Os perigos de um ensinar alienado Renato Deccache Em provas como o Enem, o Saeb, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), onde se procura aferir o domínio de conhecimentos e habilidades básicas, os alunos brasileiros vêm apresentando desempenhos preocupantes, especialmente em relação à leitura e à lógica matemática. Não são poucos os que atribuem o rendimento ruim a dificuldades no aprendizado. Especialista em formação de educadores, Madalena Freire, formada em Pedagogia pela USP, busca no caminho oposto a explicação para as dificuldades que milhares de jovens e crianças enfrentam na escola. "Não há um problema de aprendizagem por parte dos alunos e sim de ‘ensinagem’ por parte dos professores", defende a educadora. Autora do livro A paixão de Conhecer o Mundo (com 16 edições) e de vários artigos na área de educação, ela já atuou na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, e coordenou grupos de formação de professores por quase dez anos. Nesta entrevista, Madalena comenta a importância das idéias de um dos mais importantes personagens da história da educação brasileira, por sinal, seu pai, Paulo Freire. Para ela, o país evoluiu, mas ainda não possui projetos com clareza que ela esperava e que seu pai gostaria. E não esconde a decepção com o governo Lula, na área de educação. "Atualmente, há uma dispersão de forças e inúmeros projetos sem coordenação geral. Estão mais desarticulados do que já estiveram. Talvez os desafios sejam maiores que os anteriores, mas, mesmo assim, ficam a desejar", criticou Madalena. Folha Dirigida — Gostaria que a senhora fizesse uma análise sobre o processo de formação de professores no país. Quais os principais problemas e desafios? Madalena Freire — O processo de formação sistemática na universidade deveria instrumentalizar, acompanhar, instigar este educador a aprender a pensar. E aprender a pensar dá muito trabalho. Significa se curvar a receber os problemas, mergulhar nas dúvidas, nos questionamentos, enfrentar a realidade. A dificuldade de aprender é enfrentar os limites dessa aprendizagem. No primeiro movimento de aprender, o maior desafio é assumir, enfrentar a dor, no sentido de que é difícil aprender, refletir, aceitar os próprios limites. E nós, nos bancos da escola, da universidade, muitas vezes não tivemos a possibilidade de enfrentar problemas reais. E cada vez mais todo sistema nos aliena desse enfrentamento. Ou seja, saímos da universidade, de qualquer curso, sem a mínima base para enfrentar esses problemas. É somente quando nos defrontamos com a realidade que vemos o quanto estamos desinformados sobre ela. O processo de formação, para mim, não é puramente a informação que recebemos dos cursos formais, mas sim um momento em que nos deparamos com a informação teórica e as questões da realidade. Folha Dirigida — Qual a relevância desta proximidade entre a teoria e a prática, no processo de formação? Madalena Freire — Toda prática é envolvida por uma teoria. Mas nunca nos obrigamos a tomar consciência de quais conceitos embasam nosso fazer. É a reflexão sobre o que eu faço que me faz agir de uma forma específica. Até para varrer uma sala há uma teoria. O problema é que o professor não é estimulado a entender a teoria que há por traz de cada prática. Folha Dirigida — Se, como a senhora comentou, os professores não aprendem a pensar, na formação, eles aprendem o quê? Madalena Freire — Eles aprendem a reproduzir o pensamento dos outros. São, na grande maioria, copiadores de idéias. Só se pode construir conhecimento a partir do que se pensa, do que se sabe, a partir das dúvidas que se tem. Quando o indivíduo pensa, ele busca saber o que determinada teoria significa para ele, qual o seu sentido, porque não age daquela forma, em que ele acredita, o que deseja, o que sonha. E esta reflexão não se faz só, mas com os outros, em grupo. Folha Dirigida — Qual a importância de o professor se organizar em grupos para refletir sobre os desafios que encontra em seu cotidiano pedagógico? As escolas reservam espaços para esta discussão? Madalena Freire — Uma das dificuldades para o professor é o fato de, em geral, não existir no núcleo-escola uma coordenação pedagógica que promova um espaço de articulação do projeto político-pedagógico. O professor não tem um espaço para estudar, interagir com seus colegas sobre os problemas reais de sala de aula. Eles até participam, e cada vez mais, de cursos, eventos, congressos. Mas, fora daquele núcleo onde ocorrem as situações com as quais precisa lidar. Por isso, é fundamental a existência de um educador, que pode ser o diretor ou o coordenador pedagógico, que, de forma sistemática, os escute, interaja com eles e levante estratégias de planejamento para enfrentar desafios. Os elementos vitais na escola são o professor e o aluno, que, infelizmente, estão abandonados, sem uma estrutura que os acompanhe, que os escute, que os instrumentalize, que os oriente. Infelizmente, em geral, funciona a seguinte lógica em relação ao professor: "se vire, o problema é seu, a sala é sua, o aluno é seu". Fugir dos problemas surge como o maior desafio da função do educador, quando, a meu ver, o maior desafio é enfrentar os problemas. Folha Dirigida — Que problemas pode trazer para o processo de ensino o fato de o professor, em seus cursos de formação, aprender a reproduzir idéias, como a senhora mesmo destacou? Madalena Freire — Essa postura de ensinar e de aprender faz parte de uma concepção de educação autoritária, voltada para reproduzir conhecimento e não construí-lo. Ao dar sua aula, o professor leva para a sala um pacote para o aluno engolir, virar um macaco adestrado, dizer com as palavras do professor e não reproduzir as idéias com suas próprias palavras. Se perguntarmos a este aluno: O que significa o que você escreveu? Ele dirá: respondi o que ele disse. Ou seja, este aluno não sabe pensar as idéias do outro e expressar isto com suas próprias idéias. Este é um aspecto muito mais geral, e está mais entranhado em nós do que pensamos. E isto também ocorre entre os professores, nos cursos de formação. Por exemplo, se verificarmos algumas teses de mestrado, possivelmente veremos uma frase do estudante e milhões de citações. Folha Dirigida — Como evitar que teoria e prática estejam tão distantes? Madalena Freire — É a reflexão sobre a prática que faz a ligação, o casamento entre a prática e a teoria. Afinal, quando ensina, todo o professor lida com a prática, que, por sua vez, tem fundamentação teórica. Por isso, é essencial que ele, após a prática, pare para refletir sobre ela. É diferente de pensar, que fazemos sempre. Refletir é apurar o pensamento sobre o que se faz, com que resultado foi obtido, que impasse foi vivido. A reflexão após a aula depura os pensamentos. Se um professor teve uma formação que o incita a colocar teoria em prática, promove este casamento cotidianamente. No processo de formação, a reflexão é a arma de luta, que leva o professor à tomada de consciência, a rever, reavaliar e, ao mesmo tempo, replanejar as próximas aulas. Folha Dirigida — Na sua avaliação, quais as principais contribuições que o pensamento freiriano trouxe para a pedagogia? Madalena Freire — Paulo Freire foi um visionário. Muito do que hoje defendemos ele já pontuava há 30 anos. São exemplos questões como o educando como construtor do conhecimento, a relação dialógica que se constrói no grupo, a importância deste espaço ético e estético tendo o educador como regente dos diferentes saberes de seus educandos para a construção do conhecimento acontecer, entre outras. Folha Dirigida — Quais os principais equívocos que a senhora identifica nas tentativas de aplicação do pensamento de Paulo Freire? Madalena Freire — Eu diria que há alguns. E sérios. Um dos desvios diz respeito à questão que envolve as autoridades educador-educando no espaço da construção do grupo mediado pelo diálogo. Ele sempre defendeu a idéia de que o ser humano está no mundo para conhecer, amar, fazer junto, construir junto, dialogando e se comunicando. E este espaço de construção coletiva envolve delicadezas entre as autoridades do educador, do educando e do grupo. E um dos desvios está em justamente imaginar que ele defendia que educador é igual ao educando. Ele dizia que todo educador aprende com os educandos, mas não no sentido de que os educandos dizem o que querem e o educador obedece. E isto foi levado ao pé da letra. Todo educador aprende com o educando no sentido de perceber, diagnosticar, observar quais são seus desafios e problemas, dentro do poder do educando. E o educador tem de questionar, provocar o educando para que ele assuma a sua autoridade como educando. Mas, isto não significa tornar-se igual ao educando. Não significa abandonar o poder de educador. E, em muitas situações, o entendimento foi desviado, no sentido de que o educador se iguala ao educando, ou de que o educador cede seu espaço imaginando isto como uma relação de diálogo democrático. Este é um dos vários desvios. Folha Dirigida — Da boa relação professor-aluno, depende o aprendizado. E avaliações nacionais e internacionais têm demonstrado que o estudante brasileiro tem sérias dificuldades, especialmente em relação à leitura. Por que? Madalena Freire — A ótica é inversa. Não há um problema de aprendizagem por parte dos alunos e sim de "ensinagem" por parte dos professores. É um ensinar alienado. Nunca fomos provocados a pensar, a perguntar qual o sentido das coisas. E, por isso, aprender dá muito trabalho, pois é preciso perguntar, defrontar-se com problemas. Fomos educados na ótica de que o problema não é nosso e sim dos outros. O ensino brasileiro não tem problema, a aprendizagem sim (risos). Está tudo invertido. Folha Dirigida — Por que a senhora considera o ensinar alienado? Madalena Freire — O ensinar é alienado pois não leva em conta esta pessoa humana que pensa, que tem problema de entendimento, aprendizagem. O aluno não vê sentido em decorar textos inteiramente desconectados com a realidade dele, e que são ruins, medíocres. É preciso questionar este ensinar, aonde está em dissintonia com o significado do aluno. Folha Dirigida — O problema começa desde os primeiros anos na escola? Madalena Freire — Sem dúvida. Mas, para resolvê-lo, não se pode focar só na educação infantil. Trata-se de uma luta em várias frentes, ou seja, também no ensino fundamental, médio e superior. E atacar em várias frentes significa assumir o processo de formação do educador e, conseqüentemente, assumir o núcleo-escola como lugar de estudo, de problematização da realidade, de zelar pelo professor e pela criança. Essa ferramenta, este ouro que é o professor, ele está abandonado. Folha Dirigida — Uma das áreas em que as idéias de Paulo Freire tiveram maior ressonância foi a de Educação de Jovens e Adultos. Nas últimas décadas, foram criados alguns programas nacionais para alfabetização de adultos, como o Mobral, a Alfabetização Solidária. Na sua avaliação, os resultados obtidos até então foram positivos? Madalena Freire — Tenho uma observação de quem não está próxima. Vejo que o quadro tem evoluído para um melhor aprofundamento, uma maior profissionalização desses educadores, do maior cuidado com estas experiências e projetos, mas ainda falta muito. Este foco do acompanhamento do educador, deste preparar, acompanhar este processo, ainda está muito precário. O acompanhamento dos núcleos deste processo não têm o rigor sistematizado e a freqüência que precisaria ter. Folha Dirigida — Os programas de EJA têm também se preocupado com a capacitação e qualificação dos profissionais que ensinam os analfabetos? Madalena Freire — Tenho impressão que isto vem melhorando. Mas, ainda não há a consciência da necessidade de estruturação de um trabalho, de um acompanhamento sistemático deste professor. E isto é primordial. Construir conhecimento é um esforço árduo. E sem um acompanhamento constante, é muito difícil que o trabalho alcance a sistematização adequada. Folha Dirigida — Qual a sua avaliação sobre o Brasil Alfabetizado, programa nacional para erradicação do analfabetismo entre os adultos? Madalena Freire — No início, quando o ministro era o Cristovam Buarque, tinha mais contato. Honestamente, observo, de forma distanciada, que estes projetos estão muito longe de atingir as feridas brasileiras. Não tenho sentido eco na realidade brasileira, na alfabetização, na educação. Posso estar desinformada, mas penso que na educação, neste governo, não tivemos o embate dos reais problemas. Não vejo eco. Não tenho notícias de resultados concretos, palpáveis. Folha Dirigida — Quando Paulo Freire, na década de 70, começou a apresentar sua teorias, o combate ao analfabetismo era um dos maiores desafios que o país precisava enfrentar. Hoje, a senhora considera que o país evoluiu nesta área? Madalena Freire — Acho que evoluímos. Ainda não temos projetos com a clareza que ele esperava. Mas a evolução vem ocorrendo. Ainda não há a suficiente rigorosidade para esta mudança, apesar dos esforços e projetos implementados. Folha Dirigida — A senhora revelou sua decepção sobre a atuação do governo na área de educação. Em que setor sua decepção é maior? Madalena Freire — Penso que em geral. A desarticulação na educação é, primeiramente, muito grande. Não é algo que vem deste governo. É anterior. Mas tivemos, no governo passado, uma disponibilidade e um enfrentamento maior do que neste governo. Pelo menos, tive mais notícias, digamos assim. Atualmente, há uma dispersão de forças e inúmeros projetos sem coordenação geral. Estão mais desarticulados do que já tivemos. Talvez os desafios sejam maiores que os anteriores, mas, mesmo assim, ficam a desejar. Folha Dirigida — A senhora coordena o curso Normal Superior do Instituto Pró-Saber. Gostaria que a senhora falasse desse trabalho de formação de professores leigas de creches localizadas em comunidades populares. Madalena Freire — Tem sido uma experiência muito rica. Nos 30 anos que tenho dedicados à formação do educador, venho destacando a importância da reflexão desse professor sobre seu estudo teórico. Essa experiência em particular é muito desafiadora por valorizar e trazer à luz os desafios dessas mulheres, guerreiras cotidianas, que lidam com as mais exploradas e difíceis realidades. Tem sido gratificante ver, nelas, a persistência, a garra, a valorização do estudo e o esforço de cada vez melhorar mais e se apropriar de metodologias educacionais. Folha Dirigida — Além da graduação de professoras de creches, um outro foco do Projeto Constelação é a criação de uma rede comunitária de difusão do conhecimento, na qual jovens ensinam para outros jovens com dificuldades de aprendizado. Qual a importância desta rede de difusão do saber, que os próprios estudantes estão criando? Madalena Freire — Esse é outro projeto que me entusiasma a cada dia. Afinal, é a juventude se apropriando do que tem de mais vital nela, que é a vontade de fazer, de ajudar, de mudar o mundo. Esta é uma das mais belas iniciativas do projeto Constelação, pois é benéfico tanto para os estudantes de classe média, que estão se disponibilizando a ajudar, quanto para os da classe popular, que têm encontrado uma outra saída, uma outra oportunidade para suas vidas. Fonte: Folha Dirigida, 21/02/2006 - Rio de Janeiro RJ