- Sociedade Brasileira de Sociologia

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XI Congresso Brasileiro de Sociologia
1 a 5 de setembro de 2003-07-22
Unicamp, Campinas, São Paulo
GT- Pensamento Social no Brasil
Titulo do Trabalho - A Teoria da Dependência Revisitada – Intelectuais e Compromisso
Político
Kátia Aparecida Baptista
Na década de sessenta houve uma grande efervescência intelectual em torno da
questão da Dependência. Economistas e Cientistas Sociais debruçaram-se sobre a
realidade dos países periféricos da América Latina sob diferentes abordagens teóricometodológicas. O que se verifica nesse período, particularmente no Brasil, é a
inviabilidade do projeto desenvolvimentista formulado pela CEPAL, desencadeando
críticas e rupturas radicais que levarão à construção de variadas matizes ideológicas e
ao revisionismo das teses cepalinas do desenvolvimento. A partir deste momento os
estudos sobre Dependência voltam-se para a formulação de teses que privilegiam uma
perspectiva marxista de análise, defendendo a via da revolução Socialista como
resposta à estagnação social gerada pelo capitalismo dependente em nações periféricas.
Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos são autores representativos dessa vertente.
Não obstante, a novidade das análises sobre Dependência surge na segunda metade da
década de sessenta com Fernando Henrique Cardoso, que terá papel fundamental neste
debate ao propor uma nova análise metodológica sobre o assunto, escrevendo
juntamente com Enzo Faletto: Dependência e Desenvolvimento na América Latina, no
qual lançam as bases para um estudo sobre situações concretas de dependência. Em
contrapartida a Marini e Santos, Cardoso considerará as possibilidades de
desenvolvimento sob um capitalismo não só dependente, mas também associado. O
debate entre uma intelectualidade pautada por ideais revolucionários, numa perspectiva
de superação do modo de produção capitalista – através da construção de uma teoria
marxista da dependência – e uma intelectualidade que se abre a uma discussão de
reconhecimento da diversidade de interesses dentro do processo político – através de
análises concretas de situações de dependência, apontando para a democratização do
sistema – constitui parte de um processo complexo que no seu decorrer fora
distinguindo o plano ideal do plano real; essa separação é acentuada com a transição
democrática do regime autoritário em fins da década de setenta revelando o suposto
intelectual em relação à prática política. A investigação que propomos restringe-se à
análise da Teoria da Dependência pesquisando como os autores supracitados
interpretam o Brasil nos anos 60 e, além disso, verificando como a elaboração teórica
desdobrara-se em práticas políticas.
Será com os intelectuais “revolucionaristas” do pré-64 que o termo dependência
ganhará seu status científico no Brasil. Theotônio dos Santos e Ruy Mauro Marini –
ligados à esquerda revolucionária – serão identificados como os primeiros intelectuais a
sistematizarem uma Teoria da Dependência.
O contexto de gestação de estudos sobre a Dependência, que antecede o golpe de
1964, figura um conturbado cenário de conflitos insuflado, dentre outras coisas, pelo
debate intelectual que trazia à tona a preocupação com o desenvolvimento capitalista na
periferia. Uma vez constatada que as políticas propostas pela Comissão Econômica para
a América Latina (CEPAL) – que se pautava pelo nacional-desenvolvimentismo –
mostraram-se ineficientes para solucionar o subdesenvolvimento dos países periféricos
emerge, então, em contraposição ao pensamento cepalino na época, o que se
convencionou denominar de “Teoria da Dependência”. Constata-se que nesse momento
há no debate intelectual a discussão de alternativas ao desenvolvimento capitalista na
periferia tendo a Revolução como o tema que percorreria a teoria e a prática desses
debates, inclusive devido ao impacto da Revolução Cubana sobre a esquerda latinoamericana. A esquerda, desse modo, posicionaria-se contra o imperialismo, a miséria e
o latifúndio, em prol da emancipação política e econômica dos setores
subdesenvolvidos.
As tensões advindas das divergências existentes em relação às opções políticas
de desenvolvimento ressonariam muitas vezes nos temas a serem discutidos pelos
intelectuais nos anos 60, dentre eles a questão da Dependência.
Nas palavras de Dênis de Moraes:
O clima de engajamento e de radicalização na sociedade brasileira
tinha sido impulsionado pelas contradições do próprio processo de
industrialização, com conflitos entre as demandas de duas forças
sociais fundamentais... os interesses sócio-econômicos multinacionais
associados e as classes trabalhadoras, lideradas, a partir da posse de
João Goulart na presidência da República, por um executivo nacionalreformista (MORAES, 1989, p. 54).
Assim, o debate intelectual nesse período será também permeado por
perspectivas que procuram reorientar a relação entre as decisões políticas e a esfera
econômica e equacionar, de certo modo, os dilemas criados pelo progresso da
industrialização acelerada incentivada durante o governo de Juscelino Kubitschek
através de uma política econômica sistematizada no Programa de Metas.
Além disso, desde 1956, quando ocorrera o XX Congresso do PCU e com ele
denúncias sobre a política de Stalin – que nos anos sessenta se revelará como o fim da
hegemonia stalinista sobre a esquerda mundial – o PCB inicia um processo de
reavaliação sobre o caminho que propusera para o socialismo no Brasil, isto é, a luta
armada, começando por redefinir seus objetivos estratégicos e táticos, o que acaba por
modificar sua plataforma política. A avaliação feita sobre o PCB, a partir de então, por
intelectuais que passaram a integrar grupos revolucionários que surgem nos anos 60,
justamente em oposição à nova postura do “Partidão” – Liga Camponesa1, Organização
Revolucionária Marxista-Política Operária (ORM-POLOP), Partido Comunista do
Brasil (PCdoB), Partido Operário Comunista (POC) – era de que o PCB se tornara
inoperante ao desistir do ideal revolucionário não criando as condições subjetivas
necessárias ao processo da Revolução. Todas estas organizações pregavam vias
insurrecionais, de guerrilha, luta armada e, por conseguinte, opunham rigidamente
reforma à revolução.
Acreditando estar no caminho certo, o PCB coloca-se numa posição moderada
incentivando um caminho pacífico para a Revolução, falando até mesmo em aliança
com a burguesia nacional almejando uma Revolução Democrático-Burguesa por vias
reformistas. Em contrapartida, vários jovens, intelectuais, parte do proletariado estavam
sendo influenciados pelo embalo revolucionário de Cuba, vitoriosa em 1959. O fato de
Cuba ter se tornado declaradamente socialista em 1961 desencadeará nessa juventude a
perspectiva de que a Revolução deixara de ser mito, transformando-se em
possibilidade.
Parte da intelectualidade brasileira aderia a esse processo tendo o marxismo
como a mola propulsora que conduziria a um pensamento crítico permeado pelo
anticapitalismo e em direção ao socialismo, pretendendo resgatar as propostas originais
1
De acordo com Ruy Mauro Marini a migração rural representou cada vez mais um agravamento
dos problemas sociais urbanos. Estes problemas se uniram aos que surgiram no campo, onde lavrava a
luta pela posse da terra, gerando movimentos como as Ligas Camponesas (Marini, p.98:1964).
de Marx. Assim, a luta armada seria a alternativa para a superação da crise
desencadeada pelo capitalismo e pelas ditaduras que se espalhavam por toda a América
Latina. Nesse sentido, Cuba representava, como diria Lukács – segundo Lênin – a
“atualidade da revolução”. Isto nos leva a notar que a implantação de um ideal
revolucionário na América Latina teria sido propiciada a partir de Cuba. E é,
justamente, esta propensão que levaria Theotônio dos Santos e Ruy Mauro Marini a
constatarem as condições internas desse processo revolucionário na sociedade
brasileira, uma vez que as contradições sociais atingindo o seu ápice representariam a
metamorfose necessária para que a teoria se transformasse em prática, aludindo, então,
à práxis social de Karl Marx.
Por um lado, o fato é que encontraremos nesse período uma sociedade que se
politiza cada vez mais, estimulada pela possibilidade de uma transformação concreta da
realidade e impulsionada por uma grande explosão teórica e intelectual. Nesse
contexto, assistimos, como vimos, a emergência de certos círculos de esquerda que
abordavam os problemas do desenvolvimento econômico capitalista na América Latina.
Dentre eles encontraremos a POLOP, tendo Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos
como dois dos principais fundadores dessa organização. Seria na POLOP que estes
intelectuais, ainda antes de 1964 lançariam o embrião para o que viria constituir uma
teoria da dependência. Adiantando, de modo suscinto, os esforços de Marini e Santos se
voltaram para a análise do caráter da burguesia nacional, do desenvolvimento nacional
e da estagnação social, defendendo a idéia de que a Revolução Socialista seria o
caminho fundamental para se superar a situação de dependência.
Por outro lado, o que poderemos constatar na sociedade brasileira até 1964 será
o aprofundamento de uma crise estrutural, englobando: política, economia,
administração, ideologia... Essa crise seria, talvez, a expressão de uma relação causal
significativa tanto do ponto de vista externo, no que tange aos seus condicionantes
exógenos (como a Revolução Cubana), quanto do ponto de vista interno, que se refere à
dinâmica empreendida pelos atores sociais, numa luta política contra o capitalismo.
Todo esse processo incidirá diretamente sobre a governabilidade do país com ameaças
constantes de instauração de um Regime Autoritário.
O que preocupava os intelectuais neste contexto era o que qualificavam como
um desconhecimento teórico do socialismo por parte da classe operária. Desse modo,
Santos e Marini voltavam-se principalmente para a análise da teoria marxista sobre o
socialismo com o objetivo de traduzí-la à prática para as massas proletárias que já
mobilizavam-se em prol de melhorias sociais, todavia, com certa defasagem teórica
sobre os propósitos socialistas, pelos quais – pelo menos em tese – lutavam. Nesse
ínterim, dirá José Nilo Tavares2:
No caso brasileiro, em perspectiva histórica, percebia-se com certa
clareza o divórcio existente entre o caminhar do movimento dos
trabalhadores e o pensar dos teóricos socialistas, quando não a
inexistência de uma teoria sobre o socialismo que deveríamos ou
desejaríamos construir.
Será, justamente, nessa atmosfera de mobilização social e efervescência
intelectual que Marini e Santos iniciam suas trajetórias como teóricos da Dependência,
incorporando à reflexão teórica sobre o desenvolvimento capitalista na periferia a
economia política marxista e trarão à tona a noção de exploração como chave mestra do
funcionamento do capitalismo contemporâneo. Com isso, foram influenciados por
Marx, Lênin e, no limite, por Trotsky, que os conduziram a certos estudos inovadores,
como fora o da Teoria da Dependência nos anos sessenta.
Com o golpe, Marini e Santos são afastados sumariamente das atividades
intelectuais que exerciam na UnB3, entretanto passam a ser perseguidos pela militância
política na Organização Revolucionária Marxista - Política Operária, mais conhecida
como POLOP, da qual foram também fundadores ao lado de Eric Sachs, Emir Sader,
Eder Sader, Vânia Bambirra, Michel Lowy, Simon Shwartzman, Moniz Bandeira e
outros.
A POLOP surge no início do ano de 1961 como uma organização de onde se
originariam todas as tendências da chamada nova esquerda. Ela congregava jovens
intelectuais e estudantes que, sob o impacto da revolução Cubana, questionavam a linha
kruchevista de luta legal e aliança com a burguesia nacional adotada pelo PCB. Esses
jovens advinham de diversas militâncias: luxemburguistas, trabalhistas, alguns
trotskistas, setores da Juventude Socialista, dissidentes do PCB, membros da Liga
Socialista e do PSB. Ao surgir com uma dura crítica ao partido comunista e ao
stalinismo, essa organização terá como um de seus intuitos ser uma alternativa de
2
José Nilo Tavares participara de uma homenagem feita a Theotônio dos Santos pela UNESCO –
como colaborador constante desta entidade – escrevendo um ligeiro ensaio intitulado: Theotônio dos
Santos: Os anos de formação.
3
Theotônio dos Santos após ter sido demitido da UnB, também fora condenado à prisão pelo
Tribunal Militar de Belo Horizonte como „mentor intelectual de penetração subversiva no campo”.
esquerda ao PCB4, por não acreditar que um capitalismo nacional e democrático, como
propunha naquele momento o PC e o ISEB, fosse suficiente e eficaz para a luta contra o
latifúndio e o imperialismo.
Nas palavras de Ruy Mauro Marini:
Em janeiro desse ano [1961], constituiu-se a Organização
revolucionária Marxista, mais conhecida por POLOP, em virtude de
seu órgão de divulgação, “Política Operária”, que propôs restabelecer
o caráter revolucionário do marxismo-leninismo, que o PC traía
(MARINI, p.69: s/d).
Os estudos realizados pela POLOP estiveram presentes nos primórdios do
debate sobre o papel da burguesia colocando o socialismo como questão fundamental
para o país, construindo inclusive um Programa Socialista para o Brasil, que fora
considerado o documento programático de maior consistência para a esquerda. Além
disso, defendiam a formação de uma ampla frente revolucionária constituída por
trabalhadores do campo e da cidade como única fórmula democrática para uma
transformação revolucionária, a fim de emancipar a classe operária e eliminar a
dominação burguesa e latifundiária do país, permitindo a instauração do regime
socialista.
Após o golpe de 64, e mesmo anteriormente, Marini e Santos influenciarão
teoricamente os grupos armados no Brasil com a formulação da Teoria da
Dependência. Como nos explicita Marcelo Ridenti:
... [estes] grupos armados não beberam da fonte original, mas dos
teóricos da dependência, como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos
Santos e Gunder Frank, que, embora não se considerassem trotskistas,
e muitas vezes nem citassem Trotsky, foram influenciados [também]
pelo revolucionário russo (Ridenti, Ecos de Trotsky na Esquerda
Armada Brasileira, 1964-1974, In Estudos de Soc. nº2).
Entretanto, a tomada do poder pelos militares no ano de 1964 e a conseqüente
4
Moniz Bandeira, então dirigente da POLOP, dirá em um depoimento que se encontra no livro de
Denis de Moraes (1989): A idéia da POLOP não era substituir o PC, mas formar uma organização com
uma política revolucionária alternativa, que não estivesse comprometida com o sectarismo e o
dogmatismo do PC. (...) Nós queríamos... mudar a linha do PC, que não correspondia à realidade de um
país em desenvolvimento... onde a burguesia, do ponto de vista estratégico, já não tinha um papel
progressista a desempenhar (Moraes, p.69: 1989).
instauração do Regime Autoritário conduzirá a uma certa desilusão da intelectualidade
brasileira que, contrária à Ditadura, ao Imperialismo e ao Capitalismo, começará a
dedicar-se, de fato ou retoricamente, à Revolução. Com isso, a repressão, a censura e o
policialismo entram em cena a fim de podar tais ideais revolucionários, bem como
evitar a expansão destes por toda sociedade. Além disso, como podemos observar nas
palavras de Milton Lahuerta (1999, p. 79):
Com a intervenção militar de 1964, a institucionalização das Ciências
Sociais conheceu a sua segunda experiência sob uma ditadura. De
saída, o novo regime além de restringir as liberdades em geral e
atingir a ordem constitucional, vai demitir seus professores,
enfraquecer seus departamentos no sistema universitário e identificar
as Ciências Sociais com o comunismo e a subversão. Além disso, por
sua opção de “fuga para frente”, ou seja, por seu caráter autoritário
mas modernizador, o regime que vai se constituíndo após a
intervenção militar revelou, para quem ainda tivesse dúvidas, a
debilidade das referências sobre as quais se sustentava a Sociologia
centrada na oposição atraso X moderno.
Nesse momento, Marini e Santos estarão desenvolvendo suas atividades
intelectuais dentro de uma ativa militância política na POLOP, que se estende no pós-64
clandestinamente até 1966, quando se vêem obrigados a exilarem-se no Chile.
Vinculam-se ao Centro de Estudos Sócio-Econômicos da Universidade do Chile
(CESO) e inauguram uma nova etapa de estudos com a temática da Teoria da
Dependência.
Em 1973, com a contra-revolução no Chile, terão grande parte de seus trabalhos
destruídos pela repressão e perseguidos seguirão para o México. Todavia, será entre os
anos de 1966-1973 que Marini e Santos sistematizarão suas idéias sobre a Teoria da
Dependência, que surgirá como resultado da crise do modelo de substituição de
importações. Mais precisamente, podemos considerar a construção da Teoria da
Dependência, com suas variadas versões, como uma tentativa para preencher o vazio
teórico deixado pelo pensamento cepalino, uma vez que este não conseguira implantar
na prática o que visualizara no plano teórico e, muito menos, conseguira responder o
estado de coisas que se desencadeou na realidade dos anos sessenta, ou seja, um Estado
repressivo e concentrador e o imperialismo5. Todavia, não podemos identificar a teoria
5
A primeira versão alternativa à teoria cepalina veio das teses de André Gunder Frank sobre o
“desenvolvimento do subdesenvolvimento”. No Brasil o autor se insere nesta discussão teórica com o
artigo: A Agricultura Brasileira: Capitalismo e o Mito do Feudalismo. Revista Brasiliense, jan/fev, 1964,
onde procura combater as análises do PCB, que versavam sobre a existência de resquícios feudais no
da dependência como mera crítica ao projeto desenvolvimentista cepalino, uma vez que
as primeiras elaborações em torno do conceito de dependência originam-se como crítica
teórica e metodológica às estratégias e táticas adotadas pela chamada “Esquerda
Ortodoxa”, que defendia a revolução democrático-burguesa como via ao Socialismo.
Contudo, é evidente que o debate se ampliaria.
Rui Mauro Marini e Theotônio dos Santos fundamentavam suas formulações em
Marx e Lênin, sobretudo na Teoria do Imperialismo e do desenvolvimento desigual e
combinado de Lênin. A influência destes autores levou Marini e Dos Santos, bem como
Frank à construção de análises inovadoras, como a Teoria da Dependência. Neste
contexto, Rui Mauro Marini e Theotônio dos Santos se inserem com o propósito de
tecerem uma nova interpretação sobre o futuro do capitalismo na periferia partindo de
sua inserção no sistema capitalista internacional. Assim, veremos o conceito de
dependência surgindo como resultado de uma discussão sobre o tema do
desenvolvimento e do subdesenvolvimento na América Latina.
Ao refletirem sobre a realidade da inserção do capitalismo na periferia, Marini e
Santos estão simultaneamente traçando críticas sobre as teorias do desenvolvimento
cepalinas – que vêm à tona nos anos otimistas da década de cinqüenta – bem como às
limitações metodológicas e seus efeitos sobre as práticas políticas dos anos sessenta,
marcado pelo Golpe de Estado em 1964 e por crises institucionais, sociais e
ideológicas. Tudo isso com o propósito de compreender as dificuldades do modelo de
desenvolvimento que se produziu para a América Latina e que predominara nas
ciências sociais durante os anos cinqüenta. Como contraponto desse embate teremos a
questão da soberania nacional e o socialismo almejados por Santos e Marini em suas
análises sobre a crise brasileira neste período.
Uma outra preocupação destes estudos, talvez devido à influência recebida de
Guerreiro Ramos na formação intelectual desses autores, seria as conseqüências que
esta investigação traria para o plano teórico das Ciências Sociais, uma vez que a
intelectualidade dos anos cinqüenta estará marcada por um grande otimismo que, na
visão de Marini e Santos, se desconstrói nos anos sessenta. Assistiremos, assim, a
emergência de uma intelligentsia caracterizada por uma atitude crítica e, no limite,
pessimista frente a produção científica pautada, até então, pela escola de pensamento
cepalino. Um pessimismo que surge da estagnação econômica e do fracasso das
campo brasileiro.
políticas de desenvolvimento.
O que temos que ter claro neste momento é que esta postura crítica, com Santos
e Marini, surge fundamentalmente das reflexões sobre o desenvolvimento interno do
capitalismo e suas contradições e que a crítica sobre as formulações cepalinas surge de
um problema metodológico que repercute sobre a teoria, de onde se extrai o ponto de
partida deste embate intelectual que não pode ser visto como uma mera disputa
ideológica.
Nesse sentido, Marini e Santos observarão que o fomento em torno da
industrialização6 como solução para se atingir o desenvolvimento na América Latina
não eliminara os obstáculos reais de sua concretização, mas criara novos problemas e
tensões sociais e, ainda, colocara em crise a própria noção de desenvolvimento e de
subdesenvolvimento e o modo de como conceituá-los. Será desta crise do modelo de
desenvolvimento que surgirá o conceito de dependência como “possível fator
explicativo desta situação paradoxal” (DOS SANTOS, 1971, p.173), que caracteriza um
tipo específico de desenvolvimento dependente, através do qual procura-se superar os
equívocos teórico-metodológicos advindos do modelo desenvolvimentista.
Esta constatação atrela-se à proliferação de regimes autoritários que selam, como
nos esclarecem Santos e Marini: a inviabilidade do modelo desenvolvimentista
independente e nacionalista, da CEPAL e a impossibilidade de realização de uma
revolução democrático-burguesa, como pretendia a esquerda. Com isso, o debate
intelectual, paulatinamente, transitará da discussão sobre o modelo desenvolvimentista
para a Dependência, uma vez observadas as limitações do primeiro e a necessidade de
ultrapassá-las. É necessário notar, ainda, que a existência de uma fração revolucionária
dentro da esquerda fora um elemento decisivo para a elaboração desta Teoria da
Dependência, haja vista as formulações de Santos e Marini.
Será a partir desta discussão que veremos o conceito de dependência ganhar um
status científico que predominará nos debates acadêmicos, se tornando o cerne dos
estudos de vários autores durante os anos sessenta.
A formulação de uma Teoria da Dependência surge, então, a partir da crítica às
6
Em sua obra “Dialética da Dependência” Marini esclarece o sentido que estão empregando ao
termo “industrialização”: Empregamos o termo industrialização para designar o processo através do
qual a indústria, empreendendo a mudança qualitativa global da velha sociedade, caminha no sentido de
se converter no eixo da acumulação de capital. É por isso que consideramos que não se dá um processo
de industrialização no seio da economia exportadora apesar de se observarem nela atividades industriais
(MARINI, 2001, p. 139, nota).
formulações cepalinas. Esta, por sua vez, recai sobre o modelo de “sociedade
desenvolvida” por ela concebido, que para Santos e Marini constitui uma mera
abstração ideológica que rompe a relação entre o concreto e o abstrato. Mantendo-se
num nível formal e, por isso, ahistórico, o modelo de desenvolvimento adotado pela
CEPAL acaba por desconsiderar as peculiaridades do capitalismo latino-americano e,
mais especificamente o brasileiro7. Assim, a controvérsia metodológica fundamental
advém do fato da teoria do desenvolvimento utilizar-se, segundo estes autores, de um
modelo formal e ahistórico que a torna inválida cientificamente, caracterizando uma
forma impositiva que possibilitaria os países subdesenvolvidos latino-americanos
seguirem a experiência histórica dos países desenvolvidos (Estados Unidos, Japão,
Europa) a fim de tornarem-se iguais ou semelhantes a eles.
Criticando o modelo de abstração da CEPAL Rui Mauro Marini (1975, p.96/97)
constatará que:
Es por lo que, más que un pre-capitalismo, lo que se tiene es un
capitalismo sui generis, que solo cobra sentido si lo contemplamos en
la perspectiva del sistema en su conjunto. [...] es el conocimiento de la
forma particular que acabó por adoptar el capitalismo dependiente
latinoamericano que ilumina el estudio de su gestación y permite
conocer analíticamente las tendencias que desembocaron en este
resultado.
Para Santos e Marini não há nenhuma possibilidade histórica para que
sociedades periféricas propugnem um desenvolvimento que as conduza ao mesmo
estágio daquelas desenvolvidas, já que existe um tempo e um contexto histórico
específicos que não podem ser desprezados ou, até mesmo, burlados. Além disso, a
utilização de modelos de desenvolvimento leva a uma certa limitação reflexiva que
desfoca a análise do caráter do próprio processo de desenvolvimento nos países
dependentes e impossibilita a análise das crises latino-americanas, uma vez que a
própria economia latino-americana possui suas peculiaridades e, portanto, suas
estruturas terão uma dinâmica historicamente diferenciada de economias hegemônicas.
O que temos é a precisão de se voltar os olhos para a realidade histórica concreta das
sociedades dependentes, por possuírem um movimento próprio e específico e, mais do
que isso possuem as suas “leis de desenvolvimento”, que devem ser estudadas e
7
Neste momento podemos destacar um ponto convergente entre Santos Marini e Cardoso, no que
se refere às críticas formuladas sobre a metodologia utilizada pela Cepal.
definidas. Ademais, como nos explicita Santos, o desenvolvimento de uma sociedade
não é tarefa para tecnocratas ou burocratas, por não se tratar de uma questão técnica que
será resolvida através de abstrações formais.
Nesse sentido, Theotônio dos Santos (1970, p.155) dirá que:
El desarrollo es una aventura de los pueblos, de la humanidad. Cabe,
pues, definirlo y estudiarlo con una amplitud de vista y enfoque que
rebase los limites de los técnicos, burócratas e académicos.
Enquanto isso, Fernando Henrique Cardoso, acadêmico uspiano, é considerado
subversivo pelos órgãos policiais, devido à sua participação num grupo de estudos
marxistas que analisava O Capital, de Karl Marx. Esse grupo acabaria adquirindo muita
importância no debate intelectual e mesmo depois de extinto ainda permaneceria como
uma referência para a cultura de esquerda que fervilhava na Maria Antônia. Seus
integrantes (Cardoso, Ianni, Giannotti, Paul Singer, Bento Prado, Francisco Weffort,
Fernando Novaes e outros) eram considerados por muitos analistas a elite intelectual
brasileira. O engajamento de Cardoso nesse grupo marca a preocupação que possuía
com o rigor metodológico e desde cedo revela sua postura anti-revolucionária
explicitada, posteriormente, em suas obras, mantendo-se, no limite, com um
pensamento radical.
Quando sobreveio o golpe militar, Cardoso, sentindo-se perseguido sai do país e
fica exilado no Chile de 64 a 67, ingressando na CEPAL (Comissão Econômica para a
América Latina), onde encontrou suporte teórico para a construção de sua Teoria da
Dependência. Nesse período, em que Cardoso permanece no exterior, a Faculdade de
Filosofia Ciências e Letras da USP esteve permeada por uma linhagem marxista
revolucionária mantendo-se, no limite, nos marcos de uma formulação estagnacionista,
negativa ou positivamente referenciada nas possibilidades de desenvolvimento
analisadas pela CEPAL.
Veremos, então, em meados da década de sessenta a emergência de uma
corrente de opinião enfatizando as análises sobre a dependência latino-americana,
todavia vista por um ângulo diferente daquele apresentado, até então, pela CEPAL. Essa
nova visão rompia, nas palavras de Cardoso (1993, p.19):
com a tradição de análise que via a questão do desenvolvimento como
um processo de reposicionamento entre países na divisão internacional
de trabalho (...) a ênfase que antes era posta globalmente na relação
entre o externo (o imperialismo) e o interno (a Nação) passou a ser
mediatizada, nas análises sobre a dependência, pelo processo de luta
entre as classes. Dessa forma, a questão do desenvolvimento deixou
de ser uma questão econômica para ser uma questão política.
Nesse contexto, ao ingressar na CEPAL Cardoso, em parceria com o cientista
político chileno, Enzo Faletto, escreverá Dependência e Desenvolvimento na América
Latina, livro este que será um divisor de águas, uma vez que representará alguns
avanços metodológicos das teses cepalinas que dominavam o debate, lançando uma
versão neo-Cepalina, cuja visão, segundo Emir Sader (s/r), era de que “nossas
sociedades estão inseridas num „marco internacional‟ que as condiciona, sem as densas
relações que a teoria do imperialismo impõe”.
Cardoso e Faletto se enveredarão por uma abordagem histórico-estrutural da
dependência, que se traduzirá de modo diversificado em cada país, devido às
peculiaridades históricas e específicas dos mesmos, situação esta que nasce,
precisamente, da relação entre países periféricos e centrais, moldando a articulação das
classes sociais, da economia e do Estado. Nesse sentido, o desenvolvimento nacional
dependeria, principalmente, da capacidade de cada país para tomar as decisões de
política econômica que a situação requeresse. Substituíram, assim, a teoria
estagnacionista, para a qual os países periféricos estariam fadados ao fracasso
econômico, pela teoria da dependência, demonstrando que para estes países havia a
possibilidade de um desenvolvimento dependente e associado.
Quando Cardoso e Faletto refletem sobre o conceito de dependência aludem,
essencialmente, à relação entre a economia e a política, bem como aos movimentos
sociais e o funcionamento de todo o sistema de articulações dos grupos, no que tange
ao plano interno e externo. O que eles verificam em cada país é que o modo pelo qual a
economia se integra ao mercado internacional se dá de forma bastante distinta no que se
refere à relação entre os próprios grupos sociais internos e destes com os grupos
externos. Com isso, o conceito de dependência designa, de antemão, para Cardoso e
Faletto, uma relação de caráter econômico-estrutural que está intrinsecamente ligada a
um tipo específico de relação entre as classes, a nível nacional e internacional,
garantindo a vinculação econômica com o exterior. Relação econômica esta que se
estreitou com a expansão do mercado mundial originando o que eles denominaram de
situação de dependência, não como “conseqüência interna de um antecedente externo”,
mas como resultante histórico-estrutural que vem a tona com a constituição do mercado
internacional.
Fernando Henrique Cardoso ampliará a discussão sobre a dependência, iniciada
com Faletto, em sua obra Autoritarismo e Democratização, apoiando-se em
fundamentos marxistas para afirmar que com o avanço tecnológico, tendo como
conseqüência o barateamento da força de trabalho, a tendência seria o aumento da
composição orgânica do capital, o que é essencial para a acumulação capitalista.
Entretanto, se por um lado engrossa-se o capital constante (para investimento nas forças
produtivas), por outro lado diminui-se o capital variável (para pagamentos de salários)
auferindo lucros crescentes, em decorrência da concorrência entre os capitalistas e
engendrando dinamismo no sistema. O resultado é não só a expansão do modo de
produção, mas também do mercado consumidor, que torna-se acessível apenas a uma
camada restrita da população, devido às disparidades sociais que emergem com o
progresso capitalista.
Surge, então, uma nova característica do capitalismo dependente: a exclusão,
comum no padrão social tanto de nações periféricas como das nações centrais, o que
explicaria para Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto que não é pelo fato de ser
excludente que o capitalismo dependente deixará de se converter numa possibilidade de
desenvolvimento, no que tange a acumulação crescente de capital. Tudo isto acentua o
caráter contraditório de desenvolvimento em sociedades dependentes, desenvolvimento
este que nunca deixou de ser dinâmico.
Vale lembrar, ainda, que o conceito de dependência, em si, designa, conforme
Cardoso e Faletto, a abertura do setor de bens de produção e do setor financeiro de uma
sociedade periférica ao mercado mundial, a fim de atrair investimentos que
proporcionem desenvolvimento. Já a adjetivação associado indica que não só o capital
estrangeiro se expande, mas também que resta um espaço ao capital nacional, no que se
refere à organização e ao controle econômico, possibilitando sua expansão e
conseqüente desenvolvimento. Não podemos também perder de vista o caráter dialético
da dependência que é colocado por estes autores, dadas as contradições sociais que são
crescentes na medida em que o desenvolvimento prossegue. O que temos, assim, é um
desenvolvimento capitalista, dependente, associado e dialético.
Vale lembrar que, segundo Cardoso (1971, p.70/71):
o que era evidente na situação colonial se dissimulará na
situação nacional por trás das regras do mercado. Nação
independente suporia, como no caso dos países de
“desenvolvimento originário”, mercado livre e nacional. Por
isso, no plano ideológico o pólo de orientação dos grupos e
classes para propiciarem a independência encontrará meios para
mitigar e mistificar a ambigüidade de sua situação, vendo no
liberalismo a justificação de sua sujeição econômica.
Dentro do contexto da dependência Cardoso investigará ainda a burguesia
industrial que, encontrando-se numa redoma formada por seus interesses particulares,
teria abdicado da tentativa de instaurar uma política hegemônica, contentando-se em se
associar ao capital estrangeiro como sócia-menor, já que nos horizontes de suas
possibilidades de atuação histórica não se vislumbravam muitas saídas. De acordo com
Cardoso, uma vez que esta burguesia descarta a opção revolucionária, lhe resta fazer a
transformação capitalista necessária e integrar a economia brasileira aos quadros
econômicos mundiais e, no que se refere à esfera política, reage de forma meramente
adaptativa sem muitos interesses na construção de um projeto nacional. Como diria
Cardoso (1971, p. 66/67):
na dependência nacional haverá sempre uma base interna da
dominação externa... como resultado de um processo político-social
de formação de alianças e de legitimações que passam a criar
solidariedades - em torno evidentemente de núcleos de interesses
econômicos comuns- entre grupos e classes sociais situados no âmbito
das sociedades dependentes e os que se situam nas nações
hegemônicas.
Nesse sentido, sem classes sociais capazes de incorporar um projeto
hegemônico, o processo social parece se dar apenas pelo protagonismo dos fatos, o que
é característico de contextos de revolução passiva.
Diante disso, o que se constatou foi que Cardoso, ao analisar tal contexto
apresenta uma alternativa, para a superação do Estado autoritário através da paulatina
emergência da democracia, que descarta a concretização de uma Revolução Socialista,
mas que se refere, na verdade, à participação política. Participação política esta que não
significa adesão e sim legitimação do conflito, num clima de reconhecimento da
diversidade dos interesses, possibilitando a discussão dentro do processo político.
Por fim, é interessante ressaltarmos que, a polêmica crucial sobre o caráter da
dependência surgirá no final dos anos setenta com Ruy Mauro Marini, por um lado,
Fernando Henrique Cardoso e José Serra, por outro, com artigos publicados na Revista
Mexicana de Sociologia.
A crítica feita por Cardoso e Serra sobre um ensaio escrito em 1973 por Marini:
A Dialética da Dependência, viria se concretizar com o artigo, As Desventuras da
Dialética Dependência, escrito em 1978, que é representativo da predominância de uma
abordagem que prima pelo aspecto político, característico das obras de Cardoso em
meados dos anos setenta.
Nesse texto, os autores iniciam apontando a dificuldade de ser do intelectual em
sociedades dependentes, principalmente do intelectual de esquerda por estar limitado,
segundo Serra e Cardoso, teórica e metodologicamente. Essa limitação conduziria, de
acordo com esta perspectiva, à gestação de pensamentos que não passaram de mera:
“aventura política e não chegaram a imprimir nas coisas e na sociedade a marca de
qualquer triunfo” (Serra&Cardoso, 1978, p.35). Além disso, o que estes autores
afirmam é que o modelo científico de análise utilizado pelos intelectuais de esquerda
não lhes dá margem à visualização de novos processos sociais, que adviria da
compreensão do desenvolvimento dos conflitos e, a partir daí, um questionamento sobre
como é possível a transformação social. Conforme Cardoso e Serra (1978, p. 35): “... é
preciso mostrar como as estruturas, ao „reproduzirem-se‟ pelas ações e relações dos
homens, se recriam e dessa maneira são repostas velhas-novas contradições”.
Com isso, estes autores estarão dizendo que muito mais do que vontade de
transformar a sociedade tem-se que ter um rigor metodológico, onde a teoria deverá
estar fundamentada no instrumental analítico a fim de se evitar cair no empirismo puro.
Assim, dirão Cardoso e Serra (ibidem, p.36):
... dos que se empenharam por criar uma dialética da dependência...
falta, isto sim, afinar o instrumental analítico e assentar as asas da
razão menos na imaginação adulteradora e mais no movimento do
real, escapando da repetição ou da novidade meramente verbal.
Feita esta primeira crítica, a discussão se volta diretamente contra Marini com
críticas às explicações econômicas por ele propostas e à forma que utiliza o método
marxista como fundamentação de sua análise. A seguinte passagem do texto de Cardoso
e Serra, é representativa da posição que assumem diante do ensaio de Marini (1978, p.
36):
(...) não é por menosprezo à análise política que a exposição se
concentrará na crítica das categorias econômicas (...) interessa-nos
criticar as explicações econômicas propostas porque elas,
fundamentadas pobremente na teoria marxista, sugerem práticas
políticas equivocadas. Se no plano da análise econômica os equívocos
podem ser sanados pela crítica, as políticas inspiradas por estas
mesmas análises podem levar a desastres cuja “correção” passa muitas
vezes pelo sacrifício, até físico, de setores importantes de toda uma
geração.
Ao contrário, é justamente por prezarem pela análise política que Serra e
Cardoso estarão criticando as explicações econômicas e o que elas desencadearão no
campo político, no que tange ao pleiteamento da Revolução Socialista. O que parece
instigar a crítica a Marini é a construção de uma teoria com pouco ou sem nenhum
pressuposto político, embebida de um marxismo dogmático, como nos propõem
Cardoso e Serra. Nesse ponto estes autores são bem incisivos:
(...) Quando o impulso generoso dos que desejam revolucionar se
soma a postulados falsos ou equívocos, não só a teoria se empobrece
embebida em má política (o que é menos grave) como a política se
estiola em tentativas, frustrações e enganos... parece que a rigidez
mental de alguns intelectuais leva-os a continuar ostentando... os
lauréis acadêmicos com um saber que já está morto (1978, p. 36).
Cardoso e Serra estão criticando, no limite, os resíduos da geração intelectual de
esquerda pré-64 no que tange, voltamos a assinalar, à opção teórica e metodológica
daqueles. O que nos fica implícito nessa passagem é a necessidade de se avançar o
debate com amplitude de pensamento a fim de se refletir sobre novas alternativas para a
sociedade brasileira, alternativas que surjam como teoria que condiza com a realidade
do momento e, por isso, possuam as condições ideais para se transformarem em prática
política real. O marxismo como teoria e a Revolução Socialista como prática – da forma
como aborda Marini e, até certo ponto, Theotônio – nos parecem ser inconcebíveis para
Serra e Cardoso, como método e “solução” do contexto brasileiro sob o regime
autoritário.
No IV e último ítem do artigo que Marini escreve em resposta a Cardoso e Serra,
intitulado: Las razones Del neodesarrollismo (respuesta a F. H. Cardoso e J. Serra),
este autor termina por criticar Cardoso e Serra no que tange à separação que estes
autores fazem entre economia e política ao sustentarem, conforme a compreensão de
Marini, que: “a economia não é senão o marco em que se exerce a luta política, a qual
corresponde a uma esfera autônoma”. Assim, Marini dirá que seu reducionismo
econômico não passa de uma caricatura feita por Cardoso e Serra, uma vez que
sustentam opções advindas da ação das forças políticas atuantes e com isso, de acordo
com Marini (ibidem, p.99):
Se rompe, de este modo, la unidad de análisis, que convierte a la
política, para decirlo con Lenin, en “la expresión concentrada de la
economía” y se abandona el supuesto metodológico fundamental del
marxismo, que el propio Marx expuso con tanta precisión en su
prólogo de 1859: “El modo de producción de la vida material
determina (bedingen) el proceso de la vida social, política y espiritual
en general”. Reducida a sí mesma, la lucha política se ve así
desprovista de toda base explicativa sólida.
Ademais, para Marini as Desventuras teriam ainda um outro propósito, dissipar
as diferenças entre o capitalismo nos países avançados e o capitalismo dependente,
cotejando-os como integrantes de um único processo do desenvolvimento capitalista no
centro e na periferia. Daí a constatação de Marini de que seus críticos em momento
algum do texto se referem ao capitalismo dependente brasileiro, a não ser com relação
às contradições geradas por este, contradições estas que se desdobram, meramente,
numa particularidade de países periféricos. Além disso, a utilização do aparato teórico
Centro/Periferia feitas por Cardoso e Serra representaria, segundo Marini, um retrocesso
ao reduto cepalino e, no limite, às ilusões desenvolvimentistas da burguesia industrial
dos anos cinqüenta, ilusões estas que, conforme Marini, a vida mesma destruiu, todavia
ela procura refazer-se sob a forma, do que denominou, de um neodesenvolvimentismo.
Nesse sentido, o autor acrescenta que:
(...) Pero, hoy, los nuevos ideólogos de la burguesía brasileña están
obligados a retomar esa tradición y a intentar dar credibilidad en un
desarrollo capitalista brasileño al estilo norteamericano o europeo. En
suma, nos encontramos ante un neo-desarrollismo, todavía
vergonzante, pero que no tardará en ir perdiendo sus inhibiciones
(Marini, 1978, p.102/03).
Marini acabará por encerrar seu texto rotulando Cardoso como um ideólogo da
burguesia, que trata não só de desarticular todo tipo de pensamento que carregue a
negação do “capitalismo de Estado nacional e democrático”, bem como opera numa
escalada contra o marxismo, “para retirar da classe operária qualquer possibilidade de
dar um fundamento científico a suas lutas de classe” (Marini, 1978). Diante disso,
Marini dirá que, muito mais do que atacar é necessário desacreditar o movimento social
de onde brotara o ideal revolucionário de certos setores da esquerda brasileira, cuja
importância teria advindo ao trazerem a tona, de modo concreto, “a questão do poder e
o direito da classe operária e seus aliados a lutar para conquistá-lo”:
Gracias a ello, la idea del socialismo há dejado de ser una abstracción,
un ideal sin trascendencia práctica, un tema para la discussión de
intelectuales, para ganar el centro de las luchas de clases y obligar
incluso a la burguesía y sus ideólogos a intentar, hoy, desviarla hacia
“acciones concretas en coyunturas específicas” y un socialismo que
apenas encubre su carácter de clase burgués. (...) La vida misma se
encargará de mostrar la inutilidad de esos esfurzos (Marini, 1978, p.
105).
É evidente que todo este debate é muito mais amplo, mas não nos compete nesse
momento a delonga. Finalizamos com a seguinte questão: que considerações podemos
tecer a partir de um tema tão complexo e vasto de reflexão, que terá influência direta
nas práticas políticas brasileiras, durante os últimos quarenta anos, a partir da prática
intelectual? A partir daí teremos um caminho para a compreensão da importância de
intelectuais como Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini e Fernando Henrique.
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Estudos de Sociologia n.2
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