Neste ponto o verbete invoca Canotilho. 50 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Barcelona: Ed itor ial Ar iel S. A., 1986, p. 151. - 26 tarefa (de limitação do poder) “[...] pela regra jurídica que se dá o nome de Estado de Direito” 51. Mas o que, afinal, representaria o constitucionalismo? Um fenômeno político ou um fenômeno jurídico? Para resolver a indagação é necessário discernir se sua compreensão decorre da perspectiva jurídica ou política. No primeiro caso resta claro que o constitucionalismo coincide com a idéia formal de Constituição ou pelo menos com a concepção de que existe uma norma (“lato sensu”) com função orgânico-institucional. No segundo caso, por sua vez, a idéia de constitucionalismo estará presente vinculada a uma noção histórica, constitucionalismo o que em todos possibilita os identificar momentos em que a idéia de se tenha em apreciação o poder enquanto núcleo discursivo. A Constituição, então, aparecerá como um fenômeno cuja presença estará vinculada à idéia de organização política e social. Nestes termos Georg Jellinek 52 afirma que: “ To d a A so c i a c ió n p er ma n e n te n ec e s i ta d e u m p r in c ip i o d e ord enación confor me el cu al se constitu ye y d e sarro la su vo lun tad. Es te p r inc ip io d e ord ena c ión s erá e l que limi te la situ ación de sus mie mb ro s d en tro de la asociación y em r e la c ió n com e l l a . U ma o r d en a c ió n o e s ta tu to d e e s ta n a tur a le z a es lo que se llama Con stitu ción.” Pelo viés político ganha ênfase sua aptidão para disciplinar o poder, nisto sendo incluída a tarefa de legitimar-lhe a origem fora dos 51 52 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 47. Teoría general del estado. México: FCE, 2000, p. 457. - 27 padrões míticos de outrora, como, também, estabelecendo-lhe parâmetros racionais para limitar-lhe o exercício. Pelo viés social reveste-se de densidade orgânica, disciplinando as relações cotidianas sob parâmetros legislativos ordinários. Tê-la (a Constituição) como elemento orgânico importa em determinar se ela esteve presente em todos os momentos da história, e sob esse aspecto ganha dimensão política, ou se, ao contrário, sua existência coincide com o Estado Moderno e, portanto, sua dimensão jurídica põe-se em destaque. As alternativas não são excludentes, pois resultam da abordagem que envolve saber do constitucionalismo na história. Para Paulo Ferreira da Cunha 53 a existência de uma Constituição na história encontra suporte na idealização de uma concepção natural, portanto, como fato que precede o iluminismo liberal. Sustenta que: “A org an ização po lítica d e qualq u er ‘ f o r ma ç ã o s o c i a l’ o b r i g a , n a tura lme n te , à ex is tên c ia d e u ma Con s titu iç ão r e a l: se mp r e ex is te u m ‘estado de co is as’ da org an ização po lítica, ainda que n ão aper cebido p e los seu s actor es.” [. .. ] “O Con s titu c ionalismo mo d erno, setecen tista e o ito cen tista, b as eou-s e n a con cep çã o d e u ma Con s titu içã o e m s entido po lítico lib eral. Os seu s pon tos fortes são hoj e consid erados em g eral aqu isições não apenas liber a is , ma s d a p r ó p r i a c iv i l i z a ç ã o e d o Imp é r io do D ir e ito: Cons titu içã o e scr ita (g aran tia do qu e é c o n s t i tu c io n a l se m f i c ar à mer cê de int e r p r e ta çõe s e e sq u ec i me n to s – cuj a imp o r t ân c ia j á er a l e mbr ad a p e lo n o sso 53 Raízes da república – introdução histórica ao direito constitucional. Coimbra: Edições Almedina S. A., 2006, pp. 16/17. - 28 A lme id a G arr ett), sep ar ação do s pod eres do Estado ( b as i c a me n te en tr e leg is l a t iv o , j u d ic i a l e ex e cu t i v o ) , e d ir ei t o s hu ma nos ou fund amen tais. A qu e se acr escen ta soberan ia popu lar e o sufr ágio un iv ersal, livr e, d ir ecto e secreto, e a eleição dos r epr esen tan tes do Povo. A Co n s t i tu i ç ão n a tur al p r ec ed e h is to r ic a me n t e a mo d e r n a ( v o lu n t ar is ta ) , q u e t e m e s se s r eq u i s i to s b á s i co s. A o con tr ár io d a Cons tituiç ão mo de rn a, a Cons titu ição n a tur a l n ão te m u m nú cleo pr é-d e ter min ado d e pr incípios. Confund e-se n a Idade Méd ia co m as leis fundame n tais do Reino . Tem u m n ú c leo por v ezes mu ito r estr ito, cir cunscr ito por alguns às simp les leis de sucessão do trono .” Envolto, assim, na idéia de uma Constituição natural cujo sentido, conquanto rudimentar sob a perspectiva moderna, uma vez não possuindo os elementos centrais forjados pelo artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a mesma tem pretensão de ordenação e, sob essa perspectiva, possui realce político e histórico, afinal “[...] onde existe sociedade, existe uma forma qualquer de controle social sobre os indivíduos” 54. Jorge Miranda 55 opta por identificar uma Constituição institucional, como variante da Constituição material ampla encontrada em todos os Estados. A Constituição institucional, assim chamada pela “[...] necessidade de institucionalização jurídica do poder [...]”, seria aquela presente na fase que se denomina aqui de pré-constitucionalismo. A idéia de Constituição material “[...] porque de conteúdo desenvolvido e reforçado e susceptível de ser trabalhado e aplicado pela jurisprudência.”, é vinculada pelo professor ao período seguinte do 54 55 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 38. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 321. - 29 constitucionalismo, o que coincide com o advento do constitucionalismo moderno. Desse modo, firme é o entendimento convergente da necessidade de composição, institucionalização jurídica e política do poder como expressões legitimadoras suscetíveis de compreensão racional. Sendo assim, é lícito considerar que o constitucionalismo guarda compatibilidade com a idéia de ordenação jurídica, porquanto não se pode imaginar a formação do Estado desvinculado de uma norma com densidade jurídica e eficácia suficiente. Vale, a propósito, a advertência de Santi Romano 56: “Por tan to, n ão é po ssív el imag in a- lo de modo algu m for a do d ir e ito. Seja qu al for o seu governo e qu alquer ju ízo qu e d e le se possa fazer, sob o pon to de vista po lítico, ele não pod e d e ixar de po ssu ir constitu ição e e s t a n ão p o d e d e ix a r d e s e r jur íd ica , porqu e cons titu ição n ad a ma is é s e não u ma o rden aç ão constitu c ional. U m Estado ‘n ão constitu ído ’ de u m mo do ou d e ou tro, b e m ou ma l, ta mb ém n ão pod e ter u m pr in cíp io d e ex is tência, assim co mo não ex is te o ind iv íduo sem as par tes pr in cipais d e seu co rpo. O d ireito con s titucional do Estado abso lu to ou despó tico será pou co desenvo lv ido; con cr e tizar- seá ap enas numa in stitu ição fund amen tal, a do seu soberano; ser á r egu lado por escassas nor ma s que, exager ando- lhe e estilizando-lh e a figura típ ica, poder-se-iam redu zir, talvez, s o men te àqu e la que d ec lar ar ia p erte nc er e m ao sob erano todo s o s pod er es. Esta nor ma n ão poderia f a ltar ou ser ajur íd ica, se e m t o r n o d e l a se co n ce n tra , in t eg r a l me n te , aqu e la o r d en a ç ão j u r íd i ca q u e é s e mpr e, p e l a sua ind ec l i n áv e l n a tur ez a, o Es ta d o . Co mpr e ender- se qu e, na co mo ção da s lu tas qu e ag ita ram o p er íodo r evo lu cionár io do qu al surg iu a atual for ma d e reg ime estata l, se fo sse in trodu zido a negar, por paix ão ou d evido à 56 Princípios de direito constitucional geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, pp. 6/7. - 30 oportun id ade po lítica, a jurid icid ad e de tod a forma preced en te o u d iv e r s a ; c o mpr eend e- se t a mb é m, ao me n o s a t é cer to p o n to, qu e ta l n ega ç ão sej a re pe tid a p e lo s qu e acre d ita m q u e u ma ord enação po sitiv a con tr ár ia ao d ireito n a tur a l ou racion al não s ej a, v erd ade ira me n te, jur íd ica , ma s a op in ião a lud ida n ão te m sen tido p ara aqu e le que se co lo ca, un icamen te, sob o ponto d e v ista do d ireito po sitivo, porqu e imp lica u m conceito inexato n ão só do d ir e ito co mo tamb ém do Estado. Um d ir e ito constitu c ional, seja ele simp les ou me smo rudime n tar, semp r e e x is tiu d e sde qu e h á E sta do ( e an tes me s mo que e s te surg is s e, h av ia d ireito con s titucion a l d e ou tr a co mun idade po lítica) e e x is t ir i a t amb é m s e a f o r ma l i b er a l ou rep resen tativa do Estado atual jama is fo sse substitu íd a por outra que o porv ir pud esse ma tu r ar, qualquer que sej a a f igur a qu e v enh a a assu mir. O d ireito é imanen te a qualquer ord em p o lítica e a ún ica n egação, lóg ica e h istor ica me n te po ss ív e l, do d ir e ito con stitu c ion a l s e r ia a an arqu ia. E , me s mo e s ta, só se en tend id a e m s e u sen tido vu lg ar.” Desse modo, comporta rememorar que o período medieval caracterizou-se notadamente pela repartição do poder entre a Igreja e a monarquia, numa associação política de cumplicidade com o propósito de legitimar a fonte do domínio político e territorial, sob a égide de um argumento sobrenatural, fundado no dogma da competência divina para legitimar a monarquia. “ [ . . . ] a E r a M ed i ev a l s e c ar ac te r izo u , p o li t i c a me n t e, p e la d escen tralização do pod er en tr e os senho res f eudais. Em u m r e ino a au tor id ade má x ima e r a r epre s en tad a p elo r e i. E s te tinh a jur isd iç ão sobr e seu própr io f eudo e au to r idad e sobr e os d ema is senhor es f eud ais, qu e geralmen te po ssu íam jurisd ição própr ia e p essoal sobr e as su as terr as . Qu em resolv ia as questõ es jud ic ia is d en tro d e u m f eudo er a o s enho r f eud a l, ma s d e s ua - 31 d ecisão cab ia i n st ân c ia . ” r ecu rso à au torid ade real, em segund a 57 A base fundamental do poder residia, assim, num Direito recolhido da “Lex Naturalis”, de inspiração divina superior e antecedente a qualquer tipo de autoridade fundada no plano temporal. Foi-lhe útil à propagação o elemento mítico com a força da sua dimensão misteriosa para propagação. O poder se projetava na proporção das conquistas territoriais, impondo-se a todos os conquistados. Quentin Skinner 58, a propósito, e com suporte em Bossuet, destaca que: “[...] todos os princípios políticos devem derivar das páginas da Bíblia [...] ”, enfatizando a fonte (a legitimidade mesmo) do poder, numa clara alusão à estrutura de poder fomentada na cumplicidade de poder temporal e poder espiritual. Jaime I, da Inglaterra foi um dos maiores entusiastas e apologistas da teoria do direito divino, forte no entendimento de que os monarcas são emissários de Deus que, por sua graça e eleição, conferelhes a prerrogativa de governar. “Monarquia é a realidade suprema sobre a terra. Pois os reis não são apenas lugares-tenentes de Deus na terra, e sentam-se no trono de Deus, mas são mesmo chamados de deuses pelo próprio Deus” 59. A esse quadro estruturado na regência do papado como emissário divino e legitimador das monarquias absolutas contrapunha-se já a exigência de uma resposta capaz de racionalmente possibilitar a compreensão do poder enquanto produção do intelecto. O próprio Jaime I, como protestante que era, lutava contra os poderes fundantes da Igreja 57 CICCO, Cláudio de. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito, 3 ed. reform. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 101. 58 As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 393. 59 Speech, p. 107, apud AMARAL, Diogo Feitas do. História das idéias políticas. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, vol. 1, p. 287. - 32 de Roma em face do monarca, conquanto tivesse no direito divino fonte primária do poder. O poder eclesial ou sobrenatural necessitava ser substituído por fundamentos que exortassem a racionalidade fundante do poder temporal. O Direito natural (imutável e universal) fruto da razão humana era a porta de entrada contra as construções arbitrárias e infundadas que muita vez cercavam o regime absoluto, a despeito de sua fonte eclesiástica. Impunha-se, portanto, substituir a convergência religiosa que tinha Deus como centro de tudo por um critério que pusesse o homem como elemento central do mundo, a concepção antropocêntrica ou humanística de que fala Cláudio de Cicco 60. Na feliz expressão de Gustavo Zagrebelsky 61 “[...] el determinismo naturalista de la historia o, según as concepciones, el cúmulo de la causalidad irracional, habrían cedido el campo al voluntarismo de la humanidad iluminada.”. A construção do constitucionalismo, portanto, decorreu da necessidade de se encontrar, através de um instrumento alheio à origem divina, um fundamento de legitimação do poder. Para tanto, os ideais iluministas de Locke, Rousseau e Montesquieu foram fundamentais, irradiando-se por todo o mundo, e, no Continente Americano, pelas obras de Jefferson, Adams, James Madison, George Mason e outros. A história registra que bem antes, já no século XIII, a “Magna Charta Libertatum” fora o prenúncio do constitucionalismo (ou já era o constitucionalismo antigo para alguns), pois a partir do seu texto podemos identificar a decisiva manifestação de limitação do poder monárquico, como sugere Floriano Azevedo Marques Neto 62: 60 CICCO, Cláudio de. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito, 3 ed. reform. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 101. 61 Historia y constitución. Madrid: Editorial Trotta S. A., 2005, p. 35. 62 Conceito e evolução dos direitos fundamentais, in Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, ano 2 - n. 5 - outubro-dezembro de 1993, pp. 54/64. - 33 “ E m 1 2 1 5 a qu e le s q u e t e m c o n d içõ es p ar a p le i t e a r l i mi t e s a o exercício do poder e, conseqüen temen te, u ma ma io r amplitud e a o ex er c íc io d e sua lib er d ad e ind iv id u a l, arg ü in d o d ir e i t o s ind errog áveis por qu alqu er pod er, são os b arões ing leses. Qu ando este s lu tam por lib erdad es r e lig iosas, e qu ando d este pro cesso de lutas decorr e a Ma gna Car ta, assistimo s ao r econh e c ime n to d e d ir eitos que - ap es ar d a titu lar idad e res tr ita - co lo cam uma cunh a no pod er ab so lu to. I n d i scu t iv e lme n t e , é c o r r e to af ir ma r que a p ar t ir daí se sucederá uma in tensa lu ta d e r econh ecimen to d e d ir e itos e de a mp l i a ç ão ta n to n a t i tu l a r idad e ( q u e d e ix ará d e s er r e s tr i ta ao s nobr es in surg en te s) co mo ta mb ém no ro l dos d ir e itos r econh ecidos.” É dispunha de inolvidável que características a que “Magna a Charta tornassem Libertatum” paradigma de não uma declaração de direitos fundamentais dentro da acepção moderna, só bem mais tarde construída. Mas desfrutava de conteúdo material significativo, característica que conseguiu atravessar os tempos e servir de inspiração para a concepção de muitas das disposições assecuratórias de direitos, ainda hoje presente em Constituições que se apresentam como pactos de Estados Democráticos de Direito, evidentemente com espectro muito mais abrangente. Nesse sentido, a “Magna Charta Libertatum" cumpriu o seu objetivo precípuo: “ N ão s e t r a t av a, p o r ém, d e u ma ma n i f e s ta çã o d a id é ia d e d ir e i to s f u n d a me n ta i s in a to s, ma s d a af ir ma ç ão d a id é ia d e d ir e i to s da a r i s to cra ci a f eu d a l em face do su se r an o . A f in a l id ad e d a “ M ag n a C h a r ta ” e ra, po is, o estabelecime nto de u m “mo dus v ivend i” en tre o rei e os barões que consistia - 34 fund amen ta lmen te no r econh ecime n to d e cer to s d ir e itos de s u p r e ma c i a d o r e i , em t r o c a d e c e r tos d i r e i t o s d e l ib er d ad e estame n tais consagr ados n as car tas d e fr anqu ia.” 63 Ainda quando se negue à “Magna Charta Libertatum” o perfil de expressão do constitucionalismo, não se pode perder de vista que ela (como as demais instituições formais e ordenações) representa contribuição destacada na formação da evolução do constitucionalismo, pois influir, como documento cronologicamente anterior, no surgimento de pactos que desembocaram nos ideais revolucionários notabilizados no final do século XVIII, valendo ressaltar — com apoio em Paulo Ferreira da Cunha 64 — que a “Magna Charta”, “se não [pertencente] ao préconstitucionalismo moderno, [inclui-se] inegavelmente na história do Constitucionalismo em sentido muito lato, integrando-se, evidentemente, na História Constitucional”. É resultado da coligação do clero com a nobreza como limitação aos poderes do Rei João Sem Terra, vendo nela o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho instrumento com o propósito de restauração da “law of the land”, presente nos primórdios da “common law” 65. É entendimentos impositivo de constitucionalismo que consignar, se transcende falou a diante dantes, da que multiplicidade o fenômeno situacionalidade histórica que de do lhe pretendem dar muito dos autores, muito mais jungida à concepção formal de Constituição, refletindo certo engessamento na construção e desenvolvimento do processo de teorização da história do Direito Constitucional. 63 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, 6ª ed. rev. Almedina: Lisboa, 1993, p. 502. Teoria da constituição. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 2002, vol. I, p. 105. 65 Estado de direito e constituição. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 10. 64 - 35 Com a exatidão de sempre, o professor André Ramos Tavares adverte que “o fenômeno da codificação ocorre em concomitância com o constitucionalismo”, embora advirta que essa “aproximação [...] é apenas cronológica” 66, sentenciando 67 quanto aos elementos que configuram o constitucionalismo: “ F i ca ab so lu t a me n t e n ít id a, p o is , a a p r e s en ta ção do constitu c ionalismo co mo mov ime nto que, embor a de grande a l c an ce j u r íd i co, apr e se n ta f e i çõ es so c io ló g ic a s ineg áv eis . O asp ecto jur íd ico r ev e la-se pela preg ação de um sistema do tado d e u m c orpo nor ma tivo má x imo , qu e s e en con tr a ac ima do s própr io s gov ernan tes – a Con s tituição . O aspecto socio lóg ico e s t á n a mo v i me n t a ç ão so c ia l q u e co n f er e a b as e d a sus t ent a ç ão d es sa limit a ç ão do pod er, imp ed indo qu e o s gov ern an te s p as se m a f a z er v a ler s eu s p r ó p r io s in t er es se s e r eg r as n a condução do g aran tístico Estado. (co mo O asp e cto decorrên cia id eo lóg ico da limitação está do no to m ‘pod er’) pr egado pe lo cons titu c ion a lis mo .” A síntese do insigne professor possibilita moldar como um dos alicerces deste trabalho o elemento jurídico enquanto corpo normativo. Como fenômeno decorrente da formalização dos ideais iluministas transmigrados para o Continente Americano e expressos em um documento escrito (a Constituição de 1787) o constitucionalismo integra a Idade Moderna (1453-1789). 66 67 Fronteiras da hermenêutica constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 35. Curso de direito constitucional. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 3. - 36 Isto delimita a definição do constitucionalismo visto sob o prisma jurídico. É que sua concepção vincula-se ao Estado Moderno, particularmente, no Continente Americano. O constitucionalismo, assim, tem na expressão formal seu marco inicial a partir da América, o que conduz à reflexão em torno dos acontecimentos que antecedem o final do século XVIII. De posse do referencial até aqui recolhido, impõe-se considerar a formulação da idéia sobre o constitucionalismo Continente Americano, em face das Leis Fundamentais do Maranhão. Por que pré-constitucionalismo? no - 37 - 5. PRÉ-CONSTITUCIONALISMO: EM BUSCA DE UM CONCEITO: A formulação de um conceito de “pré-constitucionalismo” exige que se faça uma consideração em torno de dois elementos a que já nos referimos, mas que é recorrente para o tema: o político e o jurídico. O constitucionalismo foi concebido no item anterior sob a perspectiva jurídica, expressa na idéia formal de Constituição. Logo, tudo que antecede aquele período é destituído dessa natureza, a menos que se tenha em mente a proposição do elemento político para definir a Constituição material, ou, por empréstimo, a Constituição natural (para adotar a proposição forjada por Paulo Ferreira da Cunha 68) ou a Constituição institucional de Jorge Miranda 69. Portanto, construir o significado da expressão pré- constitucionalismo é caminhar, primeiro, em direção à construção de um conceito de Estado Constitucional de Direito a partir de uma perspectiva histórica. Exige observação a fatos pretéritos que serão, aqui, seccionados para fins meramente metodológicos, sopesados por leituras atuais, com o fim de identificar pontos de convergência com o denominado constitucionalismo como é concebido hoje. Para tanto, é fundamental que se fixe como pressuposto que a denominação “Estado Constitucional de Direito” tem o significado de momento histórico que sucede um ciclo do que se costuma chamar Estado Moderno. Sucede (ao menos num primeiro instante) mas não encerra. 68 Raízes da república – introdução histórica ao direito constitucional. Coimbra: Edições Almedina S. A., 2006, p. 16. 69 Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.321. - 38 Sob esta perspectiva, identificar o Estado como sociedade politicamente organizada ou o Estado Constitucional de Direito pressupõe a sedimentação de observações que decorrem da evolução desses fenômenos, como resultados da ação participativa 70 do homem. Contudo, é impositivo observar que o Estado tem diversas teorias que reclamam a si a autoridade para explicá-lo enquanto fenômeno político-jurídico, merecendo ser mencionadas como referenciais as contratualistas, institucionalistas e funcionalistas 71, sem prejuízo de tantas outras. Sobre elas um enfoque mais detalhado se reserva a um estudo da formação política do Estado. Sendo, como de fato é, um fenômeno político-jurídico o Estado reclama a existência de Direito, cuja qualidade orgânicoinstitucional ordena a relação entre governantes e governados, a fim de serem estabelecidos parâmetros que legitimem e justifiquem o poder. A identificação do Estado de Direito é vinculada sempre aos acontecimentos históricos ocorridos entre os Séculos XVIII e XIX que tiveram como contribuição visível a abolição do Estado Absoluto e a inauguração de m novo modelo de organização política. A esse período também denominamos constitucionalismo. A palavra constitucionalismo, afirma Santi Romano 72 “...empregada em sentido antonomástico, designa as instituições e os princípios adotados pela maioria dos Estados que, a partir dos fins do século XVIII, têm um governo que, em contraposição àquele absoluto, se diz ‘constitucional’”. Sob esse enfoque a idéia de constitucionalismo coincide com o denominado constitucionalismo moderno, cuja caracterização é de: 70 Usa-se, aqui, a expressão ação participativa em contraposição a ação contemplativa. MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 1. 72 Princípios de direito constitucional geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 42. 71 - 39 - “ [ . . . ] p r es erv ar a N a çã o f a c e ao E s tad o , a tr av é s d o ex ac to d esenho d a g eo métr ica arqu itetu ra do novo con tr a to social, por isso me smo po sitivado nu m texto escr ito, n ecessar iamen te d ecor ren te d e u ma sobe ran ia não ra d ic ad a n a tr ans c endên cia , e g aran tido r, p e la d ec lar aç ão do s d ire itos e pe la d is tr ibu iç ão dos pod eres, d a au tono mia do s cid adãos face ao Pr ín cipe e ao seu a p ar e lh o d e c o er ç ão , só p o d erá log i ca me n t e te r e l e r a íz es e m ma n i f es t açõe s d e u ma ( a i n d a q u e p a r c i a l o u inc i p ien t e) idê n t ic a pr eocup a ção. E as linhas d e seme lh ança h ão-de-buscar-se, por c o n s eq ü ên c ia , e m c ad a u m d o s e le me n t o s cara c t er i zad o r es d o constitu c ionalismo : desd e o caráter g ar an tís tico e d e proteção f ac e ao p o d er, a té , ma i s e s p ec if i c a me n t e , às d iv er s as for mu laçõ es em que se fo i corpor izando o Estado misto.” 73 A idéia, por óbvio, restringe o fenômeno a um determinado momento histórico, qual seja, o marco do Estado Constitucional, o que é infirmado pelas convergência concepções dirige-se constitucionalismos à diversos, doutrinárias mais recentes, compreensão da existência particularmente conforme o cuja de período histórico estudado. É como ensina André Ramos Tavares 74: “ Nu ma pr ime ir a mo v ime n to a cep ção , po lítico-so c ia l e mpr ega -s e co m orig ens a re fer ên c ia histó r ic as ao bastan te r e mo t as q u e p r e t end e, e m e s p e c i al, l i mi t a r o p o d er arb i trá r io . Nu ma segund a acepção, é id en tif icado co m a i mp o s iç ão de que h aja cartas constitu c ion a is escritas. Tem- se u tilizado , nu ma te rc e ir a con cep ç ão pos s ív e l, p ar a ind ica r os propó s itos ma is 73 CUNHA, Paulo Ferreira da. Teoria da constituição. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 2002, vol. I, p. 103. 74 Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, 5ª ed., p. 1. - 40 la ten tes e a tua is da fun ção e pos iç ão da s con stitu içõ es na s d iv ers as so c ied ad es. constitu c ionalismo Nu ma é v er ten te r eduzido à ma is evo lu ção r e s trita , o h istór ico- constitu c ional d e u m dete r min ado Estado.” Esta ponderação permite transitar pela teoria dos ciclos constitucionais, “ou seja, a série de fenômenos pertinentes ao constitucionalismo, em suas transformações, através dos tempos 75, com a desenvoltura de quem identifica um fenômeno que não pertence a uma época específica, estanque. Os ciclos, variáveis entre Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea, são, sob essa perspectiva, momentos de formação do constitucionalismo que é um processo dinâmico, constante por natureza, na medida em que retrata essa perspectiva dinâmica da dialética que envolve o estudo do Estado Constitucional. Nesse diapasão é que Canotilho 76 destaca: “O mov ime n to con s titu cional g er ador da constitu ição em s en tido mo d erno te m v ár ia s r a ízes lo ca lizad as e m h or izon tes temp or ais diacrón ico s e em esp a ço s h istór icos geog ráf ico s e cu lturais dif er enciados. Em ter mo s r igorosos, não há um constitu c iona lismo mas v ár io s constitucionalismo s (o constitu c ionalismo ing lês, o constitu cionalismo amer icano, o constitu c ionalismo francês). Ser á pr ef er ível dizer qu e existem d iv erso s mo v imen to s c ons titu c iona is c o m c o r açõ e s n ac io n a is ma s ta mb ém c o m a lgun s mo me ntos de aprox ima ç ão entr e si, forn ecendo d i ze mo s u ma se r comp lex a ma i s te ssitu ra r igo roso f a l ar h istór ico- cu ltural. vá r ios E movim en tos constitu c iona is do qu e d e v ár io s c ons titu c ion a lis mo s porqu e 75 SOARES, Orlando. Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.14. 76 Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra, Portugal: Livraria Almedina, 1998, p. 45. - 41 isso per mite recor tar constitu c iona lismo . id eo log ia) que desd e já u ma Con st it uc iona l is mo ergu e o pr incíp io do no ção é a b á sica teor ia gov erno de (ou limitad o ind isp en sáve l à gar an tia do s dire ito s e m d ime n são e s tru tur an te d a o rgan ização po lítico-so c ial d e u ma c o mu n id ad e. N e s t e s en tido, o c ons titu c ion a lis mo mo d erno re pre s en tar á u ma técn ica d e lim ita ção do pod er com fins garan tístico s.” A concepção lusófona permite identificar o momento preciso de trânsito do Estado Absoluto ao Estado de Direito (ou Estado legal?) com as características orgânicas da sociedade política, enfatizando a dimensão de exercício desse mesmo poder. Pretender, assim, vincular a idéia de constitucionalismo exclusivamente ao período revolucionário do final do século XVIII constitui-se grave equívoco, como, aliás, adverte André Ramos Tavares 77, enfatizando ser “[...] errôneo supor que o constitucionalismo surgiu apenas com o advento das revoluções modernas, que instauraram a democracia e afastaram os regimes absolutistas até então existentes”, conquanto tenha em mente o insigne professor 78 a possibilidade de que as fases cronológicas referidas aqui sejam leituras atuais que fazemos de fatos passados, com o propósito de identificar convergências com o constitucionalismo como é concebido nos dias atuais. Há quem fale em constitucionalismo contemporâneo 79. Essa pluralidade de qualificações dadas ao vocábulo “constitucionalismo” não invalida a alternativa que se adotou aqui. Note- 77 Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 3. Em sua terceira edição, a obra do insigne professor registra o termo pré-constitucionalismo – p. 4 - , mantido na quinta edição – p. 5 - como fase do constitucionalismo medieval da Inglaterra. ratificando, assim, a possibilidade de adoção do vocábulo. Registre-se, contudo, não haver incompatibilidade propositiva. 78 Refiro-me a André Ramos Tavares. 79 FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e o ministério público. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 21. - 42 se que essas proposições dão ênfase mais ao aspecto sociológico ou histórico. Fosse lícito dizer que o conceito de constitucionalismo se reduz ao aspecto jurídico, concretizado pela Constituição, e se diria, simplesmente, que pré-constitucionalismo, por exclusão, seria toda e qualquer manifestação que não se inclui naquela categoria, o que seria um juízo cartesiano. A denominação “pré-constitucionalismo” que se utiliza aqui tem para nós significado semelhante (embora não idêntico) ao de constitucionalismo, por uma perspectiva semântica, uma vez guardar harmonia com a noção de constituição em sentido material e historicamente é merecedor de destaque neste trabalho. De fato, não se pode ignorar que o sentido estrito do termo constitucionalismo advém dos Estados Unidos, embora seja forçoso reconhecer que “[...] não havia na América do Norte, de forma alguma, uma nação unificada contra a Inglaterra”, senão a conjugação de 13 colônias reunidas “[...] por um sentimento antibritânico.” 80. Lícito, porém, é reconhecer que a fase histórica que antecede a formação do período revolucionário, portanto, anterior ao final do século XVIII, dada à incipiência dos modelos de controle do poder e mesmo nomenclaturas a noção diversas. de Direito, Não seria possibilitam a impeditivo adoção falar-se de em constitucionalismo imperfeito, conquanto daqui a 300 anos se possa a este século atribuir esta mesma característica. A denominação pré-constitucionalismo, a par de estabelecer a 80 demarcação de uma época que antecede o denominado KARNAL, Leandro, et. ali., História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007, p. 82. - 43 constitucionalismo moderno, também encontra suporte na perspectiva semântica. O prefixo (pré) contempla o sinônimo que abrange antecedente, aquilo que precede algo. É o “afixo que antecede a raiz” 81. Assim sendo, pode-se falar em pré-constitucionalismo como se fala em período pré-colombiano na exploração do Continente Americano, ou na pré-história, quando se estuda a formação da história da humanidade. Forçoso é reconhecer que o vocábulo envolve a idéia de generalidade, porquanto abrange todo o período que antecede a concepção moderna de constitucionalismo, o que não o compromete, contudo. Falar-se contemporâneo, em constitucionalismo neoconstitucionalismo 82 ou antigo, moderno, constitucionalismo globalizado é apenas ajustar-se a composição vocabular ao momento histórico correspondente, sem que haja natureza hermética e impenetrável para que se possa construir o conceito. A proposição conceptual envolve a construção de uma noção fora dos padrões usualmente vistos, registrando a idéia de rudimento, algo incipiente, inicial e primário. Sendo assim, e retomando o estudo histórico com base na técnica de divisão dos acontecimentos em Idades, é lícito afirmar que o pré-constitucionalismo, embora se situe na Idade Moderna (a exemplo do constitucionalismo visto sob a perspectiva jurídica), com ele não se confunde, pois reúne todas as manifestações que antecedam 17 de setembro de 1787. 81 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio eletrônico. São Paulo: Editora Nova Fronteira e Lexiton Informática, novembro de 1999, versão 3.0. 82 Veja-se, dentre tantos outros autores, o registro de BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 7. - 44 De sorte que, em exercício da liberdade científica nada obsta seja reservado ao período anterior às revoluções constitucionalistas a denominação de pré-constitucionalismo, como fase embrionária de um processo em mutação, que, se por um lado tem o mesmo conteúdo material de que trata o constitucionalismo, ao menos semanticamente possibilita um ajustamento melhor com uma fase histórica em que ainda não se identificava a idéia de uma Constituição sob a perspectiva formal. Pré-constitucionalismo pretende albergar a idéia de uma categoria em formação, em constante evolução. Se sua extensão pode merecer a crítica em torno de sua imperfeição ou insuficiência, em face dos critérios erigidos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão para configurar o Estado de Direito, por outro lado consegue reunir em sua concepção todas as fases dantes mencionadas. Nele é possível reunir a idéia dos períodos anteriores às revoluções, portanto, ao chamado constitucionalismo moderno, fases, institutos e idéias que serão determinantes para a consagração do constitucionalismo em sentido mais estrito, nascido nos EUA. De certo que se pode lançar, com os critérios científicos de hoje, um olhar sobre os fenômenos históricos passados, em busca de elementos convergentes, disso não se duvida. Contudo, com a proposição conceptual de pré-constitucionalismo pretende-se estabelecer uma idéia de evolução histórica, onde o pré-constitucionalismo seria o embrião do constitucionalismo, uma vez que sob o enfoque político e histórico não resta dúvida que a idéia de ordenação, organização, sistematização, limitação do poder, estará presente em todos os períodos históricos sistematizados pelos estudiosos através de classificações didáticas, como antiguidade, modernidade e contemporaneidade. Assim sendo, além da perspectiva semântica que permite construir nominalmente o rótulo proposto (pré-constitucionalismo) a identificação histórica de um período em que a espécie normativa (hoje - 45 legislativa) adotada coaduna-se mais à idéia de norma com natureza, ou de vocação constitucional, se (e somente se) compreendido o constitucionalismo enquanto produto de um dado momento histórico. A idéia de um documento constitucional, portanto, de uma expressão de vontade política com finalidade institucional, orgânica, enfim, encontra cenário na época que antecede o constitucionalismo jungido aos ideais liberais, e a essa época é que se atribui aqui a denominação de pré-constitucionalismo, como embrião, por isso mesmo elemento de um dado fato histórico: a idéia de independência americana. Mas o tema reclama um mergulho mais profundo nesses acontecimentos, uma vez tendo o constitucionalismo sido precedido por acontecimentos históricos que certamente constituíram pilares para a conformação do que denominamos hoje Estado Constitucional de Direito. É a esse período que reservamos a denominação de préconstitucionalismo. - 46 - 6. FRANGMENTOS HISTÓRICOS DO ESTADO E DO DIREITO: A prospecção histórica em torno dos centros de produção do Direito possibilita um mergulho profundo na história, com o propósito de identificar momentos que permitam construir a noção de Estado Constitucional de Direito. Como remissão, v.g., a doutrina costuma mencionar (não de maneira isenta de críticas e por vezes com débil suporte histórico) o Código de Hamurabi, a Legislação Mosaica, o Código de Manu, a Legislação de Drácon e de Sólon na Grécia Antiga, a Lei das XII Tábuas, o Alcorão, a “Magna Charta Libertatum” e tantos outros que antecedem as Declarações de Direitos exaltadas como marcos referenciais da formação do constitucionalismo. Não se pode negar que muitos documentos jurídicos históricos serviram, por suas particularidades e fundamentos, como suporte para delimitar os planos muitos desses de ação e sobrevivência humanas. É possível retirar de documentos uma contribuição, uma vez que a necessidade de ordenação ou regência é uma exigência da historia do homem. Jorge Miranda 83 destaca como sociedades políticas pré-estatais a família patriarcal, o clã e a tribo, a “gens” romana, a “fratria” grega, a gentilidade ibérica, o senhorio feudal. Delas, por óbvio, não se pode extrair uma configuração constitucional nos termos pretendidos aqui, inobstante contribuam para a 83 Teoria do estado e teoria da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 20. - 47 formulação do conceito de Estado de Direito, cuja evocação histórica inicial coincide com o aparecimento do Estado Moderno. Ganham realce alguns momentos históricos reiteradamente relembrados no estudo do Direito. Sobre uns faz-se breve menção, apenas com registro histórico. Sobre outros, reservam-se maiores considerações, embora não maior densidade, uma vez sendo ponto central o Estado Constitucional de Direito. 6.1. O MOVIMENTO HEBREU: Dada a diversidade de fontes para o estudo, faz-se um corte epistemológico para adotar o Movimento Hebreu como marco do constitucionalismo antigo. A pretensão de “assegurar determinada organização do Estado” 84 já se encontrava presente entre os hebreus na denominada “Lei do Senhor”. Segundo Loewenstein os hebreus teriam sido pioneiros na prática do constitucionalismo, sendo o conceito adotado a partir do entendimento de que organizações políticas que antecederam o constitucionalismo moderno teriam “[...] vivido bajo um gobierno constitucional sin sentir la necessidad de articlar los límites 85 estabelecidos al ejercício del poder político” . A fusão de valores religiosos e seculares seria a base de fundamentação que estabelecia a relação entre os súditos e a autoridade 84 85 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 3. Teoría de la constitución. Ba rcelon a: Ed itor ial Ar ie l S. A., 1986 , p. 154. - 48 divina que possuía a intermediação dos seus representantes terrenos, no caso, os sacerdotes. O sistema teocrático, entretanto, não importava em exercício arbitrário do poder, uma vez que se submetida, como os dominados, à Lei do Senhor, nisto consistindo a idéia de constituição material. 6.2. GRÉCIA: Os gregos, com as Cidades-Estado oferecem a maior contribuição ao pensamento político-constitucional, dentre outras razões pelas discussões em torno de temas como a democracia e a isonomia. O regime político com a conformidade de toda sua estrutura, também, são fatores que despontam como “o primeiro caso real de democracia constitucional” 86. Algumas peculiaridades do regime político grego merecem destaque como exemplos da configuração do sistema democrático das Cidades-Estado, algumas das quais tendo atravessado a história e sido inseridas em textos constitucionais do mundo moderno. A temporariedade dos mandatos, a alternância do seu exercício, a proibição de reeleição, acessibilidade indistinta (salvos as exceções expressas) para exercício de cargos etc. A estrutura política grega revela nitidamente a preocupação com o exercício de poder político compartilhado, nos moldes modernos rotulado de descentralizado, ratificando o perfil democrático sociedade grega. 86 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 4. da - 49 - 6. 3. ROMA: O Estado Romano guarda semelhanças com o Estado grego. A vinculação do homem a uma comunidade política é condição para o exercício de direitos que não se constituem de forma inata. Sua estrutura constitucional não mergulha em excessos, como destaca Loewenstein 87, para quem o constitucionalismo republicano passa a ser um arquétipo de todas as fases do Estado Constitucional. O direito é inerente à relação do homem com a comunidade política, sendo fruto de conquistas e não de uma decorrência inata, havendo clara identificação de um sistema de desigualdade e exclusão recíproca, na medida em que a diferença entre cidadãos romanos e estrangeiros acentuava essa distinção. 6.4. DO ABSOLUTISMO AO ESTADO MODERNO: A Idade Média desponta como um período que guarda uma dualidade em torno desse processo histórico examinado. Num primeiro momento é possível falar-se de uma fase de declínio desse processo construtivo do Estado Constitucional de Direito. Não há, propriamente, Estado, ganhando visibilidade o sistema hierárquico de poder político determinado por vínculos contratuais 87 Teoría de la constitución. Ba rcelon a: Ed itor ial Ar ie l S. A., 1986 , p. 156. - 50 através do mecanismo entre suseranos e vassalos: “nulle terre sans seigneur”. É a privatização do poder, que, em lugar do “imperium” configura-se pelo “dominium” 88, com notória constituição patrimonialista que perdura até o aparecimento do Estado Moderno. A configuração de Estado encontra suporte em Nelson Saldanha 89, que acentua: “Pod e-se deno min ar de Estado , p elo me nos em sen tido amp lo , mu ito embora a teoria po lítica mo d ern a fix e ex ig ência d e ex is tência d e Estado d en tro de p adrões que esposam f a tor es endógeno s e exóg enos atu a is.” Num segundo momento, contudo, é lícito reconhecer a reconstrução de um movimento em torno de direitos individuais, inaugurado pela “Magna Charta Libertatum” 90. A “Magna Charta Libertatum” foi outorgada por João Sem Terra em 15 de junho de 1215, sendo posteriormente confirmada: seis vezes 91 por Henrique III; três vezes por Eduardo I; catorze vezes por Eduardo III; seis vezes sobre por Ricardo II; seis vezes por Henrique IV; uma vez por Henrique V, e uma vez por Henrique VI. Schwartz 92 lembra que se trata de documento considerado “descendente direta da Carta de Coroação de 1100, emitida por Henrique I”. 88 MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 31. Curso de introdução à ciência política, unidade III, bloco II, o estado. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 20. 90 Para nós, ainda, pré-constitucionalismo. 91 MIRANDA. Jorge. Textos históricos do direito constitucional. Lisboa: Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1980, pp. 13/16. 92 Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 13. 89 - 51 Esse monumento, conquanto tenha importado num “resgate de certos valores, como garantir direitos individuais em contraposição à opressão estatal” 93 não possui extensão geral como sói acontecer com os documentos que resultam do Século XVIII. Inobstante, isto não lhe tira o papel histórico fundamental como um degrau na construção do Estado Constitucional de Direito. De qualquer modo existe no período a sinalização de construção da lei fundamental com o significado inicial “de um conjunto de princípios, normas e práticas adotadas nas relações religiosas e comunitárias, especialmente entre as classes sociais e o soberano” 9495. Consigne-se, ainda, como contribuição britânica a “Petition of Rights” (de 7 de junho de 1628), que se constituiu documento através do qual os lordes espirituais e temporais e os comuns, reunidos em parlamento, requereram ao monarca o reconhecimento de alguns direitos que haviam sido estabelecidos desde o reinado de Eduardo I. A esses documentos juntem-se as revoluções de 1.648 e 1.688. O “Bill of Rights” 96, datado de 13 de fevereiro de 1689 97,constituiu-se no documento mais importante na formação do constitucionalismo inglês. Pode-se afirmar que a partir de então o poder monárquico cede lugar à supremacia do Parlamento, que se reúne “a fim 93 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 4. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 5. 95 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 5. A partir desse momento constitucional o autor considera uma fase do pré-constitucionalismo. 96 SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 11. destaca que o Bill of Rights inglês (homônimo da Declaração de Direitos acrescentada à Constituição Americana) dela difere pelo fato da lei inglesa ter sido “aprovada como um estatuto comum pelo Parlamento, sujeita assim, permanentemente, em termos legais, a emendas ou rejeições a critérios de legisladores subseqüentes”, ao passo que a “noção americana de uma lei de direitos do homem incorpora garantias de liberdade pessoal a um documento constitucional, cujos artigos definem e limitam as áreas de atuação legislativa”. 97 Sobre a época, SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 2006, 27ª. ed. rev. e ampl., p. 151, fala no ano de 1688. 94 - 52 de deliberar sobre os meios de impedir que a religião, as leis e as liberdades pudessem voltar a ser ameaçadas de subversão” 98. Nesse sentido a Declaração assenta-se em pressupostos que impedem ao monarca agir sem autorização do Parlamento, sob pena de ter sua ação considerada ilegal. Conquanto assim possa ser considerado (o documento), Bernard Schwartz o qualifica como “um documento tanto rudimentar em relação aos direitos individuais que procurava garantir” 99. Com a natureza declaratória, mas munido de realce marcante no princípio da legalidade, o “Bill of Rights” passa à história como pacto formal que viabiliza democraticamente a relação entre o homem e o Estado, tendo no Parlamento o freio contra a ação da monarquia, acentuando a característica mais tarde buscada pelo constitucionalismo, através das revoluções americana e francesa. Da “Magna Charta Libertatum”, sem deixar de mencionar a importância do “Act of Settlement” e o “Habeas Corpus Act”, tem-se, com brevidade, elencados alguns dos postulados que vieram a ser adotados pelo chamado Estado Constitucional em fins do século XVIII. Com a reconstrução dessa noção de Estado há o ressurgimento da concepção de autoridade concentrada na pessoa do rei. Essa concentração transforma a relação que era absolutamente impessoal e hierarquizada em uma relação direta com o detentor do poder, desenvolvendo-se uma perspectiva institucional de poder. 98 MIRANDA. Jorge. Textos históricos do direito constitucional. Lisboa: Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1980, p. 23. 99 SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 11. - 53 A soberania, que ganha realce tanto frente ao elemento humano quanto ao elemento geográfico do Estado, vai desempenhar papel fundamental na formação do Estado Moderno. A contribuição americana ao processo de formação do Estado constitucional é fértil. José Afonso da Silva 100 lembra-nos que a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (datada de 16 de junho de 1776) foi a primeira Declaração de Direitos Fundamentais existente na América, em sentido moderno. Juntamente com a Declaração de Independência dos Estados Unidos, que data de 4 de julho de 1776, portanto, cronologicamente posterior, forma o arcabouço para o surgimento da Constituição dos Estados Unidos da América, de 17 de setembro de 1787. O movimento iluminista difundido em toda a Europa chegou ao Continente Americano com a mesma ênfase dos postulados formulados pelos seus autores, merecendo de Jefferson, Adams, James Madison, George Mason e outros incontáveis escritos acerca da libertação do homem. A construção do constitucionalismo, portanto, decorreu da necessidade de se encontrar, através de um instrumento alheio à origem divina, um fundamento de legitimação do poder racionalmente construído. Sendo as leis das colônias habitadas normalmente por britânicos e a eles sendo atribuídos, formalmente, o mesmo direito vigente na metrópole, não demoraria para que as exigências da coroa conduzisse a diversas insurreições. 100 Curso de direito constitucional positivo, 28a. ed. Rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 153. - 54 É que a legislação colonial, embora, às vezes, de competência do povo, “[...] o governador real podia, porém, derrogar a legislação proposta por qualquer Colônia, recusando a respectiva sanção [...] ” 101. As sublevações contra a coroa britânica, que submetia a colônia ao pagamento de pesados dízimos sobre a produção da Nova Terra instaura-se a partir da tentativa da Lei da Receita (1764) conhecida como a Lei do Açúcar, da Lei do Selo (1765), das Leis Townshend (1767) e das Leis de Coerção (1774), conhecidas como as Leis Intoleráveis 102, reação ao episódio do “Tea Party”, contra o monopólio, pela Companhia das Índias Orientais, da importação do chá para as colônias. Basta observar que de “[...] 1675 e 1775 foram rejeitadas mais de quinhentas leis aprovadas pelas colônias [...] . Mas em questões econômicas era maior, ainda, a interferência imperial: regulando o comércio, limitando a indústria e proibindo a emissão de moeda” 103. Thomas M. Cooley 104 registra como motivações à violação dos direitos constitucionais do povo americano as seguintes queixas: “1ª) a impo sição de imp osto s sem o con sen timen to dos r epr esen tan tes do povo ; 2ª) a ma nu te nção de exército s em t e mp o de p az par a in timid ar o povo ; 101 COOLEY, Thomas M. Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos, 1ª. ed. Campinhas: Russell, 2002, p.18. 102 DRIVER, Stephanie Schwartz. A declaração de independência dos Estados Unidos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2006, pp. 12/16. 103 CERQUEIRA, Marcelo, A constituição na história, origem e reforma. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1993, p. 37. 104 COOLEY, Thomas M. Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos, 1ª. ed. Campinhas: Russell, 2002, p. 21. - 55 3ª) a r ecu sa do d ir e ito ao júr i co mpo sto d e v izinhos em alguns casos, e o tr anspor te para a Gr ã- Br etanh a de p essoas acusad as d e cr i me s c o me t i d o s n a A mé r ic a, a f i m d e l á sof r er em o r esp ectivo pro cesso ; 4ª) expor a propr iedade do cidadão a buscas e su a pesso a, p apéis e b en s a seqü estro po r ord em j ud icial.” E sentencia 105 que: “ S e o s a m e r ic ano s f az i a m j u s a g o z ar o s me s mo s d ir e i t o s constitu c ionais do s ing leses, é indub itável qu e n este assunto o s seu s d ir e itos for a m lesados; porque o gov erno imp er ial n ão ad mitia qu e os co lono s reclamassem d ireitos con tra o exercício d e seu s poderes.” A Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia surgiu no Continente Americano como forma de afirmar determinados direitos naturais e inatos ao homem, como instrumento de formação do Estado de Direito, pautado nos compromissos inarredáveis de independência como princípio e na liberdade como fundamento. Esta escalada americana no processo evolutivo do Estado de Direito encontra eco, mais tarde, no processo de formação do Estado Legal, como pontifica André Ramos Tavares 106 uma vez vigorar nas colônias antes da independência: 105 Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos. 1ª. ed. Campinhas: Russell, 2002, p. 21. 106 TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 51. - 56 “[...] a sup er ior id ad e d as leis da metrópo le , d e ma n e ir a que as no ções d e sup erio r idade e d e v er d e obed iên c ia j á era m a c e i t as amp lamen te. Em ou tras p a lavras, pode-se afir ma r qu e h av ia u ma cu l tu r a es t ab e le cid a p e la id é ia d e h ie r a r q u iz aç ão. É co mpr een sív e l, po is, qu e por o casião d a ind epend ên cia, em 1776, as ex- co lôn ia s preserv assem a id éia qu e é a essên c ia do f enô me no : as an tig as Car tas do Reino d ever iam ser substitu íd as por u ma Car ta ou Lei Fundame n tal dos novo s estados i n d ep en d en te s, cuj a o b ser v ân c ia e ap l ic a çã o d ar - s e- ia n o s me s mo s termo s a té en tã o ex is ten tes .” Conquanto a monarquia inglesa, à época, já dispusesse do controle parlamentar, os ideais propagados no Continente Americano sofreram significativo avanço, estabelecendo uma forma de poder fundada na legitimação popular, em detrimento do sistema monárquico de que se originou o povo americano, formulação, aliás, adotada posteriormente pela maioria dos Estados de Direito que surgiram ao longo da história. Frente à necessidade do estabelecimento de um governo como instrumento de concretização do bem comum e segurança do povo, a declaração assenta a garantia de destituição do poder de todo aquele que não consiga atingir o ideal de felicidade a que têm direito os governados. O perfil adotado pela Declaração de Virgínia pode ser destacado pela preocupação em objetivar a fundamentação do poder, estabelecendo os primados da democracia do Estado de Direito moderno ou constitucional, tendo o homem por destinatário e principal objetivo do Estado. A separação de poderes, a forma de ascensão, a alternância do poder, bem como a participação popular, são verdades evidentes - 57 declaradas que revelam, sob o ponto de vista da extensão dos destinatários, ser a Declaração de Virgínia o primeiro documento dessa natureza de que se tem notícia no Continente Americano. Com efeito, pode-se atribuir à Declaração da Virgínia essa qualidade, mormente se levarmos em conta a evolução da formação dos direitos fundamentais, cuja expressão é encontrada através de textos esparsos, sem consolidação que permita, antes do acontecimento do Continente Americano, encontrar-se na história a compilação de documentos de tal natureza. Mesmo que a esta constatação nos socorra a história, é de bom tom observar que a peculiaridade americana ainda que sirva de exemplo à história universal, ainda assim haveremos de encontrar, bem antes de 1776, documentos que revelam a preocupação no regimento de relações entre o homem e o Estado. E disso cuidaram as Leis Fundamentais do Maranhão, guardadas as características históricas e as peculiaridades formais adotadas então. Tendo-se como verdadeiro que a Declaração da Virgínia dispõe de credenciamento para ser tratada como manifestação do constitucionalismo na América, haveremos, então, de adotar a concepção oferecida à Constituição que não se limite à elaboração formal apenas, pois, como ela, mesmo que muito mais timidamente, a “Magna Charta Libertatum” também, ainda que num universo menor, preocupou-se em estabelecer limitações ao poder, como forma pioneira de subsistência do próprio Estado de Direito que veio a surgir posteriormente. Destaque-se, contudo, que o postulado da origem do poder, aliado à propriedade como direito essencial aos homens, são elementos de sensíveis diferenças frente a qualquer outro texto dessa natureza escrita até então. A previsão dos postulados da Declaração do Bom Povo de Virgínia e o acentuado e acelerado desgaste entre a colônia e a coroa levaram à Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776. - 58 A Declaração de Independência surge historicamente como instrumento que formaliza e publiciza os postulados firmados pela Declaração de Virgínia, sem que isto vislumbre a mais pálida negativa de importância do texto. Pois bem, as asserções contidas na Declaração de Independência recebem a denominação de verdades que são na realidade princípios, fundados nos postulados forjados na Declaração de Virgínia. Isto, aliás, é o que vai acontecer com a Constituição dos Estados Unidos da América 107, cuja feição se exterioriza pelas idéias de independência, introduzidas em documento que recebe da história destaque para o estudo do Estado constitucional de Direito e de todo o Direito Constitucional. Portanto, enquanto a Declaração de Independência torna assente o desejo de romper, como de fato aconteceu, com a coroa inglesa, tornando eficazes as verdades além do Continente Americano, a Constituição do povo americano estabelece formalmente a instituição de um Estado de Direito, firmado nos princípios contidos na Declaração de Virgínia, mas sob ênfase da soberania indispensável à sua própria subsistência, o que outrora não havia sido expressamente enunciado. Historicamente a evolução do constitucionalismo passou a guardar destaque à Constituição dos Estados Unidos da América como documento pioneiro de autodeterminação de um povo, reservando ao inesgotável debate sobre a origem da constituição a marca indelével de que constituição em sentido formal é obra dos homens americanos, inobstante todos os postulados tenham sido firmados no ideário do iluminismo nascido na Europa. O pioneirismo americano representa um ideal embalado por todo o fundamento do iluminismo europeu, o que vai ser confirmado pela Revolução Francesa, posteriormente. 107 De 17 de setembro de 1787. - 59 O excessivo descentralismo encontrado no período feudal gerou o sentimento nacional que tinha por base a centralização do poder como forma alternativo-substitutiva do regime esfacelado pelas relações novas que surgiram. Bem a propósito Nelson Saldanha 108 as indica como sendo as mais importantes: “ A sp ir a çõ e s b u r g u es a s e o in cre me n to d a v id a u r b an a ; o in í c io d a e cono mia c ap ita lis ta, a Refor ma Pro tes tan te, o Hu ma n ismo e o Renascimen to, a expansão europé ia e as nov as té cn ic as, no s novo s modos de v iver e p ensar ”. Mas o advento da Revolução Francesa, cujo simbolismo a todos encanta, inaugura, na realidade, a fase do que André Ramos Tavares chama de “Estado ‘legalista’”, mercê de um fetiche acentuado sobre a norma oriunda do legislador. O legalismo encerra a idéia de fundamento, origem e fonte do poder na lei em contraposição ao que houvera antes como regime político ora num juízo sobrenatural, ora num racionalismo naturalista. Qualquer que seja a ótica que se prenda o observador, sempre caminhará para identificar a legitimidade do poder como fenômeno que transborda do excesso legislativo, ou, mais propriamente, legalista. Impõe-se, assim, a formulação conceptual do que vem a ser o Estado Constitucional de Direito propriamente. 108 Formação da teoria constitucional, 2a ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: 2000, p. 22. - 60 - 7. ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO: A formulação de uma definição é presença freqüente nas obras jurídicas, conquanto nem sempre guarde precisão taxionômica. Definir encerra limites, e lembra a moldura Kelseniana que serve de alegoria ao sistema orgânico das normas. Por que não se pretende encerrar um debate, senão contribuir para o que existe, elegemos buscar uma conceituação para o que venha a ser um Estado Constitucional de Direito. Assim como se pode perquirir sobre o Estado de Direito como sinônimo de Estado das Leis é lícito, da mesma forma, considerar o Estado Constitucional como o Estado que possui Constituição. Mas a ilação não possui essa singeleza, mercê de poder-se, mesmo durante o Estado Legal, falar em Constituição em sentido material. O advento da Revolução Francesa sinaliza como marco do Estado de Direito (inspirado já em preceitos efetivamente concretizados pela realidade da América da época), conquanto, num primeiro momento mereça ênfase a idéia de advento do Estado Legal: “le loi” não “le roi” detém legitimidade constitutiva. É a transposição do “Estado dos Reis” para o “Estado das Leis”, rompendo-se assim as raízes do Direito derivado do fundamento “teológico-religioso” de conteúdo sobrenatural presente no Estado Absoluto, em que – na expressão do Padre Antonio Vieira - as “vestes que usavam os reis, Deus lhas empresta do seu divino guarda-roupa” 109. 109 Apud PAUPÉRIO, Machado. Teoria geral do estado. Rio de Janeiro, Forense, 1979, p. 48. - 61 Como bem lembrar Nelson Saldanha 110 o Estado moderno: “ [… ] hav ia na sc ido em te r mo s ab solu tis tas : a sup er aç ão da s an tino mias f eudais se deu co m a con cen tr ação do poder e co m o robu stecime n to d a s d inastias. A lu ta po lítica do liberalismo d ir ig iu- se a d e s tru ir o a b so lu tis mo, tan to r e tir ando do re i o pod er p leno, e d istr ibu indo-o atr avés do s pod er es ‘d iv id ido s’, c o mo r e staur an d o so b n o v as f o r ma s a v e lha i d é i a d e q u e a c o mun id ade r epr es en ta a v erdad e ir a fon te do pod er. ” A forma orgânica do Estado de Direito passou a derivar de uma configuração soberana diversa, conforme destaca André Ramos Tavares: “A soberan ia d e ixou d e ser atr ibu íd a ao mo nar ca, id en tif icado c o m o an tigo r eg ime d as mon arqu ias absolu tas (. ..) p ara p er ten cer em d ef in itivo ao povo .” 111 Essa identificação de soberania popular através das leis não reúne, contudo, indicativos para configurar o Estado Constitucional de Direito, na medida em que a ênfase atribuída ao Poder Legislativo fez florescer a idéia de identidade semântica entre Direito e Lei, concentrada sobremodo na “visão privatística do Direito, característica da época, considerando-o 110 111 como conjunto normativo pronto, já produzido Formação da teoria constitucional, 2a ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 23. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 29. - 62 (descurando da análise do momento ou processo de produção dessas normas)” 112 Com a ordem legal instituída em fortes bases individualistas contidas no ideal burguês do “laissez faire”, ganha projeção a lei como fonte legítima do Direito (na realidade, como sinônimo) como única forma possível e legítima de limitar os direitos naturais. Essa Tavares 113 circunstância explica, segundo André Ramos , o porquê as “constituições não têm feito referência ao tema das fontes” do Direito. E é, precisamente, nas Constituições onde se deve pesquisar a fonte como determinante do conceito de Estado Constitucional de Direito que buscamos. A supremacia legal, ainda segundo André Ramos Tavares 114 encontra sua fundamentação em bases triplas, a saber: “(i) A aspiração democrática, na lei se via realizada. (ii) A realização iluminista do ideal da razão. (iii) A certeza e a segurança se reconheciam no instrumento ‘lei”. Esse exacerbado “legalismo” desemboca, historicamente, no Estado Social, a partir de quando os direitos sociais começam a ser constitucionalizados com a Constituição Mexicana de 1917. É de se observar, contudo, que esse fenômeno de constitucionalização de direitos isoladamente não teve o condão de transmutar essa noção conceitual de Estado de Direito para Estado Constitucional. Ao contrário. Isso se processa no tempo 115. Falar-se em Estado Constitucional requer (ainda que de forma sucinta) rememorar o tópico acerca das fontes do Direito. 112 TAVARES, André Ramos Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 31. TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005 p. 32. 114 TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 36. 115 Veja-se TAVARES, Adré Ramos, Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 54. 113 - 63 O que outrora tinha como origem, fundamento e validade na LEI, passa a ganhar realce na CONSTITUIÇÃO enquanto “fonte-origemprodução” do Direito. De certo que esta asserção exige que sejam estabelecidas bases formais que permitam essa mudança radical em torno das normas jurídicas. É que advém a percepção que não mais se há de buscar no plano legal ou infraconstitucional a legitimidade do ordenamento, senão no plano constitucional, onde residem não apenas a espécie normativa individual (a lei) mas a norma contemplando a idéia de fundamento, princípio, lei e regra. Esse órgão, contudo, passa a imprimir, por conseqüência lógica inarredável, que seja re-elaborada a idéia de constituição formal, porquanto os instrumentos de controle de sanidade das normas se operam através de procedimentos específicos na ordem jurídica. Recolhe-se de André Ramos Tavares 116 como elementos fundamentais para o surgimento do Estado Constitucional o poder constituinte e a noção de supremacia. O primeiro, recebe ratificação de Gustavo Zagrebelsky 117 como: “Cen tr al en la con c epción r evo lucionar ia de la con s titu c ión c o mo vo lun tad exp re ss ad a e m um te x to que r ig e sobr e la h isto r ia con stitu c ion a l es el poder con s tituyn te, u ma d e las ma yo res nov edad es po lítico-constitu c ion a les de la época mo d ern a. ” 116 Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 50. Historia y constitución. Madrid: Editorial Trotta S. A., 2005, p. 36. Na nota 10 da sua obra o autor reporta-se a A. Negri, cuja obra é relacionada na bibliografia. 117 - 64 É, portanto, a partir de então que se pode falar m Estado Constitucional de Direito numa perspectiva científica propriamente, uma vez reunidos os elementos que consolidam uma nova dimensão de Estado. A noção de norma como fenômeno decorrente do parlamento (com poderes legislativos excessivos) ganha significação na teoria do poder constituinte, em que a idéia de poder legislativo encontra limites no núcleo do pacto formal que vai se constituir no que a doutrina ora denomina de cláusulas pétreas, ora, cláusulas irrevisíveis, ora núcleo irreformável, diríamos nós, núcleo fundante. Esse limite residente no núcleo fundante homenageia a idéia de supremacia constitucional, na medida em que é na Constituição, nas suas normas, princípios e valores onde haveremos de encontrar a fonte do Direito, muito além da seara legal estreita de outrora. Comporta, ademais, observar, que poder constituinte e supremacia como elementos exteriores de qualificação do Estado Constitucional passam a exigir para sua preservação uma nova instância de apreciação, interpretação e guarda da Constituição, o que inaugura a idéia de uma Justiça Constitucional. Por derradeiro a noção de Estado Constitucional como conceito que serve de objetivo ao presente trabalho, compõe-se como o Estado que se organiza e estrutura com base num documento de natureza jurídico-política (forma e essência) denominado Constituição, oriundo do poder constituinte soberano e atemporal, em torno do qual gravitam todas as normas como elementos de Direito. - 65 - 8. CONSTITUIÇÃO FORMAL, MATERIAL E SUBSTANCIAL: A palavra “constituição” é polissêmica. Pode apresentar as mais diversificadas significações. É um “caleidoscópio”, para usar a feliz figuração de Fábio Nadal 118. Pode significar desde a formação de um determinado objeto (como sinonímia de parte integrativa) até mesmo o sentido técnicojurídico, proposto através do desenvolvimento do estudo constitucional, quer sob a análise do Direito Constitucional, quer sob o título de Ciência Política. Sua essência, entretanto, revela sempre a idéia de composição, estrutura, formação, elaboração, enfim, terá presente a noção de edificação. Essa é uma perspectiva ampliada do termo, importando na possibilidade de construção. Este é o propósito que se apresenta neste trabalho. Há quem negue a possibilidade de se falar em Constituição antes da formação do constitucionalismo moderno, uma vez que o surgimento de uma Constituição só vai efetivamente ocorrer com o aparecimento da Constituição dos Estados Unidos da América. Contudo, “[...] todas as sociedades politicamente organizadas, quaisquer que sejam as suas estruturas sociais, possuem certas formas de ordenação susceptíveis de serem designadas por constituição.” 119. 118 A constituição como mito: o mito como discurso legitimador da constituição. São Paulo: Editora Método, 2006, p.45, 119 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 57. - 66 Equacionar uma indagação dessa natureza exige a reflexão em torno de dois incompatíveis, mas planos: o porque fático e permitem jurídico. refletir Não que com sejam precisão o conhecimento com método e disciplina. O primeiro deles permite considerar a Constituição como uma realidade orgânica cuja presença independe de um dado momento histórico, sendo, aqui, úteis as idéias de constituição natural e constituição institucional como previamente mencionado. Constituição seria, então, um dado fático, cujo rótulo é fruto da genialidade racional, estando presente com essas características de organizar a sociedade em todos os momentos da história como elemento fundamental. Sua dimensão política ganha consistência orgânica na medida em que passa pela necessidade de ordenar uma fatia mais complexa da sociedade situada na dimensão política. Sua existência é configurada como elemento “[...] imanente a qualquer sociedade [...]”, como reconhece Bobbio 120 que vislumbra a necessidade de distinção entre o “[...] juízo científico sobre as características próprias de cada Constituição, tanto sob o aspecto formal como sob o aspecto material, do juízo ideológico acerca do caráter constitucional ou não constitucional de um regime.” 121. O plano jurídico, por seu turno, impõe uma dimensão mais formal, conquanto se possa considerar que Constituição não se expresse apenas por essa perspectiva. Mas o informal, o costumeiro, não significa necessariamente o não-solene. Há um elemento simbólico aí a adornar a idéia de Constituição o qual impõe mais do que o plano da existência para sua 120 121 Dicionário de política. Editora Universidade de Brasília: Brasília, 1997, p. 247. Dicionário de política. Editora Universidade de Brasília: Brasília, 1997, p. 247.. - 67 apreensão. Alcançá-lo pode se dar tanto pela sua existência exteriorizada por elementos formais contidos em textos como, também, através de manifestações reiteradas e consolidadas pelo tempo, pela experiência histórica. De modo que negar a presença de Constituição (sobretudo em face da sua dimensão conceptual) em período histórico que antecede o constitucionalismo moderno é expor a riscos a idéia acerca do objeto central de reflexão deste trabalho. É que seu núcleo contém reflexões sobre contribuições fornecidas ao constitucionalismo por documentos que lhe foram anteriores e cuja composição contém disposições que transitam por textos constitucionais contemporâneos. Bem a propósito, registra André Ramos Tavares 122 com supedâneo em John Gilissen que o vocábulo “constituição”: “[...] fo i u tilizado desde a an tigu idade, ma s n ão tinha o sen tido pr eciso qu e adqu ir iu no s f in a is do séc. XVII I. No Baixo I mp ér io Roma n o, constitu tio era o ter mo u sual par a d esign ar qu a lquer le i f e ita p e lo imp e r ador ; n a Idad e Mé d ia e n a épo ca mo d ern a, ma n té m o s en tido gera l d e le i, ma s é u tiliz ado concor ren temen te co m ou tro s ter m o s, mu i t a s v e z e s ma i s u s u a i s : o rdenan ces ( orden a çõe s) , es ta tutos , d e cre to s, pr ag má tic a s s an çõ e s (p ragma ticae san c tiones)”. [. .. ] “ O v o c ábu lo ‘ co n s t i tu iç ão ’ d e s ig n a , g en er i c ame n t e , a e sp ec i a l for ma de ser de u m corpo, de u m obj eto, d e um ser v ivo. É sua o r g an iz a ção. S u a f o r ma ç ão , en f im, s u a ‘ co n st i tu i ç ão ’ [ . . . ] . V er if ica- s e qu e, nu m pr ime iro mome n to, a d is tin ç ão en tre as Constitu ições e os d e ma is cód igos resid e na ma tér ia, esp ecíf ica, qu e as pr imeiras tr azem. Já nu m segundo, d if er e m d o s cod ex , porqu an to passam a con ter u m B i ll o f R ig h t s (d e 122 Fronteiras da hermenêutica constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 35, nota de roda-pé 5. - 68 tr ad iç ão e min en te me n te ingle sa) , co m u ma sé rie d e d ir e ito s e g aran tia s. ” 123 No estudo em exame Constituição é tratada como o conjunto de normas, escritas ou não, capazes de regular a sociedade, declarando sua finalidade através de preceitos fundamentais, dos quais derivarão todos os enunciados dela emanados, seja instituindo os Poderes do Estado, seja prevendo a atribuição de cada um dos seus órgãos, seja, finalmente, estabelecendo e garantindo direitos. Mas esta concepção não encerra uma idéia meramente formal de Constituição, pois a Norma Fundamental contém muito mais do que regras. Se por um lado a proposição contém os elementos mínimos reclamados pela Declaração dos Direitos do Cidadão (artigo 16) e como tais frutos do liberalismo mais exacerbado, por outro reserva espaço à ampliação de seu espectro de abrangência. É que como norma possui o objetivo de instituir e regular um Estado, uma sociedade (“lato sensu”), mas também uma comunidade, aí presente os elementos de convergência que fazem com que não se a confunda com mero aglomerado. Por isso o estudo não ignora a possibilidade de uma norma despida dos moldes do constitucionalismo liberal possuir aptidão orgânica, dimensão jurídica e vocação constitucional, bastando a fixação do entendimento que se passe a ter em torno do vocábulo Constituição, sendo útil a síntese de Bobbio 124: 123 TAVARES, André Ramos, Fronteiras da hermenêutica constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 36. 124 Dicionário de política. Editora Universidade de Brasília: Brasília, 1997, p. 247. - 69 “Para o jur ista, todo s os Estados – por tanto, tamb ém os abso lu tista s do sécu lo XVII e os to talitário s do sécu lo XX – t ê m u ma C o n st i tu i ç ão , u ma v e z q u e ex i s t e se mp r e, t á c it a o u expressa, uma no r ma básica qu e conf er e o pod er soberano d e imp é r io ; que se imponh am d epo is limites a esta soberan ia ou qu e s eu exe rc íc io sej a r ep ar tido por d iv er sos órg ãos pou co i mp or t a : ub i soc ie ta s, ib ju s. ” Vale enfatizar que o vocábulo “norma” é credor de generalidade, não se confundindo com regra ou com lei, conquanto as contenha como espécies. Dispõe, assim, de atributo direcionador, condutor, regulador, disciplinador. Norma é embrião de conduta, expressa em hipótese abstrata, concretizada pela conjugação de fatores que contam com a hermenêutica para dar-lhe dimensão específica, real, concreta. Com efeito, defende-se, aqui, a idéia de que o núcleo colonial instituído pelo domínio francês não pode ser circunscrito à compreensão embrionária e limitada de aglomerado, posto esse conceito não conseguir abranger a idéia de convergência, de sintonia, de valores e propósitos. O modelo social e político peculiar à Ilha do Maranhão evidencia bem isto. A norma que se examina demonstra que o propósito da colonização transcende um objetivo meramente comercial, uma vez contida em seu texto a expressa disposição de instituição, organização e manutenção de um Estado, a França Equinocial. Disso dá provas a petição apresentada pelos franceses ao Sr. de Rasilly seis dias após a decretação das Leis Fundamentais da Ilha do Maranhão. Nela foi pleiteado suporte para a manutenção da colônia no - 70 Brasil e as terras sob o domínio de Sua Majestade 125. Objetivos políticos e comerciais, portanto, eram conjugados. A concepção formulada em bases institucionais reserva papel importante à proposição feita com o presente trabalho. Pretende transcender os limites normalmente impostos à concepção americana de Constituição, cuja idealização é sempre o documento escrito. Portanto, o aspecto formal não encerra a idéia aqui elaborada. Ao contrário, é forçoso observar que ter em conta a análise da Constituição sob uma perspectiva material não implica em conceber o vocábulo (material) como singelo antônimo do vocábulo formal. Há uma relação, sim, substancial 126 envolvida nisso, pois o que se apresenta como fundamental é a fixação do elemento temporal para a definição do que se chama Constituição: Nasce só com o constitucionalismo do século XVIII ou sempre existiu? De fato, José Afonso da Silva 127 assevera que: “A constituição do Esta do, considerad a su a le i fund amen tal, s er ia, en tão, a o rgan izaç ão dos seus e le me n to s e ss en c ia is : u m s i s t e ma d e n o r ma s j u r íd i ca s, es cr i t as o u c o s tu me i r as, q u e r egu la a forma d o Estado, a for ma d e seu governo, o modo d e a qu is ição e o exer c íc io do pod er, o es tabe lec ime n to de s eu s órg ãos e os limite s d e s ua aç ão. Em s ín te se , a c ons titu ição é o conjun to d e no r mas qu e o rgan iza os elemen tos constitu tivos do Estado.” 125 D’ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 130. 126 O adjetivo é utilizado com a sinonímia de essencial, fundamental, básico, conforme Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, 3a. ed. Curitiba: Ed. Positivo, 2004, p. 1887. 127 Curso de Direito Constitucional Positivo, 28ª ed. rev. e ampl. São Paulo : Malheiros, 2207, pp 37/38. - 71 De certo que se poderá objetar que a proposição do insigne professor exige a reunião de elementos mínimos para a configuração de um documento com o perfil de uma Constituição. Contudo, não se pode, com precisão, modernidade pretender sejam que parâmetros todos os elementos exclusivos para a conceptuais da sinalização da existência constitucional, afinal, a presença desses elementos reclamados pelo constitucionalismo moderno são apenas decorrências históricas de direitos cuja construção nasceu com o pré-constitucionalismo. A cada momento uma contribuição, construindo-se, assim, a formação do constitucionalismo através de um processo evolutivo constante. A concepção de Constituição oferecida por José Afonso da Silva traduz com justeza dois pontos fundamentais, que servem de epígrafe ao item supra. Absorve, num só conceito, os elementos que são pertinentes à concepção de Constituição, dentro dos modernos padrões do constitucionalismo: o material e o formal. De Paulo Bonavides 128 Constituição mereceu distinção metodológica dos conceitos. Para ele: “ Do pon to d e v is ta ma te r ia l, a Con stitu iç ão é o conjun to d e nor ma s per tin en te s à org an ização do pod er, à d istr ibu iç ão d a co mp etên cia, ao ex er cício da au tor id ade, à for ma d e governo, a os d ir e itos da pe sso a hu ma n a, tan to ind iv idu a is qu an to sociais. Tudo o quan to for , enf im, con teúdo b ásico r ef erente à co mposição e ao fun c ion a me n to da ord e m política exprime o a spe c to ma te r ia l d a Con stitu iç ão” . Do ponto de vista formal, reduz o entendimento às normas que são inseridas na Constituição, mas que materialmente não dispõem 128 Curso de direito constitucional, 12ª ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 63. - 72 desse “status”, portanto, sendo normas constitucionais apenas por se encontrarem presentes no texto da Constituição como instrumentos meramente formais, cuja concepção legislativa é diferida do processo legislativo reservado às normas materialmente constitucionais. Para Celso Ribeiro Bastos 129 a Constituição ganha mais uma dimensão: Constituição em sentido a substancial. Se por um lado a Constituição pode se configurar como força de expressão do ser, como conjunto de manifestações cultural de um determinado momento histórico, por outro é expressão legislativa diferida decorrente de um processo de elaboração específico ou especial. Dele a noção de Constituição material é a de que: “Nu m segundo sign if icado, f a la -se d e Constitu ição em sen tido ma ter ial po líticas, de um Estado. econô micas, Tr ata- se id eo lóg icas do conjun to etc. qu e de for ças confo rma a r ealid ad e social d e u m d e ter min ado Estado, conf igur ando a su a p ar ticu lar ma n e ira de s e r. E mbor a ma n tenha r e la çõ es c o m o o r d en a me n to j u r íd i co a e l a ap l icá v e l , e s t a r e a l id ade com e l e n ão se confund e. Ela é do un iverso do s er , e não do d ev e r s er , do qu al o d ir e ito f a z parte.” Em sendo assim, a identificação de uma Constituição estará presente em todos os momentos da história, disso não se excluindo o período do pré-constitucionalismo. 129 Curso de direito constitucional, 11ª edição, reformulada de acordo com a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 40. - 73 Corroborando este entendimento Jorge Miranda 130 sustenta a existência de uma Constituição institucional como antecedente do constitucionalismo, com ênfase na idéia de que: “ E m q ua lque r Es tado, e m q u a lqu er épo ca e lug ar ( rep e timo s ), encon tr a- se semp re um r esp e i t an te s à est r u tu r a, sua conjun to de à sua r egr as fund amen ta is, o r g an iz a ç ão e à su a a c t iv id ade – es cr i t as o u n ão e s cr i t as , e m ma i o r o u me n o r nú me ro, ma is ou me nos simp les ou co mp lexas. Encon tra-se s e mp re u ma Cons titu iç ão co mo e xpr es são jur íd ica do en lac e en tre o pod er e co mun id ade política ou en tr e suj e ito s e d est in a tá r ios d o p o d e r . Todo o Estado carece de u ma Constitu ição co mo enquadr amen to d e sua ex is tência, b ase e sinal d a sua un id ade, esteio d e le g itimidad e e d e leg a lid ade. Co mo surj a e o qu e e s t a tua , q u al o apu r a me n to d o s seu s p r e ce i to s o u as d ir ecç õ e s p ara qu e apon te m e x trao r d inari a me n t e ; s olu çõ es adop tada s, – eis m a s, a o qu e, s ej a m co mo quais n e ce ss ida de se forem de sab e, as ta is var ia g r and es r egra s é in con trove rs a. ” De certo que isto demanda delimitar a extensão da categoria Constituição material. Para André Ramos Tavares 131 Constituição material ganha dimensão construtiva a partir da concretização dos seus enunciados. Cuida-se de um processo de construção que não se confunde com a interpretação (embora com ela não seja incompatível) do texto 130 131 Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 323. Fronteiras da hermenêutica constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, pp. 58/63. - 74 normativo simplesmente, mas que busca oferecer como resultado a construção de uma norma que dá significado ao texto constitucional. Nessa perspectiva, a concretização dá voz à linguagem, construindo o que se pode denominar de Constituição viva, figuração que possibilita idealizar uma norma efetivamente ajustada aos reclamos concretos de uma dada sociedade. A Constituição estática, aquela que é produto do processo legislativo constituinte necessita de substância que lhe dê utilidade concreta, portanto, pragmática, apta a ter eficácia e tornar-se dinâmica, bastante para dirimir os conflitos que buscam seu adorno. É desse processo de concretização, dessa construção racional que se instiga no homem a idéia de sentimento constitucional de que falam, com autoridade, Karl Loewenstein 132 e Pablo Lucas Verdú 133, e de que já se tratou 134 sob enfoque jurídico com mote literário, como estádio necessário para a formulação da idéia de compromisso com a Constituição. É que a Constituição material transcende os limites formais que enclausuram as normas na composição de um documento e que recebem do mesmo Celso Ribeiro Bastos 135 a noção de Constituição em sentido formal de: “[...] u m conjun to de nor ma s leg islativas qu e se d istinguem d a s n ão-con s titu c ionais em r azão de serem produ zidas por u m pro ce sso leg is la tivo ma is d if icu lto so, v a le d iz er , u m proc e sso formativo ma is árduo e ma is so len e.” 132 Teoría de la constitución. Ba rcelon a: Ed itor ial Ar ie l S. A., 1986 , p. 199. O sentimento constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2004, notadamente capítulos II e III. 134 SANTANA, José Cláudio Pavão. O sentimento constitucional, 2º Congresso Brasileiro de Direito Constitucional. São Luís, outubro 2007. 135 Curso de direito constitucional, 11ª edição, reformulada de acordo com a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 43. 133 - 75 - Comporta observar que a concepção de constituição material e formal só terá sentido quando estivermos frente ao exame de uma Constituição escrita, pois no sistema consuetudinário - bem adverte Aljandro Silva Bascuñan 136 - “unicamente a interpretação racional determina quais as regras do sistema jurídico que têm caráter constitucional.”. Ocorre que a função de ordenar a sociedade não será necessariamente tarefa exclusiva da Constituição escrita, na medida em que qualquer norma tem como propósito último estabelecer condutas. O que, efetivamente, variará, é a complexidade da sociedade, bem como a cultura de cada povo. Bem a propósito é a advertência de Afonso Arinos de Melo Franco 137 para quem é impositivo: “ [ . . . ] r ecor d a r a d if er en ç a q u e ex i st e en tr e c er t o s d o cu me n to s l e g is l a t iv o s com f o r ça c o n s t i tu ci o n a l e as C o n s t i tu iç õ e s propr ia me n te d itas, co mpr eend id a s, n es tas , as su as e me nd as . An tes d e tudo, convém r ecord ar qu e a exp ressão ‘do cu men tos leg islativo’ nem sempr e ind ica u m tex to leg a l produ zido nor ma lme n te ma tér ia de p e lo Pod er D ir e ito L eg is la tivo. Con s titucional, Fr eqü en te me n te, esses em do cume n tos leg islativos são ed itados po r u m p od er de f a to. En tr e eles estão qu ase semp r e o s atos do poder d e f a to, qu e convoca u ma A ssemb léia Constitu in te. N ão h á neg ar qu e ta is ato s são leis e leis d e n a tur eza con s titu cional, no seu ma is lídimo sen tido. 136 Apud BONAVIDES, Paulo, Curso de direito constitucional, 12ª ed. rev. e ampl., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 65. 137 Direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1981, pp. 106/107. - 76 Ou tro s do cu me n tos leg is la tivo s con stitu c ion ais são exped idos p e lo Poder L eg is la tivo s, a té me s mo pe lo Pod er Con s titu in te, ma s n ão ficam enquadrado s na Constitu ição. Um grande e x e mp l o d es s e g ên er o é a D ec l ar aç ão d e D ir ei t o s d o H o me m e do Cidad ão, ado tada em 1 789 p e la A ssemb léia Nacion al fr an ce sa , e qu e não se in ser iu no tex to d a Cons titu ição. No e n tan to , a D e c la r a ç ão é um dos d o cu me n to s l eg is la t i v o s constitu c ionais ma is imp ortan tes d a h istória do d ireito, p e la sua d ecisiva in f luên c ia n a constru ção , em todo o mu ndo d e mo crático, da teor ia do s d ir e itos púb licos indiv idu ais.” Infere-se destas idéias que o conceito material de Constituição, se tomado dentro da perspectiva genérica aqui proposta sem as limitações decorrentes do constitucionalismo moderno jungido à idéia liberal de Constituição (tenha-se em mente o artigo 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão) permite sustentar que quaisquer que sejam os documentos que reúnam as proposições orgânicas da comunidade e tenham em mente limitar o exercício do poder político terão valor constitucional fundamental. Tem-se o vocábulo “material” em dimensão ampla, examinando sua extensão com inspiração nas concepções moldadas por variações históricas concebidas por Jorge Miranda 138. Ao estabelecer como ponto de partida que (em sentido material) “[...] a Constituição consiste no estatuto jurídico do Estado [...] ”, a ela faz corresponder um “[...] um poder constituinte material como poder do Estado de se dotar de tal estatuto” 139. A proposição, então, é de que a Constituição material poder ser observada sob três concepções, às quais se denomina aqui de dimensões: 138 139 Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 321. MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.321. - 77 - “ A a cep ç ão a mp l a en con tr a- s e p r es en t e e m q u a l q u er Es t ad o ; a restrita lig a-se à Constitu ição defin id a em termo s lib erais, tal c o mo surg e n a époc a mod erna ; o sen tido mé d io é o r esu ltado d a evo lução o corr id a no sécu lo XX, sep ar ando-se o con ceito d e q u a lq u er d ir e c ç ão n o r ma t i v a p r é - sug er id a . ” 140 Na primeira dimensão ter-se-ia a Constituição material ampla (presente em todo Estado). Entende-se que o termo guarda proximidade com a idéia orgânica envolvendo a situação de instituição e organização de uma comunidade através de uma norma com “status” superior em relação às demais. Essa norma, na leitura atual de um fenômeno tão antigo quanto a primeira tentativa de organizar uma comunidade, representa o que a modernidade assenta com ênfase jurídica como sendo a Constituição. Com isto enfatiza-se que há valor constitucional nos documentos que precedem aqueles produzidos pelos americanos, ingleses e franceses, qualidade que não é dada pelo constitucionalismo moderno, mas por um período que o antecede. Assim, é preciso realçar que embora o constitucionalismo moderno crie critérios peculiares para a definição de uma Constituição, possibilita examinar, com seus elementos conceptuais, a produção normativa do passado, para avaliar seu valor constitucional. Não se tome a palavra norma em sentido restrito, pois sua acepção é adotada aqui como expressão de manifestação, qualquer que seja e que tenha por objetivo estabelecer ordem, no sentido de instituir comando. 140 MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.321. - 78 Assim sendo, a mais rudimentar das sociedades, excluindose, evidentemente, o estádio da força bruta, terá uma manifestação constitutiva, seja através do costume, seja através de normas escritas, seja, enfim, através de princípios que venham a ser adotados. Por isso é de todo pertinente a dimensão substancial de Constituição trazida por Celso Ribeiro Bastos 141 como: “[...] u m conjun to d e regr as ou pr incíp ios qu e tê m p or obj eto a estru tur ação do Estado, a org anização de seus órg ãos supremo s e a d ef in içã o d e su a s c o mp e tên c ia s. V ê- se , e m c o n s eq ü ê n c i a, qu e, e m s e n tido pur ame n te sub sta nc ia l, Con stitu iç ão é u m co mp lexo de nor ma s jur íd icas fund amen ta is, escr itas ou não , c ap a z d e tr aç ar linh as me s tra s d e u m d ado orden a me n to jur íd ico. Con stitu iç ão, n es ta ac epç ão , é d ef in id a a p ar tir do obj e to d e su as nor ma s , v a le d ize r, a p ar tir do a s sun to trata do por su as dispo siçõ es nor ma tiv as.” Sob este aspecto, ressaltaria como indagação inarredável saber quem determinaria o elemento vinculante, capaz de submeter as pessoas à obediência, independentemente do caráter voluntário. E isto é toda a luta do constitucionalismo moderno contra o absolutismo monárquico. Ora, de certo que a idéia de Constituição assume feições singulares no denominado Estado Constitucional. Contudo, o período do constitucionalismo apenas pretende encontrar na formalização de preceitos, notadamente daqueles dirigidos ao homem, instrumento de consolidação que cessasse a dispersão de textos esparsos, buscando derrogar a fundamentação teológica do poder, fruto, agora, do racionalismo iluminista. 141 Curso de direito constitucional. 11ª edição, reformulada de acordo com a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 40. - 79 Esse mérito, é verdade, é obra da Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, que reúne preceitos já sob uma forma muito mais próxima da realidade constitucional do século XIX, e cronologicamente anterior à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1798). Isto, todavia, não encerra a idéia inaugural de Constituição como produto de uma América do Norte vanguardista dos ideais que consolidaram o Estado de Direito, pois suas declarações, como adverte MirkineGuetzévich 142, “[...] não eram senão o reflexo do pensamento político europeu e internacional do século XVIII - dessa corrente da filosofia humanitária cujo objetivo era a libertação do homem esmagado pelas regras caducas do absolutismo e do regime feudal.”. Ora, já se disse alhures que as Cartas Coloniais representavam a prática difundida no Século XVII de normas com fundamento no sistema eclesial de direitos. Afirmou-se, também, que a Carta da Virgínia (1606) é o documento mais remoto de manifestação constitucional na América do Norte, conquanto sua importância seja raramente destacada. Depois dela, só mesmo o “Pacto de Mayflower”, de 11 de novembro de 1620. Em verdade, o que exsurge como pioneiro na América é a forma de declaração, cujo objetivo era instituir uma ordem fundada nos valores e princípios estabelecidos pelos revolucionários da Europa. Portanto, resulta evidente que Constituição em sentido formal é obra do Continente Americano, que serviu de espelho aos Estados de Direito que foram instituídos posteriormente, como a própria França. As concepções formal, material e substancial, dão suporte a que se possa identificar a importância das Leis Fundamentais do Maranhão para o estudo do Direito Constitucional no Continente Americano. 142 Apud SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 2006, 27ª. ed. rev. e ampl., p. 157. - 80 Sob o aspecto formal as Leis Fundamentais do Maranhão é um documento único, de modo escrito, obediente aos preceitos estruturais da espécie normativa, vale dizer, atende às características que identificam as Leis Fundamentais existentes na Idade Média, que mais tarde foram resgatadas pelo sistema real no século XVII. Sua estrutura formal é disposta sob a forma de cláusulas com disposições diretas que tratam dos mais diversos temas que serão adiante examinados 143. De modo idêntico os critérios que dão à norma examinada o “status” de norma de densidade constitucional 144. Suas comporta adiantar disposições que a serão norma topicamente objeto analisadas, central deste mas estudo é manifestação constitucional cronologicamente anterior ao Pacto do “Mayflower” que data de 1620. Em face da Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 1776, do mesmo modo é manifestação constitucional anterior, o que não lhe dá, só por isso, “status” de Constituição sob o prisma da concepção moderna. Vista sob a perspectiva material as Leis Fundamentais do Maranhão aproximam-se de uma Constituição, desde que se pondere o entendimento acerca do conteúdo semântico do vocábulo “material”. Com efeito, não é desiderato deste estudo, enclausurar a idéia do vocábulo nas searas jurídica e política, exclusivamente, daí por que há um forte laço histórico, sociológico e semântico que serve de referencial para a idéia. Para tanto importa invocar, também, para a formulação da idéia os entendimentos que transitam entre a Constituição como fenômeno natural e como elemento institucional, objeto de análise. 143 A decomposição da estrutura formal das Leis Fundamentais do Maranhão é tratada no item 13 e seus subitens, aos quais se remete o leitor. 144 Veja-se o item 14. - 81 Material é referente à matéria, em oposição à forma. Logo, pela via formal pode se expressar materialmente uma Constituição, sem que com aquela possua uma relação indissociável. Atente-se para os tipos de regras que estão formalmente estampados na Constituição sem que guardem qualquer conformidade com conteúdos definidos politicamente como decisões fundamentais! São regras formalmente constitucionais, embora não possuam a essência material moldada pelos critérios do liberalismo político. Nesse sentido, embora escritas, não possuem densidade material para alçar o “status” de normas materiais, conquanto desfrutem de constitucionalidade. Atente-se, agora, para aquelas normas (sejam princípios ou postulados) que embora não estejam formalmente estampados na Constituição (não são regras objetivas) traduzem, ainda assim, a constatação de decisão política fundamental, seja por inferência lógica, semântica, gramatical ou, genericamente, hermenêutica. Material é elemento que permeia o conteúdo. Não um determinado conteúdo exclusivo, como se material explicasse apenas um certo (= único) dado do conhecimento. Matéria é composição, portanto, transcende a idéia jurídica e política em torno da Constituição enquanto elemento plurissignificativo. Por isso a necessidade da ponderação uma vez que, não sendo assim, é óbvio que não se pode extrair dessa norma (as Leis Fundamentais do Maranhão) os moldes forjados pelo movimento liberal e que se objetivaram com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (artigo 16). No documento francês há uma conjugação material e formal que reduz o assunto aos âmbitos jurídico – a expressão formal – e político – o conteúdo material – expressos. Nesse sentido, construiu-se um paradigma no constitucionalismo moderno que estabeleceu como que - 82 um “gabarito” para identificação do Estado de Direito, ou Estado Constitucional. Cumpridas as etapas, preenchidos os requisitos, o Estado possuiria Constituição e, portanto, seria um Estado de Direito. Por óbvio, não tratam as Leis Fundamentais do Maranhão, de separação dos poderes, de forma eletiva do organismo colonial, dada à estrutura de poder concentrada na pessoa do rei, como era próprio do sistema político existente, embora existam previsões de preservação dos direitos dos nativos, além de todas as afirmações que tratam do desejo mútuo de constituição de um Estado. Mas há que se ter em conta, ainda, a concepção da “Constituição natural” de que nos fala Paulo Ferreira da Cunha 145 que possui proximidade (oxalá sinonímia) com Leis Fundamentais. Com efeito, tendo-se em conta a forma adotada pelas Leis Fundamentais, sem um núcleo de convergência principiológica, mas com um rol de enunciados que depois passou a integrar os textos constitucionais modernos e contemporâneos, a idéia de Constituição natural torna visível ainda mais o valor constitucional das Leis Fundamentais. Mas se não se encontra um núcleo formal de princípios, como as declarações de direitos modernas, há uma derivação de enunciados firmada em fundamos constantes das cláusulas que servem de introdução aos dispositivos que estabelecem regras orgânicas, ou ordinárias, como são denominadas aquelas que possuem expressão dirigida ao cotidiano. A relação de poder composta pela via formal do Direito – as Leis Fundamentais – ao instituir o Estado da França Equinocial firmou uma série de preceitos com força regencial de regras cogentes, passando 145 Raízes da república – introdução histórica ao direito constitucional. Coimbra: Edições Almedina S. A., 2006, pp. 16/17. - 83 a disciplinar formalmente o que outrora apenas o costume estabelecia. Há conotação regencial dirigida às relações comuns, como há desiderato instituinte, ou institucional, dirigido ao Estado da França Equinocial. Registre-se que as normas são resultantes de ampla peregrinação nas aldeias, como compromisso assumido entre os líderes dos nativos e os franceses, como já consignado anteriormente 146. Alguns dos dispositivos – adiante examinados -, tais como o sossego noturno, a propriedade privada, a integridade física e o sistema de penas são concebidos como direitos, na medida em que impõem aos franceses restrição à liberdade na convivência com os nativos. Cada regra que estabeleça limitação à liberdade, dada à natureza ralacional do Direito, consigna como conseqüência um direito a outrem, preservando, assim, a integridade de cada um, seja física, pessoal ou patrimonial. Com o advento do conceito moderno de Constituição a esse rol de previsões é dada a denominação de direitos e garantias fundamentais, a que chamamos de caderno de direitos. De certo que o conceito de garantias, aqui, não se coaduna com a idéia de instrumentos processuais hoje existentes, embora o direito de petição já existisse à época como via adequada às postulações dos colonos e colonizadores. Já sob a perspectiva substancial, as idéias de organização contidas num conjunto de normas, regras e princípios jurídicos fundamentais, cujo traço característico é fomentar a construção de uma sociedade politicamente organizada, as Leis Fundamentais do Maranhão desfrutam de “status” constitucional. 146 Veja-se o item “O EMPREENDIMENTO”. - 84 A particularidade de terem sido escritas no Continente Americano em 1º de novembro de 1612 as torna a primeira manifestação constitucional de que se tem notícia, dentro do entendimento de que as normas que a precederam migraram para o continente como produto acabado da corte. Esta singularidade a põe como monumento normativo pioneiro cuja particularidade era instituir uma sociedade politicamente organizada, com colonizadores a como convergência já foi de vontade demonstrado, com dos a nativos e característica dos de organizar uma colônia com vocação prioritariamente política, em reação à atuação da Igreja frente a Portugal e Espanha. As Leis Fundamentais do Maranhão, dadas às ponderações aqui formuladas, preservam a identidade de uma Constituição de caráter substancial, inserindo-se em conceito que poderia ser identificado como de natureza histórico-universal. É bem verdade que a palavra Constituição – adverte-nos Paulo Bonavides 147 com apoio em Esmein – era termo restrito à espécie normativa formal, pois: “[...] consagrado no me a r de in íc io pela linguag em p o lítica ape na s as e Con stitu içõ es juríd ica para e s cr itas , f ora d esconhecido no sécu lo XVII , po is as leis qualif ic ad as co mo c o n s t i tu c io n a i s s e d en o mi n a v a m e n t ã o l e is f u n d a me n ta i s o u l e i s po líticas.”. Sucede que a concepção de Constituição não pode ser confinada ao seu aspecto formal, como já enfatizado, caso contrário a concepção material não daria à “Magna Charta Libertatum” “status” de documento de natureza constitucional, que com o decorrer da história 147 Curso de direito constitucional, 12ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 69. - 85 recebeu a denominação de Constituição, como registra a doutrina majoritária, mençãoque faz Francis Hamon 148 ao enfrentar a temática acerca da natureza material e formal do Direito Constitucional: Sobre o primeiro (material) afirma textualmente: “ É f a to q u e a s con s t i tu iç õ e s apa r e ce r a m c o m o E s t ad o mo d e r n o . D e u m lado, assistimo s no sécu lo XVII I ao desenvo lv imen to d e u m mo v ime n to id eo lóg ico podero so, o con s titucionalismo, qu e conceb ia a lib erdad e e o poder como an tagôn ic os. Par a gar an tir a liberdad e, er a pr eciso limitar o pod er por me io d e algu ma s r eg r as de o r g an iz a ç ão j u r id i ca me n t e co mb i n a d a s. Conven c ionou- se ch amar essas r egr as de “constitu ição”, te r mo s in ô n i mo n a épo ca d e “o r g an i za çã o ” o u d e “ e s tru tu r a” , co mo ainda vemos hoje quando no s r ef er imo s a u m ho me m q ue te m u ma constitu ição robusta. D e ou tro lado, o poder a ser limitado n ão é qu alqu er poder, n ão é o qu e se pod e exercer n a família, no ex ército ou n a Igrej a, ma s some n te o pod er po lítico ma is imp or tan te, pr ecisamen te o qu e se d esenvo lv eu no sécu lo XVII I, pr inc ipa lme n te n a Fr an ça , e qu e ch a ma mo s Es tado.” Quanto à definição formal do Direito Constitucional 149 afirma: “Conjun to d e nor ma s qu e têm u m v a lor sup er ior ao de ou tr as nor ma s que pod em serv ir d e fundame n to d e v a lidad e a ou tr as nor ma s e que n ão se fund am em nenhu ma nor ma jur íd ica.” 148 149 Direito constitucional. Barueri, SP: Manole, 27ª. ed., 2005, pp. 9/10. Direito constitucional. Barueri, SP: Manole, 27ª. ed., 2005., p. 16. - 86 Certo é que essas categorias possibilitam ampliar ou reduzir a construção de uma idéia em torno da Constituição. Mas é exigência para demonstrar este entendimento a identificação de algumas das principais normas que têm merecido registro histórico como contribuições ao estudo do constitucionalismo. É o que passa a ser feito. - 87 - 9. PRINCIPAIS DOCUMENTOS DO PRÉ- CONSTITUCIONALISMO: Eleito o critério de dividir a história em períodos definidos, e firmada a noção de pré-constitucionalismo, são reunidos aqui alguns dos documentos tidos como fundamentais para o estudo, sem prejuízo da existência de tantos outros. A análise não é exaustiva, mas pretende dar ênfase às características principais que servem de base à compreensão da proposição temática. São eles: 9.1. A “MAGNA CHARTA LIBERTATUM”: A concepção de que Constituição é o conjunto de normas, escritas ou não, capazes de regular a sociedade, seja instituindo os Poderes do Estado, seja prevendo a atribuição de cada um dos seus órgãos, nos remete ao exame de alguns verdadeiros monumentos constitucionais, que servem ao exame da questão central deste trabalho. Como já foi registrado, a “Magna Charta Libertatum” foi outorgada por João Sem Terra em 15 de junho de 1215. - 88 Para José Reinaldo de Lima Lopes 150 a “Charta”: “[...] é a expr essão de u m acordo do r ei com o s senhor es, b ispo s e ho me ns livre s. N ão s e tr a ta d e u ma ‘ le i’ , u ma ‘ constitu ição’II é que este do cu me n to será tr atado co mo u m do cu me n to c ons titu c ion a l no se n tido mod erno do te r mo, sobretudo pelo esfor ço do jur ista Edw ard Cok e.” Se nela não se pode identificar um documento formalmente constitucional, dada, inclusive, sua extensão, vez tratar-se de instrumento de restrita aplicação, juntamente com as normas remotas pode (e deve) servir como instrumento cuja inspiração é visível na formação de todas as normas que culminaram com o constitucionalismo, e mesmo naquelas que, como ele, integram o período que resolvemos denominar de pré-constitucionalismo. Nesse sentido, e cuidando da “Magna Charta” e da Bula Áurea de André II da Hungria (1225), Paulo Ferreira da Cunha 151 adverte que se não pertencerem ao “[...] ao pré-constitucionalismo moderno, incluem-se inegavelmente na história do Constitucionalismo em sentido muito lato, integrando-se, evidentemente, na História Constitucional”. Para nós pertence ao pré-constitucionalismo, pois se trata de norma antecedente ao constitucionalismo moderno, servindo a cronologia como fator que reforça a concepção ontológica de Constituição. Para Bernard Schwartz 152, a “Magna Charta Libertatum”, impõe limitação à soberania do poder constituinte, sendo instrumento que prenuncia a identificação de direitos fundamentais individuais, pois 150 Curso de história do direito. São Paulo: Método, 2006, p. 30. Teoria da constituição. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 2002, vol. I, pp. 104/105. 152 Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, pp. 12/13. 151 - 89 estabelece ao monarca preceitos compulsórios que nem mesmo a sua vontade pessoal pode afastar. Contudo, é forçoso registrar, que só bem mais tarde é que vai se tornar uma real carta de direitos. Nada melhor para avaliar a natureza constituinte da “Magna Charta Libertatum” do que a observação a algumas disposições que, adequadas ao momento histórico particular, foram posteriormente adotadas pelas Constituições que nasceram com o chamado Estado Constitucional. É o que passamos a examinar. “Jo ão, p e la gr aça d e Deu s rei d e Ing later ra, senhor d a Ir land a, duqu e d a Nor mand ia e d a Aqu itâ n ia e cond e d e Anjou, aos a r c eb i sp o s, b ispo s, aba d e s, b a r õ es, j u í z e s , c o u te ir o s , x er if e s , prebostes, min istros, bailios e a todo s os seus fiéis súbd ito s. Sab e i qu e, sob a in sp iração d e Deu s, p ar a a salvação d a no ssa a lma e d as a lma s do s no sso s a n te c es sores e do s no sso s h erdeiros, p ara honr a d e D eus e exaltação da San ta Igreja e p ara o b em d o r e ino, e a con selho dos vener áv e is padres E s têvão , ar ce b ispo de Ca n tuár ia, prima z d e Ingla ter ra e card ea l d a San ta Igr eja Ro ma n a...e dos nobr es senhor es Gu ilh er me Marsh a ll, conde de Pembrok e..., of er ecemo s a Deus e conf ir ma mo s pela pr esen te Car ta, po r nós e pelo s nosso s sucessor es, p ara todo o semp re, o segu in te : [. .. ] 36 - A ord e m (W rit) d e inv es tig aç ão d a v id a e do s me mb r os s er á, p ar a f u tur o , co n ce d ida g r a tu i t a me n t e e , e m c a so alg u m, n egad a. [. .. ] - 90 39 - N enhu m home m liv re será detido ou sujeito a pr isão , ou pr iv ado do s seus b en s, ou co lo cado f ora da lei, ou ex ilado, ou d e qualqu er mo do mo lestado, e nó s não proced er emo s n e m ma n d are mo s proc ed er con tr a e le s en ão me d ian te u m ju lg ame n to r egu la r p e los seu s p ares ou de har mon ia co m a le i do p a ís . [. .. ] 40 - N ão v ed aremo s , n e m re cu sa re mo s, ne m p ro te la re mo s o d ir e ito d e qu alquer pessoa a ob ter justiça” As maiores críticas quanto à ausência de natureza constitucional à “Magna Charta Libertatum” residem basicamente em terse dirigido apenas à classe social dos barões, chegando alguns a pôr em dúvidas sua eficácia. Em verdade, os excertos outra coisa não representam senão incontáveis normas hoje presentes nas Constituições dos Estados democráticos, como é o caso da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. O princípio da liberdade como corolário do Estado de Direito já era enunciado pela “Magna Charta Libertatum” como instrumento de reconhecimento do direito “natural” 153 do homem frente ao Estado. As limitações anunciadas pela monarquia já àquela época representam o primeiro passo rumo às conquistas do homem frente ao poder instituído. A fruição das liberdades, mesmo que timidamente previstas, darão à história normas consagradoras de direitos nomeados de fundamentais, que tiveram no século XX a formalização tão almejada. 153 Não se tratam de direitos inatos, haja vista ser um pacto firmado entre a realeza e os barões, como advertem alguns dos autores consultados. - 91 O que dizer das garantias processuais do mandado de segurança, do “habeas data”, e das ações constitucionais, senão que tiveram um prenúncio da disposição de que “A ordem (“Writ”) de investigação da vida e dos membros será, para futuro, concedida gratuitamente e, em caso algum, negada.”? Como compreender-se que não haverá juízo ou tribunal de exceção; que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; que nenhum brasileiro será extraditado; que ninguém será preso senão em flagrante delito; a existência do tribunal do juri, frente à previsão de que “Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país.”? O que se dizer do “due process of law”, do juízo natural, da ampla defesa, senão que já faiscavam àquela época, quando examinamos a disposição de que “Não venderemos, nem recusaremos, nem protelaremos o direito de qualquer pessoa a obter justiça”? É certo, afinal, negar-se caráter constitucional à “Magna Charta Libertatum”? Ora, obtemperar-se que a “Magna Charta Libertatum” tenha surgido de um pacto entre a realeza e os barões é reduzir princípios que ao longo da história apenas foram ratificados, e que se constituem em objetivos permanentes da sociedade, pois o Estado continua, e sempre continuará, a merecer vigilância para o efetivo cumprimento dos direitos e garantias formalmente assegurados. De qualquer modo, os pactos “são - 92 convenções entre o monarca e os súdito” 154, cujo principal fundamento reside na convergência de vontades. Bernard Schwartz 155 prefere identificar na “Magna Charta Libertatum” uma concessão feudal destituída de “qualquer declaração de princípios ampla ou teoria política definida”, conquanto ponha em destaque no documento outras particularidades como o regime de posse e tutelas em face do poder real. Ainda quando se queira, sob o argumento formal do Direito, negar natureza constituinte à “Magna Charta Libertatum”, ainda assim restará um sopro material capaz de identificar princípios fundados no ideário naturalista. Uma vez mais, então, cremos que não há como ser negada natureza constitucional à “Charta de João Sem-Terra”, pois os ideais ali previstos apenas encontraram, séculos depois, uma forma expressa de serem enunciados com pretensão vinculante, mas tendo como princípios, reforçados pelo ideário europeu seguindo o curso natural da história, a mesma limitação do poder, e o assecuramento de direitos ao homem, como resultado da transmigração operado da Europa para o Novo Mundo. Resta claro que a “Magna Charta Libertatum” traz em si o propósito de ordenar e regulamentar a sociedade, ainda que se pretenda atribuir-lhe extensão bastante limitada. Contudo, deve-se-lhe atribuir, sem sombra de dúvidas, o mérito de prenunciar a formação do constitucionalismo, só bem mais tarde aprimorado com o aparecimento do Estado Constitucional. 154 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 4. 155 Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 15. - 93 A propósito, aliás, o registro de Leandro Karnal 156 ao tratar dos fatos históricos que antecedem e sucedem a formação do estado americano: “ [ . . . ] a I n g la t er r a t o r n a- se s ed e d a p r i me i r a e ef e t iva r ev o lu ção burgu esa da Eu ropa (por lev ar os burgu eses ao con tro le do pod er po lítico), qu e, mais tard e, formu laria a Declaração d e D ireitos, estab e lecendo novas bases para a po lítica. Era a Revo lu ção G lor io sa, qu e d epô s mais u m Stuar t em 1688. No me s mo a no a F ran ç a v iv ia o apog eu do abs olu tis mo sob o gov erno de Lu ís XIV, os po rtugu eses er am do min ados p e la d in as tia de Br agan ç a e o s e spanhó is con tinu ava m s ob o pod er do s H absburgo. O s choqu es constan tes en tre rei e burgu esia, en tr e r e lig ião of icia l e grupo s r eformad os, b e m co mo choqu es en tre grupo s ma is d e mo cr ático s e popu lares contr a grupo s burgu eses – tudo is so co labor a p ar a torn ar o s é cu lo X VII um mo me n to c on turbado n a h is tór ia d a Ing la terra e ajuda a e xp lic ar o pou co con tro le inglês sobr e suas co lôn ias.” Portanto, sob o prisma material, dentro da dimensão aqui atribuída a esse conceito, entende-se que a “Magna Charta Libertatum” possui inegável valor constitucional e, conquanto não se possa atribuirlhe (pelos retoques do constitucionalismo moderno) o “status” de uma Constituição, sua posição na história pode ser elevada à categoria de verdadeira norma de fins constituintes e natureza pré-constitucional, na medida em que estabelece previsões que dizem respeito aos direitos do homem, bem como os poderes do Estado, centrados na figura do Rei, antecedendo cronologicamente o constitucionalismo revolucionário. 156 A formação da nação, história dos Estados Unidos. São Paulo: Contexto, 2007, p.36. - 94 - 9.2. A PETIÇÃO E A DECLARAÇÃO DE DIREITOS: De importância significativa para o estudo da evolução do constitucionalismo, a Petição de Direitos é aqui mencionada apenas para que sejam enfatizados os sinais de constitucionalismo presentes antes do século XVIII. Não é sedutora uma abordagem mais ampla, tendo em vista a preocupação em centrar o assunto sobre o Continente Americano. Eis, portanto, algumas breves observações. A “Petition of Rights” data de 7 de junho de 1628, constituiu-se em documento através do qual os lordes espirituais e temporais e os comuns, reunidos em parlamento, requereram ao monarca o reconhecimento de alguns direitos que haviam sido estabelecidos desde o reinado de Eduardo I. A rigor, esses direitos haviam sido reconhecidos desde a “Magna Charta Libertatum” com as conseguintes ratificações antes mencionadas. Inobstante isso, a necessidade de garantir os direitos reconhecidos mereceu do parlamento formular a petição ao rei, tendo em uma de suas cláusulas de consideração o seguinte: “E, a pretex to d isso , alguns dos súbd itos de Vo ssa Maj estad e têm sid o pun idos por estes co missár ios co m a mo r te, qu ando é c er to q u e , se e l e s t iv ess e m me r e c id o a mo r t e d e h ar mo n ia c o m as leis e prov isõ e s do p a ís, tamb ém d e ver iam ter sido ju lg ados e ex ecu tados de acordo co m estas me s mas leis e prov isões, e n ão d e qu alqu er ou tro mo do .” 157 157 MIRANDA. Jorge. Textos históricos do direito constitucional. Lisboa: Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1980, p. 18. - 95 - Ao final, concluiu o documento: “ Tu d o i sto r o g a m o s lor d es esp ir i tua i s e te mp o r a is e o s comu n s a V o s sa M aj e s tad e c o mo seu s d ir e i to s e l i b e r d ad es , em c onfor mid ad e co m a s le is e prov isõ es d es te r eino ; as s im c o mo r o g a m a V o ss a M aj e s t ade q u e s e d ig n e d e c la r ar q u e as sen tenças, acçõ es e pro cesso s, em detr imen to do vo sso povo, n ão ter ão con sequ ênc ia p ara o fu turo n e m s ervir ão de ex emp lo p ara o fu turo, e qu e a ind a Vo ss a Ma je s tad e grac ios a me n te h aja por b e m d eclar ar , p ar a alív io e segur ança ad ic ionais do vo sso povo, que é vo ssa r ég ia in ten ção e von tade que, a resp eito d as co is as aqu i tratad as, todos o s vo sso s of icia is e min istros s erv ir ão Vos s a Maje s tad e d e aco rdo co m a s le is e prov isõe s do r e ino e tendo em v ista a honra de Vo ssa ma j e stade e a pro sper id ade d este r e ino.” 158 Os excertos revelam a consciência da necessidade de manterem-se os compromissos assegurados pela “Magna Charta Libertatum”, tendo o “Bill of Rights” inegável natureza instrumental, mais tarde reforçada já sob prisma substancial através da Declaração de Direitos. O “Bill of Rights”, datado de 13 de fevereiro de 1689 159, constituiu-se no documento mais importante na formação do constitucionalismo inglês. Pode-se afirmar que a partir de então o poder monárquico cede lugar à supremacia do parlamento, que se reúne “a fim 158 MIRANDA. Jorge. Textos históricos do direito constitucional. Lisboa: Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1980 p. 19. 159 Sobre a época, SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2006, 27ª. ed. rev. e ampl., p. 151. - 96 de deliberar sobre os meios de impedir que a religião, as leis e as liberdades pudessem voltar a ser ameaçadas de subversão” 160. Bernard Schwartz 161 vê neste instrumento pouca, ou quase nenhuma, relação com o “Bill of Rights” mais tarde existente nos Estados Unidos, posteriormente acrescentado à Constituição Americana. Sustenta como argumento: “ E m p rime iro lug ar, a le i ing les a fo i aprov ada co mo u m e s t a tu to c o mu m p e lo P ar l a me n t o , suj e i ta a ss i m p er ma n en t eme n t e , e m t e r mo s l eg ai s , a e me n d a s e r ej e içõ es a c r i té r io d e l e g is l a tu r as sub s eq ü en t es. A n o ç ão a me r i ca n a d e u ma lei de d ireitos do ho me m in corpora g arantias d e lib erd ade p es soa l a um d ocu me n to cons titu c ion a l, cujos a r tigos def in e m e limita m as áreas de atu ação le g islativa le g itimad a. Nesse sen tido, a d eclar ação d e D ir e itos d a V irg ín ia , d e 1776, fo i a primeira lei mo d ern a d e d ireito s do ho me m, j á qu e fo i a p r i me i r a a u sar u ma c o n st i tu i ç ão e s cr i ta p ar a r esgu ar d a r o s d ir e i to s i n d i v id u a is d o s a t o s n e m s e mp r e e s táv e is d a f a n t a s i a l e g is l a t iva . ” Por isso, fundamentam a declaração em pressupostos como o de que a ação do monarca seria ilegal, desde que desautorizada pelo Parlamento, nítida demonstração da superação da vetusta asserção de que “the king can do no wrong”, característica própria de um regime feudal absolutista. Com a natureza declaratória, mas munido de realce marcante no princípio da legalidade, o “Bill of Rights” passa à história como pacto formal que viabiliza democraticamente a relação entre o homem e 160 MIRANDA. Jorge. Textos históricos do direito constitucional. Lisboa: Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1980, p. 23. 161 Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 11. - 97 o Estado, tendo no Parlamento o freio contra a ação da monarquia, acentuando a característica mais tarde buscada pelo constitucionalismo, através das revoluções americana e francesa. Isto posto, restam identificados desde a “Magna Charta Libertatum” - sem perder-se de vista, ainda, o papel do “Act of Settlement” e o “Habeas Corpus Act” (1679) os postulados que vieram a ser adotados pelo chamado Estado Constitucional em fins do século XVIII. Obstar-se a isto, sob o argumento fundado no formalismo constitucional moderno, seria negar toda a contribuição inglesa ao surgimento e evolução do Estado de Direito. - 98 - 10. MANIFESTAÇÕES PRÉ-CONSTITUCIONAIS NO CONTINENTE AMERICANO: Fixada já a noção do período pré-constitucionalista é impositivo que sejam arrolados, senão os únicos aptos à tarefa, pelo menos os principais instrumentos formais de que se tem notícia no Continente Americano. A seleção tem em conta a pretensão de estabelecer uma discussão mais centrada no aspecto jurídico-político desses instrumentos, com o objetivo de estabelecer a conexão com o “status” de normas com densidade jurídica e valor constitucional. São eles: 10.1. O “PACTO DO MAYFLOWER”: O “Mayflower Compact” ou “Pacto do Mayflower” foi um instrumento firmado entre parte dos tripulantes do navio que tinha o mesmo nome, originário do Porto de Plymouth, na Inglaterra. “O compromisso assumido constituiu a aplicação no plano político e social de práticas que os puritanos adotavam na Igreja Congregacionista, onde os fiéis livremente elegiam seus dirigentes, segundo princípios democráticos.” 162. 162 AQUINO, Rubim Santos Leão de, et ali. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 130. - 99 Pode-se afirmar com segurança que o “Pacto do Mayflower” é a pioneira manifestação com sinalizações constitucionais concebida no Continente Americano. Isto ocorreu em 11 de novembro de 1620. O cenário americano que serve a este tópico pode ser sintetizado na figura da perseguição aos católicos e puritanos empreendida por Jaime I, em face da conversão da Inglaterra ao protestantismo, sob a feição anglicana. A Igreja Anglicana desagradava àqueles que viam na sua interferência em assuntos políticos um fato danoso aos direitos individuais, forçando-os à busca de uma terra em que a liberdade fosse a base de uma comunidade pautada na elaboração de leis justas e uma organização social democrática, através da participação de todos em busca da felicidade. “Os 41 ‘Pilgr im Father s’, esses pr imeiro s co lonos da Nov a Ing laterra qu e ma is bu scar iam u ma Nova Jeru salém, p rocur am d eclar ar a refundação do con tr a to so cial nu curto tex to em que i n v o ca m D e u s e o Re i e arg u me n ta m c o m a ma i o r g ló r i a D aq u e l e e a honra d e s te p ar a p r o me t e r e m s o l en e e amb igu amen te to ma r o destino po lítico n a s suas próprias mã o s . Co mo se está já long e – ape sa r das fór mu las d e c ir cun tân c ia – do rei Jo ão que, sob inspiração d iv in a, e par a salvação de sua a l ma (e p r o v ave l me n te algo ma i s ) en ten d e a s s eg u r a r as lib erdad e s qu e já houv era reconh ecido ‘ an tes d a d esav ença en tre nós e o s nossos barões. D ir-se- ia que se está op erando u m au tên tico ‘ salto qu alitativo’ e a evolu ção vai con tinu ar [ ...]” 163. 163 CUNHA, Paulo Ferreira da. Teoria da constituição. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 2002, vol. I, pp. 128/129. - 100 O documento chega Constituição escrita do mundo 164 a ser considerado a primeira e tem características políticas claras, sendo oportuno citar-lhe o conteúdo: “ E m no me d e Deu s, Amé m. N ós, c ujos no me s vão tr ansc r itos abaixo , súd itos leais de no sso augusto sober ano e senhor , o Rei J a i me , p e l a g r a ça d e D eu s , r e i d a G r ã- Breta n h a , F r anç a e Ir land a, d efensor da fé, etc. T endo e mp re end ido , p ar a a g lór ia d e D eu s e in cre me n to d a f é cr is tã, e em honra d e no sso r ei e do país, u ma v iag em a f im d e fund ar a primeir a co lôn ia nas r egiõ es do Nor te da Virgín ia, t o r n a mo s p r e s en te so l en e e mu t u a me n te n a p r e se n ç a d e D eu s, a no ssa in tenção d e tudo ajustar e co mb in ar em b o a união, irma n ados nu ma corporação civ il po lítica, para nossa me lhor org an ização e pr eserv a ção e progr esso do s f ins j á me n c ion ado s; e em v ir tude de que ser ão estipu lad as, con s titu íd as e f ixadas leis justas e i mp a r c i a i s , e s t a tut o s , a to s , c o n s t i tu iç õ e s , e fun çõe s, de te mp o s e m te mp o s, a ss im c o mo p e ns a mo s ser ma is d esejáv e l e conven ien te par a o b e m ger a l da Co lôn ia, d en tro do qu e p ro me temo s toda a s ub mis são e obed iên c ia . E m v is ta d is so, nó s, testemunh as do fato, sub s crevemo -no s em Cap e Cód a 11 d e nov embro, no décimo o itavo ano do reinado d e no sso sober ano e senhor , Rei Jaime, d a Ing later ra, França e Ir land a, e no qü inquag ésimo qu ar to do r e inado n a Escó cia, Anno Dom., 1620.” Obedecendo à estrutura formal da época, o “Mayflower Compact” observa a supremacia divina como fundamento legitimatório do poder real, pretendendo modelar uma sociedade civil politicamente instituída e governada por leis. Vê-se nítida divergência da teoria 164 CERQUEIRA, Marcelo, A constituição na história, origem e reforma. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1993, p. 50, nota de roda-pé n. 5. - 101 apregoada por Jaime I ao defender a legitimidade derivada diretamente da escolha divina, sem qualquer interferência da Igreja de Roma. Infere-se da proposta normativa que o pacto sinaliza com a adoção de leis justas e pré-menciona normas, regras e princípios com base nos quais a transitoriedade das funções representativas é declarada, o que se transformou no instrumento da alternância do poder nas democracias modernas, presente como fundamento republicano na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A contemplação do documento presente neste tópico conduz ao mesmo paradigma encontrado na discussão acerca do estudo da Constituição em sentido formal, material e substancial. Se por um lado o estudo do Direito Constitucional converge para a identificação da Constituição da América como o primeiro documento formal, não se pode olvidar da natureza constitucional do “Pacto do Mayflower” como espécie de Constituição e, nessa perspectiva, na América do Norte, como primeira manifestação. Para reforço histórico convém registrar as “Fundamental Orders of Connecticut” (1639), o “Agreement of People” (1647) e o “Intrument of Government” (1653), cada um, ao seu tempo, com ênfase ora na preservação da pureza do Evangelho, ora na necessidade de manter-se a Nova Terra e seus fundadores imunes a qualquer retaliação da coroa britânica. Ao primeiro documento – “Fundamental Orders of Connecticut” – é atribuído por James Bryce o “status” de “A mais antiga Constituição realmente política da América” 165, contendo uma conformação muito mais próxima das Constituições posteriores ao 165 Apud SCHWARTZ, Bernard, Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, pp. 36. - 102 estabelecer normas institutivas e orgânicas. Para Canotilho 166 são espécie de “convenants”, “[...] contratos entre os colonos fixados no continente americano e a mãe pátria.”. Sua importância para a formação do constitucionalismo americano é ampla, pois nessa norma residem previsões que estabelecem a organização, o fracionamento e a extensão do governo. 10.2. A DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO BOM POVO DE VIRGÍNIA: A Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia surgiu no Continente Americano como forma de afirmar determinados direitos naturais e inatos ao homem, como instrumento de formação do Estado de Direito, pautado nos compromissos inarredáveis de independência como princípio e na liberdade como fundamento. Já se disse antes que José Afonso da Silva 167 considera a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (16 de junho de 1776) como a primeira declaração de direitos fundamentais existente na América, em sentido moderno. Ao lado da Declaração de Independência dos Estados Unidos (4 de julho de 1776) que lhe é posterior, formam o alicerce para o surgimento da Constituição dos Estados Unidos da América, de 17 de setembro de 1787. É impositivo rememorar que desde 1606 os colonos da Virgínia estavam autorizados a “fazer Habitações, Plantações e formar uma Colônia de nosso Povo naquela parte da América, comumente 166 167 Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 62. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006, 27ª ed. rev. e ampl., p. 153. - 103 chamada Virgínia” 168, documento que relacionava a “declaração sumária de que os colonos possuíam todos os direitos dos ingleses”. As colônias inglesas no Continente Americano podem ser assim classificadas: colônias de companhias de comércio, colônias de proprietários e colônias régias 169. Adotada uma perspectiva material de Constituição, mesmo que sem as formulações formais exigidas pelo constitucionalismo moderno, a lei colonial da Virgínia (1606) ganha dimensão constitucional como norma cujo propósito tem em conta instituir e constituir uma colônia, conquanto sua elaboração não tenha sido obra dos colonos que viviam na Nova Terra, pois vinda da Grã Bretanha como concessão de Jaime I. Mas há os que sustentam que os primeiros colonos possuíam já certas garantias incorporadas definitivamente no Direito Americano sob a forma do que mais tarde se constituiria um regime de assembléias: “Conqu an to as car tas paten tes d e ssem ao s fund adores o dir e ito d e gov erna r e le g is lar, d e le s se ex ig ia qu e f izes s e m a s su as le is confor me as leis d a Ing later ra . M a i s i mp o r t a n te er a a in d a a g ar an t i a, con st an t e e m t o d as as c ar t as , d e q u e a s p e sso as q u e mig r a ss e m p ar a as c o lôn ia s, e os seu s f ilho s qu e n e la n ascessem, go zar iam d e todos os d ireito s e pr iv ilég ios do s i n g l es es , como s e t iv es se m f i c ad o n a I n g l a te r r a . ” 170 168 SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 35. 169 Veja-se AQUINO, Rubim Santos Leão de, et ali. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Record, 2007, pp.133/134. 170 CERQUEIRA, Marcelo. A constituição na história, origem e reforma. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1993, pp. 34/35. - 104 Tais previsões, ainda sem a roupagem dos elementos consignados pelo constitucionalismo moderno, são fruto do movimento político e intelectual esboçado na Europa, tendo na Inglaterra e na França berços destacados. O movimento iluminista difundido em toda a Europa chegou ao Continente Americano com a mesma ênfase dos postulados formulados pelos seus autores, merecendo de Jefferson, Adams, James Madison, George Mason e outros incontáveis escritores, manifestações acerca da libertação do homem. A construção do constitucionalismo, portanto, decorreu da necessidade de se encontrar, através de um instrumento alheio à origem divina, um fundamento de legitimação do poder. Esta sempre foi a busca inspirada no iluminismo, como alternativa à concentração absoluta do poder, quando não ao exercício excessivo do poder real, transmutado em arbitrário e opressivo domínio da força. A situação tensa entre as colônias e a corte, em face das disputas tributárias, embalava o nascimento de uma nova realidade política que não tardaria a acontecer. Bem a propósito detalha H. Aptheker 171: “Na v erd ade, a ma ior ia da população co lon ial en con tr av a-se ating ida em seus in teresses p ela po lítica ing lesa: a burgu esia co lon ial v ia- se en tr av ada p e lo monopó lio ing lês, qu e imp lic ar a o f im d a s ma n uf a turas ( e m 1750, a me trópo le pro ib ir a a produ ção do f erro , e em 1 754 , a f abr icação d e tecido s) e limitar a o co mé rcio co lon ial; o s gr andes f azendeiro s do Su l, lig ados econo micamen te encon tr av am- se 171 end iv id ados, aos co me r c ia n tes dev ido aos ingleses, en cargos que Apud AQUINO, Rubim Santos Leão de, et ali. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 183. - 105 obr ig ator iame n te assumia m ( p agamen to d e tax as de impor tação n a I n g la t er r a , d o s f r e t es e seg u r o s) ; o s e l e me n t o s d a s c a ma d a s mé d ias e popu lares en con tr avam- se pr ejud ic ado s p e lo peso dos imp o s tos , p e lo a lto pr eço d as me r c ado r ia s, pe la opre s são r e lig ios a, civ il e po lític a , e p e lo d es e mpr ego d ev ido à c r is e econo mia co lon ial en tr e 1772 e o in ício d a lu ta arma d a (1775) .” Todos estes fatos históricos são credenciais para a convulsão emergida no território da Nova Terra, tendo, cada um, ao seu modo, contribuído para a sublevação que culminou com a Declaração de Independência. Basta um passar de olhos sobre excertos do documento para que se tenha a dimensão desse notável monumento jurídico-político: “Todo s os ho me n s são por n a tur eza igu a lmen te livres e ind epend en te s e têm d ir e itos in atos d e qu e, qu ando en tr am n o estado de so cied ad e n ão podem, por n enhu ma for ma, pr ivar ou d espoj ar a su a po ster io rid ade, no meadamen te o go zo d a v ida e d a liberdade, co m o s me ios d e adqu ir ir e po ssu ir a propr ie dad e e pro cur ar e ob ter felicid ade e segur ança.” Ecoa como elemento de fundamental destaque a concepção da igualdade natural dos homens. É que a Declaração não firma a idéia de isonomia a partir do nascimento, mas a partir de uma perspectiva situacional do ser humano na comunidade. Muito embora a idéia de igualdade seja fundada em bases naturais, fica desde logo evidente a essência do pacto firmado entre os colonos, em que a liberdade importa em diferenças, na medida em que a - 106 busca pela felicidade se desenvolve na proporção das aptidões individuais. Conquanto a monarquia inglesa, à época, já dispusesse do controle parlamentar, os ideais propagados no Continente Americano sofreram significativo avanço, estabelecendo uma forma de poder fundada na legitimação popular, em detrimento do sistema monárquico de que se originou o povo americano, formulação, aliás, adotada posteriormente pela maioria dos estados de direito que surgiram ao longo da história. É certo que: “[...] desde o Pac to d e Ma y f l we r, h av ia a t en d ênc i a p ar a, a lg o d iv er s a me n te d a I n g la te r r a, co lo ca r o s p o n to s n o s < <ii> > > constitu c ionais, red ig indo tex tos qu e de for ma d ef in id a f ix as se m l i mi t e s d o q ue a ss i m s e p r e tend i a. A li á s, me s mo a n te s d a c r is e com a I n g l a te r r a, j á s e c o n h e c i a m c o n s t i tu i çõe s n a A mé r i ca : v i mo s q u e Lo cke r ed ig ir a u ma p ar a a Car o l in a , e h av ia outras – d esd e logo as da s c o rpo ra t e c o lon ie s ( Rhod e I s land e Conn ecticu t) qu e possíam j á u ma cer ta au tono mia. É , por é m, o tex to virg in iano u m mo nu me n to s ingu lar íss imo , po is r epr esen ta o ma rco inicial d e um n ovo p rocesso imp arável, constitu indo o pr imeiro tex to do constitu c ionalismo mo derno. Tex to fundador, nele se con têm as car acter ísticas ma r c an tes do mo v ime n to. De f a to, a D ec lar aç ão d e D ir e itos v irg in iana , a lé m d e, obv ia me n te, s er u m tex to es cr ito, pro c la ma a s ep ara çã o d e pod eres e vár ios d ir e ito s fund amen tais, tais co mo a lib erd ade de expressão, lib erdade relig io sa, garantias de índo le jud iciár ia, etc. A ssen ta no pr incíp io d a soberan ia popular, e estabelece o d ir e ito d e r esistência à opr essão, af ir ma ndo expressame n te qu e ‘ todo s o s ho me ns são natur a lmen te igu a is, livr es e independ en tes’, d ev endo ser- lh es g ar an tidos a ‘v id a e a - 107 lib erdad e, co mo me io s d e adquir ir e po ssu ir propr ied ades, d e pro cur ar e ob ter a f e licid ade e a segur ança.’” 172 Frente à necessidade do estabelecimento de um governo como instrumento de concretização do bem comum e segurança do povo, a declaração assenta a garantia de destituição do poder de todo aquele que não consiga atingir o ideal de felicidade a que têm direito os governados. O perfil adotado pela Declaração de Virgínia pode ser destacado pela preocupação em objetivar a fundamentação do poder, estabelecendo os primados da democracia do Estado de Direito moderno ou constitucional, tendo o homem por destinatário e principal objetivo desse Estado. A felicidade permeia o ideário político como razão de ser do homem, objeto e finalidade do Estado, que outra razão não teria senão o de libertação, fincando-se, desde então, o primado da livre iniciativa como mola do capitalismo que sobrevive até os nossos dias. A separação de poderes, a forma de ascensão, a alternância do poder, bem como a participação popular e representativa, são verdades declaradas que revelam, sob o ponto de vista da extensão dos destinatários, que a Declaração de Virgínia é o primeiro documento dessa natureza de que se tem notícia no Continente Americano com feições ajustadas ao constitucionalismo moderno, conquanto a sistematização desse conceito só viesse efetivamente se concretizar a partir do artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Firme na concepção de que a limitação do poder, com o reconhecimento de direitos individuais, jamais vistos nas normas até 172 CUNHA, Paulo Ferreira da. Teoria da constituição, mitos, memórias, conceitos. Lisboa / São Paulo: Editorial VERBO, 2002, pp. 172/173. - 108 então elaboradas com o propósito orgânico é que Bernard Schwartz sentencia que a Declaração de Direitos da Virgínia (1776) “[...] foi a primeira lei moderna de direitos do homem, já que foi a primeira a usar uma constituição escrita para resguardar os direitos individuais dos atos nem sempre estáveis da fantasia legislativa” 173. Com efeito, pode-se atribuir à Declaração de Virgínia essa qualidade, mormente se levarmos em conta a evolução da formação dos direitos fundamentais, cuja expressão é encontrada através de textos esparsos, sem consolidação que permita, antes do acontecimento do Continente Americano, encontrar-se na história a compilação de documentos de tal natureza. Mesmo que a esta constatação nos socorra a história, é de bom tom observar que a peculiaridade americana mesmo que sirva de exemplo à história universal, ainda assim haveremos de encontrar, bem antes de 1776, documentos que revelam a preocupação no regimento de relações entre o homem e o Estado. A convergência majoritária (para não dizer, unânime) da doutrina em torno da natureza de vanguarda da Declaração de Direitos da Virgínia como instrumento constitucional ajustado aos preceitos do constitucionalismo moderno cede lugar, aqui, à apreciação de uma contribuição até hoje jamais explorada no Brasil pelo meio acadêmico jurídico. Se é verdade que a Declaração de Virgínia dispõe de credenciamento para ser tratada como manifestação do constitucionalismo na América, haveremos, então, de adotar a concepção oferecida à Constituição que não se limite à elaboração formal apenas, pois, como ela, mesmo que muito mais timidamente, a “Magna Charta Libertatum”, também, ainda que num universo menor, preocupou-se em estabelecer limitações ao poder, como forma pioneira de subsistência do próprio Estado de Direito que veio surgir posteriormente. Destaque-se, 173 Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 11. - 109 contudo, que o postulado da origem do poder, aliado à propriedade como direito essencial aos homens, são elementos de sensíveis diferenças frente a qualquer outro texto dessa natureza escrita até então. Serve, assim, a Declaração de Direitos da Virgínia como manifestação formal de pioneiro documento a estabelecer, num só corpo, direitos e prever o relacionamento entre o homem e o poder constituído, concretização, a final, de toda a luta empreendida pelo iluminismo emergente em França. Ao aproximar-se dos moldes da Constituição idealizada pelo constitucionalismo moderno bem mais tarde, a Declaração da Virgínia sinaliza como elemento fundamental para o desenvolvimento do constitucionalismo europeu que sendo fonte inspiradora termina por se tornar inspirada na construção da Revolução Francesa que já se moldava. De fato, reconhecer Georg Jellinek 174 enfaticamente que: “ E l mod e lo de lo s a me r icano s no h á ten ido es c aso inf lujo e m F r an c ia . L ãs in s t i tu t cio n es d e los a me r i c an o s d esp er t ar o n e m F r an c ia , a ca u s a d e la h er ma n d ad e m l ã s a r ma s, u ma a t en c ió n v iv ísima , y la literatura h izo u ma gran prop agand a d e lãs constitu c iones de A mér ic a. Ex citado por este mo delo, y e sp ec i a l me n t e p o r e l Bill o f Righ ts d e V irg in ia, h ab ían ex ig ido ya algunos Cah iers u ma d ec lar ac ión d e d er echo s, y L afaye tte pr esen ta uma p roposic ión d e este carácter a la Assamb lea N acion al. La D eclar acion de los D erecho s del Ho mb re y del Ciudad ano d e l 26 d e ago sto de 1798 es el pr imier r e su ltado d e la leg islación constitu c ion a l. ” 174 Teoria general del estado. México: FCE, 2000, p. 471. - 110 O constitucionalismo europeu, assim, com visível destaque à França, torna consolidada a mais contundente inspiração de direitos que resulta em espelho para os Estados democráticos: A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O que servira de inspiração ao movimento americano serve, agora, ao próprio continente que instigou a racionalidade humana por idéias que abalaram as estruturas culturais (“lato sensu”). - 111 - 11. MANIFESTAÇÕES CONSTITUCIONAIS NO CONTINENTE AMERICANO: Impõe-se, agora, examinar os documentos que se constituem fontes da discussão em torno do Continente Americano. Antes de tudo, alguns esclarecimentos se impõem. O primeiro, é a ratificação de que este estudo não trata do constitucionalismo brasileiro. Por isso não são relacionados para exame a Constituição Imperial de 1824 e os demais documentos oriundos de Portugal, como o Regimento Geral de Tomé de Souza, de 1548, as Ordenações, além cartas reais e patentes. A idéia de constitucionalismo moderno (sob o enfoque jurídico antes abordado) só ocorre no Brasil a partir do século XIX. Em segundo lugar, porque a situação de integração do Maranhão ao Brasil só vai ocorrer no final do século XVIII, como se esclarece adiante. Em terceiro lugar, porque a pesquisa propõe examinar a contribuição da França Equinocial ao constitucionalismo americano, com a pretensão de estabelecer uma análise que possibilite extrair a densidade jurídica e o valor constitucional das Leis Fundamentais do Maranhão. Demais, inobstante a Declaração de Independência dos Estados Unidos preceda cronologicamente a Constituição Americana (o que, em tese, a colocaria no rol de documentos pré-constitucionais do Continente Americano), ela expressa com muito mais visibilidade e - 112 nitidez o aspecto jurídico, político e sociológico da época colonial, sendo, portanto, apresentada conjuntamente com a Constituição Americana. 11.1. A DECLARAÇÃO DE INDEPENDÊNCIA E A CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA: A previsão dos postulados da Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia e o acentuado e acelerado desgaste entre a colônia e a coroa levaram à Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776. A França foi fundamental para isto, não apenas por suas idéias iluministas que transmigraram para o Continente Americano, mas também pela sua participação nos embates militares em face dos ingleses. A respeito, destaca Rubim Santos Leão de Aquino 175 que a França: “[...] in te ressada em deb ilitar o pod er da Ing laterra qu e, d esd e 1763, a desalojara do v islu mb r ando a consu mido res, co laborou con tin ente po ssib ilid ad e co m amer icano, de ho me ns, n av ios. ” 175 conqu is tar História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 190. ar ma s, e tamb ém me rcado s d inheiro, - 113 A Declaração de Independência surge historicamente como instrumento que formaliza e publiciza os postulados firmados pela Declaração de Virgínia, sem que isto vislumbre a mais pálida negativa de importância do texto. Era uma conseqüência natural que isto acontecesse, mercê dos fatos históricos que ganharam dimensão ao longo do tempo, que deram sedimentação ainda maior aos ideais iluministas cuja absorção no Continente Americano é transparente. Afirma o documento: “Quando no d ecu rso d a h istór ia human a se torn a necessário a u m povo romp er os laços po líticos qu e o ligaram a ou tro e a s su mir en tre a s p o tên c ia s d a T er r a a p o s iç ão sep ar ad a e ig u a l a qu e o h abilitam as leis d a N a tureza e do Deus da N a tur eza, o r esp eito d ev ido ao ju ízo d a Hu ma nid ade ob r iga-o a declarar as c au sa s q u e o i mp e l e m p a r a a s ep ar aç ão ”. Pois bem, as asserções contidas na Declaração de Independência recebem a denominação de verdades que são na realidade princípios, fundados nos postulados forjados na Declaração de Virgínia. Isto, aliás, é o que vai acontecer com a Constituição dos Estados Unidos da América 176, cuja feição se exterioriza pelas idéias de independência, introduzidas em documento que recebe da história destaque notável para o estudo do Direito Constitucional. Para H. Aptheker 177 a Declaração de Independência sintetiza os ideais liberais, reunidos em três idéias básicas: 176 De 17 de setembro de 1787. Apud AQUINO, Rubim Santos Leão de, et ali. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 188. 177 - 114 “ (1) o s er hu ma no – es sen c ia lme n te igu al e m a tr ibu tos , n ec es s id ades , obr ig açõe s e d es ejos – te m o d ir e ito bá s ic o à V id a, à L ibe rdad e, e à Bus c a d a Felic idad e ; (2) pa ra a ob te nç ão d esses d ireitos, o ho me m cr iou os gov ernos; (3) o governo que n ão r esp eita r esses d ireitos é tir ano ; tal governo pod e, e n a v erdad e, dev e ser alte rado ou abo lido p e lo povo qu e, en tão, tem o d ir e ito e o dev er d e c r ia r a for ma d e gov erno que ‘ a s eu ve r, p arece- lhe ma is ad equ ado a pro mov er sua segur an ça e f e lic id ad e.’” Pensamos que o pioneirismo americano representa um ideal embalado por todo o fundamento do iluminismo europeu, o que vai ser confirmado pela Revolução Francesa, posteriormente, com a derrubada do Antigo Regime, em 1789. Portanto, enquanto a Declaração de Independência torna assente o desejo de romper, como de fato aconteceu, com a coroa inglesa, tornando eficazes as verdades além do Continente Americano, a Constituição do povo americano estabelece formalmente a instituição de um Estado de Direito, firmado nos princípios contidos na Declaração de Virgínia, mas sob ênfase da soberania indispensável à sua própria subsistência, o que outrora não havia sido expressamente enunciado. Firmamos como ponto de partida do constitucionalismo moderno o advento da Constituição Americana, pois nela presentes já os elementos que foram eleitos pelo constitucionalismo francês como configuradores de uma Constituição, o que ocorreu com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (artigo 16). A Constituição americana é um emblema do constitucionalismo liberal. Sintética na origem, sua completude se dá ao longo dos tempos através de uma hermenêutica construtiva, seja pela complementação de emendas, de costumes ou de precedentes judiciais, é, - 115 sem sombra de dúvida, “[...] simbolicamente a primeira constituição moderna de um Estado soberano ainda existente como tal, isto é, a um tempo o texto mais antigo e o único dessa época, ainda em vigor” 178. Historicamente, portanto, a evolução do constitucionalismo passou a guardar destaque à Constituição dos Estados Unidos da América como documento pioneiro de autodeterminação de um povo, reservando ao inesgotável debate sobre a origem da Constituição a marca indelével de que Constituição em sentido formal é obra dos homens americanos, inobstante todos os postulados tenham sido firmados no ideário do iluminismo nascido na Europa, transmigrado para a Nova Terra, e forjado esse monumento jurídico-político de estabilidade emblemática. A Constituição americana, concebida de forma sintética, ganha reforço com o “Bill of Rights”, Declaração de Direitos 179, formando-lhe o sistema de direitos do homem como sinalização e limite da ação governamental, confirmando que a “[...] noção americana de uma lei de direitos do homem incorpora garantias de liberdade pessoal a um documento constitucional” 180. Estes monumentos históricos que dão ao desenvolvimento do Direito Constitucional uma nova dimensão vão influenciar, decisivamente, toda a teoria dos direitos e garantias fundamentais outrora dispersa em textos esparsos. Identificada, assim, a história do constitucionalismo na América, como nos tem sido contada pelas obras especializadas, passa-se a examinar esse fenômeno histórico sob uma versão conhecida, ainda que pouco difundida, com a pretensão de alcançar a contribuição trazida ao tema pelas Leis Fundamentais do Maranhão. 178 CUNHA, Paulo Ferreira da. Teoria da constituição, mitos, memórias, conceitos. Lisboa / São Paulo: Editorial VERBO, 2002, p. 174. 179 Não se confunda com o “Bill fo Rights” inglês, de 1689. 180 SCHWARTZ, Bernad. Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 11. - 116 - 12. AS LEIS FUNDAMENTAIS DA ILHA DO MARANHÃO: As Leis Fundamentais do Maranhão é mais uma das várias manifestações formais que servem de comprovação do fenômeno da projeção territorial do poder. Sua concepção histórica encontra-se no capítulo sob a epígrafe de “O EMPREENDIMENTO” ao qual se remete o leitor. Sua dimensão jurídica e seu valor constituinte é a preocupação que passa a ser objeto deste capítulo. Não se pode, contudo, falar de dimensão jurídica e valor constituinte sem rememorar a situação política do Brasil, mormente pela dimensão e reflexos que decorreram de seu descobrimento. Disso nos dá conta Ibsen José Casas Noronha 181: “O d e sco b r i me n to do Bra s i l e su a co lon i za ç ão foram acon tecime n tos co m rep ercu ssõ es em todo s o s campo s d a vid a da hu ma n id ade. p ar t icu l ar me n te A d escober ta in t eg r a d a , de das a lg u ma novas f o r ma , ter ras nas estava g r and es tr ansfo r ma çõ es das qu ais o Ren ascimen to tev e, no camp o cu ltural, estup endo r e levo. Nov as g en tes, até en tão ignoradas, t r a z i a m i mp e ra t iv a me n te n o v a s r ef le x õ e s r es p e it a n te s a o s te ma s po lítico, relig ioso , social, econó mico, mo ral e, ev id en te men te, a o d ir e i to . A co lon i za çã o , esp e c ia lme n t e e m t e r r as b r a s i le i r a s, f ar ia su rg ir nov as raças, e estas novas raças er am o encon tro d e d iv ersas civ ilizações e costu mes qu e in teressam p a ra u ma a prox ima ç ão d ão f enóme n o h istór ico do surg ime n to de u m d ir e ito no Br asil. [. .. ] 181 Aspectos do direito no Brasil quinhentista: consonâncias do espiritual e do temporal. Coimbra: Almedina, 2005, pp. 107/108. - 117 D iscu tir a le g itimidad e do d ireito do s portugueses à terra que d escobr ir am, a liberd ade r e la tiv a me nte ao s que do s índ ios ch eg avam da e seus E urop a dir e itos ou a s ua r ac io n a l id ad e e h u ma n id ad e , f o i u ma c o n s t an te n e s te s p r ime i r o s temp os.” Já se acentuou como peculiaridade das coroas portuguesa e espanhola a concessão de cartas que além de assegurar-lhes o direito de exploração de terras, previam um conjunto de normas que deveriam ser adotadas e observadas na colônia. Eram documentos que freqüentemente estabeleciam competências criminais e cíveis, com fundamento no conjunto normativo originário e vigente na corte, normalmente trazidos pelos exploradores ou colonizadores. Faltava aos conquistadores, contudo, competência para elaborar normas que pudessem ser consideradas, ao menos no Continente Americano, como tendo sido criadas por aqueles, dada a vinculação e limitação destacadas. E isto é o que difere a concepção e elaboração das Leis Fundamentais do Maranhão que deram origem à França Equinocial. Mesmo a Carta Colonial da Virgínia (1606) que cronologicamente seria considerada sob o prisma jurídico uma das mais antigas manifestações constitucionais do continente (senão a mais antiga mesmo) era uma concessão real com seus limites definidos a partir de Londres. A carta real era uma prática comum, daí por que a ênfase dada ao elemento cronológico na identificação das Leis Fundamentais do Maranhão como instrumento pioneiro no Continente Americano, pois sendo uma norma escrita no Brasil no século XVII. - 118 É necessário rememorar que o cotidiano dos nativos nas terras do Maranhão tinha regulação através de um sistema informal e consuetudinário de normas (leis de policiamento, no dizer de d’Abbeville 182 ), com caráter edilício, nesse aspecto particular (dizemos nós) 183, cuja interpretação e aplicação residia nas sessões realizadas a cada noite na Casa Grande, instalada no centro da aldeia e que funcionava como espécie de parlamento. Lá ocorriam as reflexões sobre as atividades desempenhadas ao longo de cada dia. Lá, também, eram geridas as estratégias de ação dos próximos dias. Um sistema colegial de administração embora rudimentar, se examinado diante dos elementos que configurariam, mais tarde, a teoria da participação popular. Essas particularidades que tornavam o quadro singular exigiam bem mais para se configurar o domínio sobre a terra que se constituiria na França Equinocial. Exigia o instrumento formal da sociedade civilizada: a lei. Bem a propósito, aliás, destaca Patrícia Seed 184: “Se a língua e os g esto s d a v ida co tid ian a for a m o s meios cu lturais pelos qu ais os Estados europ eus cr ia ram su a própr ia au tor idad e e a co mu n icaram p ar a o ou tro lado do oceano, a lei fo i o me io qu e eles u tilizaram p ara cria r su a leg itimid ade. A le i ro tu la e sep ara o leg ítimo d o ilegítimo ; d efine o do mín io do p er mis s ív e l e do n ão-p er mis s ív e l. ” 182 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975 P. 255. 183 SANTANA, José Cláudio Pavão. Propriedade edilícia especial, dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de Pernambuco. São Luís, 1985. 184 Cerimônias de posse na conquista européia do novo mundo, (1492-1640). São Paulo: Ed. UNESP, 1999, p. 15. - 119 Nesse cenário em que o poder político já se pronunciara em favor da instituição de uma nova ordem com bases cristãs, vai-se construir um conjunto normativo pautado na estrutura das leis fundamentais do reino medievais de que fala Paulo Ferreira da Cunha 185, embora se veja, claramente, pelas discussões sucessivas sobre a adoção de leis que regessem uma só nação forte inspiração contratualista na norma, inobstante sua inspiração de ênfase religiosa. A instituição das Leis Fundamentais do Maranhão pelos franceses não seria diferente. Sua singularidade reside em sua concepção e formalização ocorridas em território americano em 1º de novembro de 1612, portanto, precedendo a todos os documentos existentes na América que tenham sido escritos em terras do novo continente. Conquanto a Carta Colonial da Virgínia (1606) seja cronologicamente anterior, mesmo assim esta foi escrita na Grã Bretanha e concedida por Jaime I. Alguns aspectos são fundamentais para que sejam examinadas essas singularidades das Leis Fundamentais do Maranhão, permitindo que se possam fixar critérios de diferenciação em face das normas que a antecederam na América, particularmente da Carta da Virgínia (1606). Inicialmente é de se destacar que a Carta da Virgínia foi um documento concebido caracterizavam competência esse material na tipo pela Europa, de norma, legislação atenta limitada da aos em postulados sua Inglaterra. que natureza Escapava e ao creditado a competência legislativa 186 o que inibia consideravelmente sua competência que se reduzia ao exercício de uma espécie de contrato de mandato. 185 Teoria da constituição. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 2002, vol. I, p.105. Conquanto o termo seja próprio de período histórico posterior que coincide com o processo legislativo parlamentar, é utilizado como sinônimo de competência de elaboração normativa. 186 - 120 Era, portanto, uma concessão real que previa a competência de praticar vários atos com propósitos de colonizar a Nova Terra, limitada, todavia, pela legislação do reino. Nesse particular, em que pese toda sua importância para o constitucionalismo americano, sua presença no continente decorre de uma outorga real, já que aqui chega como documento escrito. As Leis Fundamentais do Maranhão foram concebidas, escritas e publicadas no Continente Americano. Essa singularidade torna visível o critério da territorialidade. É que as Leis Fundamentais do Maranhão inauguraram a concepção de uma norma com objetivos instituintes de uma ordem jurídico-política no Continente Americano. Aqui foram concebidas, escritas e publicadas, donde se concluir pela sua natureza inaugural, precedente, pioneira, no território. De certo que cronologicamente a Carta da Virgínia (1606) antecede as Leis Fundamentais do Maranhão (1612), critério superado, entretanto, pela territorialidade, que concede às Leis Fundamentais do Maranhão (1612) perfil de norma com valor constituinte e antecedente a qualquer outra norma da mesma natureza no Continente Americano. Por outro lado, o processo de formação normativa é mais um aspecto que pode ser examinado. Enquanto a Carta da Virgínia é um documento fruto de concessão real, as Leis Fundamentais do Maranhão decorrem de uma ampla avaliação, de diversas discussões e da forte natureza contratual, aspectos todos decorrentes da vontade dos franceses e dos índios, como já revelado na narrativa história deste trabalho. Ademais, as Leis Fundamentais do Maranhão foram concebidas, escritas e publicadas em solo maranhense, delas emanando - 121 regras inspiradas nos princípios franceses com forte conotação religiosa e densidade jurídica e política mais nítida e menor conteúdo empresarial, muito mais visíveis e prioritárias nas colônias inglesas no Continente Americano. Fugindo ao costume da época, as Leis Fundamentais do Maranhão foram concebidas, escritas e tornadas públicas em território brasileiro no dia 1º de novembro de 1612 pelos franceses, e “Depois de publicadas, foram estas ordenações registradas e guardadas no arquivo geral deste Estado e Colônia, para servirem no futuro de leis invioláveis e fundamentais e a elas se recorrer quando necessário.”, o que ocorreu no último dia de novembro de 1612 187, tornando-se, portanto, fato singular e fundamental na formação constitucional da América. Este enunciando final das Leis Fundamentais do Maranhão conduz à conclusão de que a mesma possui densidade jurídica muito mais além do que aquela reservada a uma lei de abrangência restrita, confinada aos limites de regulação de situacionalidades ordinárias, uma vez servindo de repositório para as relações conflituosas supervenientes, mas também encerra a idéia de fundamento-dirigente de um dado núcleo político soberano, como permite inferir o texto. A definição clara da fonte com o sentido teleológico efetivamente confere eficácia à norma como instrumento que regerá as relações inter-pessoais – o que é alcançado pelo exame das cláusulas de conteúdo penal, v.g. – e institucionais – quando declara a fundação do Estado sob a regência de uma Lei Fundamental - deixando claro o comprometimento e a submissão de todos aqueles que convergem para a formação do pacto consensual, norma, assim, com claro direcionamento ao conteúdo contratualista. 187 D’ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 129. - 122 Há que se ter em mente que as Leis Fundamentais do Maranhão (1 o de novembro de 1612) preservam obediência à estrutura formal das cartas reais. “A fundação de colônias por carta real era um desenvolvimento natural numa época em que propriedade, poderes e imunidades eram geralmente concedidos através de tais instrumentos” 188. Nisso reside a feição contemporânea, uma vez ajustar-se a norma ao feitio formal da época. Sob certo aspecto a feição das Leis Fundamentais segue o mesmo modelo, pautado nos fundamentos que davam suporte ao poder da época. Sob a forma de cláusulas que contêm enunciados de inegável conteúdo ético-religioso as Leis Fundamentais seguem uma estrutura que pode ser dividida em: a) artigos 189 relativos à glória de Deus; b) artigos relativos à honra e serviço do Rei; c) artigos referentes à companhia. O modelo guarda compatibilidade com a idéia de Constituição como “lex fundamentalis” de que fala Canotilho 190: “ N a I d ad e M éd i a as s ist i mo s ao d es en v o lv i me n to d a n o ç ão d e lei fundamen ta l. No s pr imeiro s temp o s, corr espond e a s ed ime n taç ão, e m te r mo s v ago s, de u m conjun to de p rinc íp ios ético- relig io sos e de nor ma s con su e tud inár ias ou p actícias, que v in cu lav a m r e c ip r o ca m e n te o r e i e a s v ár i a s c l a s se s soc i a i s, n ão pod endo ser v io ladas p e lo titu lar do pod er sober ano. A id éia d a lei fund amen tal co mo lei suprema li mitativ a do s pod ere s sobe rano s v irá a ser p ar tic u lar me n te s a lien tad a p e los mo n ar có macos f ran ceses e r e condu zida à velha d istinção do 188 SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 35. 189 Apesar de as Leis Fundamentais do Maranhão expressamente mencionar “artigos” sua redação melhor se ajusta à idéia de disposições ou preceitos. 190 Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, pp 59/60. - 123 s é cu lo VI en tr e < < lo is d e ro yaume>> e << lo is du ro i>>. E s t a s ú ltimas eram feitas p e lo rei e, po r con segu in te, a ele comp etia mo d if i c a- las ou r evog a- la s ; as pr i me i r as er a m leis f u n d a me n ta is d a soc i eda d e , u ma es p é c ie d e le x t er ra e e d e d ireito na tural que o r ei d ev i a r espe i t ar .” Esse modelo estrutural das Leis Fundamentais (que será examinado adiante) possibilita, a princípio, sob o aspecto histórico, portanto, cronológico, afirmar que se trata da primeira manifestação orgânico-constitutiva com propósitos claros de formação soberana escrita com natureza fundamental no Continente Americano de que se tem notícia. Mas essa primazia diz respeito ao aspecto políticoinstitucional propriamente dito, não se cingindo ao prisma colonial, posto já existir à época, em profusão, colônias de caráter meramente mercantilista. Sob este ponto-de-vista é lícito afirmar que a transcendência dos limites meramente ordinários de uma sociedade – no que se refere à regência legislativa ordinária – faz das Leis Fundamentais do Maranhão uma norma com aptidão constitucional, na medida em que, ainda sob um período antecedente ao constitucionalismo – falou-se antes de préconstitucionalismo – sua intenção não é apenas organizar uma sociedade regida por costumes carregados de simbolismos bárbaros para a evolução européia. Mas, sobremodo, assegurar o direito de posse, e, portanto, de poder, ao estandarte francês, em reação ao acordo existente entre a Igreja, Espanha e Portugal, formalizado pelo Tratado das Tordesilhas. Demais disso, ao tempo que antecede a concepção das Leis Fundamentais do Maranhão vigiam nas terras as denominadas leis de policiamento, cuja aplicação decorria de prática informal sob a direção do chefe ou principal da aldeia, normalmente o: - 124 “[...] ma is exp er ime n tado, o que ma is nú me ro de pro ezas f êz n a gu err a, o qu e ma ssacrou ma ior nú me ro d e in imigo s, o qu e po ssu i o maior nú me ro de mu lh eres, ma ior família e ma io r nú me ro d e escr avos adqu ir ido s gr aças ao seu valor própr io, é o c h ef e d e to d o s, o p r inc i p a l ; n ão e l e i to p u b lic a me n t e, m a s e m v ir tud e d a fama conquistada e da conf iança qu e n ê le depo sita m. Limita- s e o pod er do chefe à or ien tação dos d ema is por me io de conselhos, pr in cipalmen te nas reun iõ es qu e f azem tôdas as no ites n a Ca s a Gr ande do cen tro da a ld e ia . Depo is d e ac e so u m grande fogo, u tilizado à gu isa d e cand eia e para fu ma r, arma s as su as r êd es de algod ão e, d eitados, cada qu al com seu cach imbo na mã o , pr incip iam a d iscur sar, come n tando o que se p assou dur an te o d ia e lemb r ando o qu e lh es cab e f a zer no d ia segu in te a favor da p az ou da gu err a, pr a receb er seus amigos ou ir ao en con tro do s inimig o s, ou p ara qualquer ou tro n egó cio urg en te, o qu e reso lv em d e acôrdo co m as in struções do P rin c ip a l em g er a l s egu id as à r is ca . ” 191 Há, assim, aptidão constitucional nas Leis Fundamentais do Maranhão, seja por expressa declaração de constituição de um Estado soberano, seja por inferências alcançadas pelo exame da própria norma que revelará, em seus preceitos específicos, um conjunto de regras cuja densidade transcende os limites de uma lei comum ou de natureza ordinária. Há que se ponderar acerca dessa declaração quanto à soberania. 191 D’ABBEVILLE, Claude, História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 255. - 125 Com efeito, a Teoria Geral do Estado atribui significado específico ao vocábulo “soberania”. “A moderna idéia de Estado tem o seu expoente na idéia de soberania” 192. Sua essência é excludente. Há pluralidade de autonomias, como ocorre no Estado federal, mas não soberania, que se justapõe apenas por um pacto entre pessoas políticas internacionais, como ocorre nas formas confederadas de Estado. Sendo assim, é razoável que seja posta na berlinda a declaração de instituição de um Estado soberano em face da sujeição eterna ao Rei de França. Resta claro que a pretensão francesa sempre foi (e isto é nítido pelas tentativas feitas no Brasil) estabelecer uma extensão política de domínio, com objetivos coloniais e comerciais. Isto, inclusive, como meio de desafiar a divisão das terras entre Portugal e Espanha. Avaliadas estas ponderações é conclusivo que a declaração contida nas Leis Fundamentais, particularmente no que se refere ao vocábulo “soberania”, sinaliza com algumas alternativas aqui identificadas. A primeira é de que o reino francês pretendia incorporar ao seu domínio as terras que denominou de França Equinocial como mera projeção territorial, fixando sua presença na Nova Terra, em consonância com o típico modo de demonstrar a extensão do poder político. A projeção ultramar de um departamento administrativo se adapta a essa possibilidade, o que, ainda hoje, ocorre em relação à Guiana Francesa. 192 MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 37. - 126 Por isso, a melhor maneira era declarar que aquela parte da França era politicamente independente e, portanto, sem que fosse submetida à incidência dos preceitos contidos no Tratado das Tordesilhas, irrelevantes à corte de França. A soberania projetava-se, portanto, em direção daqueles que usualmente exploravam a região norte do Brasil, especialmente Inglaterra, Holanda e Espanha. O território era soberano, exceto em face do rei de França, guardião da França Equinocial. A segunda alternativa é de que a França Equinocial seria politicamente soberana, adotando os critérios anteriormente mencionados, mas vinculada eternamente ao rei de França não pela via política, senão por seu desiderato de cristianizar os habitantes da ilha, como motivação expressa para o processo de fundação e colonização da França Equinocial. O espiritual sobrepondo-se ao temporal. A terceira, embora de remota possibilidade, cinge-se ao inadequado uso do vocábulo “soberania”, destituído da precisão técnica imposta pelo Direito hoje, embora àquela época já fosse do conhecimento a “Magna Charta Libertatum”. Nesta terceira hipótese, conquanto se possa classificá-la como improvável, é oportuno registrar que a atual Constituição da República Federativa do Brasil usa o vocábulo em diversos dispositivos: artigo 1º, inciso I 193; artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “c” 194; e artigo 14 195, v.g., circunstância que não torna por si só, inadequado o uso do vocábulo, e nem por isso se atribui a pecha de incorreção, senão de valorização dos institutos que são previsões constitucionais. 193 A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I a soberania. 194 É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: [...] a soberania dos vereditos. 195 A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e nos termos da lei, mediante [...]. - 127 Pode-se ratificar, assim, a aptidão constitucional das Leis Fundamentais do Maranhão como instrumento formal que institui e organiza um Estado, tanto pela declaração soberana de direito, quanto pelas ilações construídas em face das disposições expressas na norma. Esta asserção, contudo, encontra no cenário constitucional sério óbice. Basta que se opte por compreender a formação do constitucionalismo a partir das revoluções modernas, ou então a partir da Constituição Americana, pioneira enquanto documento consolidado de direitos. Este, aliás, tem sido o entendimento mais freqüente nas obras de Direito Constitucional: o constitucionalismo, portanto, como obra do final do século XVIII, ainda que também se ouça falar em períodos, épocas e ciclos constitucionais. Este corte epistemológico no estudo do tema não pode ser condenado, mas do mesmo modo não impede que se possa, como se faz aqui, mergulhar em fatos que emprestem aos argumentos o deslocamento do eixo de abordagem do constitucionalismo. Revelam as obras de pesquisa que a fundação da colônia francesa não se deu como um processo unilateral, em que o colonizador estabelecesse simplesmente o desejo de posse, posto a forte presença religiosa no empreendimento, base fundamental do poder monárquico até então. Bem a propósito d’Abbeville 196 registra essa conjugação de forças na implantação simbólica do Estado Equinocial: 196 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 122. - 128 “Depo is qu e os própr io s índ ios p lantaram a Cruz co mo símbo lo d a alian ç a etern a que f aziam co m nosso D eus e do d esejo que te s te munh av a m de per tenc er ao cr is tian ismo , d e mo s- lh es a en tend er que isso n ão bastava, qu e era pr eciso ( a f im d e qu e o s fr an ce se s nã o o s ab adon as se m j ama is ) co lo ca r, b e m e m su a te rr a, pe lo s me s mo s me ios, a s arma s d e F ran ça jun to da Cruz . Po is assim co mo esta er a o sinal de que hav íamo s to ma do po sse d a ter ra e m no me d e JE SUS CRISTO , es se s es tand ar tes se r ia m t a mb é m u m a ma r c a d e u ma l e mb r a n ç a d a so b e r an i a d o r e i d e Fran ça e u m testemunho (p ela su a aceitação) d a ob ed iên c ia qu e p r o me t i a m p ar a s e mpr e e à sua p er p e tu id ad e à S u a M aj es t ad e Cr is tian íss ima . ” Não há poder sem símbolo. Não há símbolo que não esteja envolto em uma cerimônia. Breve, longa, singela, pomposa, enfim, o poder não sobrevive sem uma ritualística toda própria. Isto foi e sempre será uma constante na conquista dos povos. O símbolo é sinal que tem a propriedade de registrar, eternizar um acontecimento. Nisso os franceses deixaram na história uma particularidade merecedora de destaque, pois os relatos dão conta de uma detalhada descrição de procissões, discursos, firmamento de cruzes, armas, etc. O símbolo é a própria identidade viva de um povo, e embora a indiferença possa permear os dias de hoje, há a preservação formal dos símbolos como valores que identificam uma nação. A ausência de símbolos é o mesmo que falta de referencial. Veja-se a Constituição da República do Brasil de 1988 e nela se encontrará o registro do idioma oficial como um desses símbolos, e como símbolos nominais expressamente previstos “[...] a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais.” (artigo 13). No caso dos fatos históricos que servem de pesquisa o valor desses símbolos como registro da instalação do poder está relacionado - 129 com a extensão que possa ser dada ao próprio evento. Cada povo possui seus símbolos e cada símbolo possui um significado, sendo farta em exemplos a conquista da América, onde “[...] os líderes das expedições simplesmente desempenharam as ações que acreditaram estabelecer mais claramente o direito de seu próprio país a governar o Novo Mundo.” 197. Nisso os franceses sempre se destacaram, estabelecendo uma ritualística toda peculiar que configurava a solenidade da cerimônia: “Em 1 612 os índ ios tupis ma r c har am e m d ir eção à cruz co m as mã o s j u n tas , ajo e lhar am- s e , ad o r ar a m a c r u z e a b e ij ara m. A ss i m, o r i to t ea tr a l cor eo g r afado n a F r anç a f i c o u a sso c ia d o à san ção d a ordem e à leg itimação do pod er po lítico n as c o lôn ia s. ” 198 Ratifica essa característica a narrativa de Ferdinand Denis 199 na apresentação da obra Viagem ao norte do Brasil: “ E m t o d a s a s p r a i a s o n d e d es e mba r c a ss e m, d e v ia l ev an ta r - s e u ma c ruz co m tod as a s o len id ade e , b e m a s sim, mis s ioná r ios cató licos ser iam condu zidos par a propag a ção da f é entr e o g en tilismo .” Identificar, então, a marca simbólica dos eventos que servem de cenário a este estudo, avaliar sua extensão, sua força e capacidade de 197 SEED, Patrícia. Cerimônias de posse na conquista européia do novo mundo, (1492-1640). São Paulo: Ed. UNESP, 1999, p. 11. 198 SEED, Patrícia, Cerimônias de posse na conquista européia do novo mundo, (1492-1640). São Paulo: Ed. UNESP, 1999, p. 77. 199 D’EVREUX, Yves. Viag em ao norte do Bra s il feitas nos ano s de 1613 a 1614 – S ão Pau lo : Ed itora Siciliano, 2002, p. 27. - 130 credenciamento como norma materialmente fundamental, importa em valoração, portanto, em saber do “status” constituinte da norma. - 131 - 13. NATUREZA DAS LEIS FUNDAMENTAIS: A natureza das Leis Fundamentais encontra assento na idéia do valor constituinte. Cuida-se de saber acerca de sua densidade constituinte. Mas diz respeito, também, a determinar a natureza fenomênica da norma, como elemento meramente fático ou elemento jurídico. É disto que trata o presente tópico. Para tanto a teoria do poder constituinte e a teoria geral da formação normativa são instrumentos fundamentais. Fato e norma, portanto, são essenciais para a construção deste enfrentamento. Mas é digno de registro que o poder constituinte ganhou difusão sob os auspícios de três doutrinas que chamaram a si a responsabilidade de demonstrar a sua titularidade. As Constitucionais doutrinas outorgadas da pelos soberania monarcas), monárquica (Cartas soberania nacional (defendida por Emmanuel Sièyes) em que a eleição de assembléia constituinte punha em prática o poder constituinte originário e a soberania popular (sustentada por Jean-Jaques Rousseuau) em que a todos os cidadãos dispõem de uma parcela de soberania e a exercem diretamente. Cada uma delas, a seu modo, e sob o enfoque eleito, estabelece a formulação teorética do poder constituinte como elemento determinante do poder racionalmente idealizado, de modo a demonstrar o desenvolvimento do poder constituinte: representativo e direto, respectivamente. procedimento monárquico, - 132 Antonio Negri 200 enfrenta a temática a partir da perspectiva de “controlar a irredutibilidade do fato constituinte, dos seus efeitos, dos valores que exprime”, apresentando as soluções normalmente propostas, a saber: “[...] p ara un s, o poder con s titu in te é tr anscend en te face ao s i s t e ma d o p o d er co n s t i tu íd o – s u a d in â mic a é i mp o sta a o sistema a par tir do ex te r ior ; para u m ou tro grupo de jur istas, o pod er con s titu in te é, ao contrár io , ima n en te, s ua pr es en ça é ín tima, su a ação é aqu ela d e u m f und amen to; um ter ceiro grupo d e jur istas, po r f im, não consid era o poder con stitu in te co mo fon te tran sc end en te ou ima nen te, ma s c o mo fon te in tegr ada , coex tensiv a e sincrôn ica do sistema constitu c ion a l positivo.” Determinar a natureza, como, ainda, o valor constituinte (já que valor constitucional é inegavelmente reconhecido) importa em definir a própria concepção desses dois planos: o factual e o jurídico. A formulação moderna acerca da natureza (a origem) do poder constituinte transita entre a idéia de soberania gerada no povo ou na idéia de nação. Essa percepção acerca do poder remonta à noção de domínio num primeiro instante da história oscilante entre o elemento teocêntrico, a religião como força sobrenatural determinante e o racionalismo instintivo inicial, com desembocadura na determinação humana voluntária: o racionalismo deliberado, comissivo, se é que se pode assim denomina-lo. É indissociável da construção teórica em torno do poder constituinte a contribuição de Emmanuel Sieyès, antes mesmo da eclosão da Revolução Francesa, mas após o advento da Constituição Americana 200 O poder constituinte, ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p.12. - 133 de 1787 ter sido aprovada, evidência clara de que o abade não tenha sido o primeiro a formular a teorização acerca do poder constituinte. Sustentava que o poder constituinte encontra residência na Nação (o terceiro estado) em oposição aos doutrinadores medievos que visualizavam na Nação a estratificação de clero, nobreza, povo e, sobre todos, a figura do monarca. Refletindo sobre o poder constituinte Gilmar Mendes 201 acentua: “Sieyè s enf a tiza que a Con s titu ição é produ to do pod er constitu in te or ig in ár io, qu e gera e org aniza o s poder es do Estado (os pod eres constitu ído s), sendo, até por isso , sup erior a eles. Sieyès se p ropunha a sup erar o mo do de leg itimação do pod er qu e v ig ia, b a seado n a tradição , p e lo pod er po lítico d e u ma d e cis ão or ig in ár ia, não v incula da ao d ire ito pr eex iste n te , ma s à n a çã o , co mo f o r ç a q u e c r ia a o r d e m p r i me i r a d a sociedad e. Distan cia-se, assim, da leg itimação d in ástica do pod er, assen tada n a v in cu lação de u ma família ao Estado, pela no ção de Estado co mo ‘a un id ad e po lítica do povo . Para isso , c er co u o pr ed ic ado s c o n c e i to do co lh ido s d esv in cu la çã o a pod er constitu in te da teo log ia, n o r ma s a n t er io r es o r ig inário re ssa ltando e r ea l ç an d o a a de sua sua on ipo tência, cap az de cr ia r do nad a e d ispor d e tudo ao seu talan te. En te nd ia qu e o povo é sob erano p ara o rden ar o seu própr io d estino e o da su a socied ade, expr essando- se por me io d a Cons titu iç ão .” Com seu panfleto (Que é o Terceiro Estado?), o abade buscou justificar a necessidade de participação da burguesia no cenário político, a exemplo do clero e da nobreza, como única forma possível de concretizar o direito de representação. 201 Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 187. - 134 Suas razões fundam-se na idéia de que o povo ou nação constitui-se o que ele chamou de Terceiro Estado, classe oprimida pelo clero e pela nobreza, e responsável pelo desempenho de muitas das principais atribuições na sociedade, sem, contudo, merecer o mesmo tratamento daquelas. Reparar essa situação de usurpação exigia atribuir aos legítimos representantes do povo o direito de participação no poder como única forma de reparar a injustiça. “Pro cur ando Sieyès fundame n tar d esenvo lveu c ap ítu lo s fin a is do o essas reiv ind icações seu pen samen to fa mo so panf le to, no juríd ico p ar tindo dir e ito, no s da do is for ma r epr esen ta tiv a d e governo para ch egar , p e la pr imeira vez, a u ma d istinção c o n s t i tu íd o s . en tre o D i s t in g u i u poder tr ê s con s titu inte e épocas formação na os pod eres das sociedad es po líticas. Na p r imeira, h á u ma quan tid ad e de ind iv íduos iso lado s, qu e, p e lo só f a to d e quererem r e unir- se, tê m to do s os d ir e itos de u ma n a ção ; tra ta-s e ap ena s d e exe rc êlos. Na segund a épo ca, r eúnem- se p ara d elib erar sobr e as n ecessid ades púb licas e o s me io s de prov ê- la s, A so cied ade po lítica atua, en tão, por me io de u ma von tad e real comu m. Tod av ia, por cau sa do gr ande nú me ro de as soc iado s e d a su a d isp er são p o r u ma su p e r f í c ie d e ma s i ada me n t e ex t en sa , f ic a m eles impossib ilitado s d e ex ercer por si me smo s a von tade c o mu m. A ssim, n u ma t e r ce i r a épo ca , sur g e o g o v ern o exe r c i d o por p rocur ação : os asso ciado s ‘ sep aram tu do qu e é n e cessár io p ar a v e lar e p r o v er a s ate n çõ es p ú b l i c a s, e co n f i a m o e x erc í c io d esta por ção d e von tade nacion al,e por con segu in te de pod er, e alguns den tr e eles’ . Aqu i j á não atu a u ma vontade co mu m real, ma s s im u ma von tad e co mu m r e pres en ta tiva . Os r epre s entan tes n ão a ex er ce m p or d ir eito própr io e ne m s e qu er tê m a p lenitud e do seu ex erc íc io ” 202. 202 In BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, 11ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 21. - 135 A proposição do abade vai ao encontro da fundamentação em plano transcendente ao de uma ordem jurídica positiva, insuficiente para oferecer respostas, posto sua natureza precária, incapaz para dar solução aos anseios da classe burguesa, resultado, para lembrar o decisionismo de Carl Schmmit, de uma decisão política fundamental. Nesse sentido, a formulação da teoria do poder constituinte encontra críticas, como a do Professor Paulo Bonavides 203, que atribui uma certa inconsistência em face da contradição lógica entre anteceder a ordem e legitimar-se por ela: “A dou tr in a d e Sieyès co loca po is o poder con stitu in te for a d a Constitu ição. Co m essa doutr ina po rém ele se mo str ar á po ster ior me n te con tr aditór io, c aren te d e lóg ic a , ao in ten tar concilia-la co m a ap licação do reg ime represen ta tivo em ma té r ia cons titu in te, ou sej a, co m a ad ap taç ão – por es sa v ia imp o ss ív e l – do reg ime r epr es en ta tivo ao a to fund a me nta l d e e l ab o r a ção d a Co n s t i tu iç ão . ” Decompondo-se a proposição tem-se que o poder constituinte é desvinculado de uma ordem formal específica. Sobrepaira na sua potencialidade. Sua consistência não desaparece ao fim de uma moldura formal, conquanto sua concretização nela se possa expressar como manifestação soberana. Nesse sentido seu caráter inicial consiste em independer de um sistema jurídico positivo anterior, sendo, assim, incondicionado. Por outro lado tem características autônomas, pois ao seu titular, e só a ele, é dado eleger a concepção do que merece ser reconhecimento efetivo de um dado momento histórico. 203 Curso de direito constitucional. São Paulo: Ed. Malheiros, 2002, 12ª. ed., p. 127. - 136 Finalmente, cuida-se de um poder que não está subordinado ou condicionado a nenhuma ordem, norma ou regra, que não a si próprio, conforme se apresente. A qualquer momento pode entrar em ação, e por isso é potência, estado latente, inicial e incondicionado, portanto, podendo manifestar-se como resolutivo de qualquer plano positivo que contenha em si um instrumento formal. Em apurado estudo acerca da natureza do poder constituinte, sob a epigrafe de “insubmissão do Poder Constituinte à sua própria obra legislativa” Carlos Ayres de Britto 204 equaciona o questionamento nos seguintes termos: “[...] por qu e o Pod er Constitu in te está do lado d e fo ra da Con st it u ição. F a z a Con st i tu i ç ão , c l aro , ma s s e mp r e d o l a d o e x terno a e la . Não en tre no corpo do s d ispo sitivos constitu c ionais, porque, se en tr as s e, a í, s i m, p as s ar ia a s er u ma r ealid ad e tão nor ma n te qu an to nor ma da. Conh ecer ia cond ic ion ame n tos formais e f in itud e ma ter ial, co mo é própr io d e tod a in stitu ição ou de todo institu to que se torn a obj eto de nor ma jur ídica. Dedu ção : o po der f ica do lado de fo ra da Con st it u ição, no pon to d e pa rt ida, f ica pa ra s e mp re do lado d e f o ra. Ao r everso, o po der f ica do lado d e d en tro da Con st it u ição, no pon to d e pa rt ida, f ica pa ra s e mp re do lado d e dentro . [...] o Poder Constitu inte f ica do la do d e fora da Constitu ição po rq ue ele não é, n em p od e s e r, criat ura da Co nst it u ição. É o cr iado r, un icamen te. O es cu ltor qu e faz a e s cu ltura , se m a me n o r ch anc e d e s e d e i x ar f az er p o r e l a, S e r ia a ss i m c o mo D eus a te r u ma p ar te d e Si me smo feita p e lo mu ndo qu e Ele cr iou, o qu e está for a d e toda cog itação f ilosóf ica nãoma t e r i a l i s ta. 204 Teoria da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 40/41. - 137 [. .. ] o Pod er Con s titu in te é o cr ia dor d a Con stitu iç ão porqu e e l e , s en d o a p r i me i r a ma n i f es t aç ão d a so b e r an i a, é o p ró p r io povo . É a p o l is por completo, no preciso instante histórico em que a polis dá a si própria a mais radical das conformações jurídicas: a conformação inicial e superior a todas as outras. Um tipo de conformação que pressupõe a intransigente postura do começar tudo de novo, no plano lógico das coisas, que é um começar por inteiro. No atacado e de uma só vez (se assim preferir atuar o Poder Constituinte). Logo, a antessupor a desconsideração de todo o Direito preexistente, sobretudo o contido na Constituição fundante do antigo Ordenamento.” O poder constituinte, nesses termos, encontra abrigo na alternativa de configurar-se como estado de fato, precedente ao ordenamento jurídico que resulta de sua inspiração. É ele uma expressão de dado momento histórico, sobrevivendo em potência, o que lhe dá essa capacidade de ser exercido a qualquer momento. É um estado potencial cuja natureza constitutiva é essencial e obedece à vocação humana de organização política, jurídica e social. Contudo, essa natureza inicial e originária do mesmo poder constituinte necessita postulações, e nesse de uma sentido via é para posta a concretização em prática a de teoria suas da representatividade enquanto elemento fundamental de participação, uma vez que a complexidade da sociedade não mais permite que cada ação seja objeto de deliberação colegiada. Então, entra em cena a idéia do poder constituinte derivado, pelo qual é posta em ação a vontade popular representada, com o propósito politicamente organizada, de através dar do dinamicidade instrumento à sociedade conhecido pela modernidade – a norma - que ganha forma como Constituição. Dito de outra forma, o primeiro momento (do poder constituinte), aquele a que a doutrina reserva a denominação de originário, ter-se-ia uma qualificação fática, incondicionada. - 138 Decomposta a vontade inicial, pela teoria da representação (ao que é reservada a denominação de poder constituinte derivado), ter-se-ia a formulação concreta no plano jurídico e, assim, jungida a uma determinada ordem formal de Direito com os contornos por esta ordem previstos. A construção simbólica para explicar essa concepção teórica poderia ser obtida com uma síntese de dois planos (dinâmico e estático), tomados por empréstimo da concepção Kelseniana. A figura pode permitir o trânsito em torno dessa manifestação que trata tanto da evolução quanto da fixação objetiva e formal em que desembocará o constitucionalismo concretização em como norma movimento positiva histórico como que modelo encontra de expressão sua da soberania. É o que faz, com exatidão, Gustavo Zagrebelsky 205: “ L a h is tor ia con s tituc ion a l es ca mb io, es con ting ênc ia po lític a , e s acu mu lac ión d e expe r iên c ia d e l pa ss ado em e l p re sente , e s r ea lid ad so cia l, es r e la ción en tr e p as ado y fu turo, e s mov ime n to de suj e tos a p r ior i ind ef in ib le s, es impr ev is ib ilida d de prob lema s y espon taneid ad d e so lu ciones. Por el con tr ario, el pod er con s titu yn te es f ij ación , es ab so lu tización d e valor es po líticos, es pu ro d eber ser, es co mi enzo e x n o vo, e s e l i só n d e l p assado y reducción de todo fu turo al p resen te, es in icia lmen te a c e l era c ió n h is tó r i ca i n esp er ad a y su ce ss iv ame n t e d e ten c ió n d e l mov ime n to, es expr essión de u m so lo pro yecto po lítico, ind iv idu aliza do o incond ic ionado y por ello sober ano, es pr edeter minación d e lo s p rob le ma s y p lan if icación d e lãs s olu c ion es . Lo s con cep to s constitu c ional son : el e sp o n t an e ida d y n o r ma l i d ad, la largo es s enc ia is per íodo, la de el la h is to r ia desarro llo, n a tu r al e z a so c i a l, la lo s v ín cu los ma teriales. Del pod er con stitu yn te son: la imme d iatez, el progr esso qu er ido e imp u est o, la excepcion a lidad, artifício po lítico, la ausência d e limites y con f in es.” 205 H isto r ia y constitu c ión. Madr id : Ed itor ial Trotta S. A., 2005 , pp. 36/37. el - 139 - É nessa perspectiva de concepção da elaboração teórica do poder constituinte que se vai mergulhar na idéia moderna de documento formal, donde é firmado um marco na teorização do poder constituinte. Sua existência remonta à própria idéia de história da humanidade; sua teorização é obra do Estado Moderno. O estado de fato, portanto, o plano de existência, é situação cuja constatação é presente na realidade histórica. Sua qualificação teórica é resultado da reflexão construída com os instrumentos jurídicos e políticos sistematizados a partir do Estado Moderno. É com base nessa constatação racional que se pretende examinar o documento central deste trabalho. A concepção formal de poder reside no que o constitucionalismo moderno reserva o rótulo de Constituição escrita. Essa perspectiva formal é fruto de precedentes históricos presentes em diversos documentos, como nos “pactos e nos forais ou cartas de franquia e contratos de colonização (...), nas doutrinas contratualistas medievais, e nas das leis fundamentais do Reino, formulada pelos legistas” 206. É a partir dessa idéia que se pode formular o debate acerca da natureza legítima ou não do poder. É o que se busca diante da norma estudada. A notícia histórica em torno do tema central do presente trabalho revela a determinação francesa de expansão político-territorial nos moldes da época. Se por um lado disso eclode a identidade do expansionismo de então, por outro lado consigna uma singularidade que dá estreita significação à pesquisa: as Leis Fundamentais do Maranhão foram 206 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1987, p.4. - 140 concebidas e escritas em território do domínio português, posto já descoberto (ou achado?) o Brasil. Disso não remanesce nenhuma dúvida. Essa circunstância singular em face da pedagogia do Direito Constitucional como tem sido transmitido já há algum tempo, possibilita uma reflexão em torno da natureza das Normas Fundamentais do Maranhão, particularmente no que se refere a sua gênese como elemento constitutivo de uma sociedade. É que (já se disse antes) os atos legitimatórios dos navegadores em busca de conquistas colonizadoras, comerciais ou políticas geralmente tinham origem em cartas imperiais (ou reais, ou patentes, ou forais, ou cartas de franquia, ou contratos de colonização, enfim), com gênese no centro político colonizador. Ingressavam como fruto do reino já com forma definitiva, com incidência e suficiente eficácia para serem obedecidas no Novo Continente, sem a participação ativa ou direta de quaisquer dos nativos. A diversidade taxionômica mereceu atenção do Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho 207 sendo oportuna a seguinte síntese assim reproduzida: “ Os pa c to s, de qu e a h is tór ia cons titu cion a l ing les a é p ar ticu lar me n te f ér til, s ão conv en çõe s en tr e o mo nar c a e o s súdito s concern en tes ao mo do de gov erno e às garan tia s d e d ir e itos indiv idu ais. Seu fund amen to é o aco rdo d e von tades. [. .. ] O s fo ra is ou ca rtas de franqu ia, qu e se encon tr a m por tod a a Eu ropa, têm e m co mu m co m o s p a c to s a f o r ma e s cr i ta e a ma t é r i a q u e é a p r o te ç ão a d i r e i t o s ind iv id u a is. Esb o ç a- s e n e la s, porém, a p a r ticip ação do s súd itos no gov erno lo cal, 207 Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1987, pp. 4/5. - 141 inser indo- se assim, n esses for a is, u m elemen to p ropr ia men te po lítico, estr anho à ma ioria do s p actos. Pa cto s, forais e ca rtas d e franqu ia, fr eqüen tes n a Idad e Mé d ia , f ir mar am a idéia d e te x to escr ito destinado ao r e sguardo de d ir e itos indiv idu ais, qu e a Constitu ição ir ia eng lobar a seu t e mp o . P róximo s aind a ao s p ac tos, de cujo car á ter p e la san ç ão r e al p ar tic ip av am, ma s já próx imo s da idé ia s e te cen tista de C o n st i tu iç ã o , s i tu a m- se o s con tra tos de co lon iza ção, típ icos d as co lôn ias d a A mé r ic a do Nor te . A ex is tên cia de leis fundam en ta is qu e se impõem ao próprio r e i é u ma c r ia çã o d o s l eg i sta s f r anc e ses , e mp en h ado s e m d e f en d er a Coro a, con tr a as fraquezas do próp r io mon arca. Af ir ma v a essa dou tr ina que, acima do sob er ano e for a do seu alcance, há r egr as qu e constitu e m u m c o rpo es p e c í f ico , se ja qu an to à su a ma té r ia , s ej a quan to à su a au tor id ade , s eja quan to à su a estab ilidad e. Qu an to à su a ma téria qu e é a aqu is içã o, o exer cício e a tr ansmissão do poder. Qu an to à su a au to ridad e que é su p e r io r às regras e ma n a d a s do p o d er leg i s la t i v o o r d in ár io q u e s ã o n u la s s e e las conflitarem. Quan to à su a estab ilidad e, en f im, pois são imu táveis, ou, ao me no s, co mo conced iam alguns, so me n te alter á v eis pelo s Esta dos Ger a is. Emb or a não houv esse acordo r e la tiv a me n te à enu meração d as r egr as que co mpunh am f u n d a me n ta is t ev e esse amp l a corpo, d iv u lg aç ão a dou tr in a e d as ac e i t aç ão , leis te n d o p ene tr ado ta mb é m n a Ing la ter ra , ond e tan to a br and ia m c o mo a r ma os mo n ar ca s c o n tr a os p a r la me n ta r e s, q u ant o os fon te de p ar la me n tare s con tr a o s S tuar ts. N essa dou tr in a, en con tr a-se indub itavelmente a super ior id ad e e da imu tab ilidad e das reg ras con c ernen tes ao pod er, qu e se e mpr es ta à s con s titu iç õe s es cr itas .” - 142 Colhida esta síntese taxionômica dos diversos documentos, entende-se que as Leis Fundamentais do Maranhão, enquanto norma constitutiva guarda singularidade ainda mais visível, se examinadas à luz de alguns pontos característicos de cada uma das espécies normativas. Os Pactos peculiares ao Direito Inglês possuem como fundamento o acordo de vontades, figura que não se encontra expressa no texto das Leis Fundamentais do Maranhão, inobstante tenha estado presente no quadro fático anterior, quando se configurou a necessidade de instituição de um poder e a organização da colônia. Prova visível disso é o seguinte trecho do discurso registrado por d’Abbeville 208 em que Japiaçu, morubixaba 209 da Ilha do Maranhão se dirige ao Sr. Rasilly: “ E s tou mu ito con ten te , v a len te gue rr e iro, com o f a to de te r es v in d o a e st a t er r a p ar a f az er es a n o s sa f el i c i d ad e e n o s d efend er es con tra os nosso s in imigo s. [. .. ] A lcan çarás gr and e f ama en tr e as altas personalid ades, por te rde s de ix ado u m p a ís tã o b e lo como a Fr ança , [. .. ] a f im d e v ir es h ab itar es ta terr a, [ ... ] porqu e n e la en con tr ar ás [. ..] u m povo v a len te que te ob edecerá e te ajud ar á n a conqu ista de tôd as a s n açõ es v iz inh as. [. .. ] No sso s f ilho s aprend erã o a le i d e D eus , vo ss as ar te s e c iên c ia s, e co m o temp o se torna rão vo sso s iguais; haverá en tão alianças d e par te a p ar te, de modo qu e já n ingu ém pr ensar á que n ão s o mos f r ance s es . ” 208 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, pp. 59/60. 209 Morubixaba era o chefe temporal. O chefe espiritual era o pajé. - 143 - Em resposta o Sr. Rasilly 210 declara: “Louvo grand e me n te tua sab edor ia, velho amig o dos fr anceses, p e lo f a to d e, con s id eran d o a mis é r ia e a c e g u e ir a d e tu a n aç ão , n ão só r e la t i v a me n t e a o co n h e c ime n t o d o v er d ad e ir o D eu s , ma s , ta mb ém, d as co is a s n e ce ss ár ias ao u so do ho me m, te a l egr ar es com a m i n h a c h eg ad a e co m o me u p r o j e to d e r es id i r n a tu a terra. [. .. ] N ão la me n to ter d eix ado meu p a ís , [.. . ] e enqu an to tive rde s von tade de serv ir e ador ar o v erd ad eiro D eu s, de serd es fiéis e ob ed ien tes aos fran c eses, eu n ão vos ab andon arei. [ . . . ] N o ss a p er ma n ên c ia s er á u m b e m e f ar á a r iq u ez a d e v o sso p a ís, d e vosso s pó stereros, o s quais ser ão dor avan te igu a is a nó s e sab erão tôd as as belas co is as qu e sab e mos. [. .. ] Qu an to às le is qu e d e sejo estabelecer en tr e vós, só vo s darei as d e D eus e as que temo s em n o sso país; me u gov erno ser á mu ito br ando e condu zido p e la r azão.” Essas manifestações convergentes configuram, assim, o desejo recíproco de contratar o que viria a se constituir nas Leis Fundamentais do Maranhão. Há no episódio a concretização de um pacto, o firmamento de um propósito, o reconhecimento da identidade de vontades políticas. 210 D’ABBEVILLE, Claude, História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, pp. 61/62. - 144 Mas não é tudo. A ritualística empregada para a instituição dos poderes políticos sobre a colônia, através do reconhecimento da soberania real, não ocorreu de modo unilateral. Foi atribuído prazo para que os índios (provavelmente por seus líderes) refletissem acerca do fato. A isto se deve aditar o chateamento da cruz e a aposição dos estandartes e armas de França. Diante frequentemente na dos Idade Forais e Média Cartas pode-se de Franquia considerar que presentes as Leis Fundamentais do Maranhão apresentam como identidade o texto escrito, conquanto seja necessário fazer algumas ponderações. Esses documentos estabeleciam regras de proteção dos direitos individuais, circunstância que poderia conduzir à conclusão de que as Leis Fundamentais do Maranhão deles se distanciam, pois não tratam de declaração de direitos. Disso se tratará adiante, embora seja prudente antecipar que algumas disposições normativas relativas à propriedade, integridade pessoal e tantas outras, ao serem estabelecidas expressamente importam em restringir condutas dos franceses, assegurando direitos aos colonos. É dessa limitação que se inferem direitos, conquanto não reunidos nos moldes de declaração sistematizada. De certo que o propósito expresso na norma examinada foi o de constituir um Estado com bases em formulações principiológicas que, se antes podem encontrar na “Magna Charta de João Sem Terra” (espécie típica de pacto) precedente embrionário, por outro, antecipam declarações cujas extensões vão ser encontradas nos documentos formais da modernidade, perdurando ainda hoje. - 145 A organização formal de uma sociedade encontra na norma expressão de vontades que se assenta sobre as bases da idéia de nação, conjunto de princípios, valores, costumes e comportamentos de um dado conjunto populacional. Essa vontade sempre esteve e sempre estará presente, como há tempos nos adverte o Professor Paulo Bonavides 211: “ A an á l is e h is tó r ic a e so c io ló g ic a r ev e la q u e u ma v o n t ad e c ons titu in te s e mp r e ex is tiu na v ida d a s so c ieda de s org an iz ad as e é assim que se no s d epar a, no d ecu rso dos séculos, a ex is tência fática d essa von tade, tendo por nascen te e titular a d iv ind ade ou o pr ínc ip e. A tr ad iç ão ocid en tal r econh ece, por tan to, duas fon tes d e leg itimidade demo crática do pod er constitu inte: a n ação e o povo. Para hav er Constitu ição leg ítima, segundo essa concep ção d e mo crática, há n ecessid ade de u m pod er con stitu in te primário eman ado d a von tad e nacion al, que hoj e é a própr ia von tade popu lar.” Coerente na sua cátedra, o Professor Paulo Bonavides 212, ratifica essa compreensão, reafirmando que “jamais deixou de haver o ato de uma sociedade estabelecendo os fundamentos de sua própria organização”. Por isso a distinção entre poder constituinte e teoria do poder constituinte. É nesse sentido que se tem como concebida a proposição de que as Normas Fundamentais do Maranhão tenham servido, ao menos em sua 211 212 concepção, como instrumento constitutivo de uma Constituinte e constituição. 2ª ed. Fortaleza: IOCE, 1987, p. 116. Curso de direito constitucional. São Paulo: Ed. Malheiros, 2002, 12ª. ed., p. 121. sociedade - 146 politicamente organizada, inobstante seu caráter rudimentar. Cada época um povo, cada povo sua particularidade. E é com suporte nessa constatação residente na sociologia que se pressupõe a idéia de que a manifestação normativa de cada época (e nisto se incluem as Leis Fundamentais do Maranhão) é fruto do particular modo de ser de uma sociedade, conquanto, de modo teórico e abstratamente considerado, cada povo possui imanentemente a idéia de composição orgânica, seja qual for a sua característica, sua singularidade, seu momento histórico. O que se torna recorrente, fique claro, é que a idéia de organização sócio-política esteve, está e sempre estará presente na sociedade, Impõe-se esclarecer que essa circunstância, hoje assim qualificada (como rudimentar) tem em si um pré-conceito fundado nos elementos conceituais construídos pelo constitucionalismo a partir do nascimento do Estado Legal de que se tratou anteriormente. De fato, essa circunstância não encerra a vinculação entre a natureza constitutiva de uma sociedade e a norma positivada de forma escrita. Fala-se de sociedade, não de contingente, aglomerado populacional, pois a idéia de nação conjuga a convergência de valores cuja identidade, ainda diante de pluralidade, é capaz de produzir a identificação de um núcleo em torno do qual gravitam as vontades, compondo-se, aí, um ideário cuja dimensão útil permite uma prospecção acerca de sua extensão e eficácia. A força constitutiva da norma examinada encontra afinidade mais nítida (poder-se-ia obtemperar) na possibilidade de compreender-se um conjunto normativo com “status” ordinário apto a reger o cotidiano de uma comunidade embrionária como a existente à época. Mas isto já se encontrava nas regras de “leis de policiamento” existente entre os índios - 147 tupinanbás 213. Yves d’Evreux fala, ainda, nas leis do cativeiro e outras leis para os escravos 214. É curial compreender que não se pode esperar a concepção de institutos que só surgiriam com o advento do Estado Moderno, como empecilho ao exame do tema. Nem por isso se pode perder de vista que a força constitutiva encontra sedimentação em toda sociedade política, conquanto sua edificação teórica decorra do advento do Estado Moderno, ou mais propriamente, Estado Constitucional. A natureza constituinte do poder inicial aponta para uma abordagem compreendendo dois planos, como já enfatizado, sendo o primeiro, como fenômeno meramente fático, destituído de elemento volitivo. O segundo, com interferência humana, axiológica, como obra daqueles que governam, como registra o Professor Paulo Bonavides 215. A excludente, na idéia inaugural medida em constitutiva que não de existe poder tem natureza limitação para sua manifestação, dissociado que está de uma dada ordem jurídico-positiva. O plano da existência, assim, seria suficiente para identificar sua origem, na medida em que desvinculado (o poder de constituir) da ação humana como instrumento capaz de intermediar a elaboração de um conjunto normativo qualquer. O plano positivo, em que a ação humana envolve a construção de uma norma fundante, seria, sob essa perspectiva factual, uma limitação à manifestação espontânea e, nesse sentido, castradoraconstrutiva (não há contradição no neologismo). 213 D’ABBEVILE, Claude, História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 255. 214 Viag em ao no rte do Brasil feitas no s anos de 1613 a 1614. São Pa u lo : Ed itora Siciliano, 2002 , pp. 101/108. 215 Curso de direito constitucional. São Paulo: Ed. Malheiros, 2002, 12ª. ed., p. 125. - 148 Explica-se: castradora, pelo impacto que causa no surgimento natural, peculiar à natureza humana – o constituir é um estado característico de qualquer sociedade, mas esse estado natural é limitado pela ação intelectual. Construtiva, no sentido de organização e disciplina formal de uma sociedade pela ação intelectual deliberada, com objetivos visíveis: instituir, organizar, através do regulamento de órgãos, poderes e instituições. É no plano histórico que se vai inicialmente identificar o propósito orgânico dessa comunidade, uma vez que nele se encontra o embrião das situacionalidades sobre as quais incidirão as normas instituídas. Situacionalidades são estados que caracterizam uma circunstância relacional, são situações que identificam o instante factual em que se encontram as pessoas em dado momento histórico, sobre o qual incidirão proposições normativas construídas. É momento fático. De fato, o conjunto dos habitantes possuía sob as bases naturais os instrumentos de convivência assentados nos usos e costumes. O cotidiano era objeto de deliberação pelas reuniões da “Casa Grande”, como mencionado anteriormente. A simbologia identificada nesse organismo característico das aldeias guarda consigo a proximidade interna com a idéia de parlamento. As decisões decorrentes das reuniões entre colonizadores e nativos continham elementos de natureza pactual, na medida em que ocorriam após os rituais simbólicos próprios dos franceses e que mereciam dos colonizados toda a atenção e concordância, o sinal de convergência de propósitos: para uns, receber o conhecimento da fé cristã; para outros, a instituição de um Estado com bases normativas próprias, de natureza fundamental. - 149 Ali todo o berço da legitimação de constituição de uma sociedade fundada nos alicerces do Estado conhecido até então: o divino e natural como fundamento do poder monárquico que, se exercido sem atenção a seus próprios fundamentos alcança o “status” de poder tirânico. O alcance da natureza constituinte das normas que são objeto deste estudo haverá de ser buscado, primeiro, no plano histórico, portanto, diante de um quadro de uma comunidade sobre a qual, após inúmeros contatos entre nativos e alienígenas, foi acordada a instituição de instrumento cuja concepção e formalização ocorreu em 1612. Sob esse aspecto é forçoso concordar que a comunidade existente então (ignorando qualquer vinculação formal concebida em território brasileiro) possuía como sói encontrar-se em qualquer núcleo populacional com mínima organização, o que se denomina aqui de núcleo potencial de vontade constitutiva. Cuida-se do centro de nascimento das normas, escritas ou não, que compõem determinada sociedade. Em toda sociedade esta situação fática existiu e sempre existirá. Não é sem razão que Carré de Malberg 216 adverte: “ F in a l men t e, se l l eg a al r eco n o c i mie n to in ev i ta b le d e q u e l a Constitu c ión primitiv a del Estado, aquella qu e lo orig ino, no pudo ser obr a de sus órg anos, sino qu e p rocede de u ma fuen te s itu ad a fue ra del E s tado ; y po r con sigu in te, e s te recono cimien to imp lica qu e en la b ase d e l Estado ex is te un a vo lun tad y un a po s te s ta d d istin ta s d e la s d e l E s tado mi s mo ; vo lun tad o po sted ad qu e no pu ed en ser sino d e ind iv íduo s; vo lun tad gen erado ra d el Estado que ap ar ece co mo an te r ior y super ior a ella; vo lun tad con stituyen te d e la que la vo lun tad constitu íd a del Estado nos es sino un produ cto ou un s uc edân eo ; vo lun tad, por lo tan to , qu e es la v erd ade ra vo lun tad 216 Teoria general del Estado. México: Fondo de Cultura Econômica, 2001, p. 1162. - 150 sober an a, porqu e es la vo lun tad p r imar ia con s titu yen te. En un a p a labr a, se llega a r econo cer así qu e la soberan ia propr iame n te d i cha y en e l s en t id o a b so lu to d e la p a l ab r a e s t á s it u ada p r i mi t i v a me n t e f u e r a d e l Es t a d o . Es n e c e s s á r i o , p o r lo ta n to , acab ar siempr e bu scando la en los ind iv íduos.” Com efeito, a legitimidade das regras consignadas nas Leis Fundamentais (Norma Fundamental) reside na primariedade de sua base, incondicionada por outra norma, nascendo, assim, originariamente independente de qualquer vinculação normativa existente no Continente Americano, inclusive das regras lusitanas, de mínima aplicação ou nenhuma aplicação nessa parte do território. Seria lícito considerar que as Leis Fundamentais do Maranhão teriam vinculação a uma Carta Patente conferida pela coroa francesa e isto implicaria em destituir a norma de um dos elementos caracterizadores da natureza constituinte: a soberania, como determinação do poder político. Vendo na atribuição da soberania um problema iminentemente político, Paolo Biscaretti Di Ruffia propõe o seu enfrentamento em conformidade com o período histórico observado, sinteticamente assentando o seguinte: “a) duran te a épo ca med iev al, duas tend ências an titéticas se con trapunh am a esse r esp eito, u ma v ez qu e, enquanto a p r i me i r a d el a s ind i c av a c o mo fonte do pod er de governo o po vo, b a seando- se na trad iç ão ro man ística d a Le x R eg ia ( co m a q u a l se cos tu ma v a co n f er ir ao s I mp er ad o r e s su a su p r e ma au tor idad e atrav é s de u ma inv estidur a popu lar) e se invo cav a ta n to o p a c tu m soc i e ta ri s (co m o qu a l os ho me n s p a ss ar iam d o estado d e na tureza ao estado d e so ciedade ) co mo o pa ctum subjection is ( me d i an t e o qual s er iam s u b me t i d o s - 151 sucessivame n te a u m gov erno, salv ando, porém, seu s d ireitos na tura is) ; a segund a se r ef er ia d ir e ta me n te a Deu s (apo iando- se no an tigo ax io ma non est enim potesta s n isi a Deo , en tend ido no sen tido d e qu e a autor id ade d iv in a op erava d ir e ta me nte n a e le ição d as pe sso as do s Sob er ano s p er tenc en tes à D ina s tia Rein an te); b) dur an te o per íodo revo lucion ário nos f in s do sécu lo XVII I, alcan ça clara pr epond erância a doutr in a qu e con sid er a o povo co mo árb itro das qu estõ es po líticas, ma s esta assu me do is a sp ec to s d iv erso s, confor me a sob eran ia fo ss e cons id era da fr ag me n tada en tr e todo s os co mpon en te s desse povo (e, por tan to, cada cid adão ter ia como sua u ma pequ en a fr ação : soberan ia popu lar no sen tido estr ito), ou conf er id a à Na ção em s eu co mp lexo ind iv is íve l (con c ep çã o , t ip ic a me n te f r an ce sa , d a c h a ma d a sob eran ia na ciona l; forj ad a p e la burgu es ia par a e v itar a con cessão ind iscr imin ada do s dir e itos po líticos a todo s o s cidad ãos) ; c) esclarecid a, u ltimamen te, a d istin ção en tr e sob eran ia e n tend id a co mo fon te po lítica do pod er go vernamen ta l e co mo titu laridad e ju ríd ica do mesmo, a con cep ç ão d e mo c r á t i c a ma i s d ifund id a, enquan to f ixou a fon te po lítica d e tal poder n a co le tiv id ade popu la r (ou nacion al) ( co mo já me n c ionou) d ir e ta me nte atr ibu iu a titu la r idad e ao Estado (ou seja, à org an ização jur íd ica d a co le tiv id ade popu lar.)” Sucede que a cláusula que dá fundamento às Leis Fundamentais do Maranhão como instrumento constituinte reserva a expressão de Constituição de um único Estado soberano, no caso, o Estado da França Equinocial. Nesse sentido, formal e materialmente a norma que examinamos neste tópico dispõe de força constituinte, servindo como declaração da vontade soberana do poder monárquico. Esta concepção não se contradiz à idéia de soberania. É preciso ratificar uma vez mais que a vinculação à vontade monárquica - 152 (ainda quando absoluta) encontra limite na lei divina e natural, embora esta limitação possa ser alvo de violação, o que transformaria a monarquia (repita-se por mais uma vez) em tirania. Portanto, o absoluto é fundamento do sistema político monárquico, não um passaporte à violação do ordenamento. De certo que não se pode pretender que esse caráter inicial tenha tamanha singularidade capaz de ficar imune a influências de exemplos precursores. É que o Direito Inglês já dera ao mundo a “Magna Charta Libertatum”. O florescimento das idéias que mais tarde comporiam o constitucionalismo fatalmente atravessaria o Atlântico influenciando as manifestações formais que culminariam com o advento da Constituição Americana, formalmente considerada a primeira Constituição do mundo. A conquista da Nova Terra não ficou imune ao fenômeno que ganhou de Santi Romano 217 o rótulo de “transmigração”, que consiste em propagar o direito, decorrente de diversas causas, dentre as quais merecem destaque: “[...] a) a conqu ista ou a colon ização, que imp õ e ao p a ís conqu is tado ou co lon izado a ordenação do Esta do conqu istador ou da me trópo le, salvo opor tun as ad ap ta çõ es; b) a livr e ado ção por p ar te de um E s ta do d as in stitu içõ es de um ou tro, v er if icando-se aqu e le qu e Emer ico A man i dizia, co m f e liz expressão, ‘con tag io s idade do d ir e ito’. Conforme a cau sa qu e o d e ter min a, esse fenô meno pode assu mir aspectos qu e v ar iam tamb ém sob ou tros pon to s-de-v ista: ou u ma o rdenação estend ese a novos p a ís es co m a su a própria força juríd ica, co m seu s própr io s te x tos, com su as própr ias leis , p ar c ia lmen te, mo d if icada ou ín tegr a; ou ela é apenas imitada por u m ou tro E st a d o , q u e a t o ma c o mo mod el o , s e m q u e e n t r e a s d u a s 217 Princípios de direito constitucional geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, pp. 47/48. - 153 ord enaçõ es haj a iden tid ade ou qu alquer r e lação jur íd ica. A pr imeir a h ipó tese ver if ica-se, pr in cipalmen te, no caso de conqu is ta ou co lon ização, e co mo exemp lo típico pod e-se citar a prop ag ação do d ir e ito ro ma no ; a segund a qu ando se tem a livr e adoç ão. E is to s em c on s id erar u ma te rc eir a h ipó tes e, que aqu i n ão interessa e qu e se tem q u ando do is ou ma is Esta dos o b r ig a m- se , i n t er n ac ion a l me n te, a ter sob r e d et er mi n a d a s ma té r ia s nor ma s id ên tica s. ” Mas no Brasil vigiam à época normas provenientes de Portugal. O Maranhão, - que não integrava o Brasil - a exemplo do Grão-Pará, “[...] estava subordinado diretamente às autoridades de Lisboa [...] ”. Só em 1774 veio ocorrer a integração ao território brasileiro em 1774, [...] quando finalmente se integrou no Brasil.” 218. Como, então, admitir que possa ter havido suporte para viger direito francês em terras que já haviam sido conquistadas pelo acordo decorrente do Tratado das Tordesilhas? Bem a propósito é o estudo de Ives Gandra da Silva Martins Filho 219 sobre a consolidação legislativa brasileira em que é dada notícia da legislação aplicável no território brasileiro à época, atribuindo a qualidade de primeira Constituição do Brasil ao “Regimento de 17 de dezembro de 1548 (integrado por 41 artigos e 7 suplementares)” dado a Tomé de Sousa, primeiro governador do Brasil. “ A lé m d e ssa le i g era l, o s gov ern ador es-g er a is e os v ice- reis do Br asil estiveram sub metidos aos Reg ime n tos, que tr açavam n o r ma s e sp e c íf i c as p ar a o Bra s i l, es t ab e le ce n d o me d id a s a 218 219 MARIZ, Vasco. La Ravardière e a França Equinocial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 139. In Revista jurídica virtual, n. 03, de julho de 1999, [http://www.planalto.gov.br/...]. - 154 s er e m tomadas org an iz a ção da n as c ap i t an i as , d efe s a, tr a ta me n to d is c ip lin a me nto dos do í n d io s , comé r c io, org an iz a ção da jus tiça , nor ma s de arr e cad a ção, cu id ado s co m o s hosp ita is e igr ej as , etc . ” Em Ibsen José Casas Noronha 220 também se confirma a assertiva: “O Reg ime nto do pr imeiro gov ernador g eral do Brasil fo i dado e m A l me i r i m, a 1 7 d e D e z e mb ro d e 1 5 4 8 , e f o i c h a ma d o d e pr ime ir a Con stitu iç ão do Br as il po r P edro Ca lmo n . Ne le, o r e i d e Por tuga l ord ena o c as tigo aos índ ios in sub mis so s e a paz aos q u e a té a í t in h a m co l abor ad o . ” Sendo assim, parece estranho falar-se em normas com natureza constituinte provenientes da França, com aptidão de produzir o Estado da França Equinocial, se já vigentes normas no Brasil! De certo, ao duvidar da eficácia do Tratado das Tordesilhas, pois não lhe reconhecendo natureza de “testamento de Adão” (alegação atribuído ao rei de França, Francisco I) 221, o reino Gaulês, que já mantinha relações com os habitantes do norte do Brasil e da Nova Terra, tinha como bastante a própria monarquia ali estabelecida, como governo soberano e capaz de instituir, em suas conquistas, domínios políticos e comerciais. 220 Aspectos do direito no Brasil quinhentista: consonâncias do espiritual e do temporal. Coimbra: Almedina, 2005, pp. 130/131. 221 MEIRELLES, Mário Martins. História do Maranhão. São Paulo: Siciliano, 2001, p. 39. O autor fala em anedotário quando nos remete ao fato. Diz, textualmente: "Conta o anedotário da história que Francisco I, de França, em face das bulas dividindo o mundo a descobrir entre Espanha e Portugal, teria dito gostar de conhecer a cláusula testamentária de Adão que excluída, em benefício dessas duas coroas, os demais príncipes cristãos.”. MARIZ, Vasco, ob. cit., p. 17 – por nós citado no item “O FATO HISTÓRICO” – dá ao acontecimento veracidade histórica. - 155 Portanto, o convencimento francês dava suporte a eficácia do seu arcabouço legislativo. As Leis Fundamentais do Maranhão foram concebidas, tornadas públicas e arquivadas no Arquivo Geral do Estado da França Equinocial no dia 1º de novembro de 1612. No Continente Americano o que existe de mais remoto a merecer análise da natureza constituinte é a Carta Colonial da Virgínia, que data de 1606. Essa carta “continha apenas a declaração sumária de que os colonos possuíam todos os direitos dos ingleses” 222. Como todas as cartas coloniais eram “recebidas de Londres, como todas as cartas reais, eram concebidas como uma questão de privilégio” 223. Sendo direitos decorrentes de cartas reais e por extensão aplicados os direitos dos ingleses aos colonos é possível falar-se em direitos filiais, ou decorrentes, portanto, sem o perfil de originalidade que se encontra nas Leis Fundamentais do Maranhão. Demais, é oportuno registrar que a legislação colonial eventualmente era alvo de anulação “[...] na Inglaterra pelo órgão de um tribunal ou Conselho Executivo, quando não pelo Parlamento, que também tinha o poder de legislar para as Colônias [...] ” 224. Sucedendo à Carta Colonial da Virgínia merece destaque o Pacto de “Mayflower”, firmado entre os peregrinos passageiros do navio que os trouxe ao Novo Continente, o que ocorreu em 11 de novembro de 1620. 222 SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 35. 223 SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade “The Bill of Rights”. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 37. 224 COOLEY, Thomas M. Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos, 1ª. ed. Campinhas: Russell, 2002, p. 17. - 156 Há quem defenda, como Schwartz, que “o instrumento mais antigo a desempenhar um papel na evolução constitucional dos americanos foi a carta colonial”, sob esse aspecto podendo ser considerado, ao menos sob uma perspectiva material, como uma espécie de Constituição, conquanto limitada pela própria cláusula de obediência aos preceitos das normas vigentes no Parlamento Inglês, v.g., o governo “estava sob a autoridade de um Conselho Real da Virgínia, cujos 13 membros eram designados pela Coroa e reuniam-se em Londres”. Paulo Bonavides 225, com suporte em Esmein, afirma que: “A p rimeir a Constitu ição escr ita qu e ap areceu no mu ndo, em b ases modernas, ou sej a, do tada de car á te r ‘nacional e limita tiv o’ fo i [.. . ] o ‘In s tru me n t of Gov ern me n t’, p ro mulg ado por Cro mwell a 16 d e d ezembro d e 1633, na Ing laterr a. Con tinha esse instru men to 42 artigos, serv indo d epo is d e p ad r ão ao c o n s t i tu c ion a l is mo a me r i c an o de a sc en d ênc i a ing lesa, confor me ponderou aqu e le pub licista. To rnou-se en tão ‘o p ro tó tipo d a Con s tituiç ão dos Es ta dos Unido s.’ ” Este convencimento (tanto de Schwartz quanto de Bonavides), contudo, não contradiz a sustentação feita aqui, dado que esse documento (a Carta Colonial) não foi concebido no Continente Americano. Mas há os que preferem ver no Pacto de “Mayflower” a primeira Constituição da América, tendo esta a particularidade de ser redigida em Continente Americano. Neste segundo grupo está Waldemar Martins Ferreira 226 que afirma textualmente: 225 226 Curso de direito constitucional, 12ª ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 68. História do direito constitucional brasileiro. São Paulo: Max Limonad, 1954, p. 21. - 157 - “Assim, ‘os p er egr inos do Ma y flowe r n ão invo car a m a Ca r ta Rég ia, que lh es serv is se d e nor ma , ma s o seu própr io Pacto do Ma y flo wer, c ons id er ado a pr ime ira con s titu ição es cr ita do mu ndo . D epo is de jur ar e m todos ma n ter a o rdem legal i n s t i tu íd a, o s p er eg r in o s co me ç a r am a c o n s tru i r seu s la r es , e m me io às exp er iên cias co mun s a todo s os p ioneiros na h istór ia do s Estado s Un ido s.” Conquanto a Carta Colonial da Virgínia (1606) seja temporalmente anterior às Leis Fundamentais do Maranhão (1612), temse como ponto fundamental que a concepção daquelas deu-se como resultado de um documento escrito provindo da Inglaterra. Por outro lado, conquanto o Pacto de “Mayflower” (1620) tenha sido concebido e escrito no Continente Americano, a dar-lhe caráter pioneiro sob o aspecto de Norma Fundamental, foi concebido oito anos após a concepção das Leis Fundamentais do Maranhão, concebidas, escritas, publicadas e arquivadas no Continente Americano (1612). Funcionam a favor do pioneirismo das Leis Fundamentais do Maranhão a cronologia e a territorialidade. Ainda quando examinado o assunto sob esta segunda ótica da natureza constitucional, do mesmo modo não inviabiliza a defesa aqui pretendida. Portanto, sob o aspecto histórico, com o assentimento dos registros, inegavelmente as Leis Fundamentais do Maranhão constituemse no documento formal com conteúdo constituinte, elaborado neste continente, mais remoto e com bases constituintes e orgânicas existentes. É possível obtemperar-se que sob a ótica formal o Pacto de “Mayflower” possui densidade constituinte muito mais nítida do que as - 158 Leis Fundamentais do Maranhão, dada a própria estrutura semântica daquele, muito mais objetiva e dirigida à declaração de direitos naturais, fundados em formulações em base racionais. Contudo, ambas as normas possuem um objetivo só, qual seja, a nítida finalidade de organizar uma sociedade sob determinados parâmetros principiológicos. Não é o fator semântico, mas o fator substancial que vai determinar a natureza da norma, e isto estará presente em ambas, uma vez comporem-se com o nítido propósito de organização e regulação do poder. Examinadas as proposições até aqui lançadas, e tendo por empréstimo as asserções lançadas pelo Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho 227 pode-se afirmar que as Leis Fundamentais desfrutam de natureza constituinte, particularmente, sob uma perspectiva material: “A ex istên cia de leis fundam en ta is que se impõ em ao própr io r e i é u ma c r ia ç ão d o s l eg i s ta s f r an ce se s, e mp e n h ad o s e m d efend er a Coro a, con tr a as fraqu ez as do própr io mo n arc a. Af ir ma v a essa dou tr ina qu e, acima do soberano e fo ra do seu alcan ce, h á r egras que con s tituem u m co rpo esp ecífico, s ej a qu an to à sua ma té r ia, se ja qu an to à su a au tor idade, seja quan to à s u a e s tab il i d ade . Q u an to à su a ma téria q u e é a a q u is i ção, o exer cício e a tr ansmissão do poder. Qu an to à su a au to ridad e que é su p e r io r às regras e ma n a d a s do p o d er leg i s la t i v o o r d in ár io q u e s ã o n u la s s e e las conflitarem. Quan to à su a estab ilidad e, en f im, pois são imu táveis, ou, ao me no s, co mo conced iam alguns, so me n te alter á v eis pelo s Esta dos Ger a is. Emb or a não houv esse acordo r e la tiv a me n te à enu meração d as r egr as que f u n d a me n ta is co mpunh am t ev e esse amp l a corpo, d iv u lg aç ão a dou tr in a e d as ac e i t aç ão , leis te n d o p ene tr ado ta mb é m n a Ing la ter ra , ond e tan to a br and ia m c o mo 227 Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1987, pp. 4/5. - 159 a r ma os mo n ar ca s c o n tr a os p a r la me n ta r e s, q u ant o os fon te de p ar la me n tare s con tr a o s S tuar ts. N essa dou tr in a, en con tr a-se indub itavelmente a super ior id ad e e da imu tab ilidad e das reg ras con c ernen tes ao pod er, qu e se e mpr es ta à s con s titu iç õe s es cr itas .” O adjetivo “fundamental” imprime natureza de elemento básico, essencial, indispensável, constitutivo, elementar, expresso na composição figurativa simbólica da pirâmide. O fundamental é elemento nuclear, pois através de sua estrutura transitam todos os demais componentes da norma-maior que rege a sociedade que se buscou organizar jurídica e politicamente. Sua base repousa nas Leis Fundamentais do Maranhão, cenário político sobre o qual a Coroa Francesa desejou construir o Estado da França Equinocial. A qualificação de fundamentais é encontrada na concepção medieval das normas do reino em que a estrutura formal obedece a um esquema que reúne o poder eclesial e o poder temporal, estruturando-se como norma orgânica cuja concepção e elaboração (das Leis Fundamentais do Maranhão) ganham a singularidade de nascerem no Continente Americano como obra dos colonizadores, sem que venham escritas da Europa como acontecia com o esquema inglês. Como norma cuja densidade jurídica reside na própria estrutura formal dos enunciados, as Leis Fundamentais adaptam-se ao esquema abstrato da norma jurídica, através da relação de antecedência e conseqüência, imputação, validadas pela Norma Fundamental, podendo, com isto, ser objeto de teorização, uma vez sendo ajustável ao esquema formal contido no plano lógico-jurídico do conhecimento. Mas ao mesmo tempo a norma pode ser observada e aplicada, concretizando-se, assim, como instrumento cogente e eficaz em uma sociedade cujas bases consuetudinárias regulava o quotidiano ordinário dos nativos. - 160 Sua estrutura formal preserva características encontradas nas normas fundadas no elemento teocêntrico, preservando a autenticidade do modelo formal da época, sendo assim divididas: a) artigos relativos à glória de Deus; b) artigos relativos à honra e serviço do Rei; c) artigos referentes à companhia. A despeito dessa composição tem-se como possível a adoção da seguinte proposição para fins de sistematização do discurso construído: 1) Cláusula de origem ou fundamento; 2) Cláusula de incidência; 3) Cláusulas de salvaguarda; 4) Cláusulas da Companhia e da Sociedade; 5) Cláusulas de proteção dos índios; 6) Cláusulas do sistema de penas. O exame de algumas dessas cláusulas reforça a idéia da força constituinte das Leis Fundamentais do Maranhão, porquanto demonstram a densidade jurídica de cada regra integrante do corpo normativo e o objetivo político da norma propriamente dita. A decomposição da estrutura da norma nos moldes como aqui proposto não impede que outros possam ser feitos, com rótulos diferentes, mas o propósito é traçar um perfil geral sobre o objeto da pesquisa, com o esforço de construir de forma sistêmica o argumento do discurso. Assim é que a estrutura pode ser examinada nestes moldes. 13.1. CLÁUSULAS DE ORIGEM OU FUNDAMENTO: As denominadas “cláusulas de origem ou fundamento” configuram-se como aquelas em que são enumeradas as autoridades que dão suporte à concepção e fundamento às normas. É onde reside o fundamento de validade (numa perspectiva jurídico-normativa) ou a legitimidade (numa perspectiva política) de todo o arcabouço jurídico. - 161 São elas: “ E m no me de Su a Maj e s tad e, nós , D an ie l d e la Tou ch e, Cav a leiro e Senhor de la Ravardiere, Fran cisco d e Rasilly, tamb ém cav aleiro , senhor do dito lugar e de Aunelles, pro cur ador do alto e poderoso senhor N ico lau d e Har lay, cav a leiro, senhor de San c y, Barão d e Mo lle e d e Gravo is conselheiro de Estado e do Conselho Pr ivado do Rei, lo cote nen tes -gen era is d e Su a Maj e s ta de n as Índ ias O c iden ta is, tendo empreend ido , por gr aça d e D eus, o esta belecime n to de u ma c o lôn ia f r anc es a n o M ar an h ão e ter r a s a d j a c en t e s, e a conver s ão do s h ab itantes ao cr is tian is mo , d e acôrdo com as in tençõ es do Rei d e Fran ça, no sso Sob er ano e Senhor, de confor mid ad e co m o pod er qu e no s ou torgou Su a Majestade, c o mo con s ta d as c ar t as p a ten t es q u e n o s d eu , e a i n d a e m ob ed iên c ia à au tor id ade da Ra inha Reg en te, no ss a Sob eran a e Senhor a, ju lg amos n ecessár io e conv en ien te, antes de qualqu er o u tro a l ic erc e , d e cr e tar, p ar a e ss a c o lôn ia , a s ma i s s a n ta s l e i s, e as ma is ad equad a s, na me d id a do poss ív e l, ao no sso pr in cíp io, te ndo por cer to qu e sem a Justiça ord enad a po r D eus aos ho me n s, su a imagem, n ão pode ex istir r epúb lica algu ma . Po rtan to, reconh ecendo a graça a bond ade e a miser icórd ia d e monstradas por D eus ao conduzir-nos tão f e lizmen te a bo m p o r to, co me ç ar e mo s p e la s o r d en a çõe s q u e d i z em e s p e c i a lme n t e r esp eito à su a honr a e à sua g lór ia.” A concepção da necessidade de ser instituída uma colônia sob a égide de leis, com suporte na inspiração religiosa nos moldes da época e a consciência de que uma república não existe sem isto, prenunciam um conjunto dispositivo de regência que se aproxima dos preâmbulos constitucionais. São como que o centro de sustentação de toda a estrutura material e formal da norma, uma vez cuidando da fonte - 162 nos moldes da espécie legislativa então existente. Era o modelo da época. Mais do que hoje, dada ao dissenso em torno do valor dos preâmbulos, estes preceitos possuem força eficacial muito mais significativa, pois têm em si o elemento sobrenatural que impunha enfaticamente o reconhecimento de que Deus era o centro do universo. Examinada a matéria em torno da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 pode-se colher como exemplo de semelhança com os dispositivos da norma estudada, o Preâmbulo. Na norma brasileira há, do mesmo modo, a invocação da proteção de Deus como inspiração para construir um Estado Democrático de Direito, conquanto Estado e Igreja sejam instituições separadas. Se examinado o artigo 1º que institui a República e estabelece todo o conjunto de fundamentos sobre os quais ela se constrói, pode-se compreender a idéia de fundamento pautada na concepção democrática (hoje) pelo sistema representativo. Demais disso, a força do simbolismo e a ritualística adotados pelos franceses eram credenciais à configuração da legitimidade da conquista, portanto, do poder político. Por outro lado a menção aos monarcas e aos postos honrosos desempenhados pelos representantes reais dá ênfase à origem da norma, sinalizando sua fonte legitimadora de forma expressa, com assentamento nas bases religiosas, compondo-se, assim, a dualidade Igreja-Realeza, fontes formais do direito natural de conteúdo divino. “Orden amo s, po is , expressame n te, a todo s, qu aisqu er que sejam qu alidad es e cond içõ es, que tema m, sir vam e hon rem a D eus, - 163 ob serv e m se us s an tos ma n d a me nto s e pro me ta m n ão e stima r n e m e mp r eg ar sen ão o s que soub ere m te r e s sa s an ta e r e ta in tenção ; Ord ena mo s qu e n ão b las fe me m e m s eu s an to no me , sob p en a d e mu lta para o s pobres d e Fr ança, arb itr ada p e lo con selho d e c o n f o r mid ad e co m a q u a l idad e d as p es so a s, até a t e r c e ir a v ez , d evendo n a qu ar ta ser pun ido corpor alme n te o b lasf e ma dor, segundo su a qu alid ade.” 13.2. CLÁUSULA DE INCIDÊNCIA: A “cláusula de incidência” corresponde ao plano de aplicação da norma, instituindo a sua extensão de aplicabilidade: “ordenamos a todos”, “ordenamos que ninguém”, “ordenamos que quem quer que seja”, “ordenamos sejam estas ordenações lidas e tornadas públicas na presença de todos”, são as expressões utilizadas para tornar claro que a norma é geral e impessoal, vinculante como toda norma jurídica, com eficácia assegurada pelo conjunto de disposições que passam a constituir um sistema de penas, portanto, não procedendo as razões de Pianzola 228 , como não procedem as de Vasco Mariz 229, sobre a destinação implícita restrita aos franceses. Na realidade há embutida nas cláusulas a generalidade e impessoalidade, próprias das regras de direito, conduzindo à aproximação com o princípio da isonomia previsto pelo artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil. 228 PIANZOLA, Maurice. Os papagaios amarelos, os franceses na conquista do Brasil. São Luís: ALHAMBRA, 1992, p. 163. 229 La Ravardière e a França Equinocial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 70. - 164 13.3. CLÁUSULAS DE SALVAGUARDA: As “cláusulas de salvaguarda”, em que a espécie normativa prevê mecanismo de preservação do poder real como forma de manutenção da própria fonte do poder. São mecanismos com os quais há proteção da norma como meio de preservar-lhe os preceitos, garantindo a sua eficácia. Estas cláusulas tanto se referem aos missionários capuchinhos quanto à integridade da honra real como instrumento de proteção garantido pelo sistema de penas previsto na norma. “Orden amo s a todos e qu em qu er qu e sej a, qu e honr em e r esp eitem os rev er endos p adr es Capu ch inhos, env iado s por Su a M aj e s tad e a f i m d e i mp l a n t ar e m e n tr e o s índ io s a R el i g i ão Ca tó lic a, Apo stó lic a e Ro ma na , sob p ena d e se re m p un ido s o s infr ator es segundo o caso e a of ensa p erpetrad a; Ord enamo s emb a race qu e ou n ingu ém, per tu rbe qu alqu er d ito s que capu ch inhos seja no a cond ição , ex er cício da r e lig ião ou d e su a missão de conversão d as alma s do s índ ios; isso sob p ena d e mor te. D epo is de estabelecido nos ar tigo s supra citados o que d iz r esp eito pr in cipalmen te à g lór ia d e D eus, determin amo s agor a o qu e se r e laciona co m a honr a do no sso Rei, o qu al houve por b e m d is tingu ir-no s com s u a es colh a p ara repr es en ta- lo n es te p a ís. Ord en a mos , po is , qu e n ingu é m a ten te con tr a no ss as p essoas ou con tra a v id a da co lônia, por me io d e parr ic íd ios, aten tados, tr aiçõ es, monopó lios, d iscur sos feito s no in ten to d e d esgo s tar os h ab itan tes, e cou s as se me lh an tes , e is so sob p ena d e ser o i n f r a to r con sid er ad o c r i mi n o so l e s a- ma j e s ta d e e conden ado à mo r te sem esp er ança de r e missão ; - 165 Ord enamo s expr essame n te ao s qu e tiv erem conh ecimen to d e atos tão pern icioso s, que os r evelem in con tinen ti sob p ena de igu a l ca s tigo ;” 13.4. CLÁUSULAS DA COMPANHIA E DA SOCIEDADE: Objetivam assegurar o direito de conquista (e nesse particular reside a idéia de soberania), como o direito de participação nos haveres da companhia, como, também, estabelecer um conjunto de preceitos que vão desde o comportamento pessoal ao comportamento público, através de previsão de norma edilícia, com é exemplo o sossego noturno. “E co mo o s me mb ro s de u m corpo não pod em ex istir sem u m chef e que o s d ir ij a, ord enamo s qu e cu mpr am to dos o s seus d ever e s para cono sco e nos pr este m a o bed iê ncia qu e no s é d ev ida , de a côrdo co m a in ten ção de Su a Maje s tad e, e emp r eguem suas fô rças e d isponham d e suas vid as em b enef ício d es t a co lô n i a , e m t o d as as o ca s iõe s, e mp r e sas e d e sco b e r ta s n ecessár ias, que porven tura o corr a m, sob pen a de ser e m consid er ados covardes e tr atados segundo sua inf id e lid ad e e d esob ed iên cia . D epo is de estab e lecido o qu e d iz r espeito à honr a e ao serv iço do Re i, repr esen tado em n o ssas pessoas, assim co mo ao beme s t ar e à s eg u r anç a d esta co lôn i a, o r d en a mo s , p ar a ma n u t en ção d es t a co mpa n h ia e d a s o c i ed ade , q u e v iv a m t o d o s e m p az e a mi z a d e , r es p e i t e m- s e mu t u a me n te, s e g u n d o a s c o n d içõ e s e qu alidad es pesso ais, e d escu lp e m uns aos ou tros su as fr aqu ez as , c o mo Deu s ma n da ; e is so sob pen a de s er e m consid er ados per turbador es do sossego púb lico. - 166 Ord enamo s qu e o edito r e la tivo aos du elos, baix ado p e lo inv ic to, mon arc a d e feliz me mó r ia, H enr iqu e o Gr ande , no sso f a lecido r e i, qu e D eus haja, sej a estr itame n te ob serv ado em su a p l en i tu d e ; e j u r a mo s n ó s j a ma i s f a z er a lg o e m c o n tr ár io , qu a isqu er qu e s eja m a s con s id era çõ es, b e m c o mo n ão p erdo ar o s infr a tor es , Por is so, pro ib imo s expr es sa me n te aos pr in c ip a is d e no ssa comp anh ia que j a ma is in te rced am a f a vor do s f a ltoso s, sob p ena d e nos d esagradar em e p assarem p e lo vex a me de u ma n ega tiv a ; Ord enamo s qu e o au tor de qualqu er ho micíd io, a me no s se p erpetrado co mprov adame n te em leg ítima d efesa, seja pun ido d e mor te p ar a exe mp lo ; Ord enamo s que qu em quer qu e sej a, conv encido d e f a lso testemunho con tr a qu em q uer qu e seja, convencido de falso testemunho con tra quem qu er qu e seja, sof ra a p ena qu e cab erá a o acu sado ; Ord enamo s que qu em quer se encon tr e fur tando seja, n a p r i me i r a v ez , a ço i t ad o ao p é d a f ô r c a, ao so m d a cor n e t a , e s irva durante u m a no n as obra s púb lica s, co m p erd a, n es se e sp aço d e te mp o, d e tôd as a s d ignid ade s, s a lár io s e proveitos ; d a segund a vez seja o infrato r enfor c ado. Em se tratado de cr iado do mé stico, sej a já no pr imeiro roubo en for cado . Vê-se, portanto, regras de postura pública e privada que reúnem direitos e deveres de modo a garantir a integridade individual, como, também a paz social e, portanto, a ordem pública. Previsões como tais já consignam noções de regras que se constituirão em preceitos objetivos de dispositivos constitucionais e infraconstitucionais do futuro, como é exemplo a preservação da integridade da vida e da dignidade humanas. - 167 13.5. CLÁUSULAS DE PROTEÇÃO DOS ÍNDIOS: Não seria razoável imaginar que a natureza contratualista das Leis Fundamentais do Maranhão deixasse de prever normas de proteção daqueles que foram instados a manifestar a aceitação. Certamente não se pode pretender que seja uma declaração de direitos sob a ótica do constitucionalismo, conquanto tenha o mesmo sentimento e o mesmo propósito. “ D epo i s d e e s t ab e l ec id o o q u e d i z r esp e i to a e s t a co mp anh i a, ta n to co m r ef eren c ia a os bon s co stu me s , rela çõ es mú tu as, pro teção d e suas v id as e honr a, co mo à segur ança do s seus b ens, ord enamo s, p ar a a conserv ação dos índ ios en tr egu es à n o ss a p r o te ç ão , e t amb é m p ar a a t r a í- los p e la d o çu r a ao c o n h e c i me n t o d e n o s s a s l e i s h u ma n as e d iv in a s , q u e n in g u é m o s esp anque, injur ie, u ltr aje, ou ma te sob p ena d e sofr er castigo id ên tico à of ens a ; Ord ena mo s qu e n ão s e c o me ta adu lté r io, por amo r ou v io lê nc ia, c o m a s mu lh ere s d o s índ io s , sob p en a de mor te, po is ser ia isso n ão só a r u ín a d a a l ma d o cr i mi n o so , ma s t a mb é m a d a c o lôn i a ; igu a lme nte ord ena mo s , s ob idên tica p ena , que nã o s e v io lente m a s mu l h e r e s so l te i r a s ; Ord ena mo s qu e s e n ão pr a tiquem q u a isqu er a tos d e son es to s co m as f ilhas dos índ ios, sob pen a, da pr imeir a vez, d e serv ir o d e linqüen te co mo escr avo n a co lônia por esp aço d e u m mê s; d a segund a d e tr azer fer ros ao s p és por do is me ses; d a terceir a d e ser condu zido à no ssa pr esen ça p ar a o castigo qu e ju lg ar mo s j u s to . Proib imo s aind a quaisqu er roubo s con tra o s índ ios, sej a suas ro ça s, s ej a d e ou tr as c ou sa s qu e lh es per ten ça m, s ob a s p ena s supra me ncion adas. - 168 - Estas regras reforçam, nitidamente, a generalidade e amplitude das regras contidas na norma. Cumpriria, ainda, observar que a previsão de direitos especiais aos índios é, nos dias atuais, matéria de ordem constitucional, notadamente enfrentada como regras assecuratórias do que a doutrina americana rotulou de ações afirmativas em face de minorias étnicas. 13.6. CLÁUSULAS DO SISTEMA DAS PENAS: Finalmente o sistema de penas previsto nas Leis Fundamentais do Maranhão encerra a classificação ora proposta. Não há, é bem verdade, um capítulo sistematizando as penas previstas nas Leis Fundamentais do Maranhão, o que não invalida a proposição oferecida aqui, uma vez que as hipóteses estão presentes em todo o corpo da norma. É merecedor de registro, entretanto, que muitas dessas regras ainda hoje estão presentes em textos constitucionais, algumas das quais até de duvidosa constitucionalidade. Há quem afirme que as Leis Fundamentais do Maranhão tenham aplicabilidade apenas aos franceses, inobstante considera-las como “espécie de constituição 230. Contudo, as várias referências aos encontros entre franceses e os caciques, o apelo para que houvesse uma reflexão em torno da aceitação da norma, com o reconhecimento do 230 PIANZOLA, Maurice. Maurice. Os papagaios amarelos, os franceses na conquista do Brasil. São Luís: ALHAMBRA, 1992, p. 163. - 169 poder soberano do rei de França nos dão a crença de que a “cláusula de incidência” preserva a idéia de aplicação recíproca, mormente ao observar-se na norma a proteção aos bens dos índios, a honra, a integridade física, etc., o que configura garantia em relação aos próprios franceses. Dando ênfase à extensão da norma, seu caráter bilateral e sua função política, vale reproduzir as cláusulas que dão dimensão à publicidade, à vinculação e à soberania. São elas: “ E p ar a q u e t u d o f iq u e c l aro e b e m a c e r t ad o d e u ma v ez p o r tôd as, orden a mos sejam estas ord enaçõ es lid as e tornada s púb licas na pr esen ça de todos e r eg istradas co mo lei s f u n d a me n ta is e in v io l áv e is n a se cr e ta r ia g er al d ê s te Es ta d o e co lôn ia, para ser e m consu ltadas qu ando n ecessár io. Em testemunho do qu e, assin a mos as pr esen tes ord enaçõ es co m o no sso p rópr io punho ; e serão sub scr itas por u m d e no sso s conselheiros, secr etário o rd inário. For te de São Lu ís , Maranh ão, d ia d e Todo s o s San to s, 1º de nov embro, ano da gr aça de 1612 – Assin ado – Rav ard ière – Rassily. Mais ab aixo p e los me u s senhor es – Abr aão S eg u e m- se e s t as p a l av r a s : A s pr es en tes le is e orde na çõ es a c ima tr an sc r ita s for a m lid as e torn adas púb licas, de mo do a qu e n inguém alegue ignorância, n este d ia de Todo s os San tos, 1º d e novemb ro d e 1612, por mi m, C o n s elh e iro , S e cre t ár io e Cha n c e l er G e r a l d ê s te Es ta d o e Co lôn ia, n a pr esen ça d e todos os franceses p ar tal f im r eunidos jun to ao Esta ndar te d a F r anç a, f in cado ne s ta ilh a e terra do Br asil, d e qu e to ma r a m posse, em no me do Rei, o s sr s. De la Rav arière, e Rasilly, seu s lo co-ten en tes. E receb eram d e todo s, e dos índ ios en tr egues às mã o s de ditos senhor es, jur a me n to d e f id e lidad e e pro me s s a d e v iver e m e mo rr er e m n a de fe sa d ês se e s t an d a r te , e m p r o l d a c o n s erv aç ão d e s ta t er r a e ao se r v i ço d e Su a Maje s tad e. - 170 D epo is de pub licad as, for a m esta s ord enaçõ es r eg istr ad as e gu ardad a s no arqu ivo ger a l dêste Estado e Co lôn ia, par a serv ir em no fu turo d e le is inv io láveis e fundame n tais e a elas se recorr er qu ando necessár io. Feito no Fo rte São Lu ís , Maranh ão, no d ia e ano supr a me n cion ados. Assin ado – Abr aão . Conf er ido o or ig in al, no arqu ivo geral d êste Estado e Co lôn ia fr an ce sa ,no Br as il, a ss in ado por mim, Con s e lhe iro, se cr e tá r io e arqu iv is ta geral, no Forte d e São Lu ís , Maranhão, no ú ltimo d ia d e nov embro d e 1612 – Ab raão.” O reconhecimento da soberania do rei de França com a concessão de prazo para que os índios refletissem acerca da norma concebida e o conseguinte juramento de fidelidade ao monarca, o chateamento da cruz e a colocação dos estandartes e armas de França constituem um conjunto de elementos simbólicos que asseguram a manutenção do poder, portanto, a integridade da soberania real. De forte conteúdo ético e religioso, como era próprio das normas da época, sua função primordial foi constituir um Estado soberano, embora o modelo normativo da época reunisse no próprio corpo legislativo a regulação ordinária, portanto, com fins de estabelecer um “modus vivendi” entre colonizador e colonizado. Assim, a fórmula utilizada atende à prática de um dado povo em determinado momento histórico, como expressão normativa resultante de uma concepção histórico-universal de Constituição, na feliz expressão de Paulo Ferreira da Cunha 231. Fundamentais são as leis, cuja base institucional impõe-se em face do rei mesmo, com o nítido objetivo de preservar a própria Coroa das intempéries e vicissitudes do mesmo monarca, forçando-lhe uma postura atenta à lei, afastando-o o máximo possível da tirania, 231 Teoria da constituição. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 2002, vol. I, p. 105. - 171 resultado do excesso que confunde a natureza absoluta do poder com uma presumível ilimitação. A doutrina empenhava-se em assegurar que fora do alcance e acima do soberano existiam regras com nítidas conotações orgânicoinstitucionais, embora normas de fundo divinos e naturais, pois reuniam disposições materiais sobre o poder, a autoridade, a soberania e a estabilidade. Há de se enfatizar que a natureza orgânica original tem forte ênfase no aspecto compartilhamento do pactual, teor conquanto das regras não se possa que compõem falar a em Norma Fundamental, as Leis Fundamentais do Maranhão. O pacto é resultado da convergência de vontades, conquanto não se possa dizer o mesmo de sua redação pela contingência natural da superioridade intelectual do colonizador, no caso o francês. Realmente, dos escritos do padre capuchinho depreende-se a convergência de vontade de cristianização dos nativos e a instituição de regras de convivência, com ampla discussão nas vinte e sete aldeias existentes então, configurando-se, assim, o forte indicativo de natureza pactual. Não fosse assim e seria irrelevante todo o périplo seguido pelas comitivas que visitavam as aldeias, como propósito de pôr em prática a conjugação dos elementos que estruturavam as normas instituídas aqui: as solenidades religiosas com as reuniões e deliberações sobre o que era apresentado por nativos e conquistadores. Sustenta-se, portanto, que a vontade incondicionada dos nativos é o próprio estado de fato que se denomina de núcleo potencial de vontade constitutiva, um “estar constituído’ natural e orgânico, que - 172 era a constituição material dos tempos medievos [...] ’” 232, o que o constitucionalismo moderno denomina de poder constituinte originário. O poder constituinte originário edifica sua manifestação de forma pioneira, autêntica, incondicionada, expressando um dado momento em que a vontade constituinte concebe, enuncia e anuncia valores e objetivos a serem alcançados por uma dada comunidade. Como bem enfatiza a lição do Professor André Ramos Tavares 233: “Segundo def in ição clássica, ‘pod er’ constitu in te or ig in ár io corr espond e à po ssib ilid ade (poder) d e elaborar e co locar em v ig ênc ia uma Con s titu ição e m s u a g lob a lida de . Es ta, por su a v ez , entende -s e co mo o do cu me n to b ás ico e s upre mo d e u m povo qu e, dando- lhe a n ecessár ia un id ade, org an iza o Estado, d iv id indo os pod er es (constitu ído s) e atr ibu indo co mp etên cias, qu e as segu ra a n e ce ssá r ia pro teçã o aos d ir eitos e g ar an tias fund amen ta is dos ind ivíduos e traça ou tras regras qu e te rão c ar á ter cog en te p ar a o le g is lador ord in ár io (defin indo co m is so, ainda qu e em linh a s ger a is , qual o sen tido que valid a me nte se pod erá esp er ar do r estan te do ordename n to jur íd ico), par a o gov ernan te (of er ecendo os con torno s aceitáveis d e sua atuação) e p ara a ma ior p ar te d as fun çõ es púb lica s d a Repúb lica .” É recorrente o alerta que não se poderia esperar que a norma em estudo contivesse elementos que servissem de paradigmas que pudessem ser contrapostos à realidade formal positivada, só bem mais tarde advinda com o surgimento do Estado Moderno. Contudo, a concepção de uma norma com natureza fundante (orgânica, disciplinar) sinaliza o propósito de instituir, sob a forma embrionária de Constituição, uma sociedade politicamente organizada. 232 CUNHA, Paulo Ferreira da. Teoria da constituição. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 2002, vol. I, pp. 106/107. 233 Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 28. - 173 A ponderação não inibe que se possa considerar a estrutura formal e material adotada pelas Leis Fundamentais, como forma de avaliar a existência de indícios da natureza constituinte. Bem a propósito, aliás, é a lição do Professor Paulo Bonavides: “Do pon to d e v ista formal, isto é, consid er ado ap enas d e mo do ins tru me n tal, o pod er con s titu inte se mp re ex is tiu e semp r e e x is tir á, sendo as s im um in s tru me n to ou me io c om que e s t ab e l e cer a C o n s t i tu i çã o , a f o r ma d e Es t ad o , a o r g an iz a çã o e a estru tura d a so ciedade po lítica. É, a esse asp ecto , verdadeira técn ica, ma s técn ica cuj a n eutralid ade per an te os reg ime s, v a lores ou id eo log ias se pod e em v erdad e admitir, d e sde que t e n h a mo s em v i s t a t ão - so me n te as s in a lar , com a d e s ig n a ç ão d esse poder, a p resen ça d e u ma von tade cr iador a ou pr imár ia, cap a z d e fund ar in stituições po líticas d e ma n e ir a orig in ária . Do pon to de v ista ma ter ial ou con teúdo, consid er ado por ém c o mo esp éc i e e n ão c o mo g ên e r o , ind iv id u a l iz ado e n ão g ener a lizado, for mu lado já em termo s h istór ic os no âmbito d e u ma t e o r i a, q u e d e l e t o ma c o n sciê n c i a, co n f o r me a c o n t e c eu dur an te o sécu lo XVIII , o pod er constitu in te é conceito r ealme n te novo, co m o objetivo de expr imir u ma deter min ada f i lo sof ia do pod er, i nco mpr e ens íve l for a d e s ua s r esp e ct i v as c ono ta çõ es id eo lóg ic as .” De certo que a idéia de Constituição alcançou a dimensão formal hoje existente como fruto do chamado constitucionalismo moderno. Mas, e as sociedades antigas, acaso não tiveram normas a lhes reger o quotidiano? Certamente que a forma da norma regente de uma sociedade antiga, sua densidade, bem como sua fonte originária, não podem ser tratadas com os critérios hoje existentes no constitucionalismo moderno - 174 ou contemporâneo. Mas daí a negar que se possa diligenciar no sentido de identificar o mesmo objetivo (conquanto com elementos incipientes) da norma do passado nos dias de hoje isto seria de todo improcedente. Como instrumento formal, no sentido de documento orgânico e positivamente existente, a norma fundamental de uma sociedade ganha singularidade que a própria história nos oferece a partir dos Estados Unidos da América. Mas Constituição não é apenas o monumento de uma dada sociedade, senão sua manifestação consubstanciada em valores, princípios, idéias e ideais, nesse sentido podendo ser dimensionada, também como fruto da história, sob uma perspectiva material. Para que se tenha, então, uma avaliação mais precisa do afirmado, examinemos, uma vez mais, alguns excertos das Leis Fundamentais do Maranhão: E m n o me d e Sua Ma je s tad e, nó s, Dan ie l de la Tou che , Cav a leiro e Senhor de la Ravardière, Fran cisco d e Rasilly, tamb ém cav aleiro , senhor do dito lugar e de Aunelles, pro cur ador do alto e poderoso senhor N ico lau d e Har lay, cav a leiro, senhor d e Sancy, Ba rão d e Mo lle e d e Gr anvo is conselheiro de Estado e do Conselho Pr ivado do Rei, lo cote nen tes -gen era is d e Sua Maj e s tad e n as Índ ias O c iden ta is , [. .. ] Ord enamo s qu e o au tor d e qu alquer ho micíd io, a me n os qu e p erpetrado co mprov adame n te em leg ítima d efesa, seja pun ido d e mor te p ar a exe mp lo ; [. .. ] D ep o is d e e s t ab e l e c id o o q u e d iz r e sp eito a e s ta co mp anh ia , ta n to co m r ef erên c ia a os bon s co stu me s , rela çõ es mú tu as, - 175 pro teção de su as v ida e hon ra, co mo à segur ança de seu s b ens, ord ena mo s , pa ra a con serv a ção do s índ io s en tr egue s à no ss a pro teç ão, e ta mb é m pa ra atr a í- los p e la dou çur a ao c o n h e c i me n t o d e n o s s a s l e i s h u ma n as e d iv in a s , q u e n in g u é m o s esp anque, injur ie, u ltr aje, ou ma te sob p ena d e sofr er castigo id ên tico à of ens a ; [. .. ] Proib imo s aind a qu aisqu er roubos con tra o s índ ios, seja de suas ro ça s, s ej a d e ou tr as c ou sa s qu e lh es per ten ça m, s ob a s p ena s supra me ncion adas. Os excertos reproduzidos induziriam o leitor a não encontrar qualquer conteúdo constitucional que permitisse ao autor estabelecer uma relação entre as Leis Fundamentais e o “Mayflower Pact” ou a Declaração da Virgínia, restando comprometida a proposição do trabalho. Ora, o momento de edição das Leis Fundamentais do Maranhão revela a instituição de uma ordem jurídico-política baseada em critérios normativos impróprios à época da Declaração da Virgínia, cuja ideologia já se encontrava sedimentada nas idéias iluministas que dominavam a Europa. Por isso, a técnica de estabelecer direitos, formalmente, era contrária aos preceitos que passaram a ser conhecidos a partir do século XVIII, pois sempre decorrente de um comando expresso contido no vocábulo “ordenamos”. Em que pese as Leis Fundamentais não estabelecerem expressamente normas sobre a instituição do Estado, como característica mais tarde adotada pelo constitucionalismo moderno, nem por isso carecem de conteúdo constitucional, a exemplo do que ocorreu com a “Magna Charta Libertatum”. - 176 Ao mesmo tempo em que estabeleciam normas de conduta o “modus vivendi” de que falamos - prevendo inclusive a aplicação de penas, deixava claro a fonte do poder ao criar uma cláusula vinculativa que estampava a soberania do reino, ratificando o pacto entre a monarquia e a Igreja, numa estreita ligação entre a religião e a lei, como nos adverte d’Abbeville 234. É correto afirmar que as Leis Fundamentais do Maranhão não se constituíam em um conjunto de reconhecimento de direitos inatos aos homens, mesmo porque expressamente são assentadas no convencimento de que “sem Justiça ordenada por Deus aos homens, sua imagem, não pode existir república alguma” 235. E isto será ratificado pela petição apresentada pelos franceses ao sr. de Rasilly 236. Importa observar que a organização da colônia, a proteção da propriedade, da liberdade e da integridade física dos índios, através do estabelecimento de normas jurídicas cujas conseqüências iniciavam pela declaração de desobediência do sossego público chegando até a pena de morte - aplicáveis, inclusive, aos franceses -, revela a natureza institucional e orgânica das Leis Fundamentais, que seriam, como foram, adotadas como princípios fundamentais à organização do Estado Constitucional. Assim sendo, em que pese a “imperfeição” utilizada àquela época, além de regras de conteúdo iminentemente teológico - até porque a catequização era objetivo indissociável da colonização - vemos com muita ênfase as normas penais destacadas, como forma de garantir, sobretudo em relação aos índios, os direitos de liberdade e propriedade. 234 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 126. 235 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 126. 236 História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. São Paulo: Ed. Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 130. - 177 Portanto, não observamos a presença de norma afirmativa de direito como as declarações emergentes do século XVIII, mas constatamos a previsão de direitos a partir da advertência a uma conduta firmada em critérios substancialmente morais. E a noção de ordenamento jurídico é que nos permite chegar a tal conclusão. Desse modo, a preocupação em dispor de um elemento normativo que estabelecesse um relacionamento social e jurídico na colônia e político constitucionalismo com a primário coroa, (a além de dimensionar que denominamos um pré- constitucionalismo), por assim dizer, merece destaque pelo pioneirismo no Continente Americano. Portanto, sem que se possa negar a natureza da Declaração da Virgínia como documento que estabelece direitos atendendo aos critérios do constitucionalismo moderno, do mesmo modo reconhece-se que as Leis Fundamentais do Maranhão representam a primeira e mais autêntica manifestação constitucionalista no Continente Americano, pois produzida em terras maranhenses e para serem aqui aplicadas, e com a expressa previsão de constituição de um Estado de Direito, ou Estado legal. Desse modo, concluímos por entender que as normas instituídas nas terras do Maranhão, ainda carentes da feição constitucional nos moldes presentes na Declaração de Virgínia, quer sob sua ótica formal ou material, dispõem de conteúdo jurídico-político suficiente para afirmar que as Leis Fundamentais podem ser consideradas a primeira manifestação do que, por prudência, resolvemos chamar de pré-constitucionalismo no Continente Americano. Há, portanto, na vontade incondicionada dos nativos o estado de fato que denominamos de núcleo potencial de vontade constitutiva, modelado e conformado no conjunto de fundamentos - 178 naturais, reais e religiosos que configuram o poder daquele momento histórico. E porque a norma possui natureza constitutiva de um Estado é que sua dimensão e densidade exigem um exame mais apurado. - 179 - 14. DENSIDADE JURÍDICA (VALOR CONSTITUINTE) DAS LEIS FUNDAMENTAIS: Vistas as cláusulas seccionadas em rubricas (itens 13.1., 13.2., 13.3., 13.4., 13.5. e 13.6.) na decomposição da estrutura da norma enquanto instrumento de instituição de um Estado de leis, passa-se ao exame da densidade jurídica dessas normas (aqui na espécie denominadas de regras) pela perspectiva material, ratificando-lhe o valor constituinte. Vale dizer, com Karl Loewestein 237 que em “[...] sentido ontológico, se deberá considerar como el telos de toda constitución la creación de instituciones para limitar y controlar el poder político.”. Em primeiro lugar é preciso que seja delimitado o significado do vocábulo “densidade”. Dentre tantos sinônimos que possui encontram-se o de força, peso, intensidade. De posse dessa noção é possível definir densidade jurídica como a característica que possui uma norma de ser qualificada como tal. Essa qualificação objetiva deriva do plano positivo, portanto, nasce do dever ser. Note-se que a norma com essa qualidade transpôs o simples estádio de potencialidade, qualificado como jurígeno. Norma jurídica é aquela que foi elemento jurígeno e, reunidas as condições, tornou-se jurídica. O valor constituinte de que se fala aqui reside na qualidade da norma (no caso, as Leis Fundamentais do Maranhão) de reunir os 237 Teoría de la constitución. Ba rcelon a: Ed itor ial Ar ie l S. A., 1986 , p. 151. - 180 elementos que configurem a legítima instituição do poder, traçando-lhe limites ao exercício. A isto é que se denomina de vocação constitucional. Registra Thomas M. Cooley 238 que: “ O v a lor de u ma Cons titu iç ão está n a r a zão d ire ta d a s u a adap tação às circun stân cias, d e sejo s e asp ir ações do povo, e tan to ma is qu an to con tiv er em si os elemen to s de estab ilid ade, p er ma n ên c ia e s eg u r anç a con tr a a d esor d e m e r ev o luç ão . P o s to qu e se possa d izer co m fund amen to qu e todo Estado tenha u ma Constitu ição, con tudo o termo go ve rno con s titu c iona l un icamen te se ap lica n aqueles cujas r egr as ou pr in cíp ios f u n d a me n ta is n ão só d ef in e m a ma n e ira p o r q u e s er ão e le i t o s aqueles a qu em se há d e con f ia r o ex ercício do s pod eres s o b er an o s , c o mo t amb é m i mp õ e ef ic a ze s r e s tr içõ es a tal e xer c íc io, co m o f im de pro teger o s d ire ito s e os p riv ilég ios p essoais, abr ig ando-os con tr a qu alquer arb itr ar iedad e de pod er.” Nesse sentido, as Leis Fundamentais do Maranhão é resultado da convergência entre a “[...] adaptação às circunstâncias, desejos e aspirações do povo [...] ”, porquanto sintetiza emblematicamente o pacto obediente aos rituais, o encontro de vontades de colonizadores e colonizados, como restou demonstrado a partir do desenrolar do período que precedeu os atos formais de colocação da cruz, dos estandartes e das armas de França. As Leis Fundamentais do Maranhão são examinadas, assim, a partir de uma dimensão constitucional. Nesse particular seu contorno material estabelece a definição de um Estado como fundamentalmente 238 33. Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos, 1ª. ed. Campinhas: Russell, 2002, p. - 181 teocêntrico, baseado em princípios que envolvem proteção à integridade da autoridade real e à autoridade de Deus. Poder temporal e poder divino são conjugados como pilares de toda a estrutura legitimadora do Estado. Fundamentos outros que envolvem a preservação da integridade física e propriedade são, também, objeto de proteção que, com o tempo, passaram a integrar, definitivamente, o conjunto de direitos do mundo moderno como objetos de garantias fundamentais. Mas a presença dessas normas enquanto elementos formais pode suscitar discussões em torno de sua densidade constituinte, na medida em que presentes disposições meramente ordinárias (=quotidianas) ou de direito comum. Este, sem dúvida, é um ponto a ser abordado na proposição por nós formulada. Inicia-se a resposta à indagação dizendo logo que as normas de registro e publicidade configuram-se nas principais vias de ênfase da natureza constituinte das Leis Fundamentais do Maranhão, constituindose, assim, decisões políticas fundamentais, cuja observação estabelece até mesmo vinculação ao monarca. São, portanto, normas políticas, pactuadas entre colonizadores e colonizados, com o propósito definido de constituir uma sociedade politicamente organizada atenta aos limites impostos pelo texto fundamental que se propõe a instituir e preservar os direitos naturais de todos. Há, por outro lado, as regras de natureza civil e que o tempo fizeram alçar o “status” de constitucionais, ora incluídas na categoria de princípios, ora de garantias constitucionais. A densidade de muitas dessas normas eventualmente pode ser obtemperada sob o argumento de que sua essência é estranha aos textos constitucionais, posto não se tratarem de regras que detenham força de decisão constituinte. - 182 É impositivo compreender que a “imperfeição” – se examinado o tecnicismo contemporâneo – das regras obedecem aos padrões vigentes, portanto, sob esse prisma, as regras possuem a linguagem de então e, por isso, são adequadas para aquele momento histórico. Os valores semânticos, as asserções definidas permitem que se construa uma inferência a partir do texto original das Leis Fundamentais do Maranhão, permitindo encontrar ou identidades ou conformidades com a construção vocabular hoje existente. Tenha-se como paradigma a regra das Leis Fundamentais do Maranhão que fala em “[...] proteção de suas vidas e honra, como à segurança dos seus bens[...]”. Neste caso fala-se de identidade com as atuais disposições presentes nos textos constitucionais contemporâneos, sendo, no caso da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 o disposto no artigo 5º, incisos III (em que é garantida a integridade física com a explícita poibição da tortura); no inciso V (em que se garante a integridade moral e à imagem das pessoas), no inciso XXII (em que se garane o direito de propriedade); no inciso XLVII (em que é proibida a pena de morte, exceto no caso de guerra declarada), sendo este último caso como exemplo de conformidade. De modo semelhante vê-se a previsão de pena de morte em caso de homicídio [...] a menos que perpetrado em legítima defesa [...] ” como hipótese de conformidade. Inúmeros são os exemplos. O tema exige ampliação. De certo que a argumentação aqui elaborada transitará necessariamente pela discussão em torno das perspectivas formal e material, apreciadas previamente, quando definida a idéia de Constituição. Nada obsta, contudo, que se possa oferecer neste tópico breve abordagem sobre o assunto. - 183 Tome-se, por exemplo, ainda, a Constituição da República Federativa do Brasil. Nela há diversas regras que enunciam direitos (sob a rubrica de sociais) e que garantem sua natureza constitucional apenas pela circunstância meramente formal. Veja-se especificamente o disposto no artigo 7º da Constituição. Há um rol de direitos dos trabalhadores cuja presença pode permitir as mais diversas ponderações. Pois bem, uma regra que cuida do salário-desemprego, de adicional noturno, de salário-família, enfim, de direitos nominalmente dirigidos aos trabalhadores é essencial para a identificação de uma Constituição? E se fossem retirados da Constituição (desconstitucionalizados ou flexibilizados esses direitos, conforme seja o discurso) acaso desconfigurariam a Norma Fundamental? Evidente que não, pois não se tratam de direitos essencialmente constitucionais, sob a perspectiva que envolve o mínimo constituinte, como sendo o conjunto de normas cuja densidade constitucional é revelada pela indispensabilidade de sua existência. São, a bem dizer, normas que, se retiradas do texto constitucional fatalmente representaria a fratura da própria base fundamental, sendo exemplo tanto aquelas preservadas pelas cláusulas pétreas, quanto aquelas que, ainda quando não nominalmente expressas, dedutivamente possam ser compreendidas como normas de fundo, alicerce da própria Norma Fundamental e cuja existência é imprescindível para sobrevivência de todo o edifício normativo. Essas normas fazem-se presentes nas Leis Fundamentais do Maranhão, naturalmente sem os moldes estabelecidos pela idéia posterior de Estado de Direito, particularizadas na moldura construída pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Ao declarar os fundamentos que legitimam a formação do Estado da França Equinocial, determinando-lhe o regramento das relações entre os destinatários, a norma passa a conter densidade - 184 jurídica, pelas regras de conduta e suas conseguintes penas por eventuais violações, como, também, desfruta de densidade constituinte, pois num plano político declara-se como instituidora de “status” fundamental, orgânico e vinculativo. Neste particular, pertinente, uma vez mais, a sentença de Thomas M. Cooley 239 que, mesmo que com uma definição acanhada verbera que o Estado: “[...] pod e d efin ir-se co mo u ma un ião po lítica ou u ma sociedad e de ho me n s conjun tamen te un ido s sob leis co mun s, p ara o f im d e pro mov er o b e m- es ta r g er a l e mú tu a segur anç a me d ian te o co mb in ado esfor ço d e todo s.” Nesse sentido, seja sob o ponto de vista pactual, em que se dá ênfase à convergência amplamente demonstrada pelos rituais narrados, seja pelos elementos formais declaratórios contidos nas Leis Fundamentais do Maranhão, seja, ainda, pela via conceptual recorrida no constitucionalista americano, a declaração contida na norma averiguada aqui (as Leis Fundamentais do Maranhão) desfruta de credenciamento de natureza constituinte e, portanto, institui um estado de leis, ou um Estado de Direito pré-constitucional. 239 31. Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos, 1ª. ed. Campinhas: Russell, 2002, p. - 185 - 15. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A pesquisa desenvolvida pretendeu analisar o estudo e a formação do constitucionalismo tendo como cenário o palco de diversos acontecimentos no Continente Americano. Não se lançou, ratifique-se, a promover um estudo sobre o constitucionalismo brasileiro, conquanto em território brasileiro tenha ocorrido o fato histórico determinante e pioneiro na formação do constitucionalismo. Para tanto, seguiu os ensinamentos que são ofertados pelos doutrinadores que convergem para a fixação da formação do constitucionalismo a partir da América do Norte. E não poderia ser diferente, porquanto a análise do tema sob essa ótica é que permitiu demonstrar algumas contribuições que não têm merecido amiúde o enfrentamento. As Leis Fundamentais do Maranhão merecem, sem dúvida, uma atenção ainda mais particular, uma vez restarem à disposição de pesquisadores muitos registros que demandariam uma pesquisa voltada ao conhecimento histórico mais aprofundado. Cita-se como exemplo as Leis de Polícia vigentes ao tempo do advento das Leis Fundamentais do Maranhão. De certo que o estudo acerca dessa norma enfrenta alguns percalços como, por exemplo, determinar-lhe a natureza constituinte a partir de uma perspectiva da doutrina liberal, o que fundamentou a eleição do conceito do período denominado pré-constitucionalismo, esmiuçado o quanto possível. Sob essa perspectiva, aliás, não se pode pretender que institutos que advieram com o período das revoluções liberais sejam pré-requisitos à configuração de institutos de épocas - 186 anteriores, pondo-se, assim, na berlinda, a contribuição de uma dada época remota. É merecedor de registro que as limitações doutrinárias só podem ser debeladas com o aprofundamento do estudo, e o estudo de um dado tema envolve, certamente, oposição do conhecimento consolidado e que quase sempre oferece resistência. Isto é parte do processo de embates intelectuais que faz florescer idéias aprimorando o conhecimento, ainda que seja mantendo o vetusto. Há, seguramente, na norma que serve de mote ao estudo a presença de disposições que permeiam hoje os principais documentos que compõem o ordenamento jurídico pátrio. De regras penais, civis, tributárias, comerciais, enfim, até regras que hoje desfrutam de “status” constitucional, como normas assecuratórias de direitos presentes na Constituição da República do Brasil de 1988, hoje com o requinte do aperfeiçoamento da evolução da espécie humana. Nem por isso aquelas desmerecem a consideração de normas jurídicas de natureza ou sentimento constituinte. Esta constatação conduz à compreensão de que as Leis Fundamentais do Maranhão desfrutam de densidade jurídica e política, com “status” constituinte, atendendo adequadamente aos requisitos constitucionais que configuraram o pré-constitucionalismo do século XVII. Sendo assim, a pretensão aqui desenvolvida conduziu a pesquisa a reflexões que pretenderam servir de resposta às indagações que, direta ou indiretamente, foram produzidas desenvolvimento do tema. Desse modo as proposições envolveram: ao longo do - 187 a) Analisar o estudo da formação do constitucionalismo, refletindo as contribuições existentes no Continente Americano, particularmente em face das Leis Fundamentais do Maranhão, de modo a alcançar uma nova visão sobre a formação do constitucionalismo na América. b) Discutir as limitações doutrinárias sobre a matéria, buscando elementos que permitam inaugurar um novo panorama de ensino sobre o tema no estudo do Direito Constitucional. c) Comprovar a natureza pré-constitucional das Leis Fundamentais do Maranhão identificando-lhe pontos convergentes com as disposições constantes nos principais monumentos normativos clássicos citados no estudo da formação do constitucionalismo. d) Demonstrar a presença desses preceitos em diversos dispositivos constitucionais presentes na Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. e) Defender a necessidade de ser estabelecida uma nova prática no ensino do Direito Constitucional no Brasil particularmente quanto a sua formação e desenvolvimento. A par destas considerações, é conclusivo no presente estudo o entendimento que pode ser sintetizado nas conclusões apresentadas a seguir. - 188 - 16. - CONCLUSÕES: Os fatos históricos utilizados para a elaboração desta pesquisa possuem, sem sombra de dúvida, valor significativo para o estudo do Direito Constitucional. A história é indissociável do estudo do Direito, notadamente pelo espectro cultural que este envolve ou de que é produto. Assim sendo, é conclusivo que: 1. O constitucionalismo não pode ser reduzido a um fenômeno político que tenha sede exclusivamente do século XVIII. antecedem 2. Os o século fatos históricos, XVIII podem objeto ser deste denominados estudo, que como pré- constitucionalismo. 3. Somente o conceito material de constituição, ponderadas as idéias de Constituição natural e Constituição institucional, é suficiente para o estudo das origens e do desenvolvimento do constitucionalismo. 4. Qualquer manifestação normativa tem função orgânica. 5. Constituição em sentido formal é obra do Continente Americano, mas materialmente é decorrência dos movimentos europeus. 6. A “Magna Charta Libertatum” pode ser elevada à categoria de Constituição na medida em que estabelece previsões sobre o homem e a limitação do poder monárquico. - 189 7. A Carta da Virgínia (1606) embora cronologicamente anterior às Leis Fundamentais do Maranhão (1612) não foram escritas no território americano, o que lhe retira o caráter de documento constitucional pioneiro do constitucionalismo da América. 8. A Declaração de Virgínia é a primeira manifestação formal a reconhecer direitos naturais inatos ao homem, baseada nos pressupostos do iluminismo constituídos da idéia de verdades evidentes. 9. A Declaração de Independência e a Constituição dos Estados Unidos são documentos que formalizam a base principiológica assentada, instituindo o Estado Constitucional formal. 10. O Pacto de Mayflower é uma manifestação constitucional que contribuiu sensivelmente para o desenvolvimento do constitucionalismo. Conquanto tenha sido formalizada no Continente Americano sua concepção é posterior às Leis Fundamentais do Maranhão, o que lhe retira o caráter pioneiro. 11. As Leis Fundamentais do Maranhão, em que pese não fixarem regras de instituição de um Estado soberano nos moldes do Estado Constitucional Liberal, estabelecem um regulamento para a colônia que se difere dos regulamentos portugueses. 12. As Leis Fundamentais do Maranhão não reconhecem direitos inatos aos homens de forma expressa, conquanto preserve alguns dos direitos que vieram a se tornar garantias constitucionais. Esse reconhecimento, contudo, é firmado em bases teológicas bastante visíveis. 13. A natureza e o conteúdo das Leis Fundamentais do Maranhão revelam a proteção de vários direitos, sobretudo aos índios, dos quais muitos seriam objeto de declarações formais posteriores em todo o mundo. - 190 14. Pode-se admitir nas Leis Fundamentais do Maranhão a carência da mesma feição constitucional presente na Declaração de Virgínia, mas é possível falar-se na existência do pré-constitucionalismo (ou constitucionalismo primário), no Continente Americano, a partir das Leis Fundamentais. 15 Há na vontade incondicionada dos nativos o estado de fato que se denomina núcleo potencial de vontade constitutiva, portanto, sendo uma das bases constituintes das Leis Fundamentais do Maranhão. 16. Tendo sido instituídas, no Maranhão, em 1º de novembro de 1612, as Leis Fundamentais constituem-se na primeira manifestação jurídico-política elaborada no Continente Americano, antecedendo a Declaração de Virgínia com natureza constituinte. 17. As Leis Fundamentais do Maranhão possuem densidade constitucional pelo propósito de constituição do Estado da França Equinocial. - 191 - BIBLIOGRAFIA Bibliografia Específica AQUINO, Rubim Santos Leão de, LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de e LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das sociedades americanas. 11ª ed.. Rio de Janeiro: Record, 2007. COELHO NETO, Eloy. História geo-política do Maranhão. São Luís: SIOGE, 1985. D'ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e suas circunvizinhanças – São Paulo: Editora Itatiaia; Editora da Universidade de São Paulo, 1975. DAHER, Andréa. O Brasil francês: as singularidades da França Equinocial, 1612-1615. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. D’EVREUX, Yves. Viagem ao norte do Brasil feitas nos anos de 1613 a 1614 – São Paulo: Editora Siciliano, 2002. FORNEROD, Nicolas. Sobre a França Equinocial. São Luís: Co-edição da Aliança Francesa de São Luís e Academia Maranhense de Letras Jurídicas, 2001. 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Saibam que nós, por respeito a Deus e à salvação da nossa alma, e a de todos os nossos ancestrais e herdeiros, para a honra de Deus e exaltação da santa igreja, e para o aperfeiçoamento do nosso reinado, com o conselho dos nossos venerandos padres, Stephen, arcebispo de Canterbury, primaz de toda a Inglaterra, e cardeal da Santa Igreja Romana, Henry, arcebispo de Dublin, William de Londres, Peter de Winchester, Jocelin de Bath e Glastonbury, Hugh de Lincoln, Walter de Worcester, William de Conventry e Benedict de Rochester, bispos; mestre Pandulph, o subdiácono do Papa e mordomo oficial; irmão Aymeric, mestre dos Cavaleiros do Templo na Inglaterra; e dos nobres, William Marshal, conde de Pembroke, William, conde de Salisbury, William, conde de Warenne, William, conde de Arundel; Alan de Galloway, condestável da Escócia, Warin FitzGerald, Peter Fitz-Herbert, Hubert de Burgh, senescal de Poitou, Hugh de NevilIe, Mathew Fitz-Herbert, Thomas Basset, Alan Basset, Philip d'Aubigny, Robert de Roppelay, John Marshal, John Fitz-Hugh e outros dos nossos servidores fiéis: 1. Prometemos diante de Deus, em primeiro lugar, e por esta nossa presente carta confirmamos por nós e por nossos herdeiros, para sempre, que a igreja da Inglaterra será livre e gozará dos seus direitos na sua integridade e da inviolabilidade das suas liberdades; e é nossa vontade que assim se cumpra; e isto está patenteado pelo facto de que nós, de nossa plena e espontânea vontade, antes que surgisse a discórdia entre nós e os nossos barões, concedemos, e por nossa carta confirmamos e solicitamos a sua confirmação pelo Papa Inocêncio III, a liberdade de eleições, que é da maior importância e essencial para a igreja da Inglaterra; e a isto observaremos e queremos que seja observado em boa-fé pelos nossos herdeiros para sempre. Nós também - 199 concedemos a todos os homens livres do nosso reino, por nós e por nossos herdeiros perpetuamente, todas as liberdades abaixo escritas, para que as tenham e as conservem para si e para os seus herdeiros, de nós e dos nossos herdeiros. 2. Se qualquer dos nossos condes ou barões, ou outros que de nós recebam, como chefes, benefícios, morrer, e na época da sua morte o seu herdeiro tiver alcançado a maioridade e estiver obrigado a pagar uma taxa de transmissão, receberá a sua herança pela antiga taxa de transmissão, a saber: o herdeiro ou herdeiros de um conde pelo pagamento de cem libras por todo o baronato de um conde; o herdeiro ou herdeiros de um barão pelo pagamento de cem libras por todo o baronato; o herdeiro ou herdeiros de um cavaleiro pelo pagamento de cem shillings no máximo por todo o feudo de cavaleiro; e aquele que estiver obrigado a menos pagará menos, conforme o costume antigo dos feudos. 3. Mas se o herdeiro de qualquer desses não tiver a maioridade e for tutelado, receberá a sua herança sem taxa de transmissão quando atingir a idade. 4. O curador da terra de qualquer desses herdeiros menores de idade retirará daí apenas proveitos, taxas e serviços razoáveis, e isto sem destruição ou desperdício de homens ou bens; e se entregarmos a custódia de quaisquer dessas terras ao shenff, ou a qualquer outro que responderá diante de nós pelos proveitos daí resultantes, e ele provocar destruição e desperdício da sua curadoria, exigiremos dele reparação, e a terra será entregue a dois homens legítimos e prudentes daquele feudo, os quais responderão perante nós pelos proveitos, ou perante alguém que lhes indicarmos; e se vendermos ou dermos a alguém a custódia de quaisquer dessas terras, e ele provocar a sua destruição ou desperdício, perderá a custódia, e a terra será entregue a dois homens legítimos e prudentes daquele feudo, os quais responderão diante de nós como referido. 5. Mas o curador, enquanto estiver com a custódia da terra, conservará as casas, os parques, os tanques de peixe, os lagos, os moinhos e outros pertences com os ganhos da terra; e ele devolverá ao herdeiro, quando este tiver idade, todos os seus haveres providos com arados e cultura, tal como a estação possa exigir e os ganhos da terra possam razoavelmente sustentar. - 200 6. Os herdeiros casar-se-ão com mulheres de igual condição, além do que, antes que o casamento tenha lugar, aqueles que estão ligados pelo sangue ao herdeiro deverão ser informados. 7. Uma viúva, após a morte do seu marido, receberá imediatamente e sem obstáculo o seu dote e a sua herança, e nada pagará por sua parte, dote ou herança do que ela e seu marido possuírem no dia da morte deste, e ela pode permanecer na casa de seu marido por quarenta dias após a morte deste, período em que a sua parte lhe deve ser designada. 8. Nenhuma viúva será obrigada a casar-se enquanto desejar viver sem um marido, desde que dê garantia de que não se casará sem nosso consentimento, se estiver sob a nossa dependência, ou sem a do senhor de quem ela depende, se estiver sob dependência de outrem. 9. Nem nós, nem os nossos bailios embargaremos qualquer terra ou arrendamento por qualquer dívida enquanto os bens móveis do devedor forem suficientes para compensar a dívida; tão-pouco serão embargados os fiadores do devedor, enquanto o devedor principal for capaz de saldar a dívida; e se o devedor principal não pagar o débito, não dispondo de nada com que pagá-lo, então os fiadores responderão por ele; e, se estes quiserem, receberão as terras e arrendamentos do devedor, até que sejam compensados pela dívida que pagaram em nome dele, a menos que o principal devedor possa comprovar estar desobrigado da dívida. 10. Se alguém tomou emprestado dos judeus qualquer soma, grande ou pequena, e morrer antes que a dívida tenha sido paga, o débito não terá juros enquanto o herdeiro for de menoridade, de quem quer que seja seu curador; e se a dívida vier às nossas mãos, apenas assumiremos a soma principal mencionada no acto escrito. 11. E se alguém morrer e tiver dívidas para com os judeus, a sua esposa terá a sua parte, e nada pagará daquele débito; e se os filhos do falecido forem de menoridade, as suas necessidades serão salvaguardadas conforme os haveres do falecido, e do remanescente a dívida será paga, exceptuando-se o que é devido aos senhores; do mesmo modo se procederá para os débitos com outros que não judeus. - 201 12. Nenhuma scutage ou ajuda será imposta no nosso reinado, excepto pelo conselho comum do nosso reino, a menos para o resgate da nossa pessoa, a cavalaria do nosso filho mais velho e uma vez para o casamento da nossa filha mais velha, e para tais casos apenas uma ajuda razoável será paga; proceder-se-á igualmente a respeito das ajudas da cidade de Londres. 13. E a cidade de Londres terá todas as suas antigas liberdades e todos os seus direitos alfandegários livres, tanto por terra como por mar. E mais, queremos e concedemos que todas as outras cidades, burgos, vilas e portos tenham todas as suas liberdades e direitos alfandegários livres. 14. E para consultar o conselho comum do reino a respeito do estabelecimento de outros tributos que não os três casos acima mencionados, ou para o estabelecimento da scutage, faremos notificar os arcebispos, os bispos, os abades, os condes, e maiores barões, individualmente, por carta nossa; e, além disso, faremos notificar em geral, por meio dos nossos sheriffs e bailios, todos aqueles que, como chefes, de nós receberam benefícios para um dia fixado, a saber, quarenta dias pelo menos após a notificação, e num lugar fixado. E em todas as cartas de tais notificações explicaremos as suas causas. Sendo feitas as notificações, proceder-se-á no dia indicado conforme o conselho daqueles que estiverem presentes, mesmo que nem todos os que foram notificados compareçam. 15. No futuro não concederemos a ninguém permissão para exigir uma ajuda dos seus homens livres, excepto para o resgate da sua pessoa, a cavalaria do seu filho mais velho ou, uma vez apenas, para o casamento da sua filha mais velha, casos em que apenas uma ajuda razoável será cobrada. 16. Ninguém será forçado a prestar mais serviços por um feudo de cavaleiro, ou outra tenência livre, além dos que deve em consequência disso. 17. As demandas dos comuns não transcorrerão mais na nossa corte, mas noutro local indicado. - 202 18. Os inquéritos de Novel Disseísin, Mor d'Ancestor e de Darrem Presentment transcorrerão apenas nos seus próprios condados, e do seguinte modo: nós, ou se estivermos fora do reino, ou o nosso chefe de justiça, enviaremos dois juizes a cada condado, quatro vezes por ano, os quais, com quatro cavaleiros de cada condado, dirigirão as referidas sessões no condado, no dia e no local de reunião da corte do condado. 19. E em caso de que as referidas sessões não possam ocorrer no período da corte do condado, tantos cavaleiros e possuidores livres de tenências permanecerão, entre aqueles presentes àquela corte, quantos possam ser necessários para a administração da justiça, conforme seja maior ou menor o volume das questões. 20. Um homem livre será punido por um pequeno crime apenas, conforme a sua medida; para um grande crime ele será punido conforme a sua magnitude, conservando a sua posição; um mercador igualmente conservando o seu comércio, e um vilão conservando a sua cultura, se obtiverem a nossa mercê; e nenhuma das referidas punições será imposta excepto pelo juramento de homens honestos do distrito. 21. Os condes e barões serão punidos por seus pares, conformemente à medida do seu delito. 22. Um clérigo será punido pela sua tenência laica apenas conforme o modo das outras pessoas acima referidas, e não segundo o valor do seu cargo eclesiástico. 23. Nenhuma vila ou homem serão forçados a construir pontes sobre rios, excepto aqueles que tiverem esse dever legalmente por costume. 24. Nenhum sheriff, condestável, coroner ou outro dos nossos oficiais responderá pelas demandas da coroa. 25. Todos os condados, hundreds, wapentakes e tithings permanecerão nas antigas terras, sem qualquer acréscimo, exceptuando os nossos domínios. 26. Se alguém que recebeu de nós um feudo leigo morrer, e o nosso sheriff ou bailio apresentar as nossas cartas-patentes de notificação por um débito que o falecido nos - 203 devia, o nosso sheriff ou bailio pode embargar e registar os haveres do falecido encontrados no seu feudo leigo, até ao valor daquela dívida, com a inspecção de homens legítimos, de modo que nada daí seja retirado até que a dívida líquida seja paga, e o remanescente será deixado aos executores para que efectivem a vontade do falecido; e se nada nos é devido por lei, todos os haveres permanecerão para o falecido, salvaguardando partes razoáveis para sua esposa e filhos. 27. Se qualquer homem morrer sem deixar testamento, os seus haveres serão distribuídos pelo seu parente sanguíneo e amigos mais próximos, com supervisão da igreja, salvaguardando a cada um as dívidas que o falecido assumira com eles. 28. Nenhum condestável ou os nossos outros bailios tomarão os cereais ou outros haveres de alguém, sem pagamento imediato por isso, a menos que o vendedor lhes conceda um prazo. 29. Nenhum condestável obrigará qualquer cavaleiro a fornecer dinheiro em lugar da guarda do castelo, caso este deseje pessoalmente prestar o serviço, ou um outro homem adequado, se por alguma causa razoável ele próprio não possa fazê-lo; e se nós o chefiarmos ou o mandarmos para a guerra, ele ficará livre da guarda do castelo pelo tempo em que estiver no exército por nossa causa. 30. Nenhum sheriff ou bailio nosso, ou nenhuma outra pessoa, tomará os cavalos ou os carros de qualquer homem livre para serviço de transporte, contra a vontade do referido homem livre. 31. Nem nós nem os nossos bailios tomaremos a madeira de outro homem, para os nossos castelos ou outras finalidades, a menos que com o consentimento do seu proprietário. 32. Nós guardaremos as terras de pessoas julgadas culpadas de felonia apenas por um ano e um dia, sendo depois devolvidas aos senhores dos feudos. 33. Todos os tanques de peixes serão, de hoje em diante, retirados do Tamisa e do Medway, e de toda a extensão da Inglaterra, excepto a costa marítima. - 204 34. O édito chamado Praecipe não será no futuro emitido a ninguém com respeito a qualquer tolerância, por meio do qual um homem livre possa perder a sua corte. 35. Haverá uma medida para o vinho em todo o nosso reino, e uma para a cerveja, e uma para os cereais, a saber: o quarter londrino; e uma largura para os panos tingidos, russets e haberjects, a saber: dois ells entre as bordas; e com os pesos será igualmente como com as medidas. 36. Nada no futuro será dado ou cobrado por um édito de inquérito de vida ou dos membros, mas ele será concedido gratuitamente e não negado. 37. Se alguém recebe de nós terras como um feudo, ou por socage ou por burgage, e recebe terras de um outro por serviço de cavaleiro, não caberá a nós a custódia do seu herdeiro, nem da terra que é do feudo de outrem, por motivo daquela concessão de feudo, socage ou burgage; tão-pouco caberá a nós a custódia daquele feudo, socage ou burgage, a menos que o feudo esteja condicionado ao serviço de cavaleiro. Nem nos caberá a custódia do herdeiro ou da terra que ele conservar por serviço de cavaleiro devido a outrem, por motivo de qualquer pequena serjeanty que tenha de nós por nos fornecer facas, setas ou similares. 38. Nenhum bailio levará, de hoje em diante, alguém a julgamento, com base apenas na sua palavra, sem testemunhas dignas de crédito para apoiá-lo. 39. Nenhum homem livre será capturado ou aprisionado, ou desapropriado dos seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou de algum modo lesado, nem nós iremos contra ele, nem enviaremos ninguém contra ele, excepto pelo julgamento legítimo dos seus pares ou pela lei do país. 40. A ninguém venderemos, a ninguém negaremos ou retardaremos direito ou justiça. 41. Todos os mercadores terão liberdade e segurança para sair, entrar, permanecer e viajar através da Inglaterra, tanto por terra como por mar, para comprar e vender, livres de todos os direitos de pedágio iníquos, segundo as antigas e justas taxas, excepto em tempo de guerra, caso sejam do país que está lutando contra nós. E se tais forem encontrados no nosso país no início da guerra serão capturados sem prejuízo dos seus - 205 corpos e mercadorias, até que seja sabido por nós, ou pelo nosso chefe de justiça, como os mercadores do nosso país são tratados, se foram encontrados no país em guerra contra nós; e se os nossos estiverem a salvo lá, estes estarão a salvo no nosso país. 42. Será permitido, de hoje em diante, a qualquer um sair do nosso reino, e a ele retornar, salvo e seguro, por terra e por mar, salvaguardando a fidelidade a nós devida, excepto por um curto espaço em tempo de guerra, para o bem comum do reino, e excepto aqueles aprisionados e declarados fora da lei segundo a lei do país e pessoas de países hostis a nós e mercadores, os quais devem ser tratados como acima dito. 43. Se alguém tiver terras de algum escheat, como da distinção de Wallingford, Nottingham, Boulogne, Lancaster, ou de outros escheats, as quais estão nas nossas mãos e são baronatos, e vier a morrer, o seu herdeiro não está obrigado a nenhuma taxa de transmissão, nem à prestação de outro serviço a nós senão o que devia ao barão, se aquele baronato estava nas mãos do barão; e nós disporemos dele da mesma forma como o barão dispunha. 44. Os homens que habitam fora da nossa floresta não comparecerão de hoje em diante, perante os nossos juizes da floresta para citações comuns, excepto se eles são interessados nos processos ou fiadores de qualquer pessoa ou pessoas concernidas pelos delitos da floresta. 45. Não nomearemos juizes, condestáveis, sheriffs ou bailios senão aqueles que conhecem a lei do reino e são de espírito pronto para bem conservá-la. 46. Todos os barões que fundaram abadias, das quais possuem cartas dos reis de Inglaterra, ou das quais dispõem de uma possessão antiga, terão a custódia delas quando desabitadas como devem tê-la. 47. Todas as florestas criadas no nosso tempo de reinado serão imediatamente liberadas o mesmo se fará com todas as represas fluviais que no nosso tempo de governo foram feitas nas reservas. 48. Todas as taxas exageradas concernentes a florestas e pastagens, e os foresters, guardiães de pastagens, sheriffs e seus auxiliares, represas fluviais e os seus guardiães - 206 deverão imediatamente ser examinados em cada condado por doze cavaleiros ordenados do mesmo condado, os quais serão eleitos pelos homens honestos do mesmo lugar, e dentro de quarenta dias após a realização do exame tais taxas serão completa e irrevogavelmente eliminadas por eles, previsto que nós, ou o nosso chefe de justiça, se não estivermos na Inglaterra, previamente tenhamos conhecimento disso. 49. Nós devolveremos imediatamente todos os reféns e cartas entregues a nós por ingleses como garantia de paz ou de serviço leal. 50. Nós afastaremos por completo dos seus distritos os parentes de Gerard de Atheé, Engelard de Cigogne, Peter, Guy e Andrew de Chanceaux, Guy de Cigogné, Geoffrey de Martigny e seus irmãos, Philip Mark e seus irmãos, e Geoffrey, seu sobrinho, e todos os seus seguidores. 51. E imediatamente após a restauração da paz, faremos sair do reino todos os cavaleiros, besteiros, sargentos e soldados mercenários, os quais vieram com os seus cavalos e armas para o prejuízo do reino. 52. Se alguém foi desalojado ou desapropriado por nós, sem o julgamento legítimo dos seus pares, das suas terras, haveres, liberdades ou direitos, imediatamente os devolveremos a ele; e se surgir uma discórdia a este respeito, então será esclarecida pelo veredicto dos vinte e cinco barões, cuja menção é feita abaixo na cláusula para a garantia da paz. Mas, com respeito a todas aquelas coisas das quais alguém foi desapropriado ou privado sem o legítimo julgamento dos seus pares, pelo rei Henry nosso pai, ou rei Richard, nosso irmão, e as quais temos na nossa mão, ou que outros dispõem, e aos quais estamos obrigados a garanti-las, teremos uma prorrogação até o termo usual dos cruzados, excepção feita àquelas a respeito das quais uma demanda foi iniciada ou uma inquisição feita por nossa ordem, antes da nossa assunção da cruz; e quando retornarmos da nossa peregrinação, ou se por acaso permanecermos, imediatamente faremos plena justiça. 53. Além disso, teremos a mesma prorrogação, e nos mesmos termos, para fazer justiça na liberação e nova mensuração das florestas que Henry, nosso pai, ou Richard, nosso irmão, delimitaram; e com respeito à posse de terras que pertençam a um outro feudo, as - 207 quais mantivemos até agora por motivo de um feudo que alguém recebeu de nós por serviço de cavaleiro; e com respeito às abadias fundadas num feudo que não nos pertencia, sobre o qual o senhor reclama o direito; e quando tivermos retornado, ou se não formos para nossa peregrinação, faremos pela justiça a todos que se queixam dessas coisas. 54. Ninguém será capturado ou aprisionado a pedido de uma mulher pela morte de uma pessoa que não o seu marido. 55. Todas as multas lançadas por nós injustamente e contra a lei do país, e todas as penas prescritas injustamente e contra a lei do país, serão inteiramente perdoadas, ou então será dado um veredicto pelos vinte e cinco barões, dos quais se faz menção abaixo na cláusula para a garantia da paz, ou pelo veredicto da maior parte deles, juntamente com o referido Stephen, arcebispo de Canterbury, se puder estar presente, e outros que ele possa desejar indicar para esta finalidade; e se ele não puder estar presente, o processo far-se-á sem ele, desde que, se um ou mais de um dos referidos vinte e cinco barões estiver implicado numa demanda deste tipo, ele ou eles serão afastados nessa ocasião, e um outro ou outros, eleitos e juramentados pelo restante dos vinte e cinco, para esta vez somente, completarão o número. 56. Se desabrigamos ou desapropriamos galeses de terras, ou liberdades ou outras coisas, sem o legítimo julgamento dos seus pares, na Inglaterra ou em Gales, estas serão imediatamente devolvidas a eles; e se surgir uma disputa a este respeito, então será esclarecida na fronteira pelo julgamento segundo a lei de Gales para as possessões galesas, e segundo a lei da fronteira para as possessões da fronteira. Os Galeses farão o mesmo para nós e os nossos. 57. E mais, com respeito a todas as coisas das quais qualquer galês tenha sido, desapropriado ou privado, sem o julgamento legítimo dos seus pares, pelo rei Henry, nosso pai, ou rei Richard, nosso irmão, e que temos nas nossas mãos, ou que estão sob posse de outros aos quais estamos obrigados a garantir, teremos uma prorrogação até ao termo usual dos cruzados, exceptuadas aquelas coisas objecto de demanda iniciada ou inquisição feita por nossa ordem antes da nossa assunção da cruz. Mas quando retornarmos, ou se por acaso não partirmos para a nossa peregrinação, imediatamente - 208 faremos plena justiça a eles, segundo e conforme as leis de Gales e das referidas regiões. 58. Devolveremos imediatamente o filho de Llewelyn, e todos os reféns de Gales, e as cartas que a nós foram entregues como garantia da paz. 59. Nós agiremos em relação a Alexander, rei dos Escoceses, com respeito às suas irmãs, e a devolução dos reféns, e as suas liberdades e o seu direito, da maneira como agiremos com os nossos outros barões da Inglaterra, a menos que deva ser diferentemente, conforme as cartas que recebemos de William, seu pai, anteriormente rei dos Escoceses; e isto Se fará por intermédio do julgamento dos seus pares na nossa corte. 60. E mais, todos os referidos costumes e liberdades que concedemos para serem observados no nosso reino, na medida em que nos concerne em relação aos nossos homens, clérigos ou leigos, estes deverão observar em relação aos seus próprios homens. 61. E visto que nós, para a honra de Deus e aperfeiçoamento do nosso reino, e para a melhor solução da discórdia surgida entre nós e os nossos barões, concedemos todas as coisas acima referidas, nós, desejando que elas sejam para sempre gozadas, totalmente e sem violações, estabelecemos e concedemos a eles a seguinte garantia, a saber: que os barões elegerão quaisquer vinte e cinco barões do reino, como o desejarem, e estes com todo o seu poder manterão, conservarão e farão conservar a paz e liberdade que lhes garantimos, e por esta nossa presente carta lhes confirmamos, previsto que se nós, ou o nosso chefe de justiça, ou os nossos bailios, ou qualquer dos nossos servidores, de qualquer modo, se afastarem dela, ou transgredirem qualquer dos artigos de paz e segurança, e o delito for denunciado a quatro barões dos vinte e cinco referidos, aqueles quatro barões virão perante nós, ou o nosso chefe de justiça, se estivermos fora do reino, exporão o delito e solicitarão que providenciemos a punição sem demora. Se nós não o punirmos, ou se estivermos fora do reino e o nosso chefe de justiça não o punir, dentro de quarenta dias a partir do momento em que foi denunciado a nós ou ao nosso chefe de justiça, se estivermos fora do reino, os quatro barões supraditos enviarão a questão ao restante dos vinte e cinco barões, os quais com a comunidade de todo o país nos - 209 impugnarão e afligirão de qualquer modo que possam, a saber, pela captura de castelos, terras, possessões, e de qualquer modo que possam, até que o reparo seja feito conforme o seu julgamento, salvaguardando a nossa pessoa e a da nossa esposa e filhos. E quando o reparo estiver feito, eles nos obedecerão como antes. E todos do país, que o desejarem, podem jurar que estão prontos para a execução das referidas matérias, obedecer às ordens dos ditos vinte e cinco barões, e que com os seus homens nos afligirão o máximo que puderem, e nós pública e livremente permitimos a qualquer um jurar desse modo, se o desejar, e a ninguém isto será jamais negado. E mais, todos aqueles do país que, por si próprios e de livre vontade, desejarem jurar aos vinte e cinco barões com respeito a nos obrigar e afligir juntamente com eles, nós faremos tomar o juramento, como acima dito. E se algum dos vinte e cinco barões morrer, ou deixar o país, ou de algum modo estiver impedido de executar o acima exposto, aqueles que permanecerem dos ditos vinte e cinco barões elegerão um outro em seu lugar, à sua escolha, e este será juramentado do mesmo modo que os outros. E mais, em todas as coisas que respeitam aos ditos vinte e cinco barões executar, se por acaso todos os vinte e cinco barões estão presentes, e uma disputa surge entre eles sobre qualquer assunto, ou se alguns daqueles citados não desejam ou não podem comparecer, o veredicto da maioria daqueles presentes deve ser considerado como firme e válido, como se todos os vinte e cinco tivessem concordado. E os vinte e cinco jurarão antes lealmente o dito acima, e cuidarão para que seja mantido na medida em que puderem. E nós não tentaremos nada junto a ninguém, por nosso intermédio ou de outrem, para que qualquer dessas concessões e liberdades possa ser revogada ou diminuída, e se qualquer coisa dessa natureza foi tentada, seja nula e sem efeito, e nunca a usaremos pessoalmente ou por meio de alguém. 62. E toda a má vontade, indignação e ressentimento, que tenha nascido entre nós e os nossos homens, clérigos e leigos, na época de disputa, plenamente absolvemos e perdoamos a todos. E mais, todas as ofensas, feitas em razão da referida disputa, a partir de Easter Q6) no décimo sexto ano dos seus pares, segundo a lei da Inglaterra, com respeito às possessões inglesas, o nosso reinado, até ao restabelecimento da paz, plenamente perdoamos a todos, clérigos e leigos, e perdoamos, até onde de nós depende. E mais, mandamos fazer para eles cartas-patentes de testemunho de Stephen, - 210 arcebispo de Canterbury, de Henrv, arcebispo de Dublin, e dos referidos bispos, e do mestre Pandulf, referente a esta garantia e às concessões acima mencionadas. 63. Razão por que desejamos e firmemente ordenamos que a igreja inglesa seja livre e que os homens do nosso reino tenham e conservem todas as liberdades, direitos e concessões acima, sólidos e em paz, livre e serenamente, plena e completamente, para si e para os seus herdeiros, em todas as coisas e lugares, perpetuamente como será dito. Isto foi jurado por nós e por nossos barões, que tudo o acima referido será mantido em boa-fé e sem malícia. Os abaixo nomeados e muitos outros sendo testemunhas no campo que é chamado Runnymede, entre Winsor e Staines, no décimo quinto dia de Junho no décimo sétimo ano de nosso reinado. - 211 - Petição de Direitos 1628 I.Os lordes espirituais e temporais e os comuns, reunidos em parlamento, humildemente lembram ao rei, nosso soberano e senhor, que uma lei feita no reinado do rei Eduardo I, vulgarmente chamada Statutum de tallagio non concedendo, declarou e estabeleceu que nenhuma derrama ou tributo (tallage or aid)seria lançada ou cobrada neste reino pelo rei ou seus herdeiros sem o consentimento dos arcebispos, bispos, condes, barões, cavaleiros, burgueses e outros homens livres do povo deste reino; que, por autoridade do Parlamento, reunido no vigésimo quinto ano do reinado do reinado do rei Eduardo III, foi decretado e estabelecido que, daí em diante, ninguém poderia ser compelido a fazer nenhum empréstimo ao rei contra a sua vontade, porque tal empréstimo ofenderia a razão e as franquias do país; que outras leis do reino vieram preceituar que ninguém podia ser sujeito ao tributo ou imposto chamado benevolence ou a qualquer outro tributo semelhante, que os nossos súditos herdaram das leis atrás mencionadas e de outras boas leis e provisões (statutes)deste reino a liberdade de não serem obrigados a contribuir para qualquer taxa, derramo, tributo ou qualquer outro imposto que não tenha sido autorizado por todos, através do Parlamento. I.E considerando também que na carta designada por "Magna Carta das Liberdades de Inglaterra" se decretou e estabeleceu que nenhum homem livre podia ser detido ou preso ou privado dos seus bens, das suas liberdades e franquias, ou posto fora da lei e exilado ou de qualquer modo molestado, a não ser por virtude de sentença legal dos seus pares ou da lei do país. I.E considerando também que foi decretado e estabelecido, por autoridade do Parlamento, no vigésimo oitavo ano do reinado do rei Eduardo III, que ninguém, fosse qual fosse a sua categoria ou condição, podia ser expulso das suas terras ou da sua morada, nem detido, preso, deserdado ou morto sem que lhe fosse dada a possibilidade de se defender em processo jurídico regular (due process of law). I.E considerando que ultimamente grandes contingentes de soldados e marinheiros têm sido destacados para diversos condados do reino, cujos habitantes t6em sido obrigados, - 212 contra vontade, a acolhê-los e a aboletá-los nas suas casas, com ofensa das leis e costumes e para grande queixa e vexame do povo. I.E considerando também que o Parlamento decretou e ordenou, no vigésimo quinto ano do reinado do rei Eduardo III, que ninguém podia ser condenado à morte ou à mutilação sem observância das formas da Magna Carta e do direito do país; e que, nos termos da mesma Magna Carta e de outras leis e provisões do vosso reino, ninguém pode ser condenado à morte senão em virtude de leis estabelecidas neste vosso reino ou de costumes do mesmo reino ou de atos do Parlamento; e que nenhum transgressor, seja qual for a sua classe, pode subtrair-se aos processos normais e às penas infligidas pelas leis e provisões deste vosso reino; e considerando que, todavia, nos últimos tempos, diversos diplomas, com o Grande Selo de Vossa Majestade, têm investido certos comissários de poder e autoridade para, no interior do país, aplicarem a lei marcial contra soldados e marinheiros e outras pessoas que a estes se tenham associado na prática de assassinatos, roubos, felonias, motins ou quaisquer crimes e transgressões, e para sumariamente os julgar, condenar e executar, quando culpados, segundo as formas da lei marcial e os usos dos exércitos em tempo de guerra. E, a pretexto disto, alguns dos súditos de Vossa Majestade têmsido punidos por estes comissários com a morte, quando é certo que, se eles tivessem merecido a morte em harmonia com as leis e provisões do país, também deveriam ter sido julgados e executados de acordo com estas mesmas leis e provisões e não de qualquer outro modo. II.Por todas estas razões, os lordes espirituais e temporais e os comuns humildemente imploram a Vossa Majestade que, a partir de agora, ninguém seja obrigado a contribuir com qualquer dádiva, empréstimo ou benevolence e a pagar qualquer taxa ou imposto, sem o consentimento de todos, manifestado por ato do Parlamento; e que ninguém seja chamado a responder ou prestar juramento, ou a executar algum serviço, ou encarcerado, ou, de uma forma ou de outra molestado ou inquietado, por causa destes tributos ou da recusa em os pagar; e que nenhum homem livre fique sob prisão ou detido por qualquer das formas acima indicadas; e que Vossa Majestade haja por bem retirar os soldados e marinheiros e que, para futuro, o vosso povo não volte a ser sobrecarregado; e que as comissões para aplicação da lei marcial sejam revogadas e anuladas e que, doravante, ninguém mais possa ser incumbido de outras comissões - 213 semelhantes, a fim de nenhum súdito de Vossa Majestade sofrer ou ser morto, contrariamente às leis e franquias do país. Tudo isto rogam os lordes espirituais e temporais e os comuns a Vossa majestade como seus direitos e liberdades, em conformidade com as leis e provisões deste reino; assim como rogam a Vossa Majestade que se digne declarar que as sentenças, ações e processos, em detrimento do vosso povo, não terão conseqüências para futuro nem servirão de exemplo, e que ainda Vossa Majestade graciosamente haja por bem declarar, para alívio e segurança adicionais do vosso povo, que é vossa régia intenção e vontade que, a respeito das coisas aqui tratadas, todos os vossos oficiais e ministros servirão Vossa Majestade de acordo com as leis e a prosperidade deste reino. - 214 - Leis Fundamentais do Maranhão: 1º de novembro de 1612 “Em nome de Sua Majestade, nós, Daniel de la Touche, Cavaleiro e Senhor de la Ravardiere, Francisco de Rasilly, também cavaleiro, senhor do dito lugar e de Aunelles, procurador do alto e poderoso senhor Nicolau de Harlay, cavaleiro, senhor de Sancy, Barão de Molle e de Gravois conselheiro de Estado e do Conselho Privado do Rei, locotenentes-generais de Sua Majestade nas Índias Ocidentais, tendo empreendido, por graça de Deus, o estabelecimento de uma colônia francesa no Maranhão e terras adjacentes, e a conversão dos habitantes ao cristianismo, de acôrdo com as intenções do Rei de França, nosso Soberano e Senhor, de conformidade com o poder que nos outorgou Sua Majestade, como consta das cartas patentes que nos deu, e ainda em obediência à autoridade da Rainha Regente, nossa Soberana e Senhora, julgamos necessário e conveniente, antes de qualquer outro alicerce, decretar, para essa colônia, as mais santas leis, e as mais adequadas, na medida do possível, ao nosso princípio, tendo por certo que sem a Justiça ordenada por Deus aos homens, sua imagem, não pode existir república alguma. Portanto, reconhecendo a graça a bondade e a misericórdia demonstradas por Deus ao conduzir-nos tão felizmente a bom porto, começaremos pelas ordenações que dizem especialmente respeito à sua honra e à sua glória.” “Ordenamos, pois, expressamente, a todos, quaisquer que sejam qualidades e condições, que temam, sirvam e honrem a Deus, observem seus santos mandamentos e prometam não estimar nem empregar senão os que souberem ter essa santa e reta intenção; Ordenamos que não blasfemem em seu santo nome, sob pena de multa para os pobres de França, arbitrada pelo conselho de conformidade com a qualidade das pessoas, até a terceira vez, devendo na quarta ser punido corporalmente o blasfemador, segundo sua qualidade.” “Ordenamos a todos e quem quer que seja, que honrem e respeitem os reverendos padres Capuchinhos, enviados por Sua Majestade a fim de implantarem entre os índios a Religião Católica, Apostólica e Romana, sob pena de serem punidos os infratores segundo o caso e a ofensa perpetrada; - 215 Ordenamos que ninguém, qualquer que seja a condição, embarace ou perturbe ditos capuchinhos no exercício da religião ou de sua missão de conversão das almas dos índios; isso sob pena de morte. Depois de estabelecido nos artigos supra citados o que diz respeito principalmente à glória de Deus, determinamos agora o que se relaciona com a honra do nosso Rei, o qual houve por bem distinguir-nos com sua escolha para representa-lo neste país. Ordenamos, pois, que ninguém atente contra nossas pessoas ou contra a vida da colônia, por meio de parricídios, atentados, traições, monopólios, discursos feitos no intento de desgostar os habitantes, e cousas semelhantes, e isso sob pena de ser o infrator considerado criminoso lesa-majestade e condenado à morte sem esperança de remissão; Ordenamos expressamente aos que tiverem conhecimento de atos tão perniciosos, que os revelem incontinenti sob pena de igual castigo;” “E como os membros de um corpo não podem existir sem um chefe que os dirija, ordenamos que cumpram todos os seus deveres para conosco e nos prestem a obediência que nos é devida, de acôrdo com a intenção de Sua Majestade, e empreguem suas fôrças e disponham de suas vidas em benefício desta colônia, em todas as ocasiões, empresas e descobertas necessárias, que porventura ocorram, sob pena de serem considerados covardes e tratados segundo sua infidelidade e desobediência. Depois de estabelecido o que diz respeito à honra e ao serviço do Rei, representado em nossas pessoas, assim como ao bem-estar e à segurança desta colônia, ordenamos, para manutenção desta companhia e da sociedade, que vivam todos em paz e amizade, respeitem-se mutuamente, segundo as condições e qualidades pessoais, e desculpem uns aos outros suas fraquezas, como Deus manda; e isso sob pena de serem considerados perturbadores do sossego público. Ordenamos que o edito relativo aos duelos, baixado pelo invicto, monarca de feliz memória, Henrique o Grande, nosso falecido rei, que Deus haja, seja estritamente observado em sua plenitude; e juramos nós jamais fazer algo em contrário, quaisquer que sejam as considerações, bem como não perdoar os infratores, Por isso, proibimos expressamente aos principais de nossa companhia que jamais intercedam a favor dos faltosos, sob pena de nos desagradarem e passarem pelo vexame de uma negativa; Ordenamos que o autor de qualquer homicídio, a menos se perpetrado comprovadamente em legítima defesa, seja punido de morte para exemplo; - 216 Ordenamos que quem quer que seja, convencido de falso testemunho contra quem quer que seja, convencido de falso testemunho contra quem quer que seja, sofra a pena que caberá ao acusado; Ordenamos que quem quer se encontre furtando seja, na primeira vez, açoitado ao pé da fôrca, ao som da corneta, e sirva durante um ano nas obras públicas, com perda, nesse espaço de tempo, de tôdas as dignidades, salários e proveitos; da segunda vez seja o infrator enforcado. Em se tratado de criado doméstico, seja já no primeiro roubo enforcado. Depois de estabelecido o que diz respeito a esta companhia, tanto com referencia aos bons costumes, relações mútuas, proteção de suas vidas e honra, como à segurança dos seus bens, ordenamos, para a conservação dos índios entregues à nossa proteção, e também para atraí-los pela doçura ao conhecimento de nossas leis humanas e divinas, que ninguém os espanque, injurie, ultraje, ou mate sob pena de sofrer castigo idêntico à ofensa; Ordenamos que não se cometa adultério, por amor ou violência, com as mulheres dos índios, sob pena de morte, pois seria isso não só a ruína da alma do criminoso, mas também a da colônia; igualmente ordenamos, sob idêntica pena, que não se violentem as mulheres solteiras; Ordenamos que se não pratiquem quaisquer atos desonestos com as filhas dos índios, sob pena, da primeira vez, de servir o delinqüente como escravo na colônia por espaço de um mês; da segunda de trazer ferros aos pés por dois meses; da terceira de ser conduzido à nossa presença para o castigo que julgarmos justo. Proibimos ainda quaisquer roubos contra os índios, seja suas roças, seja de outras cousas que lhes pertençam, sob as penas supra mencionadas. E para que tudo fique claro e bem acertado de uma vez por tôdas, ordenamos sejam estas ordenações lidas e tornadas públicas na presença de todos e registradas como leis fundamentais e invioláveis na secretaria geral dêste Estado e colônia, para serem consultadas quando necessário. Em testemunho do que, assinamos as presentes ordenações com o nosso próprio punho; e serão subscritas por um de nossos conselheiros, secretário ordinário. Forte de São Luís, Maranhão, dia de Todos os Santos, 1º de novembro, ano da graça de 1612 – Assinado – Ravardière – Rassily. Mais abaixo pelos meus senhores – Abraão - 217 Seguem-se estas palavras: As presentes leis e ordenações acima transcritas foram lidas e tornadas públicas, de modo a que ninguém alegue ignorância, neste dia de Todos os Santos, 1º de novembro de 1612, por mim, Conselheiro, Secretário e Chanceler Geral dêste Estado e Colônia, na presença de todos os franceses par tal fim reunidos junto ao Estandarte da França, fincado nesta ilha e terra do Brasil, de que tomaram posse, em nome do Rei, os srs. De la Ravarière, e Rasilly, seus loco-tenentes. E receberam de todos, e dos índios entregues às mãos de ditos senhores, juramento de fidelidade e promessa de viverem e morrerem na defesa dêsse estandarte, em prol da conservação desta terra e ao serviço de Sua Majestade. Depois de publicadas, foram estas ordenações registradas e guardadas no arquivo geral dêste Estado e Colônia, para servirem no futuro de leis invioláveis e fundamentais e a elas se recorrer quando necessário. Feito no Forte São Luís, Maranhão, no dia e ano supra mencionados. Assinado – Abraão. Conferido o original, no arquivo geral dêste Estado e Colônia francesa,no Brasil, assinado por mim, Conselheiro, secretário e arquivista geral, no Forte de São Luís, Maranhão, no último dia de novembro de 1612 – Abraão.” - 218 - Petição dos franceses da França Equinocial a François de Razilly: 1º de novembro de 1620 “Nós, abaixo assinados, confessamos que, por mútuo acordo, pedimos, desde nossa chegada à Ilha-Pequena, ou Sant’Ana do Maranão, como hoje fazemos, que o Senhor de Razilly, loco-tenente-general d’El Rei no Brasil, regresse à França; não para prestar contas aos nossos associados do dinheiro que nos adiantaram para os gastos da equipagem nesta primeira viagem, visto que ninguém jamais esperou proveitos imediatos nem fixou data para o primeiro relatório a não ser po ocasião do regresso do Senhor de La Ravaridière, porém para buscar e trazer socorros tanto de sacerdotes, guerreiros, artesãos e gêneros, como o mais necessário à manutenção da colônia francesa. Por sua parte, o Senhor de La Ravardière deverá reunir gêneros de modo a satisfazer direito de vender para pagamento dos marinheiros, oficiais do navio e da colônia; também lhe caberá receber do Senhor Du Manoir os gêneros necessários ao comércio deste país levando, para tanto, autorização para fazer o que for útil a seu embarque e regresso. Confiando em sua prudência e honestidade, e muito satisfeitos todos com sua boa e sábia administração para conosco e os naturais desta terra, pedimo-lhe ainda que transmita a Sua Majestade o relatório desta viagem e interceda em prol de nossa manutenção neste país; cabendo-lhe agir, por perdas e danos, contra quem disser ou escrever o que quer que seja em França suscetível de esfriar sequer a boa vontade de Sua Majestade e de seus súditos para conosco e para com tão santa e louvável empresa, ou quem lhe retardar o regresso, tão imortante para nossas vidas e bens e para a conservação desta terra na posse de Sua Majestade. E juramos, de nossa parte, dar nossas vidas e as de nossos amigos para sustentar essas negociações e defendê-las contra os que se opuserem; e ainda conservar, durante sua ausência, toda fidelidade a sua autoridade, bem como freqüentar a Igreja que nos deixou para estabelecimento da fé, manter boa inteligência e união entre todos, obediência e disciplina ao Senhor de La Ravardière, seu companheiro, e tratar bem os índios. - 219 Em testemunho da verdade do que deixamos dito, de comum acordo, sincera e francamente, assinamos a presente, de nossos próprios punhos no forte de São Luís na Ilha do Maranhão, a 1º de novembro de 1612. - 220 - O Pacto do “Mayflower”: 11 de novembro de 1620 “Em nome de Deus, Amém. Nós, cujos nomes vão transcritos abaixo, súditos leais de nosso augusto soberano e senhor, o Rei Jaime, pela graça de Deus, rei da Grã-Bretanha, França e Irlanda, defensor da fé, etc. Tendo empreendido, para a glória de Deus e incremento da fé cristã, e em honra de nosso rei e do país, uma viagem a fim de fundar a primeira colônia nas regiões do Norte da Virgínia, tornamos presente solene e mutuamente na presença de Deus, a nossa intenção de tudo ajustar e combinar em boa união, irmanados numa corporação civil política, para nossa melhor organização e preservação e progresso dos fins já mencionados; e em virtude de que serão estipuladas, constituídas e fixadas leis justas e imparciais, estatutos, atos, constituições, e funções, de tempos em tempos, assim como pensamos ser mais desejável e conveniente para o bem geral da Colônia, dentro do que prometemos toda a submissão e obediência. Em vista disso, nós, testemunhas do fato, subscrevemo-nos em Cape Cód a 11 de novembro, no décimo oitavo ano do reinado de nosso soberano e senhor, Rei Jaime, da Inglaterra, França e Irlanda, e no qüinquagésimo quarto do reinado na Escócia, Anno Dom., 1620.” - 221 - Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia 16 de junho de 1776240 I Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não podem por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança. II Que todo poder é inerente ao povo e, conseqüentemente, dele procede; que os magistrados são seus mandatários e seus servidores e, em qualquer momento, perante ele responsáveis. III Que o governo é instituído, ou deveria sê-lo, para proveito comum, proteção e segurança do povo, nação ou comunidade; que de todas as formas e modos de governo esta é a melhor, a mais capaz de produzir maior felicidade e segurança, e a que está mais eficazmente assegurada contra o perigo de um mau governo; e que se um governo se mostra inadequado ou é contrário a tais princípios, a maioria da comunidade tem o direito indiscutível, inalienável e irrevogável de reformá-lo, alterá-lo ou aboli-lo da maneira considerada mais condizente com o bem público. IV Que nenhum homem ou grupo de homens tem direito a receber emolumentos ou privilégios exclusivos ou especiais da comunidade, senão apenas relativamente a serviços públicos prestados; os quais, não podendo ser transmitidos, fazem com que tampouco sejam hereditários os cargos de magistrado, de legislador ou de juiz. V Que os poderes legislativo, executivo e judiciário do Estado devem estar separados e que os membros dos dois primeiros poderes devem estar conscientes dos encargos 240 In Textos Básicos sobre Derechos Humanos. Madrid. Universidad Complutense, 1973, traduzido do espanhol por Marcus, Cláudio Acqua Viva. Apud. FERREIRA Filho, Manoel G. et. alli. Liberdades Públicas. São Paulo, Ed. Saraiva, 1978. - 222 impostos ao povo, deles participar e abster-se de impor-lhes medidas opressoras; que, em períodos determinados devem voltar à sua condição particular, ao corpo social de onde procedem, e suas vagas se preencham mediante eleições periódicas, certas e regulares, nas quais possam voltar a se eleger todos ou parte dos antigos membros (dos mencionados poderes)., segundo disponham as leis. VI Que as eleições de representantes do povo em assembléia devem ser livres, e que todos os homens que dêem provas suficientes de interesse permanente pela comunidade, e de vinculação com esta, tenham o direito de sufrágio e não possam ser submetidos à tributação nem privados de sua propriedade por razões de utilidade pública sem seu consentimento, ou o de seus representantes assim eleitos, nem estejam obrigados por lei alguma à que, da mesma forma, não hajam consentido para o bem público. VII Que toda faculdade de suspender as leis ou a execução destas por qualquer autoridade, sem consentimento dos representantes do povo, é prejudicial aos direitos deste e não deve exercer-se. VIII Que em todo processo criminal incluídos naqueles em que se pede a pena capital, o acusado tem direito de saber a causa e a natureza da acusação, ser acareado com seus acusadores e testemunhas, pedir provas em seu favor e a ser julgado, rapidamente, por um júri imparcial de doze homens de sua comunidade, sem o consentimento unânime dos quais, não se poderá considerá-lo culpado; tampouco pode-se obrigá-lo a testemunhar contra si própria; e que ninguém seja privado de sua liberdade, salvo por mandado legal do país ou por julgamento de seus pares. IX Não serão exigidas fianças ou multas excessivas, nem infligir-se-ão castigos cruéis ou inusitados. X Que os autos judiciais gerais em que se mande a um funcionário ou oficial de justiça o registro de lugares suspeitos, sem provas da prática de um fato, ou a detenção de uma pessoa ou pessoas sem identificá-las pelo nome, ou cujo delito não seja claramente - 223 especificado e não se demonstre com provas, são cruéis e opressores e não devem ser concedidos. XI Que em litígios referentes à propriedade e em pleitos entre particulares, o artigo julgamento por júri de doze membros é preferível a qualquer outro, devendo ser tido por sagrado. XII Que a liberdade de imprensa é um dos grandes baluartes da liberdade, não podendo ser restringida jamais, a não ser por governos despóticos. XIII Que uma milícia bem regulamentada e integrada por pessoas adestradas nas armas, constitui defesa natural e segura de um Estado livre; que deveriam ser evitados, em tempos de paz, como perigosos para a liberdade, os exércitos permanentes; e que, em todo caso, as forças armadas estarão estritamente subordinadas ao poder civil e sob o comando deste. XIV Que o povo tem direito a um governo único; e que, conseqüentemente, não deve erigirse ou estabelecer-se dentro do Território de Virgínia nenhum outro governo apartado daquele. XV Que nenhum povo pode ter uma forma de governo livre nem os benefícios da liberdade, sem a firma adesão à justiça, à moderação, à temperança, à frugalidade e virtude, sem retorno constante aos princípios fundamentais. XVI Que a religião ou os deveres que temos para com o nosso Criador, e a maneira de cumpri-los, somente podem reger-se pela razão e pela convicção, não pela força ou pela violência; conseqüentemente, todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, de acordo com o que dita sua consciência, e que é dever recíproco de todos praticar a paciência, o amor e a caridade cristã para com o próximo. - 224 - A Declaração de Independência dos EUA No Congresso, 4 de julho de 1776 Declaração Unânime dos Treze Estados Unidos da América Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário um povo dissolver laços políticos que o ligavam a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, posição gual e separada, a que lhe dão direito as leis da natureza e as do Deus da natureza, o respeito digno às opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os levam a essa separação. Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizarlhe a segurança e a felicidade. Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objeto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos-Guardas para sua futura segurança. Tal tem sido o sofrimento paciente destas colônias e tal agora a necessidade que as força a alterar os sistemas anteriores de governo. A história do atual Rei da Grã-Bretanha compõe-se de repetidos danos e usurpações, tendo todos por objetivo direto o estabelecimento da tirania absoluta sobre estes Estados. Para prová-lo, permitam-nos submeter os fatos a um cândido mundo. Recusou assentimento a leis das mais salutares e necessárias ao bem público. - 225 Proibiu aos governadores a promulgação de leis de importância imediata e urgente, a menos que a aplicação fosse suspensa até que se obtivesse o seu assentimento, e, uma vez suspensas, deixou inteiramente de dispensar-lhes atenção. Recusou promulgar outras leis para o bem-estar de grande distritos de povo, a menos que abandonassem o direito à representação no Legislativo, direito inestimável para eles temível apenas para os tiranos, Convocou os corpos legislativos a lugares não usuais, ser conforto e distantes dos locais em que se encontram os arquivos públicos, com o único fito de arrancar-lhes, pela fadiga o assentimento às medidas que lhe conviessem. Dissolveu Casas de Representantes repetidamente porque: opunham com máscula firmeza às invasões dos direitos do povo. Recusou por muito tempo, depois de tais dissoluções, fazer com que outros fossem eleitos; em virtude do que os poderes legislativos incapazes de aniquilação voltaram ao povo em geral para que os exercesse; ficando nesse ínterim o Estado exposto a todos os perigos de invasão externa ou convulsão interna. Procurou impedir o povoamento destes estados, obstruindo para esse fim as leis de naturalização de estrangeiros, recusando promulgar outras que animassem as migrações para cá e complicando as condições para novas apropriações de terras. Dificultou a administração da justiça pela recusa de assentimento a leis que estabeleciam poderes judiciários. Tornou os juízes dependentes apenas da vontade dele para gozo do cargo e valor e pagamento dos respectivos salários. Criou uma multidão de novos cargos e para eles enviou enxames de funcionários para perseguir o povo e devorar-nos a substância. Manteve entre nós, em tempo de paz, exércitos permanentes sem o consentimento de nossos corpos legislativos. Tentou tornar o militar independente do poder civil e a ele superior. Combinou com outros sujeitar-nos a jurisdição estranha à nossa Constituição e não reconhecida por nossas leis, dando assentimento a seus atos de pretensa legislação: por aquartelar grandes corpos de tropas entre nós; por protegê-las por meio de julgamentos simulados, de punição por assassinatos que viessem a cometer contra os habitantes destes estados; - 226 por fazer cessar nosso comércio com todas as partes do mundo; pelo lançamento de taxas sem nosso consentimento; por privar-nos, em muitos casos, dos benefícios do julgamento pelo júri; por transportar-nos para além-mar para julgamento por pretensas ofensas; por abolir o sistema livre de leis inglesas em província vizinha, aí estabelecendo governo arbitrário e ampliando-lhe os limites, de sorte a torná-lo, de imediato, exemplo e instrumento apropriado para a introdução do mesmo domínio absoluto nestas colônias; por tirar-nos nossas cartas, abolindo nossas leis mais valiosas e alterando fundamentalmente a forma de nosso governo; por suspender nossos corpos legislativos, declarando se investido do poder de legislar para nós em todos e quaisquer casos. Abdicou do governo aqui por declarar-nos fora de sua proteção e movendo guerra contra nós. Saqueou nossos mares, devastou nossas costas, incendiou nossas cidades e destruiu a vida de nosso povo. Está, agora mesmo, transportando grandes exércitos de mercenários estrangeiros para completar a obra da morte, desolação e tirania, já iniciada em circunstâncias de crueldade e perfídia raramente igualadas nas idades mais bárbaras e totalmente indignas do chefe de uma nação civilizada. Obrigou nossos concidadãos aprisionados em alto-mar a tomarem armas contra a própria pátria, para que se tornassem algozes dos amigos e irmãos ou para que caíssem por suas mãos. Provocou insurreições internas entre nós e procurou trazer contra os habitantes das fronteiras os índios selvagens e impiedosos, cuja regra sabida de guerra é a destruição sem distinção de idade, sexo e condições. Em cada fase dessas opressões solicitamos reparação nos termos mais humildes; responderam a nossas apenas com repetido agravo. Um príncipe cujo caráter se assinala deste modo por todos os atos capazes de definir tirano não está em condições de governar um povo livre. Tampouco deixamos de chamar a atenção de nossos irmãos britânicos. De tempos em tempos, os advertimos sobre as tentativas do Legislativo deles de estender sobre nós jurisdição insustentável. Lembramos a eles das circunstâncias de - 227 nossa migração e estabelecimento aqui. Apelamos para a justiça natural e para a magnanimidade, e os conjuramos, pelos laços de nosso parentesco comum, a repudiarem essas usurpações que interromperiam, inevitavelmente, nossas ligações e nossa correspondência. Permaneceram também surdos à voz da justiça e da consangüinidade. Temos, portanto, de aquiescer na necessidade de denunciar nossa separação e considerá-los, como consideramos o restante dos homens, inimigos na guerra e amigos na paz. Nós, Por conseguinte, representantes dos Estados Unidos da América, reunidos em Congresso Geral, apelando para o Juiz Supremo do mundo pela retidão de nossas intenções, em nome e por autoridade do bom povo destas colônias, publicamos e declaramos solenemente: que estas colônias unidas são e de direito têm de ser Estados livres e independentes, que estão desoneradas de qualquer vassalagem para com a Coroa Britânica, e que todo vínculo político entre elas e a Grã-Bretanha está e deve ficar totalmente dissolvido; e que, como Estados livres e independentes, têm inteiro poder para declarar guerra, concluir paz, contratar alianças, estabelecer comércio e praticar todos os atos e ações a que têm direito os estados independentes. E em apoio desta declaração, plenos de firme confiança na proteção da Divina Providência, empenhamos mutuamente nossas vidas, nossas fortunas e nossa sagrada honra. - 228 - A Constituição dos Estados Unidos da América 17 de setembro de 1787 Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranqüilidade interna, prover a defesa comum, promover o bemestar geral, e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América. ARTIGO I Seção 1 Todos os poderes legislativos conferidos por esta Constituição serão confiados a um Congresso dos Estados Unidos, composto de um Senado e de uma Câmara de Representantes. Seção 2 A Câmara dos Representantes será composta de membros eleitos bianualmente pelo povo dos diversos Estados, devendo os eleitores em cada Estado possuir as mesmas qualificações exigidas dos eleitores da Assembléia Legislativa mais numerosa do respectivo Estado. Não será eleito Representante quem não tiver atingido a idade de vinte e cinco anos, não for há sete anos cidadão dos Estados Unidos, e não for, por ocasião da eleição, habitante do Estado que o eleger. O número de Representantes, assim como os impostos diretos, serão fixados, para os diversos Estados que fizerem parte da União (segundo o número de habitantes, assim determinado: o número total de pessoas livres, incluídas as pessoas em estado de servidão por tempo determinado, e excluídos os índios não taxados, somar-se-ão três quintos da população restante). O recenseamento será feito dentro de três anos depois da primeira sessão do Congresso dos Estados Unidos, e, em seguida, decenalmente, de - 229 acordo com as leis que se adotarem. O número de Representantes não excederá de um por 30.000 pessoas, mas cada Estado terá no mínimo um representante. Enquanto não se fizer o recenseamento, o Estado de New Hampshire terá o direito de eleger três representantes, Massachusetts oito, Rhode Island e Providence Plantations um, Connecticut cinco, New York seis, New Jersey quatro, Pennsylvania oito, Delaware um, Maryland seis, Virginia dez, North Carolina cinco, South Carolina cinco, e Georgia três. Quando ocorrerem vagas na representação de qualquer Estado, o Poder Executivo desse Estado fará publicar editais de eleição para o seu preenchimento. A Câmara dos Representantes elegerá o seu Presidente e demais membros da Mesa e exercerá, com exclusividade, o poder de indiciar por crime de responsabilidade (impeachment). Seção3 O Senado dos Estados Unidos será composto de dois Senadores de cada Estado, eleitos por seis anos pela respectiva Assembléia estadual, tendo cada Senador direito a um voto. Logo após a reunião decorrente da primeira eleição, os Senadores dividir-se-ão em três grupos iguais, ou aproximadamente iguais. Decorridos dois anos ficarão vagas as cadeiras dos Senadores do primeiro grupo, as do segundo grupo findos quatro anos, e as do terceiro terminados seis anos, de modo a se fazer bianualmente a eleição de um terço do Senado. Se ocorrerem vagas, em virtude de renúncia, ou qualquer outra causa, durante o recesso da Assembléia estadual, o Executivo estadual poderá fazer nomeações provisórias até a reunião seguinte da Assembléia, que então preencherá as vagas. Não será eleito Senador quem não tiver atingido a idade de trinta anos, não tiver sido por nove anos cidadão dos Estados Unidos, e não for, na ocasião da eleição, habitante do Estado que o eleger. O vice-presidente dos Estados Unidos presidirá o Senado, mas não poderá votar, senão em caso de empate. O Senado escolherá os demais membros da Mesa e também um Presidente pro tempore, na ausência do Vice-Presidente, ou quando este assumir o cargo de Presidente dos Estados Unidos. - 230 Só o Senado poderá julgar os crimes de responsabilidade (impeachment). Reunidos para esse fim, os Senadores prestarão juramento ou compromisso. O julgamento do Presidente dos Estados Unidos será presidido pelo Presidente da Suprema Corte. E nenhuma pessoa será condenada a não ser pelo voto de dois terços dos membros presentes. A pena nos crimes de responsabilidade não excederá a destituição da função e a incapacidade para exercer qualquer função pública, honorífica ou remunerada, nos Estados Unidos. O condenado estará sujeito, no entanto, a ser processado e julgado, de acordo com a lei. Seção 4 A época, os locais e os processos de realizar eleições para Senadores e Representantes serão estabelecidos, em cada Estado, pela respectiva Assembléia; mas o Congresso poderá, a qualquer tempo, fixar ou alterar, por meio de lei, tais normas, salvo quanto ao local de eleição dos Senadores. O Congresso se reunirá pelo menos uma vez por ano, e essa reunião se dará na primeira segunda-feira de dezembro, salvo se, por lei, for designado outro dia. Seção 5 Cada uma das Câmaras será o juiz da eleição, votação, e qualificação de seus próprios membros, e em cada uma delas a maioria constituirá o quorum necessário para deliberar; mas um número menor poderá prorrogar a sessão, dia a dia, e poderá ser autorizado a compelir os membros ausentes a comparecerem, do modo e mediante as penalidades que cada uma das Câmaras estabelecer. Cada uma das Câmaras é competente para organizar seu regimento interno, punir seus membros por conduta irregular, e, com o voto de dois terços, expulsar um de seus membros. Cada uma das Câmaras lavrará atas de seus trabalhos e as publicará periodicamente, exceto nas partes que julgar conveniente conservar secretas; e os votos, pró e contra, - 231 dos membros de qualquer das Câmaras, sobre qualquer questão, a pedido de um quinto dos membros presentes serão consignados em ata. Durante as sessões do Congresso, nenhuma das Câmaras poderá, sem o consentimento da outra, suspender os trabalhos por mais de três dias, ou realizá-los em local diferente daquele em que funcionam ambas as Câmaras. Seção 6 Os Senadores e Representantes receberão, por seus serviços, remuneração estabelecida por lei e paga pelo Tesouro dos Estados Unidos. Durante as sessões, e na ida ou regresso delas, não poderão ser presos, a não ser por traição, crime comum ou perturbação da ordem pública. Fora do recinto das Câmaras, não terão obrigação de responder a interpelações acerca de seus discursos ou debates. Nenhum Senador ou Representante poderá, durante o período para o qual foi eleito, ser nomeado para cargo público do Governo dos Estados Unidos que tenha sido criado ou cuja remuneração for aumentada nesse período; e nenhuma pessoa ocupando cargo no Governo dos Estados Unidos poderá ser membro de qualquer das Câmaras enquanto permanecer no exercício do cargo. Seção 7 Todo projeto de lei relativo ao aumento da receita deve se iniciar na Câmara dos Representantes; o Senado, porém, poderá apresentar emendas, como nos demais projetos de lei. Todo projeto de lei aprovado pela Câmara dos Representantes e pelo Senado deverá, antes de se tornar lei, ser remetido ao Presidente dos Estados Unidos. Se o aprovar, ele o assinará; se não, o devolverá acompanhado de suas objeções à Câmara em que teve origem; esta então fará constar em ata as objeções do Presidente, e submeterá o projeto a nova discussão. Se o projeto for mantido por maioria de dois terços dos membros dessa Câmara, será enviado, com as objeções, à outra Câmara, a qual também o discutirá novamente. Se obtiver dois terços dos votos dessa Câmara será considerado lei. Em ambas as Câmaras, os votos serão indicados pelo "Sim" ou "Não", consignando- - 232 se no livro de atas das respectivas Câmaras os nomes dos membros que votaram a favor ou contra o projeto de lei. Todo projeto que não for devolvido pelo Presidente no prazo de dez dias a contar da data de seu recebimento (excetuando-se os domingos) será considerado lei tal como se ele o tivesse assinado, a menos que o Congresso, suspendendo os trabalhos, torne impossível a devolução do projeto, caso em que este não passará a ser lei. Toda ordem, resolução, ou voto, para o qual for necessária a anuência do Senado e da Câmara dos Representantes (salvo questões de suspensão das sessões), será apresentado ao Presidente dos Estados Unidos; e não entrará em vigor enquanto não for por ele aprovado. Se, porém, ele não o aprovar, serão precisos os votos de dois terços do Senado e da Câmara dos Representantes para entrar em vigor, conforme as regras e limitações previstas para os projetos de lei. Seção 8 Será da competência do Congresso: Lançar e arrecadar taxas, direitos, impostos e tributos, pagar dividas e prover a defesa comum e o bem-estar geral dos Estados Unidos; mas todos os direitos, impostos e tributos serão uniformes em todos os Estados Unidos; Levantar empréstimos sobre o crédito dos Estados Unidos; Regular o comércio com as nações estrangeiras, entre os diversos estados, e com as tribos indígenas, Estabelecer uma norma uniforme de naturalização, e leis uniformes de falência para todo o país; Cunhar moeda e regular o seu valor, bem como o das moedas estrangeiras, e estabelecer o padrão de pesos e medidas; Tomar providências para a punição dos falsificadores de títulos públicos e da moeda corrente dos Estados Unidos; Estabelecer agências e estradas para o serviço postal; Promover o progresso da ciência e das artes úteis, garantindo, por tempo limitado, aos autores e inventores o direito exclusivo aos seus escritos ou descobertas; Criar tribunais inferiores à Suprema Corte; - 233 Definir e punir atos de pirataria e delitos cometidos em alto mar, e as infrações ao direito das gentes; Declarar guerra, expedir cartas de corso, e estabelecer regras para apresamentos em terra e no mar; Organizar e manter exércitos, vedada, porém, a concessão de crédito para este fim por período de mais de dois anos; Organizar e manter uma marinha de guerra; Regulamentar a administração e disciplina das forças de terra e mar; Regular a mobilização da guarda nacional (milícia) para garantir o cumprimento das leis da União, reprimir insurreições, e repelir invasões; Promover a organização, armamento, e treinamento da guarda nacional, bem como a administração de parte dessa guarda que for empregada no serviço dos Estados Unidos, reservando-se aos Estados a nomeação dos oficiais e a obrigação de instruir a milícia de acordo com a disciplina estabelecida pelo Congresso; Exercer o poder legiferante exclusivo no distrito (não excedente a dez milhas quadradas) que, cedido por determinados Estados e aceito pelo Congresso, se torne a sede do Governo dos Estados Unidos, e exercer o mesmo poder em todas as áreas adquiridas com o consentimento da Assembléia do Estado em que estiverem situadas, para a construção de fortificações, armazéns, arsenais, estaleiros e outros edifícios necessários; e Elaborar todas as leis necessárias e apropriadas ao exercício dos poderes acima especificados e dos demais que a presente Constituição confere ao Governo dos Estados Unidos, ou aos seus Departamentos e funcionários. Seção 9 A migração ou a admissão de indivíduos, que qualquer dos Estados ora existentes julgar conveniente permitir, não será proibida pelo Congresso antes de 1808; mas sobre essa admissão poder-se-á lançar um imposto ou direito não superior a dez dólares por pessoa. Não poderá ser suspenso o remédio do habeas corpus, exceto quando, em caso de rebelião ou de invasão, a segurança pública o exigir. - 234 Não serão aprovados atos legislativos condenatórios sem o competente julgamento, assim como as leis penais com efeito retroativo. Não será lançada capitação ou outra forma de imposto direto, a não ser na proporção do recenseamento da população segundo as regras anteriormente estabelecidas. Não serão lançados impostos ou direitos sobre artigos importados por qualquer Estado. Não se concederá preferência através de regulamento comercial ou fiscal, aos portos de um Estado sobre os de outro; nem poderá um navio, procedente ou destinado a um Estado, ser obrigado a aportar ou pagar direitos de trânsito ou alfândega em outro. Dinheiro algum poderá ser retirado do Tesouro senão em conseqüência da dotação determinada em lei. Será publicado periodicamente um balanço de receita e despesa públicas. Nenhum título de nobreza será conferido pelos Estados Unidos, e nenhuma pessoa, neles exercendo um emprego remunerado ou honorífico, poderá, sem licença do Congresso, aceitar dádivas, emolumentos, emprego, ou títulos de qualquer espécie, oferecidos por qualquer rei, príncipe, ou Estado estrangeiro. Seção 10 Nenhum Estado poderá participar de tratado, aliança ou confederação; conceder cartas de corso; cunhar moeda; emitir títulos de crédito; autorizar, para pagamento de dividas, o uso de qualquer coisa que não seja ouro e prata; votar leis de condenação sem julgamento, ou de caráter retroativo, ou que alterem as obrigações de contratos; ou conferir títulos de nobreza. Nenhum Estado poderá, sem o consentimento do Congresso, lançar impostos ou direitos sobre a importação ou a exportação salvo os absolutamente necessários à execução de suas leis de inspeção; o produto líquido de todos os direitos ou impostos lançados por um Estado sobre a importação ou exportação pertencerá ao Tesouro dos Estados Unidos, e todas as leis dessa natureza ficarão sujeitas à revisão e controle do Congresso. Nenhum Estado poderá, sem o consentimento do Congresso, lançar qualquer direito de tonelagem, manter em tempo de paz exércitos ou navios de guerra, concluir tratados ou alianças, quer com outro Estado, quer com potências estrangeiras, ou entrar em guerra, a menos que seja invadido ou esteja em perigo tão iminente que não admita demora. - 235 - ARTIGO II Seção 1 O Poder Executivo será investido em um Presidente dos Estados Unidos da América. Seu mandato será de quatro anos, e, juntamente com o Vice- Presidente, escolhido para igual período, será eleito pela forma seguinte: Cada Estado nomeará, de acordo com as regras estabelecidas por sua Legislatura, um número de eleitores igual ao número total de Senadores e Deputados a que tem direito no Congresso; todavia, nenhum Senador, Deputado, ou pessoa que ocupe um cargo federal remunerado ou honorifico poderá ser nomeado eleitor. (Os eleitores se reunirão em seus respectivos Estados e votarão por escrutínio em duas pessoas, uma das quais, pelo menos, não será habitante do mesmo Estado, farão a lista das pessoas votadas e do número dos votos obtidos por cada um, e a enviarão firmada, autenticada e selada à sede do Governo dos Estados Unidos, dirigida ao presidente do Senado. Este, na presença do Senado e da Câmara dos Representantes, procederá à abertura das listas e à contagem dos votos. Será eleito Presidente aquele que tiver obtido o maior número de votos, se esse número representar a maioria do total dos eleitores nomeados. No caso de mais de um candidato haver obtido essa maioria assim como número igual de votos, a Câmara dos Representantes elegerá imediatamente um deles, por escrutínio, para Presidente, mas se ninguém houver obtido maioria, a mesma Câmara elegerá, de igual modo, o Presidente dentre os cinco que houverem reunido maior número de votos. Nessa eleição do Presidente, porém, os votos serão tomados por Estados, cabendo um voto à representação de cada Estado. Para se estabelecer quorum necessário, deverão estar presentes um ou mais membros dois terços dos Estados. Em qualquer caso, eleito o Presidente, o candidato que se seguir com o maior número de votos será o Vice-Presidente. Mas, se dois ou mais houverem obtido o mesmo número de votos, o Senado escolherá dentre eles, por escrutínio, o Vice- Presidente.)* * Este artigo foi substituído pela Emenda XII. O Congresso pode fixar a época de escolha dos eleitores e o dia em que deverão votar; esse dia deverá ser o mesmo para todos os Estados Unidos. - 236 Não poderá ser candidato a Presidente quem não for cidadão nato, ou não for, ao tempo da adoção desta Constituição, cidadão dos Estados Unidos. Não poderá, igualmente, ser eleito para esse cargo quem não tiver trinta e cinco anos de idade e quatorze anos de residência nos Estados Unidos. No caso de destituição, morte, ou renúncia do Presidente, ou de incapacidade para exercer os poderes e obrigações de seu cargo, estes passarão ao Vice-Presidente. O Congresso poderá por lei, em caso de destituição, morte, renúncia, ou incapacidade tanto do Presidente quanto do Vice-Presidente, determinar o funcionário que deverá exercer o cargo de Presidente, até que cesse o impedimento ou seja eleito outro Presidente. Em épocas determinadas, o Presidente receberá por seus serviços uma remuneração que não poderá ser aumentada nem diminuída durante o período para o qual for eleito, e não receberá, durante esse período, nenhum emolumento dos Estados Unidos ou de qualquer dos Estados. Antes de entrar no exercício do cargo, fará o juramento ou afirmação seguinte: 'Juro (ou afirmo) solenemente que desempenharei fielmente o cargo de Presidente dos Estados Unidos, e que da melhor maneira possível preservarei, protegerei e defenderei a Constituição dos Estados Unidos." Seção 2 O Presidente será o chefe supremo do Exército e da Marinha dos Estados Unidos, e também da Milícia dos diversos estados, quando convocadas ao serviço ativo dos Estados Unidos. Poderá pedir a opinião, por escrito, do chefe de cada uma das secretarias do Executivo sobre assuntos relativos às respectivas atribuições. Terá o poder de indulto e de graça por delitos contra os Estados Unidos, exceto nos casos de impeachment. Ele poderá, mediante parecer e aprovação do Senado, concluir tratados, desde que dois terços dos senadores presentes assim o decidam. Nomeará, mediante o parecer e aprovação do Senado, os embaixadores e outros ministros e cônsules, juízes do Supremo Tribunal, e todos os funcionários dos Estados Unidos cujos cargos, criados por lei, não têm nomeação prevista nesta Constituição, O Congresso poderá, por lei, atribuir - 237 ao Presidente, aos tribunais de justiça, ou aos chefes das secretarias a nomeação dos funcionários subalternos, conforme julgar conveniente. O Presidente poderá preencher as vagas ocorridas durante o recesso do Senado, fazendo nomeações que expirarão no fim da sessão seguinte. Seção 3 O Presidente deverá prestar ao Congresso, periodicamente, informações sobre o estado da União, fazendo ao mesmo tempo as recomendações que julgar necessárias e convenientes. Poderá, em casos extraordinários, convocar ambas as Câmaras, ou uma delas, e, havendo entre elas divergências sobre a época da suspensão dos trabalhos, poderá suspender as sessões até a data que julgar conveniente. Receberá os embaixadores e outros diplomatas; zelará pelo fiel cumprimento das leis, e conferirá as patentes aos oficiais dos Estados Unidos. Seção 4 O Presidente, o Vice- Presidente, e todos os funcionários civis dos Estados Unidos serão afastados de suas funções quando indiciados e condenados por traição, suborno, ou outros delitos ou crimes graves. ARTIGO III Seção 1 O Poder Judiciário dos Estados Unidos será investido em uma Suprema Corte e nos tribunais inferiores que forem oportunamente estabelecidos por determinações do Congresso. Os juízes, tanto da Suprema Corte como dos tribunais inferiores, conservarão seus cargos enquanto bem servirem, e perceberão por seus serviços uma remuneração que não poderá ser diminuída durante a permanência no cargo. Seção 2 - 238 A competência do Poder Judiciário se estenderá a todos os casos de aplicação da Lei e da Eqüidade ocorridos sob a presente Constituição, as leis dos Estados Unidos, e os tratados concluídos ou que se concluírem sob sua autoridade; a todos os casos que afetem os embaixadores, outros ministros e cônsules; a todas as questões do almirantado e de jurisdição marítima; às controvérsias em que os Estados Unidos sejam parte; às controvérsias entre dois ou mais Estados, entre um Estado e cidadãos de outro Estado, entre cidadãos de diferentes Estados, entre cidadãos do mesmo Estado reivindicando terras em virtude de concessões feitas por outros Estados, enfim, entre um Estado, ou os seus cidadãos, e potências, cidadãos, ou súditos estrangeiros. Em todas as questões relativas a embaixadores, outros ministros e cônsules, e naquelas em que se achar envolvido um Estado, a Suprema Corte exercerá jurisdição originária. Nos demais casos supracitados, a Suprema Corte terá jurisdição em grau de recurso, pronunciando-se tanto sobre os fatos como sobre o direito, observando as exceções e normas que o Congresso estabelecer. O julgamento de todos os crimes, exceto em casos de impeachment, será feito por júri, tendo lugar o julgamento no mesmo Estado em que houverem ocorrido os crimes; e, se não houverem ocorrido em nenhum dos Estados, o julgamento terá lugar na localidade que o Congresso designar por lei. Seção 3 A traição contra os Estados Unidos consistirá, unicamente, em levantar armas contra eles, ou coligar-se com seus inimigos, prestando-lhes auxílio e apoio. Ninguém será condenado por traição se não mediante o depoimento de duas testemunhas sobre o mesmo ato, ou mediante confissão em sessão pública do tribunal. O Congresso terá o poder de fixar a pena por crime de traição, mas não será permitida a morte civil ou o confisco de bens, a não ser durante a vida do condenado. ARTIGO IV Seção 1 Em cada Estado se dará inteira fé e crédito aos atos públicos, registros e processos judiciários de todos os outros Estados. E o Congresso poderá, por leis gerais, prescrever - 239 a maneira pela qual esses atos, registros e processos devam ser provados, e os efeitos que possam produzir. Seção 2 Os cidadãos de cada Estado terão direito nos demais Estados a todos os privilégios e imunidades que estes concederem aos seus próprios cidadãos. A pessoa acusada em qualquer Estado por crime de traição, ou outro delito, que se evadir à justiça e for encontrada em outro Estado, será, a pedido da autoridade executiva do Estado de onde tiver fugido, presa e entregue ao Estado que tenha jurisdição sobre o crime. Nenhuma pessoa sujeita a regime servil sob as leis de um Estado que se evadir para outro Estado poderá, em virtude de lei ou normas deste, ser libertada de sua condição, mas será devolvida, mediante pedido, à pessoa a que estiver submetida. Seção 3 O Congresso pode admitir novos Estados à União, mas não se poderá formar ou criar um novo Estado dentro da Jurisdição de outro; nem se poderá formar um novo Estado pela união de dois ou mais Estados, ou de partes de Estados, sem o consentimento das legislaturas dos Estados interessados, assim como o do Congresso. O Congresso poderá dispor do território e de outras propriedades pertencentes ao Governo dos Estados Unidos, e quanto a eles baixar leis e regulamentos. Nenhuma disposição desta Constituição se interpretará de modo a prejudicar os direitos dos Estados Unidos ou de qualquer dos Estados. Seção 4 Os Estados Unidos garantirão a cada Estado desta União a forma republicana de governo e defende-lo-ão contra invasões; e, a pedido da Legislatura, ou do Executivo, - 240 estando aquela impossibilitada de se reunir, o defenderão em casos de comoção interna. ARTIGO V Sempre que dois terços dos membros de ambas as Câmaras julgarem necessário, o Congresso proporá emendas a esta Constituição, ou, se as legislaturas de dois terços dos Estados o pedirem, convocará uma convenção para propor emendas, que, em um e outro caso, serão válidas para todos os efeitos como parte desta Constituição, se forem ratificadas pelas legislaturas de três quartos dos Estados ou por convenções reunidas para este fim em três quartos deles, propondo o Congresso uma ou outra dessas maneiras de ratificação. Nenhuma emenda poderá, antes do ano de 1808, afetar de qualquer forma as cláusulas primeira e quarta da Seção 9, do Artigo I, e nenhum Estado poderá ser privado, sem seu consentimento, de sua igualdade de sufrágio no Senado ARTIGO VI Todas as dividas e compromissos contraídos antes da adoção desta Constituição serão tão válidos contra os Estados Unidos sob o regime desta Constituição, como o eram durante a Confederação. Esta Constituição e as leis complementares e todos os tratados já celebrados ou por celebrar sob a autoridade dos Estados Unidos constituirão a lei suprema do país; os juízes de todos os Estados serão sujeitos a ela, ficando sem efeito qualquer disposição em contrário na Constituição ou nas leis de qualquer dos Estados. Os Senadores e Representantes acima mencionados, os membros das legislaturas dos diversos Estados, e todos os funcionários do Poder Executivo e do Judiciário, tanto dos Estados Unidos como dos diferentes Estados, obrigar-se-ão por juramento ou declaração a defender esta Constituição. Nenhum requisito religioso poderá ser erigido como condição para a nomeação para cargo público. ARTIGO VII A ratificação, por parte das convenções de nove Estados será suficiente para a adoção desta Constituição nos Estados que a tiverem ratificado. - 241 Dado em Convenção, com a aprovação unânime dos Estados presentes, a 17 de setembro do ano de Nosso Senhor de 1787, e décimo segundo da Independência dos Estados Unidos. Em testemunho do que, assinamos abaixo os nossos nomes.