DISCURSOS SOBRE GÊNERO: COMO ELES APARECEM NO GUIA DOS LIVROS DIDÁTICOS DE ALFABETIZAÇÃO Thaise da Silva (Mestre em Educação. Doutoranda em Educação – UFRGS/PPGEdu – Email: [email protected]) ORIENTADORA: Profª Drª. Iole Maria Faviero Trindade RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de analisar como as representações de gênero textual se fazem presentes no Guia do Livro Didático “Alfabetização”, material elaborado pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) com o intuito de orientar autores e editoras sobre os pré-requisitos para a aprovação de livros didáticos que pretendem concorrer para a distribuição nas escolas públicas de todo país, no ano de 2007. Para a elaboração dessas análises, utilizou-se como material de exame o próprio Guia Nacional do Livro Didático, disponível no site do MEC, contando com os aportes teóricos dos Estudos Culturais em consonância com os estudos sobre letramento. A partir das análises realizadas, conclui-se que os gêneros textuais indicados pelo Guia, para a área de alfabetização, estão intimamente relacionados com os discursos hegemônicos sobre o letramento. PALAVRAS-CHAVE: PNLD. Guia do Livro Didático “Alfabetização” do PNLD. Letramento. Gêneros textuais. ABSTRACT: This work aims at analysing how textual genre representations come to be present in the Teaching Book Guide ‘Alfabetização’, a material the National Programme for the Teaching Book (PNLD) has elaborated to guide authors and publishing companies about prerequisites to approve textbooks designed to apply for distribution in public schools throughout the country in 2007. To make these analyses, we used the Guia Nacional do Livro Didático, available on the MEC site, with the theoretical contribution of Cultural Studies in 2 tune with literacy studies. With these analyses, we have concluded textual genres the Guide suggested for literacy are closely related to hegemonic discourses about literacy. KEYWORDS: PNLD. PNLD Teaching Book Guide ‘Alfabetização’. Literacy. Textual genres. 1 INTRODUÇÃO Neste trabalho, pretendo analisar o Guia de Livros Didáticos: PNLD 1 2007 – Alfabetização. Este material apresenta todos os livros de alfabetização aprovados pelo MEC (Ministério de Educação) e distribuídos para a rede pública deste país. Nas primeiras páginas deste guia são apresentados os critérios de aprovação e reprovação do material enviado pelas editoras para a análise do PNLD. Em seguida, são apresentados os livros aprovados pelo MEC com comentários referentes a eles. Para esta análise, ficarei restrita às primeiras páginas deste material, onde são apresentados os critérios para a seleção dos livros. Opto por desenvolver uma análise, tendo por base este material, pois pretendo, através dele, identificar quais os discursos circulantes com relação aos processos de alfabetização e trabalho com gêneros que estão sendo constituídos na atualidade e legitimados através do órgão máximo responsável pela educação no Brasil, o Ministério da Educação e Cultura – MEC. Além de contar com introdução e conclusão, este trabalho se organiza em outras duas partes: na primeira, trabalharei com os discursos que constituíram e constituem a alfabetização em nosso país ao longo do tempo, qual o discurso vigente na atualidade e como o mesmo se faz presente nos critérios de escolha estabelecidos pelo PNLD. Na segunda parte, analiso de que forma os critérios estabelecidos pelo MEC influenciam o trabalho com os gêneros textuais nos livros didáticos e, consequentemente, em sala de aula. Cabe ressaltar que as análises aqui apresentadas terão por base os Estudos Culturais, tendo como material de exame o Guia do Livro Didático 2007. Este, dentro deste campo teórica é tomado como um artefato cultural que cristaliza discursos e formas de ver e pensar a realidade de uma determinada época. 2 OS ESCOLHIDOS: CONSTRUINDO DISCURSOS 1 PNLD: Programa Nacional do Livro Didático. 3 Nas primeiras páginas do Guia do Livro Didático são apresentados os critérios seguidos pelos julgadores para a aprovação dos livros que foram enviados para as escolas para serem escolhidos e, posteriormente, adotados pelos professores para ser utilizados durante três anos em suas turmas. Essas páginas são divididas em duas seções, nas quais são apresentados os critérios eliminatórios e os classificatórios. A seção Critérios Eliminatórios é subdividida em três itens: Correção de conceitos e informações básicas (clareza e correção – quer dos conceitos, quer das informações – e isenção de erros e/ou de formulações que induzam a erros); coerência e adequação metodológicas (explicitar e manter a mesma em todo o transcorrer do livro); e preceitos éticos (não veicular preconceitos e não fazer propaganda ou doutrinação, bem como publicidade e difusão de marcas, produtos...; construção da ética democrática e plural, estimular o convívio social, a tolerância e a diversidade da experiência humana). A seção Critérios Classificatórios é composta por seis itens: Relativos aos processos de alfabetização (descreve de forma sucinta o que se espera de um método de alfabetização – salienta o ensino da leitura, oralidade e escrita, a forma autônoma de como isso deve se dar e a importância de formar o sujeito letrado); relativos à natureza do material textual (salienta a importância de oferecer textos de qualidade e portadores diversos desde o primeiro ano da alfabetização, salientando que devem ser representativos dos textos em circulação social); relativos ao trabalho com o texto (mais uma vez descreve a importância do texto quanto a leitura, produção textual e conhecimentos linguísticos que devem ser gerados a partir dele); relativo ao trabalho com a língua oral (passa a ser uma exigência do livro didático trabalhar não só a leitura e a escrita, mas também a oralidade, explorando sua diversidade no que se refere a origem, situação de fala...); relativos ao Manual do Professor (devendo explicitar a metodologia, facilitando a avaliação dos resultados e ampliação e adaptação das propostas apresentadas no Livro do Aluno); e, enfim, relativos aos aspectos gráfico-editoriais (evidencia a qualidade do material quanto a sua estrutura, diagramação, correção e ilustrações). Ao analisar essas duas seções que compõem esse guia, que teria como objetivo auxiliar o professor na “livre escolha” do livro didático, pode-se notar que se trata de uma escolha que passa por uma “orientação prévia”. Foucault (2007) usa a palavra “interdição” para definir quem pode falar, o que pode ser dito e em que circunstância. Lendo esse material, é possível perceber que as editoras que quisessem que seus livros fossem aprovados teriam que se adaptar à ordem do discurso vigente nesse momento em nossa sociedade. Percebe-se com o uso frequente das palavras autonomia, crítico, letrado, função social da leitura e escrita que a 4 metodologia “indicada” para atender às exigências dos avaliadores do livros do PNLD conduz à seleção daqueles que têm uma perspectiva construtivista e que considerem os aspectos referentes ao letramento. Além da aprovação, alguns livros recebem uma espécie de selo de qualificação, ou seja, neles são impressas, na capa, as palavras “Recomendado pelo MEC”, ficando evidentes, nesses casos, os efeitos dos critérios de escolha. A partir dessas descrições, é possível perceber como se dão as regularidades discursivas que fazem com que um discurso passe a se constituir como verdade. Nesse caso, acabam se legitimando que métodos de alfabetização são tidos como os melhores, podendo ser divulgados por todo o país com o crivo de um órgão respeitado como o MEC. Neste momento, é importante salientar que para Foucault (apud VEIGA-NETO, 2007, p. 9091) a linguagem é constitutiva do nosso pensamento e, consequentemente, do sentido que damos às coisas, às nossas experiências e ao mundo. Em outras palavras, é pela linguagem que damos sentido ao mundo. Tomando como referência esse conceito, o discurso passa a ser pensado não mais como aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas “aquilo por que, pelo que se luta”, o poder do qual nos queremos apoderar. É evidente que a escolha dessa metodologia não acontece por acaso, mas sim como resultado do que Foucault chama de práticas não-discursivas (VEIGA-NETTO, 2007, p. 48), que seriam as condições econômicas, sociais, políticas e culturais que fazem com que um discurso se estabeleça e tenha o poder de dizer o seu saber, fazendo com que este se constitua em um regime de verdade. Fazendo um retrospecto dos métodos de alfabetização, percebo que cada um teve uma época em que era visto como “o melhor”, o “mais verdadeiro”. Marzola (2003) nos sugere que as implicações atribuídas à alfabetização, produzida como ação de ensinar a leitura e a escrita, fez com que essa questão se tornasse fundamental para o governo das populações, pois, de acordo com as concepções da escola da modernidade, a alfabetização marcaria a fronteira entre a “humanidade” e a barbárie. Sendo assim, a busca pelo método mais eficiente tornou-se uma das maiores preocupações e um objetivo a ser alcançado pelas pesquisas e ações no campo da educação. A autora pensa que: O modismo, com a supervalorização da ‘última novidade’ em matéria de método e com os constantes revivals, que dão novas roupagens ao antigo, instituiu-se como uma prática habitual, reguladora de expectativas e esperanças. Assim, a expectativa por um método de alfabetização que resolva definitivamente os problemas ligados à aprendizagem da leitura e da escrita e que, ademais, alcance os resultados esperados da ação alfabetizadora [...] cria e define um lugar de busca permanente por novos métodos. (MARZOLA, 2003, p. 210) 5 Essa substituição constante dos métodos tem relação direta com o discurso da modernidade, cuja base é a noção de progresso científico que produz o mais recente como o mais avançado, desvalorizando o anterior para colocar outro em seu lugar, tido como mais verdadeiro. Bauman (2001) afirma que a modernidade se constituiu dentro dessa prática de substituição da velha ordem, tida como defeituosa, por uma nova ordem tida como “melhor”. A partir do mapeamento dos discursos que tiveram grande repercussão na produção acadêmica na área da alfabetização, orientando a formação e a prática docente nos últimos cinquenta anos aqui no Brasil, Trindade (2004) chama a atenção para o estudo sobre o estado da arte da alfabetização, realizado por Soares (1989), para mostrar que as pesquisas sobre alfabetização eram praticamente inexistentes até a década de 1950, e que cresceram significativamente nas décadas de 1970 e 1980, obtendo destaque, entre as temáticas, os estudos sobre os métodos de alfabetização. Marzola (2003) observa que para que essa forma de pensar se estabelecesse, foi preciso que a pedagogia adquirisse a base científica que lhe proporcionou o surgimento da psicologia experimental, no final do século XIX, fazendo com que métodos de alfabetização se sustentassem nas diferentes teorias de aprendizagem de cunho psicológico. Com isso, a ciência psicológica vem produzindo efeitos de verdade e de poder na atividade pedagógica, fornecendo base científica para uma série de métodos de ensino da leitura e da escrita, através das teorias da aprendizagem que produziu ao longo do século XX. Exemplos disso são: no início do século XX, a psicologia associacionista, 2 que fundamentou o método montessoriano de ensino e serve de base científica para os métodos sintéticos de alfabetização; 3 a psicologia da forma (Gestalt) que, na metade do século XX, fundamentou cientificamente os métodos analíticos4 de alfabetização; a linguística estruturalista de Saussure (1857-1913), que fornece o suporte científico para os métodos fonéticos. 5 Com tudo isso, deu-se legitimidade a antigas metodologias de alfabetização, possibilitando-lhes participar dos jogos de verdade, ou seja, da disputa pelo poder de dizer a verdade sobre o ensino da leitura e da escrita. A corrente psicogenética, representada especialmente por Piaget, já nas décadas de 1920 e 1930, sustentou também os métodos de alfabetização que vigoravam então. Entretanto, essa concepção de aprendizagem ganha visibilidade em nosso país na década de 1980, ao introduzir um “método construtivista” de 2 Atribui a percepção de um objeto à associação das sensações. Associação das partes para se chegar ao todo, ou seja, associação das letras e sílabas para a formação das palavras. 4 Partem do todo (palavras) para a análise das partes que a compõem (sílabas e letras). 5 Associação dos fonemas e grafema em cada sílaba. 3 6 alfabetização, tendo como marco de seu surgimento as publicações feitas por Ferreiro e Teberosky (1979) sobre a psicogênese da língua escrita. Já os estudos sobre letramento/alfabetismo deram início a um novo enfoque nas pesquisas sobre alfabetização, a partir da década de 1980. Tais estudos passam a se ocupar do “como se ensina” e do “como se aprende”, e passam a discutir os mitos que se constroem em torno da alfabetização e do letramento/alfabetismo, além de se voltar para o papel social da leitura, da escrita e da oralidade, não bastando mais saber ler, escrever e falar, mas sendo necessário saber fazer uso dessas habilidades. Street (2008) nos lembra que o letramento, então, passa a ser vinculado ao contexto social, cultural e histórico do seu uso. São essas duas últimas tendências – a da psicogênese e a do letramento – as inferidas como sendo melhores na concepção dos avaliadores dos livros do PNLD. Isso se evidencia através dos seguintes critérios, presentes, no Guia, no item que se refere à coerência e à adequação metodológica (MEC, 2007, p. 10-11): Em primeiro lugar, deve explicitar sua proposta metodológica, abordando os preceitos básicos que lhe dão identidade e permitem identificá-la e compreender seu alcance; Em segundo lugar, considerando as opções teórico metodológicas assumidas, deve realizá-las, ao longo da obra, de maneira coerente, nas diversas atividades de apropriação do sistema de escrita, leitura, produção de texto, práticas orais e reflexão sobre a língua e a linguagem; Em terceiro lugar, deve mobilizar e desenvolver o maior número possível de capacidades básicas do pensamento autônomo e crítico (como a compreensão, a análise, a síntese, a formulação de hipóteses, o planejamento, a argumentação), envolvidas na apropriação do sistema de escrita, na leitura, na produção de textos, nas práticas orais e na reflexão sobre a linguagem; Em quarto lugar, deve apresentar articulações pedagógicas entre os componentes da obra didática; Em quinto lugar, deve contribuir para a percepção das relações entre o conhecimento construído e suas funções na sociedade e na vida prática; [...] E finalmente deve estimular o convívio social e a tolerância, abordando a diversidade da experiência humana, com respeito e interesse, inclusive no que se refere à diversidade linguística. É possível dizer isso, pois, se compararmos os itens exigidos para aprovação e reprovação, essas duas últimas "metodologias" são as que mais se aproximam do que é considerado como desejável, segundo o manual. Além disso, se analisarmos as três categorias de agrupamento dos livros didáticos – Livros que abordam de forma desigual os diferentes componentes da alfabetização e do letramento; Livros que abordam de forma equilibrada os diferentes componentes da alfabetização e do letramento; e Livros que privilegiam a abordagem da apropriação do sistema de escrita – são os que abordam de forma equilibrada as questões de alfabetização e de escrita os que recebem 7 o maior número de avaliações como sendo os “recomendados com distinção” pelo MEC. Vale lembrar que os livros pertencentes ao primeiro grupo tiveram 21 exemplares aprovados, os que fazem parte do segundo, 17, e os pertencentes ao último bloco, apenas dez. Diminuem-se, assim, também as possibilidades de escolha de livros de alfabetização dos adeptos a tendências mais sistematizadoras do processo de alfabetização. 3 OS GÊNEROS TEXTUAIS NO GUIA DOS LIVROS DIDÁTICOS DE ALFABETIZAÇÃO A relação que se estabelece entre os livros didáticos de alfabetização, as duas últimas metodologias apresentadas (as amparadas na psicogênese e no letramento) e os gêneros textuais percebe-se uma ligação direta, uma vez que em ambas se entenderia a tarefa de ensinar a ler e escrever como estando além da decifração de um código, e se passaria a pensar nos usos cotidianos da leitura e da escrita. Com relação a essa afirmação, o Guia Nacional do Livro Didático (MEC, 2007, p. 13) salienta que: O conjunto de textos que um Livro Didático apresenta é um instrumento privilegiado – às vezes único – de acesso do aluno ao mundo da escrita. Portanto, é imprescindível que o Livro Didático de Alfabetização, respeitando o nível de ensino a que se destina, ofereça ao aprendiz uma amostra de qualidade e o mais possível representativa dos textos em circulação social. Em outra seção do material, ao descrever a escolha dos livros didáticos de alfabetização, menciona que: Livro 23 – Este livro apresenta um conjunto variado de atividades que visam possibilitar o domínio de conhecimentos e capacidades relativos à construção do princípio alfabético, à fixação de regras ortográficas e à compreensão e produção de textos orais. O trabalho didático orienta-se pelos princípios de análise e síntese, priorizando o estudo das letras do alfabeto, de sílabas e de palavras, por meio de atividades que contextualizam aspectos da escrita em função dos textos propostos para a leitura. As atividades de leitura exploram diferentes estratégias de compreensão do texto. No entanto, a proposta apresenta lacunas, no que se refere à pouca exploração das relações entre a linguagem oral e a escrita, à compreensão das irregularidades ortográficas e a atividades que favoreçam a produção de textos escritos. [...]O material textual apresenta diversidade de gêneros, com uma presença significativa de textos que exploram o extrato sonoro da linguagem, tais como parlendas, trava-línguas, cantigas, adivinhas e poemas. Verifica-se também a presença de outros gêneros textuais, como regras de jogos, histórias em quadrinhos, lendas, histórias, dentre outros. De um modo geral, os textos são autênticos, apresentam indicações de fontes, de cortes, supressões ou adaptações e são tomados como referência para a elaboração das atividades destinadas à apropriação da escrita. No que se refere à temática e à autoria, observa-se o predomínio de textos ligados ao universo infantil, com presença de autores representativos da literatura infantil contemporânea, sem haver, no entanto, diversidade de 8 obras e autores quanto à época, à região e à nacionalidade. Essas lacunas poderão ser superadas por meio da utilização, pelo professor, de materiais complementares, inclusive os sugeridos no próprio livro de alfabetização. (MEC, 2007, p. 151) A partir da leitura desses extratos, pode-se entender que ocorrem exigências no “manual” do MEC de contemplar a diversidade de gêneros, seus usos sociais e os portadores que aí devem estar presentes. Segundo Street (2008), a multimodalidade (que situa a produção escrita no contexto de outros modos, podendo ser visual, oral, cinestésico, ...) e os multiletramentos (signos cotidianos e usos do letramento em contextos culturais específicos) devem ser contemplados na escolarização do letramento, devendo os professores estar cientes disso durante o processo de alfabetização. Em outro momento pode-se ler: Livro 32 - A proposta de alfabetização conduz a criança a descobrir o funcionamento do nosso sistema de escrita, de forma consistente e adequada, por meio de análise e de reflexão sobre sílabas e palavras inseridas em textos e pela comparação entre palavras. Esses objetivos encontram-se articulados a uma perspectiva de letramento que se traduz em atividades pertinentes aos campos de leitura e da produção de textos. O livro apresenta uma seleção de textos de boa qualidade, autênticos e de diferentes gêneros, que circulam amplamente fora da escola e que abordam temas de interesse da criança. As atividades de produção de textos são propostas em situações significativas, de modo que a criança sabe o que escrever, para quem e com que finalidade, embora prevaleçam destinatários inseridos apenas no contexto escola. [...] O material textual é de boa qualidade. Estão presentes textos longos e curtos de variados gêneros e tipos, como, por exemplo, fábulas, poemas, verbetes, tirinhas, trava-línguas, cartazes educativos e anúncios. Também são várias as propostas que levam a criança a perceber as diferentes características linguísticas, funções e usos desses gêneros textuais. Observa-se ainda uma boa mescla de autores, de diferentes épocas, com representatividade no espaço da produção literária. O livro apresenta textos autênticos completos, em sua maioria. Os fragmentos e recortes são devidamente indicados. Contudo, não se observa, no conjunto de textos reunidos na obra, a presença de falares sociais e regionais diversificados, nem de variação de estilo de linguagem de acordo com o grau de formalidade da situação. (MEC, 2007, p. 201) A tendência de levar para dentro da sala de aula situações que visam imitar práticas “reais” de uso do código escrito tem sido ampliada frente ao diagnóstico de que muitas pessoas se alfabetizam, mas não são capazes de fazer uso desse código para resolver situações do seu cotidiano. Levar para dentro da escola, via livros didáticos, os diversos gêneros de uso cotidiano da leitura e escrita passa a ser tido como uma forma de superar esse problema, além de dar às práticas de alfabetização um sentido mais próximo do que como se apresenta no cotidiano. Street (2008, p. 221) assim reflete sobre essas práticas sociais: “[...] a crescente evidência de que na vida cotidiana as pessoas usam a escrita numa ampla variedade de 9 propósitos e de maneiras diversas, inclusive em diários, cartas, notas e memorandos e nas observações sobre a vida social nos seus arredores.” O que se quer lembrar com isso é que fora da escola a criança está imersa em um universo em que os gêneros textuais fazem parte do seu cotidiano. Os critérios elaborados pelo PNLD visam a contemplar esses eventos de leitura e escrita e, para isso, elaboraram, como um dos critérios de seleção dos livros didáticos, o contato com uma diversidade de textos. Com isso, tais critérios buscam abranger a diversidade de recursos comunicativos necessários para que ocorram a leitura e a interpretação de um texto, incluindo sinais visuais, sistemas de notação, cor, layout e outras formas de multimodalidade necessários para dar sentido e que não recorram diretamente ao sistema linguístico. Amplia-se, assim, a forma como se pensa o processo de alfabetização, fazendo com que a leitura deixe de ser só a interpretação de códigos, mas passe também a contemplar contextos e usos. A respeito disso, Street (2008, p. 52) comenta que “a ampla variedade de práticas de letramento deixa bem claro que não há apenas uma, mas várias formas de fazer leitura; não há apenas um letramento, mas vários letramentos”. O autor também pondera que: Nossa experiência força-nos a aperfeiçoar tais idéias, particularmente aquelas concernentes aos letramentos conduzidos em casa e na escola e reconhecer que o grau de semelhança entre as práticas de letramento na comunidade, em casa e na escola tornam a antiga dicotomia inútil. [...] Os participantes empregam tanto estratégias discursivas orais quanto de letramento quando interagem em casa e na escola. (STREET, 2008, p. 92-93) Dessa forma, Street pretende mostrar que mesmo que os gêneros textuais estejam presentes nos livros e outros materiais de uso didático e tragam benefícios às aprendizagens escolares, uma vez que as crianças percebem sentido nas suas atividades de aquisição do código escrito, deve-se ter cuidado de não pedagogizar essas práticas, uma vez que, como nos lembra Trindade (2004b), tanto o alfabetismo escolar (baseado num modelo autônomo) quanto o alfabetismo funcional (baseado num modelo ideológico) são produtos de práticas culturais e, portanto, ambos são pedagogizados, diferenciando-se apenas em função das esferas em que isso ocorre. Portanto, ao se defender a máxima “alfabetizar letrando”, por meio da utilização de gêneros textuais do cotidiano em práticas escolares, criando dentro da sala de aula situações que levem os alunos a fazerem uso de gêneros textuais e práticas discursivas presentes no contexto social, está-se homogeneizando/pedagogizando os vários tipos de letramentos/gêneros, ou seja, escolarizando-os, fazendo com que muitas vezes cartas virem 10 composições sem sentido, poemas sirvam para estudos gramaticais, e assim por diante, perdendo o sentido inicial a que se propuseram. Trindade (2004a) ainda chama a atenção para o fato de que as práticas discursivas moldam nossas maneiras de constituir o mundo, de compreendê-lo e de falar sobre ele. Assim, o Guia do Livro Didático 2007, através das metodologias aprovadas e que recebem a indicação do MEC, via chancela para os livros de alfabetização que as utilizam, acaba por vincular uma ordem discursiva que pode vir a ser tomada como verdade pelos professores de sala de aula que acabam reconhecendo-a e tomando-a como oficial. Ao adquirir os livros didáticos distribuídos pelo Governo Federal, estamos contribuindo para a formação de um determinado tipo de aluno que, de acordo com a descrição do manual, deve ser autônomo, crítico, trabalhar com a diversidade, dentre outras “qualidades” de um sujeito que vive na contemporaneidade. É importante lembrar que a entrada de determinado tipo de discurso que “defende” determinado tipo de metodologia não se dá de forma tranquila e harmoniosa; ao contrário, são travadas “lutas conceituais” para ver quem tem o poder de dizer a “verdade” naquele determinado momento. Assim, a verdade sobre a melhor forma de alfabetizar nossas crianças, presente no material que analiso, estabeleceu-se dentro de um contexto histórico e social determinado que produza saberes que se organizam e vêm a atender a uma vontade de poder. O Guia do Livro Didático 2007 traz toda uma explicação teórica dos critérios que fazem com que um livro seja melhor que o outro, explicitando os saberes que amparam as áreas de conhecimento privilegiadas na produção dos critérios do PNLD 2007. 4 CONCLUSÃO O que busquei com este trabalho foi averiguar quais os critérios que “organizam” a presença dos gêneros textuais nos livros destinados à alfabetização, aprovados pelo PNLD, para, a partir deles, estudar a emergência de um discurso e proceder à análise histórica das condições de possibilidade dos discursos que instituíram tal objeto. Ao analisar o Guia Livro Didático 2007, pude perceber que os livros de alfabetização que tinham em sua base metodológica um discurso baseado nos métodos tidos como tradicionais (sintético, analítico ou mistos) e tinham por base textos típicos das “antigas cartilhas” (reconhecidos como pseudotextos, em que a unidade silábica ou a letra regia a estrutura trabalhada, sem relação com os gêneros do cotidiano) não tiveram sua aprovação, logo não puderam ser distribuídos gratuitamente pelo Governo Federal para as escolas. Dessa mesma forma, os professores que trabalham com uma 11 metodologia que contemple os métodos denominados de tradicionais não puderam optar por um material dentro da sua forma de trabalhar, ficando com suas opções de escolha restringidas. Por outro lado, percebi que os livros de alfabetização que tinham por referência métodos tidos como inovadores (embasados no construtivismo e no letramento) recebiam chancela do PNLD 2007. Nesses, o privilégio é dado através de uma distinção feita pela expressão “Recomendado com distinção” e de estrelas contidas na capa, mostrando que privilegia o uso das concepções presentes no Guia e, consequentemente, o uso dos gêneros textuais. Como o professor é obrigado a adotar um livro e distribuir a seus alunos, ele acaba sendo subjetivado a mudar seus procedimentos de trabalho em prol de uma metodologia defendida pelo MEC. Assim, mesmo que implicitamente, pode-se identificar uma ordem discursiva que se firma na sociedade brasileira atual e que elege o uso de uma forma de alfabetizar, legitimando saberes e subjetivando os envolvidos com as práticas escolares. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2007. MARZOLA, Norma R. Alfabetização: o discurso dos métodos. In: LAMPERT, Ernani (org). O ensino sob o olhar dos educadores. Pelotas: Seiva, 2003. p. 209-220. STREET, Brian. Literacy: an advanced resource book. London; New York: Routledge, 2008. TRINDADE, Iole Maria Faviero. A invenção de uma nova ordem para as cartilhas: ser maternal, nacional e mestra. Queres ler? Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2004 a. ______. Invenção de múltiplas alfabetizações e (na) alfabetismos. In: Educação de jovens e adultos, letramento e formação de professores. Revista Educação & Realidade. Porto Alegre: Faculdade de Educação/UFRGS. v.29, n.2, jul./dez. 2004b. p. 125-142. VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. FONTE CONSULTADA MEC. Guia do Livro Didático 2007: Alfabetização. Brasília, 2007.