O diário de Pesquisa na Escola e na Universidade

Propaganda
O DIÁRIO DE PESQUISA NA ARTICULAÇÃO DA UNIVERSIDADE COM A
ESCOLA: REGISTROS DE UMA EXPERIÊNCIA EM PROCESSO
Ana Lúcia Souza de Freitas1
Maria Elisabete Machado2
Hemini Machado Rodrigues3
RESUMO
O texto apresenta uma experiência de ensino-pesquisa que se realiza em articulação da
Universidade com a Escola. O diário de pesquisa é o procedimento metodológico
utilizado, com dupla finalidade: no âmbito do ensino, o diário mobiliza educador e
educandos ao diálogo e à reflexão sobre suas aprendizagens; no âmbito da pesquisa, o
diário possibilita a documentação da experiência do ensino, fornecendo material para a
investigação sobre a prática. Paulo Freire tem sido uma referência deste trabalho,
orientando a busca do inédito-viável. Assumir o inédito-viável significa reconhecer a
natureza utópica da prática educativa, dispondo-se a assumir os riscos de criar o novo,
ampliando as condições para a realização de práticas educativas emancipatórias. Essa
compreensão orientou o percurso da articulação da Universidade com a Escola,
constituído por três momentos distintos e complementares: a aprendizagem acadêmica
do diário; a recriação da experiência com o diário na escola; a experiência da escola
como conteúdo na formação acadêmica. A análise dos diários de uma turma do Curso
de Pedagogia permitiu compreender a visão dos educandos sobre as contribuições do
diário de pesquisa, bem como perceber as repercussões do relato da experiência com
diários na Escola para a formação acadêmica.
Palavras-chave – articulação Universidade-Escola; diário de pesquisa; inédito-viável.
INTRODUÇÃO
O texto apresenta uma experiência de ensino-pesquisa que se realiza em articulação da
Universidade com a Escola. O diário de pesquisa (Barbosa, 2010) é o procedimento
metodológico utilizado, com dupla finalidade: como um procedimento de ensino, o diário
mobiliza educandos e educadores ao dialogo e á reflexão sobre suas aprendizagens; como
1
Doutora em educação, professora da Faculdade de Educação da PUCRS, coordenadora do Grupo de Estudos da
Pedagogia no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid/PUCRS); líder do grupo de
pesquisa Práticas Educativas Emancipatórias; [email protected]
2
Mestre em Educação pela PUCRS, professora dos anos iniciais na EEEF Almirante Álvaro da Motta e Silva;
orientadora pedagógica do PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa SEDUC/MEC, 2013);
integrante do grupo de pesquisaPráticas Educativas Emancipatórias. Contato: [email protected]
3
Graduanda do quarto nível do Curso de Pedagogia da PUCRS; bolsista de iniciação científica do programa Bolsa
para Alunos de Graduação (BPA/PUCRS);professora auxiliar de uma turma de turno integral nos anos iniciais de
uma Escola Marista; integrante do grupo de pesquisa Práticas Educativas Emancipatórias;
[email protected]
2
procedimento de pesquisa, o diário possibilita a documentação da experiência do ensino,
fortalecendo material para a investigação sobre á prática.
A reflexão proposta resulta do diálogo freireanamente exercido entre as autoras,
integrantes do grupo de pesquisa Práticas Educativas Emancipatória. Os projetos reunidos neste
grupo se relacionam em função do objetivo comum de transformar a cultura bancária das
relações de ensinar e de aprender (FREIRE, 1987) por meio da complementariedade das ações
de ensino e de pesquisa caracterizando-as como um processo de mútuo fortalecimento entre os
sujeitos atuam na Universidade e na Escola. Para tanto, as ações propostas pelo grupo
fundamentam-se no diálogo de saberes, compreendido como uma metodologia de investigação
da prática educativa. A expressão diálogo de saberes é utilizada para referir a horizontalidade
das relações estabelecidas entre educadoras-pesquisadoras da Universidade e da Escola. Esta
perspectiva de atuação pode ser compreendida a partir da narrativa apresentada pelo autor na
obra Pedagogia da Esperança:
Gostaria de lhes propor um jogo que, para funcionar bem, exige de nós absoluta
lealdade. (...) O jogo consiste cada um perguntar algo ao outro. Se o perguntado não
sabe responder, é gol do perguntador. Começarei o jogo fazendo uma primeira pergunta
a vocês.- Que significa a maiêutica socrática? - Gargalhada geral e eu registrei o meu
primeiro gol. -Agora cabe a vocês fazer a pergunta a mim; disse. Houve uns cochichos e
um deles lançou a questão: que é curva de nível? - Não soube responder. Registrei um a
um. -Qual a importância de Hegel no pensamento de Marx? - Dois a um. -Para que
serve a calagem do solo? - Dois a dois. -Que é verbo intransitivo? Três a dois. - Que
relação há entre curva de nível e erosão? - Três a três. - Que significa epistemologia? Quatro a três. - O que é adubação verde? - Quatro a quatro. Assim, sucessivamente, até
chegarmos a dez a dez. Ao me despedir deles lhes fiz uma sugestão: pensem no que
houve esta tarde aqui. Vocês começaram discutindo muito bem comigo. Em certo
momento ficaram silenciosos e disseram que só eu poderia falar porque só eu sabia e
vocês não. Fizemos um jogo sobre saberes e empatamos dez a dez. Eu sabia dez coisas
que vocês não sabiam e vocês sabiam dez coisas que eu não sabia. Pensem sobre isso
(FREIRE, 1992, p.48-49).
Diálogo de saberes é uma perspectiva metodológica que emerge da
complementaridade das contribuições de Paulo Reglus Neves Freire4 e Boaventura de
Sousa Santos. Tal aproximação não se dá ao acaso, mas em função das significativas
contribuições de ambos para a constituição de processos educativos emancipatórios.
Paulo Freire, notadamente por sua proposição acerca da educação como prática da
liberdade e sua oposição à educação bancária (FREIRE, 1987). Boaventura
4
Usualmente referido como Paulo Freire. O emprego do nome do autor por extenso tem a intenção de
igualmente chamar atenção para a extensão de suas contribuições, em outros campos além da Educação
de Jovens e Adultos.
3
popularizou-se, no âmbito acadêmico, como referência para a compreensão do momento
atual como um tempo de transição paradigmática, em que a própria validade do
conhecimento científico é posta em questão. Especialmente com educadores/as, a
realização da conferência Para uma Pedagogia do Conflito5 (SANTOS, 2009) e sua
posterior publicação, consolidou-se como referência para a pesquisa e a prática de
projetos educativos emancipatórios.
Da complementaridade das contribuições dos dois autores emerge a proposição
do diálogo de saberes como perspectiva metodológica, cujo potencial emancipatório
tem orientado a experiência de ensino-pesquisa em que se realiza a articulação da
Universidade com a Escola, por meio do diário de pesquisa.
O diálogo de saberes exercido entre as pesquisadoras se potencializa pela
complementariedade de suas experiências na Universidade e na Escola, marcadas pelas
diferenças em relação aos momentos de sua formação acadêmica, bem aos espaços em
que atuam: uma professora doutora em educação, que exerce a docência na
Universidade; uma professora mestre em educação, que exerce a docência nos anos
iniciais de uma Escola Estadual de Ensino Fundamental e uma graduanda do quarto
nível do Curso de Pedagogia, que atua como professora auxiliar de uma turma de turno
integral nos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma instituição privada. As
educadoras têm em comum a experiência com os diários de pesquisa proporcionada pela
articulação entre a Universidade e a Escola.
O diálogo de saberes que orienta a experiência do ensino apoiado pela prática
investigativa, tornou-se uma alternativa viável no processo da articulação constituída de
três momentos distintos e complementares: a aprendizagem acadêmica do diário; a
recriação da experiência com o diário na Escola; a experiência da Escola como
recriação da experiência com o diário na Escola como conteúdo na formação
acadêmica. Como resultado desse embricamento, se retroalimentam os sujeitos da
Escola e da Universidade. Resulta também deste processo de articulação da
Universidade com a Escola, a compreensão sobre como o conhecimento ensinado na
Esola pode ser produto-produtor do conhecimento ensinado na Universidade, ou seja,
5
O texto Para uma pedagogia do conflito diz respeito à conferência realizada no III Seminário
Internacional sobre Reestruturação Curricular: novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais,
promovido pela Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, em julho de 1995, no contexto da
Administração Popular em Porto Alegre.
4
sobre como por meio desta articulação, os educadores da Escola, reconhecidos como
coformadores, podem contribuir significativamente para a formação com educadores na
Universidade.
Com a apresentação deste trabalho, pretendemos compartilhar também a
reflexão em torno da seguinte questão: de que maneira assumimos/recriamos em nossa
atuação docente- na Universidade e na Escola os conceitos/fundamentos/princípios que
orientam nossos estudos e investigações acadêmicas? Paulo Freire tem sido uma
referência para a realização de práticas inéditos-viáveis na Escola e na Universidade.
O inédito-viável é um conceito fundante da obra do autor, cuja ideia força é explicitada
por Ana Maria Freire nas notas escritas para a obra Pedagogia da Esperança (FREIRE,
1992). Assumir a perspectiva do inédito-viável significa reconhecer a natureza utópica
da prática educativa, dispondo-se a assumir os riscos de criar o novo, em função do
compromisso em ampliar as condições para que as utopias pedagógicas se concretizem.
Nesta experiência de articulação da Universidade com a Escola, buscamos o inéditoviável para fortalecer as iniciativas de enfrentamento da cultura bancária ainda presente
nas relações de ensinar e de aprender e para incentivar a criação de propostas
emancipatórias.
O diário de pesquisa como procedimento de ensino
O diário de pesquisa, utilizado como procedimento de ensino, desenvolve
a rigorosidade metódica (FREIRE,1995) e fertiliza o potencial emancipatório das
aprendizagens que resultam das múltiplas implicações entre a ação, a reflexão, a
emoção e o registro mobilizados no processo de sua elaboração. Por meio do diário,
problematiza-se a participação dos educandos na construção da aula, conforme propõe
Rios (2008), ao afirmar que “a aula não é algo que se dá, mas algo que se faz, no
trabalho conjunto de professores e alunos” (p.27). A rigorosidade metódica exercida por
meio do diário contribui para operacionalizar a indissociabilidade entre o ensino e a
pesquisa, valorizando a experiência cotidiana por meio do registro.
No contexto de sua utilização em uma disciplina do terceiro nível do Curso de
Pedagogia a experiência do diário problematiza a participação ativa dos educandos e do
próprio educador por meio de um contrato didático que se organiza função de cinco
compromissos: o compromisso com o coletivo; o compromisso com a reflexão; o
compromisso com a leitura/escrita; o compromisso com a construção de conceitos e o
5
compromisso com a leveza6. A diferenciação entre compromisso e comprometimento é
o ponto de partida para problematizar as relações estabelecias, enfatizando a
corresponsabilidade dos educandos na construção da aula. Na continuidade do trabalho,
o comprometimento-ou seja, a assunção individual e coletiva dos compromissos
apresentados inicialmente- se desenvolve a partir da proposição de transformar o
caderno num diário de pesquisa.
É solicitado aos educandos que, além das usuais anotações, relacionadas ao
conteúdo de cada aula, acrescentem o registro de sua reflexão pessoal: impressões,
emoções, comentários, questionamentos, relações estabelecidas, etc. No contexto do
contrato didático estabelecido, o registro tem o desafio de transformar a tradição da aula
copiada em aula refletida. Para tanto, faz-se necessário que a elaboração do diário se
torne significativa para os educandos.
Como começar? O que tem que escrever? Como é para ser feito? São
questionamentos que emergem diante da exigência da escrita do diário e sugerem a falta
de autonomia dos educandos. A problematização destes indícios de heteronomia é um
ponto de partida para a compreensão da complexidade das relações de ensinar e de
aprender, bem como da afirmação de que a obrigatoriedade da elaboração do diário de
pesquisa tem como finalidade a promoção da autonomia. Esta compreensão não ocorre
por simples explicação do educador, mas se constroi mediante o processo reflexivo
mobilizado pela escrita sistemática, mediada pelo diálogo educador-educandos.
De modo recorrente, o medo é mencionado como um elemento presente diante
da proposição do diário, entre outras proposições do contrato didático da disciplina: o
medo do novo, o medo de se expor, o medo do difícil, o medo de não ser capaz de dar
conta das exigências. Outro elemento mencionado de modo recorrente é a timidez,
especialmente no que diz respeito à expressão oral diante dos colegas. Por outro lado, é
possível perceber como este estranhamento inicial pode transformar-se no processo,
traduzindo-se em aprendizagens significativas.
Esta transformação pode ser percebida, especialmente, por meio do diário, cuja
proposição, nem sempre bem recebida inicialmente, tende a transformar-se no decorrer
da experiência. Nas palavras de uma aluna, “é fazendo o diário que se aprende a fazêlo”. A mediação do educador é fundamental neste processo de construção da
6
A este respeito, ver FERREIRA, Leila. A arte de ser leve. – São Paulo: Editora Globo, 2010.
6
compreensão, a fim de que o educando possa usufruir os benefícios que decorrem da
utilização do diário como um lugar de autoconhecimento, de acompanhamento de suas
aprendizagens e de diálogo com o educador. A leitura do diário e o registro de
apontamentos feitos pelo educador operacionalizam o exercício do diálogo por meio da
escrita. Neste sentido, a devolução da leitura do diário, pelo educador, é uma ação
mediadora que tem sido reconhecida pelos educandos como uma importante
contribuição para a sua compreensão.
Outra importante contribuição é o relato de experiência sobre o trabalho com o
diário na Escola, já incorporado entre as atividades curriculares da disciplina em
questão, no Curso de Pedagogia. O relato é o ponto de partida para a realização da roda
de conversa sobre a leitura da bibliografia de referência (BARBOSA, 2010), indicada
como leitura prévia. A educadora, ex-aluna da Universidade na graduação e no
mestrado, narra sua história de vida, enfatizando suas relações com o diário pessoal e
também como estudante de graduação em que aprendeu – não de modo fácil nem
imediato – a utilizar o diário de pesquisa e perceber as contribuições para sua
aprendizagem.
A partir deste relato, é visível como se transformam as relações dos educandos
da Universidade com seus diários, autorizando-se a fazê-lo, sem medo de errar. O relato
de experiência contribui para a superação do estranhamento inicial, pois o conhecimento
da aplicabilidade na escola cria condições para a atribuição de sentido ao procedimento
acadêmico que está sendo utilizado.
Resulta deste percurso de articulação da Universidade com a Escola a
compreensão sobre o potencial formativo da utilização do diário de pesquisa como
procedimento de ensino - tanto na formação básica quanto na formação acadêmica -,
evidenciado em dois âmbitos: as contribuições para a relação educador-educandos e as
contribuições para a aprendizagem. No que se refere à relação educador-educandos, o
diário contribui significativamente para a experiência do diálogo, para o
desenvolvimento da confiança e para a vivência da alegria de ensinar e de aprender. No
que diz respeito às aprendizagens, o diário anuncia suas contribuições para a
aprendizagem da escrita (e da leitura); para a expressão escrita de outras aprendizagens,
7
para a autoavaliação do crescimento das aprendizagens, bem como para a autoorganização para o estudo.
Apesar de ser possível identificar as contribuições do diário em dois âmbitos
distintos, o potencial deste procedimento de ensino reside justamente na
complementaridade com que as mudanças na relação entre educador-educandos
contribuem para as mudanças em relação às aprendizagens, assim como o inverso. A
continuidade desta experiência justifica-se pela consciência dos desafios que decorrem
da complexidade dos processos de ensinar e de aprender, bem como pela compreensão
de que o ensino, apoiado pela pesquisa, amplia as condições para a realização de
práticas educativas emancipatórias.
Considerações sobre as repercussões da articulação da Universidade com a Escola
na experiência com o diário na formação dos educandos
Entre as repercussões do trabalho com o diário de pesquisa no ensino formal –
na Universidade e na Escola – chama atenção a intensidade das aprendizagens dos
educandos e o modo como a experiência com o diário também repercute para além da
sala de aula. Os registros realizados por meio do diário e outros instrumentos de ensino
(e avaliação), ao documentar a experiência desde o ponto de vista dos educandos,
permitem vislumbrar seus impactos e compreender as contribuições do diário para
aprendizagem. Os registros produzidos, por meio das atividades curriculares na Escola e
na Universidade, viabilizam a escuta dos educandos e anunciam o potencial formativo
do diário de pesquisa como procedimento de ensino. Exemplar a este respeito é a escrita
elaborada pela graduanda do Curso de Pedagogia, em seu trabalho de conclusão da
disciplina, intitulado por ela: Algumas folhas podem mudar pensamentos e até
maturidades, cujo texto é apresentado a seguir, escrito na primeira pessoa.
Muitas vezes somos surpreendidos com pessoas que entram em nossas vidas
para se tornarem especiais, para toda nossa existência, e outras nem tanto. Pessoas que
contamos para dividir alegrias, conquistas, tristezas, perdas. Que possam estar ao nosso
lado, independente se somos ricos, pobres, se somos vencedores, ou não. Mas, será que
pequenos pedaços de papéis podem fazer toda a diferença num momento delicado?!
8
Jamais entendia que algumas folhas em branco ou escrito poderiam mudar meu
pensamento, ou me tornar mais madura. A maioria das pessoas, quando ainda estava na
infância, esses papéis fizeram parte de sua vida, pois acredito que este processo se inicia
na infância. Para essas folhas, ou papéis, é chamado de Diário, onde podemos depositar
todas e quaisquer palavras. Escrever, expressar o que estamos sentindo, muitas vezes é
importante, pois o desabafo nos traz um pouco de tranquilidade. Às vezes, simples
folhas podem nos trazer uma paz que nem sequer poderíamos imaginar. O Diário pode
se transformar com o decorrer do tempo em um livro, escrevemos tudo que vivemos ou
passamos em nossa vida, experiências vividas, erros cometidos, que muitas vezes, são
uma forma de aprender. Às vezes errar traz a libertação do aprender, onde aprendemos
para não errar novamente. Como educadora, não podia imaginar que o diário seria
importante para trabalhar em minha profissão. No decorrer de meu curso de graduação
de Pedagogia, deparei-me com uma disciplina com nome de Educação em Espaços não
Formais: pesquisa e prática; à primeira vista, achei este nome diferente. Nos primeiros
encontros da aula, o professor nos apresentou um caderno, onde foram distribuídos para
que cada um escolhesse o seu e ali escreve tudo que se passasse na aula, suas reflexões,
sugestões, argumentações. Achei aquele gesto diferente, mas não percebia como um
diário. Após algumas aulas e explicações do professor, percebi que havia em minhas
mãos algo que não estava sabendo usar de uma forma adequada. Então foi que após ler
alguns artigos e ouvir as explicações do professor, percebi que estava com algo mais
que precioso em minhas mãos, mas que ao mesmo tempo em que estava em minhas
mãos, havia certo “medo” de utilizá-lo. No decorrer do semestre o professor pediu o
diário de todos para que pudesse conhecer nossos diálogos com o diário. Nesse encontro
do meu diário com o professor, pude rever algumas escritas realizadas por mim,
podendo ver também o que o professor pode escrever. Numas dessas escritas, depareime com a seguinte frase: “Hemini! Gostei de ler teu diário! Ainda que breve, os
registros permitem te conhecer um pouco mais. Ampliar os registros, de modo a
expressar tuas aprendizagens, é o desafio que se apresenta neste momento. Abraço.” Foi
neste momento após a leitura que percebi que meu diário não estava completo, que
ainda faltava vários aspectos para serem ampliados. Após ter recebi este recado vários
aspectos e reflexões me surgiram, sobre como eu poderia ter ampliado osregistros em
meu diário de aula. Hoje, quase finalizando o semestre com esta disciplina, podendo
aprender tanto com o professor, com visitas de outros profissionais que já tiveram em
9
sua vida o diário, senti que o diário precisa ser mais valorizado, que às vezes simples
coisas não registradas podem fazer toda a diferença lá na frente. Já estou atuando em
minha profissão como educadora e hoje tenho diversas ideias que o diário pode me
proporcionar para ampliar e aplicar em meus alunos. Quero que assim como eu, eles
possam entender e valorizar que simples folhas em nossa vida podem fazer a diferença
sim. Que essas folhas têm o nome de diário e podem ser utilizadas para nossa vida
pessoal e profissional.
Retomando a argumentação sobre o potencial formativo do diário de pesquisa
desde o ponto de vista dos educandos, também merece destaque a visão manifestada
pelos educandos da escola, diante da problematização feita pela educadora,
questionando como fariam para explicar o uso do diário a um colega que ainda não
soubesse como fazê-lo. A proposição da educadora foi feita no contexto de seu relato
aos educandos sobre sua participação na Universidade para contar o trabalho feito na
escola. Em seu relato, a educadora incluiu a apresentação da entrevista gravada para a
pesquisa acadêmica, sobre as relações dos graduandos com seus diários. Os educandos da
escola resolveram também fazer um vídeo, com a gravação de uma entrevista7, para explicar a
experiência do diário na escola:
- Bom dia. Estou aqui com o Victor. Vitor, o que é o diário?
- Bem, o diário é um caderno; não bem um caderno, é um caderno sobre nossos
sentimentos.
- E como fazer?
- Como fazer? É muito fácil, a gente fala do nosso dia a dia, sobre os nossos
sentimentos, e para os que não sabem ler e escrever, eles podem fazer desenhos.
- Quais as contribuições para sua aprendizagem?
- Bem, o diário me dá muitas contribuições, de ler e escrever.
Durante a gravação, após a leitura das respostas escritas, um dos educandos
acrescentou, espontaneamente, a respeito das contribuições do diário: “eu mesmo já
incomodava minha professora; eu incomodava muito; então o diário me tirou dessa vida
de aluno perdido”. Para além da atividade formal proposta pela educadora, a
espontaneidade da expressão infantil revela a intensidade da experiência de
aprendizagem apoiada pelo diário, corroborando com a compreensão de que o diário
7
A atividade da entrevista foi realizada em abril de 2013, com educandos do quarto ano do Ensino Fundamental,
ambos com nove anos, novos colegas de uma turma que reunia alunos que já tinham trabalhado com os diários no
terceiro na, com alunos que ainda não tinham passado por esta experiência. O relato da experiência da Escola na
Universidade, no semestre letivo de 2013, incluiu a apresentação do vídeo.
10
contribui para o autoconhecimento e para a auto-organização dos educandos.
Posteriormente, a referida gravação, entre outras, ao ser apresentada pela educadora da
escola aos educandos da Universidade, mobiliza emoções e convida à reflexão.
A análise dos diários de duas turmas do terceiro nível do Curso de Pedagogia,
nos dois semestres letivos de 2012, realizada mediante o procedimento da análise
textual discursiva (GALIAZZI; MORAES, 2007), com o objetivo de ampliar a
compreensão sobre as contribuições do diário para a aprendizagem, permitiu identificar
as repercussões do relato da experiência com diários na Escola. A intensidade das
manifestações dos educandos a este respeito foi o que levou à escolha destas
repercussões como o foco da análise que se apresenta neste momento.
Os registros dos educandos sobre o relato da experiência com diários na escola,
realizado na Universidade, apresentam manifestações recorrentes a respeito das relações
entre teoria e prática. Chama atenção o modo como, na visão dos educandos, o relato
credibiliza a leitura acadêmica de referência, como revela, explicitamente, o registro
num dos diários: “o relato da professora Bete me surpreendeu, pois quando li o livro
“Diário de Pesquisa”, achei que isso não acontecia, porém com a fala da Bete percebi
que a prática já acontecia de uma maneira espetacular” (Diário 2012/2).. De igual modo,
outro registro refere: “um relato de experiências muito interessante; mais uma vez
podemos acreditar que a teoria pode acontecer na prática e pode dar muito certo”
(Diário 2012/1). De modo mais direto, o registro noutro diário afirma: “resolvi então
estabelecer relações do relato da Bete com o livro Diário de Pesquisa. O autor deixa
claro que é necessário realizar registros diários da nossa prática docente. A Bete
demonstra que isso é fundamental para o sucesso com os alunos. O autor fala da
dificuldade que temos em escrever e o problema de lidarmos com o erro. A Bete mostra
que o erro é parte do processo de aprendizagem e que nos abre novos horizontes”
(Diário 2012/1).
A aplicabilidade do conhecimento acadêmico, percebida por meio do relato de
experiência, fortalece uma perspectiva utópica, enfatizando as possibilidades: “relatos
riquíssimos e de extrema importância para nosso encorajamento. Li e ouvi coisas que
nunca vivenciei e que, na verdade, nem sabia ser possível. Após os relatos da palestra,
11
mudei meus conceitos. Agora acho que é possível sim, desenvolver esta prática” (Diário
2012/1).
A proximidade do relato permite não apenas a percepção sobre as possibilidades
de mudança, mas também a percepção sobre sua participação na construção da
mudança: “não preciso ser um intelectual para escrever um diário, o que me deixa bem
esperançosa. Com o diário, organizamos os nossos pensamentos e refletimos sobre
nossos erros e acertos” (Diário 2012/1). No que se refere à mudança, a autocrítica
também se faz presente:
O trabalho da Bete é incrível; ela envolve as crianças de maneira fascinante na escrita
do diário e o quanto isso muda a vida das crianças; foram coisas que fizeram com que
eu terminasse a aula pensando o quanto nos limitamos a fazer o mínimo, o quanto
pensamos nos obstáculos ao invés de pensar na capacidade e recursos que temos para
superá-los (Diário 2012/1).
Também estão presentes, de modo explícito, os registros que apresentam
manifestações de alegria: “que alegria, que motivação ouvir o trabalho da Bete!”. A
alegria que se manifesta neste contexto se faz mobilizadora, instigando os educandos a
projetarem sua futuridade como educador que possa contribuir para que as mudanças
ocorram:
Emocionante! Outra aula que daria para definir em uma palavra. A Bete é um exemplo a
ser seguido. Os depoimentos das crianças emocionam muito e mostram a extrema
importância do diário em sala de aula. “o diário mudou a minha vida” foi uma frase que
eu escutei muito esta noite. Espero que um dos meus alunos também possam dizer que
eu mudei a vida deles, para melhor (Diário 2012/1).
Enfim, as repercussões do trabalho com o diário de pesquisa, tanto na Escola
quanto na Universidade, corroboram para compreender as possibilidades de viver a
alegria de ensinar e de aprender, como nos propõe Georges Snyders (1995):
Não espero um êxtase que arrebataria o ser inteiro e dele baniria a tristeza; não se trata
de estar contente, de repousar num estado de satisfação, de recusar-se a sofrer, a errar.
Mas aspiro a momentos, a intervalos, a episódios, a etapas de alegria, “qual machado
que quebra em nós o mar gelado”. Minha ambição é que, apesar de tudo,e aqui
particularmente, na vida do estudante universitário, as alegrias consigam desprender-se
da não-alegria e superá-la (p.18).
Resgatar o prazer de ensinar e de aprender é uma utopia que se concretiza na
complementaridade das ações entre Universidade e Escola. Viver a alegria na formação
acadêmica pode contribuir para a vivência da alegria na Escola, assim como o inverso.
12
Realizar, em maior escala, esta experiência de articulação da Universidade com a Escola
por meio dos diários é o desafio que se apresenta neste momento.
.
Referências
BARBOSA, Joaquim Gonçalves; HESS, Remi. O diário de pesquisa: o estudante
universitário e seu processo formativo. – Brasília: LiberLivro, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 22ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
______. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. 4. ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
______. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
______. À Sombra desta Mangueira. São Paulo: Olho d´Agua, 1995.
GALIAZZI, Maria do Carmo.; MORAES, Roque. Análise Textual Discursiva. – Ijuí:
Ed. Unijui, 2007.
RIOS, Terezinha Azerêdo. Compreender e Ensinar (Por uma docência da melhor
qualidade) 3ed. São Paulo: Cortez Editora, 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Pedagogia do Conflito. In: FREITAS, Ana
Lúcia Souza de; MORAES, Salete Campos de (orgs.). Contra o desperdício da
experiência: a Pedagogia do Conflito revisitada. Porto Alegre: Redes Editora, 2009; p.
15-40.
SNYDERS, Georges. Feliz na Universidade. Estudo a partir de algumas bibliografias.
- Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
Download