Os Mutantes e a Tropicália: experimentalismo e contracultura

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Jornal Unesp
Opinião
Revisitada
setembro2010
Os Mutantes e a Tropicália:
experimentalismo e contracultura
Enquanto Gil e Caetano dialogavam com MPB, banda se distanciou de cânones musicais da época
Reprodução
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Daniela Vieira dos Santos
E
ste artigo lança luz sobre a especificidade sócio-histórica dos Mutantes no tropicalismo musical, com o interesse de desmistificar a posição do grupo de pop-rock
– formado em 1966 por Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio
Dias – enquanto mero acompanhante. Por meio do cotejo com
a crítica especializada no assunto notamos que o movimento
não deve ser pensado de modo homogêneo, como se todos os seus
integrantes partilhassem de ideias, projetos e características em
comum. Desde a primeira aparição do trio para o grande público – junto a Gilberto Gil no III Festival de Música Popular
Brasileira em 1967 –, o uso estratégico da fantasia foi notório,
formando uma espécie de junção orgânica com a música.
Algumas características do tropicalismo observadas pela
bibliografia – por meio da análise dos ícones do movimento
– manifestam-se nas canções do grupo paulista. Como exemplo
de “explosão” musical, para utilizar o conceito-chave proposto
por Celso Favaretto em seu consolidado estudo sobre o movimento tropicalista, a canção Dois mil e um é um bom parâmetro. Nessa música, identificamos o vínculo entre tradição e
modernidade assimilada pelos tropicalistas por meio do uso da
viola caipira, em contraste com os ruídos das guitarras. Além
disso, a junção do arcaico e do moderno, dentro da perspectiva
antropofágica de Oswald de Andrade, se equivale na música,
isto é, não há a sobreposição de uma à outra.
Ainda segundo a análise geral do tropicalismo feita por
Favaretto, esse movimento realizou uma “revisão das manifestações críticas” decorrentes do golpe de 1964, visando à anulação
das respostas anteriores. Diz o crítico que eles buscaram articular uma nova linguagem da música pela tradição da MPB e
pelos elementos oferecidos pela modernização, desarticulando
as ideologias. Nessa linha, Favaretto conclui que a mistura tropicalista evidenciou-se como uma forma particular de inserção
histórica no processo de revisão desenvolvido desde o início dos
anos 60, apresentando-se como uma resposta desconcertante à
questão das relações entre arte e política.
Na releitura da canção Chão de estrelas feita pelos Mutantes, o resgate da tradição musical se mantém, porém, num
sentido inverso ao da proposta de CaetanoVeloso e Gilberto Gil:
de maneira debochada. E esse deboche é evidente no modo como
a canção é entoada, bem como pela utilização dos elementos
da música concreta que nos lembram circo. Para os Mutantes,
naquele contexto, a música popular não passava de uma grande
“palhaçada” (no sentido da comicidade do termo, da brincadeira); a relação estabelecida com a tradição foi a de destruição
e sátira, onde o tiro disparado ao final exprime a nossa interpretação. Mas, Caetano, ao contrário dos Mutantes, resgatou
a tradição no sentido de valorizá-la: basta lembrarmo-nos da
canção Coração materno. Além disso, Gil e Caetano vieram
Este artigo está disponível no “Debate acadêmico” do
Portal Unesp, no endereço <http://www.unesp.br/
aci/debate/160610-danielavieiradossantos.php>.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do
Jornal Unesp.
da tradição da bossa nova e das canções de rádio dos anos 30
e 40, e Os Mutantes só se associam à música popular por meio
do contato com Gilberto Gil. Eles têm como referência principalmente o rock dos Beatles. Outra diferenciação do conjunto
estava na criação dos instrumentos feitos por Cláudio César
Baptista, na inventividade de objetos inusitados como as tampinhas de Coca-Cola instrumentalizadas por Rita Lee para fazer o solo da canção Maria Fulô, a bomba de Flit (inseticida)
para substituir o chimbau da bateria, o wah-wah etc.
Das características gerais do movimento tropicalista, Os
Mutantes incorporaram a paródia, a ironia, o senso de humor, a fragmentação, a dissonância e a mistura. Entretanto,
não compreendemos a atuação do grupo nos anos 60 orientada
por uma perspectiva de revisão histórica do golpe militar de
1964, tampouco pela intenção de superar os impasses entre a
música engajada e a jovem guarda e, além de tudo, preocupada
em “resgatar a linha evolutiva da MPB”. Advindos da vertente
do rock-‘n’-roll anglo-americano, Os Mutantes estão mais do
que os outros integrantes do movimento, como as suas canções
nos ajudam a perceber, na linha da contracultura. E por isso,
havia entre eles um descompromisso com o tradicional modo de
engajamento político. Eles trabalharam com a espontaneidade
e a intuição, e primaram pelo experimentalismo. Todavia, não
construíram uma memória histórica – além daquela de melhor
banda de rock nacional – que pudesse inseri-los, posteriormente, como membros ativos e participantes do debate musical da
década de 60. Já entre Gil e Caetano havia um projeto musical consciente para a música brasileira, diferente dos Mutantes,
que se aproximaram do tropicalismo porque viram no movimento uma abertura para dar vazão a sua proposta de fazer
uma canção recheada de ironia e bom humor, despojamento e
certo descompromisso com os cânones musicais da época.
Daniela Vieira dos Santos, mestre em Sociologia
pela Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara, atualmente é doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp. É autora do livro Não vá se perder
por aí: a trajetória dos Mutantes (São Paulo: Annablume/
Fapesp, 2010).
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