Introdução O presente relatório foi elaborado no âmbito do Mestrado em Ensino da Filosofia no Ensino Secundário. A sua realização serve para o estagiário, futuro professor, reflectir sobre a prática de ensino e relatar a vivência e experiência que adquiriu. O estágio curricular é, sem dúvida, uma componente fundamental do Mestrado, pois permite aos discentes colocar em prática uma série de conhecimentos alcançados de forma teórica, por um lado, e conhecer a realidade profissional e institucional em que irá trabalhar, por outro. O relatório de estágio aparece dividido em duas partes: uma primeira parte descritiva, em que procuramos apresentar, o mais objectivamente possível, o trabalho que foi realizado na Escola de Casquilhos ao longo de toda a Prática de Ensino Supervisionada, e uma segunda parte reflexiva, onde sustentamos o ensino da filosofia como um exercício do poder de começo que requer acima de tudo a percepção de que existem múltiplas formas de conhecimento que dialogam entre si nos seus próprios planos históricos e sociais. O contributo do filósofo francês Gilles Deleuze foi determinante para nos ajudar a reflectir sobre todas essas questões. Na entrevista que realizou para a jornalista Claire Pernet em 1989, encontrámos a ideia motriz que nos guiou neste trabalho. O filósofo francês, ao ser questionado sobre o que é uma aula, afirma que esta “é tanto emoção quanto inteligência” e que o fundamental não passa pelo aluno compreender e ouvir tudo, mas por “acordar a tempo de captar o que lhe convém pessoalmente”.1 1 Frase retirada do documentário legendado em português: O Abecedário de Gilles Deleuze. Realizado por Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. Tradução e Legendas: Raccord. Duração de 158 minutos. O documentário consiste num conjunto de entrevistas realizadas por Claire Parnet a Gilles Deleze nos anos de 1988 e 1989. Nelas é apresentada ao filósofo uma palavra para cada letra do abecedário para este livremente discorrer (o P de professor por exemplo). Deleuze refere no inicio da entrevista que só aceitou fazer as entrevistas com a condição de estas serem apresentadas após a sua morte. Apesar desta condição o vídeo acabou por ser exibido, com o consentimento de Deleuze, em 1995 no canal de televisão TV Arte e posteriormente comercializado nas lojas. 1 Capítulo I: Descrição do estágio. 1.1. Escola Secundária de Casquilhos. A Escola Secundária de Casquilhos, com 3º Ciclo do Ensino Básico, no Barreiro, ocupa actualmente as instalações do antigo Externato Diocesano D. Manuel de Mello, que foram inauguradas a 9 de Outubro de 1961. Este externato foi construído na chamada Quinta dos Casquilhos, em terrenos cedidos pela Companhia União Fabril (CUF) e a pedido dos engenheiros desta empresa, os quais reclamavam o facto de os seus filhos não possuírem nesta vila outro local para estudar, para além de uma escola industrial e de um colégio particular (o Externato Barreirense e a sua versão feminina, o Externato Feminino Barreirense, propriedade do professor José Joaquim Rita Seixas) que seria considerado, na época, demasiado "progressista". A escola é constituída por cinco blocos de salas (dois deles com dois pisos), nos quais podemos encontrar, além das salas de aula, os laboratórios de química e de biologia, uma sala de trabalhos oficinais, um ginásio e um bloco administrativo que integra os diversos serviços, bem como o órgão de gestão. A escola desfruta ainda de dois campos exteriores utilizados para a prática desportiva. Possui setenta e oito docentes a leccionar, dos quais sessenta e três são dos quadros da escola e quinze são contratados. Quase 3/4 dos docentes tem uma idade igual ou inferior a cinquenta anos de idade. Apenas dois docentes têm mais de sessenta anos. Três em cada quatro professores possuem mais de dez anos de experiência nesta actividade. Apenas treze docentes (16,5%) possuem menos de cinco anos de tempo de 2 serviço. A maioria dos professores da escola (81%) é licenciada, enquanto 19% é detentora de mestrado.2 A Escola Secundária de Casquilhos oferece aos seus cerca de 800 alunos um conjunto de actividades e espaços com o objectivo de facilitar a sua aprendizagem, como a biblioteca, que funciona também como sala multimédia. Ao longo do ano lectivo realizam-se várias iniciativas, como a feira do chocolate, a feira das artes, a feira das profissões e o colóquio de jovens filósofos, onde os professores de filosofia da Escola Secundária desafiam os alunos do Ensino Secundário a discutir a importância, o sentido da reflexão e o papel da filosofia na formação dos jovens no contexto da sociedade contemporânea. O desenvolvimento de todas estas acções vai ao encontro de toda a simbologia em que o seu logótipo se inscreve. O logótipo da Escola Secundária de Casquilhos inscreve-se num quadrado sem contorno desenhado. No quadrante inferior direito, ligando-se a um arco da mesma cor castanha e saindo dele, desenham-se quatro raízes com as suas ramificações, simbolizando a ligação da escola ao seu meio envolvente, de onde vêm os seus alunos, onde adquiriram eles os seus primeiros conhecimentos e onde a escola tem as suas raízes. Dessas raízes arranca um arco, grafismo protector intimamente associado ao útero materno, simbolizando a escola que acolhe os seus alunos, para que aí cresçam e se desenvolvam enquanto jovens e futuros cidadãos. Dentro desse arco, também a castanho, encontram-se as iniciais da escola. Nas letras "E" e "C" utiliza-se um tipo de letra de bastão, em que as respectivas hastes se encontram com o resto da letra em rigorosos ângulos rectos, representando o rigor e a rectidão na aplicação dos princípios primordiais da Educação: o respeito, a justiça, a equidade. 2 Ver Anexo A. 3 Entre estas letras, na mesma cor castanha, desenvolve-se a letra "S", surgindo das raízes e interrompendo o arco anteriormente referido, que evoca a abertura da escola ao mundo exterior, num movimento dinâmico, aberto à mudança e à inovação. O arco termina no quadrante inferior esquerdo onde oito folhas, com contornos a verde e preenchidas na mesma cor em metade de cada uma delas, simbolizam o florescer dos conhecimentos obtidos pelos nossos alunos e que, no final do ciclo de estudos/final do arco, regressam à comunidade, para a enriquecer e a ajudar a desenvolver.3 O logótipo representa, em suma, a ligação e a abertura da escola ao meio circundante, ajustando-se e estruturando-se à vida real. 1.2. Descrição da turma do 11º E A primeira turma, com que estabelecemos contacto, foi a turma 11º E, do Curso de Artes visuais. Era a mesma composta por 21 alunos, com idades compreendidas entre os 16 e os 19 anos, dos quais 6 eram elementos masculinos e 15 femininos.4 Esta turma foi dividida com o estagiário Silvestre Santos. Durante o mês em que estivemos a assistir às aulas dadas pela nossa orientadora (de Setembro a Outubro) analisámos a dinâmica da turma e escolhemos as melhores estratégias para as aulas que iríamos leccionar. No fundo, não pretendíamos ser vistos como “corpos estranhos”, no momento em que fossemos dar as primeiras aulas. Percebemos que os alunos eram participativos, mas não muito assertivos naquilo que diziam. Além disso, mostravam-se curiosos e distraídos. De uma forma geral os alunos consideravam que o trabalho efectuado na escola era aborrecido e que a disciplina de filosofia tinha pouco interesse. As aulas foram divididas por duas salas consoante o dia da semana: uma bastante ampla e iluminada pela luz do sol; a outra, mais pequena, mas também bem iluminada. Ambas tinham computador e projector. A relação entre os alunos 3 Ver site: www.esec-casquilhos.rcts.pt 4 Ver Anexo B. 4 parecia ser muito boa. O respeito e a amizade entre eles eram visíveis. Ao nível da aquisição de conhecimentos a turma veio mal preparada do 10º Ano, devido a um número largo de aulas que ficaram por dar em virtude dos problemas de saúde da professora de então. Isso pôde ser aferido logo após a realização do primeiro teste de avaliação: a classificação mais alta foi 14 valores e mais de metade da turma teve classificação negativa.5 1.3. Aulas leccionadas Neste sentido, o nosso trabalho revelava-se difícil, mas ao mesmo tempo desafiador. Sabíamos que a partir do dia 15 de Setembro de 2010 iríamos ter à nossa frente uma turma desmotivada para a disciplina de filosofia, pouco empenhada, mal preparada do ano anterior, mas que ao mesmo tempo evidenciava um espírito curioso e uma afectividade bonita de se ver entre colegas, uma entreajuda tocante de se constatar e que nos tinha recebido de uma forma afectuosa. Desde o primeiro momento preocupámo-nos em transmitir aos alunos a ideia de que ao longo do ano lectivo podiam contar connosco para os ajudar a resolver todas as dificuldades relacionadas com as aulas. Sempre que fomos solicitados para tirar algum tipo de dúvida dialogámos com eles dentro e fora da sala de aula. Procurámos ser exigentes no que respeita às suas responsabilidades escolares e no cumprimento das regras que estabelecemos logo na primeira aula. Foram informados quanto aos seus direitos e alertados para a importância de cada um cumprir com os seus deveres. Este conjunto de factores acabou por ser determinante para a nossa boa integração e afirmação na turma. Sendo esta a primeira vez que leccionámos, posso afirmar que tal integração foi muito boa. Ainda hoje muitos alunos nos procuram e são bastante afectuosos connosco. No que respeita ao aproveitamento escolar, a turma foi melhorando pouco a pouco. Percebemos que, para os resultados melhorarem, tornava-se necessário incutirlhes responsabilidade, tal como apagar a ideia pré-concebida de que “a filosofia não 5 Ver Anexo C. 5 serve para nada” e é uma disciplina “chata”. Em reunião de núcleo de estágio ficou decidido leccionar as subunidades: Argumentação e Retórica e Argumentação e Filosofia da Unidade: III- Racionalidade argumentativa e Filosofia do programa do 11º Ano de Filosofia. No início, decidimos apostar em leccionar as aulas com algum suporte lúdico: vídeos, entrevistas, músicas e debates. Sentimos um acréscimo do interesse, do empenho e do aproveitamento por parte dos alunos. Todavia, o que mais nos chamou a atenção foi perceber que um vídeo, uma música ou um debate, sem mais, não suscitava atenção acrescida por parte dos alunos. Toda essa maquinaria lúdica perdia força se a seguir eles não se identificassem com os problemas que cada uma dessas peças lhes suscitava. Foi aqui que começámos a perceber que o processo de aprendizagem da filosofia se aperfeiçoava quando as aulas eram direccionadas para problemas que já haviam sido apresentados ou descritos/ reescritos aos alunos. O seu interesse aumentava claramente quando viviam o problema apresentado como problema, quando o assunto em questão lhes trazia algum tipo de preocupação. Todos vivemos num plano de imanência, recebemos as notícias no telejornal, nos jornais, na rádio, lemos um livro, falamos com os pais ou com os colegas sobre certas ocorrências, consultamos a internet, ou seja, o aluno é constantemente lançado para um conjunto de problemas que constitui a sua vida cultural. Se formos ao teatro adquirimos uma narrativa que nos foi colocada pelo escritor da peça em questão. Nada, pois, chega aos alunos, que já não esteja dito em alguns tipos de narrativa, incluindo os deles próprios. Tudo lhes chega por esta via e os problemas que a filosofia trata não são excepção: quando lançados na aula, já vêm também inseridos numa narrativa, mediatizados, entrelaçados numa interpretação. Com base nesta ponderação decidimos que as aulas deveriam ser sempre norteadas por uma articulação entre os problemas que apresentávamos e os problemas da vida quotidiana (comparação de narrativas), em função dos conteúdos que tínhamos para dar em cada aula e em cada unidade programática6; isso resultou num claro aumento do interesse dos alunos pelas temáticas, seguido de um correspondente aumento do 6 Este assunto será mais desenvolvido no ponto 1.6, p. 10 e na parte reflexiva do relatório. 6 aproveitamento. Algumas vezes, a certas narrativas do senso-comum que certos alunos relatavam nas aulas, ripostámos com questões que se relacionavam com os conteúdos que estávamos a leccionar. Por exemplo: “O David falou que acredita na reencarnação. Suponham que acreditam na reencarnação. O que é que não cumpriram de forma satisfatória nesta vida e gostariam de acabar na próxima?”. Não queremos aqui demonstrar que esta é a estratégia ideal para direccionar uma aula, até porque nem todos os alunos se revelaram disponíveis para seguir este caminho, mas no cômputo geral é possível afirmar que as melhorias foram visíveis. Nos testes que realizámos e nas fichas que foram efectuadas, houve alunos que alcançaram a avaliação de 17/18 valores e as negativas baixaram consideravelmente (2).7 Finalmente, é importante referir que a estratégia usada nas turmas que leccionámos de chamar os alunos pelo seu nome foi também decisiva para o bom curso das aulas. Este facto, permitiu que os níveis de atenção e de interesse por parte dos alunos aumentasse. Sempre que foi possível personalizámos os exemplos que trazíamos para o contexto de sala de aula. Exemplificando: “ Vamos supor que aqui o Daniel estava a apresentar um argumento para escolher o seu amigo e que o Diogo queria desafiar a sua posição…”, ou -“ Aqui a Jussiara tem a pigmentação mais associada às raças africanas, enquanto a cor da Alice é mais típica dos latinos.” 1.4. Descrição da turma do 10º C Relativamente às aulas do 10º Ano ficou determinado em reunião de núcleo de estágio que iríamos leccionar turmas diferentes do 10º Ano. Uma turma de Humanidades (C) e outra de Ciências (A). A turma do 10ºC, do agrupamento de Humanidades, era composta por 24 alunos, sendo 4 do sexo masculino e 20 do sexo feminino e com idades compreendidas entre 15 e 7 Ver Anexo D. 7 os 18 anos.8 Por hábito, eram poucos os que intervinham nas aulas. A turma revelava grandes dificuldades de aprendizagem na generalidade das disciplinas e era tida pelos professores como “fraca”. No que respeitava ao comportamento podia-se classificar de indisciplinada. Normalmente dois a três alunos eram expulsos durante a generalidade das disciplinas. Existiam claramente grupos e conseguia-se detectar alguma incompatibilidade entre eles. É de referir que por ser uma turma do 10º Ano, a maior parte dos alunos era proveniente de outras escolas, formando assim um grupo disperso, onde, no início do ano, todos se estavam a conhecer e a posicionar. As diferenças eram muito acentuadas em relação à turma do 11ºE. 1.5. Aulas leccionadas Só começámos a leccionar esta turma no início do segundo período (3 de Janeiro de 2011), mas antes disso já tínhamos leccionado doze aulas do 11º Ano e, além disso, contámos com a ajuda da orientadora, o que nos permitiu gizar uma estratégia que conseguiu levar as aulas ao patamar que pretendíamos. Ao 10º C foram dados dois blocos de aulas. Durante o Mês de Janeiro e início de Fevereiro foi leccionada toda a subunidade: Os valores – análise e compreensão da experiência valorativa, da unidade II – A acção humana e os valores e no final do Mês de Fevereiro até metade de Março leccionámos a subunidade: A necessidade de fundamentação da moral – análise comparativa de duas perspectivas filosóficas, da unidade III- Dimensões da acção humana e dos valores do programa de Filosofia do 10º ano. Antes mesmo de começarmos a planear as aulas, considerámos fundamental estabelecer um plano que, em primeiro lugar, amenizasse os problemas de disciplina que a turma apresentava e, em segundo, canalizasse as energias dispersivas dos alunos, em prol daquilo que se ia leccionar. 8 Ver Anexo E. 8 O objectivo era criar um espaço onde a estratégia que adoptámos para a turma do 11º Ano pudesse funcionar. Os alunos, talvez por serem de humanidades, estavam habituados a um estilo de aulas mais expositivo, mais teórico. Entendemos que sendo uma das funções do estágio experimentar várias metodologias, as primeiras planificações das aulas deveriam conter muitas actividades. O objectivo era ocupá-los com matérias que tinham utilidade para as aulas e evitar ao máximo que se pudessem dispersar e encaminhar-se para a indisciplina. Nesse sentido, realizámos fichas de trabalho, exibimos excertos de filmes, na parte dos valores ecológicos trouxemos para a aula dois especialistas em ambiente (um dirigente da Quercus e uma professora especializada em matérias de ambiente), debatemos em grupo o conhecido dilema de Heinz, lemos poemas, construímos em conjunto a tábua de valores da turma, visionámos os filmes “O menino selvagem” de François Truffaut, “Uma mente brilhante” de Ron Howard e “1.99. Um supermercado que vende palavras” de Marcelo Masagão, tudo sempre envolvido com textos filosóficos (Edgar Morin, Manuel Garcia Morente, Nietzsche, Kant, James Rachels, Lévi-Strauss, entre outros) numa permanente problematização com os alunos. Questionámo-los, tendo a consciência que a informação por si só não tem qualquer valor didáctico, ou seja, que era também essencial transformar a informação em conhecimento. No final de Janeiro, a maior parte dos alunos apresentava níveis de interesse e disciplina elevados. Provou-o a sua forte adesão, ainda nesse mês, a um projecto muito importante da Escola: “Colóquio dos jovens Filósofos”9 (foi a turma da escola que mais participações teve com sete alunos). Na subunidade em que tivemos de analisar comparativamente duas perspectivas filosóficas (Kant e Stuart Mill), optámos por construir um PowerPoint e realizar um concurso com a entrega de um diploma10 organizados pelos conteúdos fundamentais da subunidade, que fossem ao encontro do ponto que considerámos essencial na estruturação das planificações: o exercício da experiência filosófica propriamente dita. Dessa forma, o aluno consegue recriar os conceitos que estudou, reconstruindo, ele próprio, o movimento 9 Um projecto do Departamento de Filosofia da Escola que é desenvolvido há quatro anos. No ponto das actividades extracurriculares este assunto será mais desenvolvido. 10 Ver Anexo F. 9 de pensamento que esteve na origem da criação do conceito estudado, não se limitando apenas a reproduzir e assimilar conteúdos e sistemas. Concomitantemente são-lhe possibilitados novos instrumentos cognitivos para enfrentar os problemas colocados no seu dia-a-dia e em contexto de sala de aula. Com isto pretendemos dar um cunho prático à filosofia e retirar dos alunos o preconceito de que ela é apenas teoria e não tem aplicabilidade na vida quotidiana. Ao introduzirmos na conversação saberes que não estão à primeira vista ligados à filosofia, o que pretendíamos era levantar questões e problemas que nos direccionassem para esta área do saber. Filmes, poemas, músicas, narrativas, quadros, certos textos, todas essas intercessões com domínios aparentemente extra-filosóficos visaram fundamentalmente perceber quais os conceitos que todos esses domínios nos poderiam emprestar, com vista a ser alcançada uma verdadeira experiência filosófica em sala de aula. 1.6. Planificação e materiais de apoio didáctico-pedagógicos “Sempre que se inicia um empreendimento mais ou menos complexo, tendo como objectivo alcançar determinadas metas, torna-se importante fazer uma previsão da acção a ser realizada. Esta previsão servirá como vector director que oriente a acção”.11 Deste modo, demos uma atenção particular à planificação das aulas a leccionar. Devido à natureza e acção a que se refere, cada planificação tem um momento próprio para ser realizada. Consoante o decorrer das aulas, no contexto da turma, foi necessário ir elaborando planos a curto prazo, de pequena amplitude, à medida que se iam concretizando os diferentes conteúdos dos planos a médio prazo. O facto de se elaborar um plano é tão importante quanto é importante ser-se capaz de o pôr de lado. Percebemos ao longo das aulas que uma aula deve "acontecer"12, ser 11 Ver site: www.prof2000.pt/users/folhalcino/formar/.../planifica.htm. 12 O título e a temática da parte reflexiva deste relatório resultam essencialmente desta constatação. 10 viva e dinâmica, onde o enredo complexo de inter-relações humanas, a diversidade de interesses e características dos alunos, não pretende ser uma reprodução do que está no papel. Mas isto não significa de modo algum que se perca o fio condutor existente numa planificação. Significa é que ele não pode ser rígido, mas sim flexível ao ponto de permitir ao professor inserir novos elementos, mudar de rumo, se assim o exigirem as necessidades e/ou interesses do momento. “Uma boa planificação envolve a distribuição do tempo, a escolha dos métodos de ensino adequados, a criação de interesse nos alunos e a construção de um ambiente de aprendizagem produtivo”.13 Nas primeiras três aulas leccionadas o nosso maior objectivo era cumprir ao milímetro o plano de aula e desta forma pouco ou nada nos desviámos do que havia sido planeado. Depois percebemos que havia alunos com ritmos diferentes, que teríamos de ser mais flexíveis e que era muito produtivo, por vezes, fazer uma pausa na aula, voltar atrás e questioná-los de outras formas, “instigá-los”, ouvi-los no sentido de perceber aquilo que estavam a pensar, bem como atentar às dúvidas que lhes iam surgindo. Sentimos que desta forma as aulas passavam a ter uma maior fluidez e acabámos por optar por realizar dois tipos de planificações: uma a médio prazo (para o conjunto de aulas da subunidade) e outra a curto prazo (para uma aula em particular). As linhas orientadoras na elaboração do plano de aula para as duas subunidades do programa que escolhemos inspiraram-se no programa prof200014 e percorreram as seguintes etapas: - Identificação e ordenação dos conteúdos; - Definição dos objectivos correspondentes aos conteúdos; - Identificação dos conteúdos pré-requisitos necessários à aprendizagem a desenvolver e dos novos conceitos; 13 Hannah Arends, Aprender a Ensinar, p. 92. 14 O programa Prof2000 é um projecto com serviços de suporte a formação de professores à distância e de apoio às TIC nas escolas. Ver site: www.prof2000.pt/users/folhalcino/formar/.../planifica.htm. 11 - Definição das estratégias mais adequadas a implementar à situação pedagógica e aos objectivos a atingir; - Identificação dos materiais e dos recursos físicos e humanos existentes; - Definição dos modos (técnicas) de avaliação; - Distribuição das aulas pelos diferentes conteúdos. Após a planificação estar completa, começámos a organizar os eventuais materiais necessários, tais como a ficha de objectivos, a ficha de trabalho, a ficha de exercícios, textos, vídeos, poemas, etc. Na planificação de cada aula definimos todos os pormenores que considerámos serem essenciais à docência, tais como: - Sumário, - Novos conceitos a ser leccionados, conceitos pré-requeridos, encadeamento adequado, - Objectivos que os alunos deverão atingir, - Estratégias (ou a suas descrições), - Introdução mais apropriada (exemplos do quotidiano, paralelismo com outros conteúdos, trabalho de grupo, sugestão de actividade, conteúdos pré-requeridos), - Tipo de exercícios, grau crescente de dificuldade, - Materiais necessários à aula, - Linguagem específica a utilizar, observações pertinentes, momentos de questionação/avaliação, - T.P.C., - Referências pedagógicas. 12 Tivemos sempre presente uma visão de conjunto e da inter-relação dos elementos constituintes do programa, de modo a que cada situação de ensinoaprendizagem constituísse uma peça do todo.15 Ao seleccionar os conteúdos, considerámos como primordiais os temas importantes para a compreensão do conjunto, a distribuição dos conteúdos em função do tempo disponível e proporcionalmente à sua importância, assim como a busca de equilíbrio entre a transmissão de saberes e o desenvolvimento de capacidades. Nesse sentido, foi utilizada uma variada gama de recursos e técnicas, que foram desde a realização de um debate, ao uso de vídeos, jornais, textos actuais, clássicos e músicas. Direccionámos os nossos objectivos para as atitudes, aptidões e conhecimentos requeridos para a vida do indivíduo em sociedade e para o desempenho de funções necessárias ao progresso da comunidade. Procurámos também identificar os objectivos necessários ao desenvolvimento pessoal dos alunos, bem como aqueles conhecimentos ou aptidões que ainda não possuem mas os quais necessitam. Foi dada particular atenção à aquisição e compreensão de conteúdos científicos ou tecnológicos e realizado um debate sobre a legalização da pena de morte, tema que os indignava. Os resultados foram muito satisfatórios e toda a turma interagiu com opiniões sustentadas, redesenhando conceitos aprendidos e fazendo ligações com outros conceitos. Procurámos que as planificações fossem criativas e bem articuladas com os conteúdos, com os materiais e com as estratégias. Logicamente que temos ainda muito a aprender. No entanto, sentimo-nos bastante satisfeitos com os resultados alcançados. Finalmente é importante salientar que os planos a longo prazo realizados e pensados com a Orientadora constituíram o suporte organizador dos planos a médio prazo. E estes, por sua vez, constituíram a sustentação dos programas a curto prazo. Consideramos que um professor deve conseguir transmitir aos seus alunos competências não apenas do foro pessoal mas também colectivo e que “a arte mais 15 Ver Anexo G. 13 importante do professor é a de despertar a alegria pelo trabalho e pelo conhecimento”.16 Nesse âmbito, foi dada uma especial atenção às palavras e aos actos, à amizade e coerência, factores que afectam positivamente o ambiente e a aprendizagem. A sensibilização foi algo em que apostámos fortemente. Nesse sentido, atendemos a um conjunto de objectivos gerais17: No domínio cognitivo: -Apropriar-se progressivamente da especificidade da filosofia. -Reconhecer o contributo específico da filosofia para o desenvolvimento de um pensamento informado, metódico e crítico, assim como para a formação de uma consciência atenta, sensível e eticamente responsável. No domínio das atitudes e valores: -Promover hábitos e atitudes fundamentais ao desenvolvimento cognitivo, pessoal e social. -Desenvolver um quadro coerente e fundamentado de valores. No domínio das competências, métodos e instrumentos: -Ampliar as competências básicas de discurso, informação, interpretação e comunicação. -Iniciar às competências específicas de problematização, conceptualização e argumentação. -Iniciar às competências de análise e interpretação de textos e à composição filosófica. Nas duas turmas, centralizámos a atenção, numa primeira abordagem, na sensibilização. Deste modo, quer as planificações quer a realização da aula procuraram sempre relacionar os materiais de aprendizagem com os interesses e os valores 16 Einstein, Como vejo o Mundo, p.38. 17 Programa de Filosofia do 10º e 11º Anos, p.9. 14 intrínsecos dos alunos. O principal objectivo residiu na apresentação de problemas/narrativas e para isso recorremos a poemas, vídeos, filmes, programas de televisão que colocassem em questão o conceito ou a narrativa que estávamos a referir e depois partimos para a discussão, tendo sempre como eixo norteador que aquela narrativa podia ter co-relações com a vida e universo cultural dos alunos. Considerámos que sem sensibilização o processo ensino-aprendizagem não podia ter o seu início. A seguir à preocupação da sensibilização-motivação, as nossas planificações voltaram-se para a problematização. Tratava-se de arranjar forma de transformar em problema o conceito apresentado, tentando dar à filosofia uma praxis, recorrendo ao seu sentido crítico e pesquisador, de modo a incitar os alunos a levantarem questões sobre os conceitos dados. É que se a planificação for pensada para um número apreciável de questões, então maior será essa problematização e maior será o campo experimental do pensamento dos alunos. “O problema só existe se o sentirmos como problema, e de tal maneira que ou o sentimos, filosoficamente, ou não existe, compete, ao professor fazer com que o aluno o faça filosófico, isto é, lhe dê esse contorno, essa qualidade”.18 A investigação foi outro factor importante que nunca descurámos nas planificações. E neste ponto considerámos fundamental invocar a história da filosofia, utilizando sempre os textos essenciais dos filósofos, contextualizando-os nessa vertente e fazendo referência ao que pensaram sobre as temáticas que estávamos a apresentar. Por fim, deixámos um espaço nas planificações, para algo a que damos vital importância: a recriação dos conceitos dados nas aulas. Todas seguem uma linha que tem como fim último este ponto: ligar e religar conceitos e com isso reequacionar os problemas que haviam sido propostos e até arranjar novas formas de os defrontarmos: “Todo o conceito é pelo menos duplo ou triplo…”19 Este espaço concedido ao aluno para ele recriar de uma forma autónoma e livre a sua experiência do pensar é que distingue claramente as aulas de Filosofia de outras aulas quaisquer.20 Esta foi provavelmente a 18 João Boavida, Educação filosófica, p. 27. 19 Gilles Deleuze, O que é a Filosofia, p.21 20 Este assunto será desenvolvido na parte reflexiva do relatório. 15 parte mais exigente que nos propusemos alcançar. Nem sempre o conseguimos, mas as planificações são uma projecção daquilo que temos como ideal fazer e tal não significa que sempre o consigamos. 1.7. Avaliação “Em quase todas as situações, os líderes são responsáveis por classificar e avaliar as pessoas que trabalham para eles. Da mesma forma, também os professores são responsáveis pela avaliação do desempenho dos alunos nas suas salas de aulas…os processos de avaliação consomem uma parcela consideravelmente grande do tempo dos professores…por estes motivos, é bastante importante que os professores em início de carreira construam um repertório de estratégias eficazes para classificar e avaliar o desempenho dos seus alunos e para compreender os testes estandardizados.”21 Na nossa opinião, não é possível avaliar uma aprendizagem se não dermos uma atenção especial às competências e às actividades. Quem avalia, só consegue avaliar se o aluno adquiriu ou não determinada competência, a partir de uma dada actividade ou de um comportamento observável (intervenção oral, produção escrita, análise e interpretação de textos argumentativos e composições filosóficas de desenvolvimento metódico). Por exemplo, as questões colocadas no teste sobre a perspectiva ética de Kant, tinham como objectivo avaliar as competências que os alunos tinham adquirido sobre a ética deste filósofo, nomeadamente se identificavam a sua teoria num texto, se explicavam os momentos principais da mesma e se conheciam as suas habituais refutações; por fim, tornava-se necessário verificar se eram capazes de discutir as conclusões a que aquele tinha chegado. Uma vez que o programa oficial defende que não se “pode fixar critérios rígidos, universais e obrigatórios de avaliação”22, decidimos que em todos os nossos elementos avaliativos o aluno deveria usar capacidades e conhecimentos adquiridos; a 21 Hannah Arends, Aprender a Ensinar, p. 208. 22 Programa de Filosofia do 10º e 11º Ano, p. 24. 16 avaliação, por sua vez, incidiria na forma como tinha conseguido ligar e aplicar os seus saberes. Demos também especial atenção a uma avaliação democrática e participada, permitindo a todos os alunos, como defendia John Dewey, na sua obra Democracia e Educação, a “liberdade intelectual e a manifestação das várias aptidões e interesses”23. O termo verdade no ensino da filosofia deve muitas vezes ser substituído pelo termo consenso. Não existem verdades eternas ou definidas por uma instância metafísica, mas verdades provisórias, com as quais devemos contar para resolver os nossos problemas particulares e sociais. Existem, assim, verdades que são passíveis de ser alteradas a qualquer momento e que se alcançam através do consenso. Não há uma verdade individual; a existir, ela alcança um valor maior quando elaborada colectivamente, através de um processo de discussão sobre vários pontos de vista, que podem articular-se, oferecendo uma solução para os problemas que encontramos na nossa vida particular ou colectiva. 1.8. Principais dificuldades As principais dificuldades sentidas durante o estágio podem ser divididas em dois tipos: as dificuldades naquilo que concerne à preparação das aulas e as dificuldades sentidas em contexto de sala de aula. No que respeita às primeiras, a questão prendeu-se com a escolha dos melhores materiais a utilizar nas aulas da turma do 10º Ano. Devido ao facto da turma ser muito indisciplinada e pouco interessada, não foi fácil arranjar textos que fossem apelativos, bem como vídeos e imagens. Nem sempre fomos bem- sucedidos. Relativamente às duas primeiras aulas, entendemos por bem alterar a planificação prévia das aulas. A segunda dificuldade, dentro deste ponto, prendeu-se com a avaliação: como avaliar de forma justa e rigorosa os alunos e como o fazer transparecer na planificação de 23 John Dewey, Democracia e Educação, p. 337. 17 uma aula. Conceptualmente o espaço da avaliação sempre nos pareceu um pouco amplo e dado a equívocos. Queríamos ser o mais honestos e justos possível e encontrámos alguns obstáculos, no respeitante à melhor forma de avaliar o “aprender a” (competências) e o “aprender que” (conteúdos). Ao encararmos o ensino da filosofia como algo de activo, onde o essencial não é os alunos decorarem e reproduzirem conteúdos, mas realizarem eles mesmos a experiência do pensamento, optámos por avaliar, acima de tudo, a qualidade de aquisições cognitivas e as competências alcançadas, em função das actividades ou tarefas a que os fomos submetendo. Ao explicarmos-lhes a nossa forma de avaliar, em contexto de sala de aula, demos o exemplo das aulas de química, onde têm de por si mesmos fazer a experiência do laboratório e não apenas decorar os conteúdos científicos presentes no manual didáctico. No que respeita às dificuldades sentidas em contexto de sala de aula ressaltaria três: a primeira prendeu-se com o facto dos alunos nem sempre terem compreendido o sumário devido à caligrafia. Esta situação foi resolvida através da leitura do que era escrito no quadro. A segunda esteve relacionada com o espaço da sala de aula da turma do 10º Ano C. Ocupávamos praticamente e apenas o espaço da frente da sala e só pontualmente nos deslocávamos para as zonas mais afastadas do quadro. Apesar desta limitação física tivemos sempre o cuidado de interpelar a maioria dos alunos, independentemente da posição em que se sentavam durante a aula. Pensamos que este facto se deveu aos próprios condicionamentos colocados pela sala em si que, por um lado, restringe os movimentos do professor e, por outro, coloca quase todos os recursos na zona em que nos movimentávamos.24 Por fim, também sentimos algumas dificuldades em gerir o tempo de aula. Esta dificuldade está também ligada à planificação de uma aula. Nas aulas acontecem geralmente muitas coisas ao mesmo tempo, e nem sempre é tarefa fácil gerir correctamente o tempo disponível. Foi o que constatámos. Tínhamos de preocupar-nos com a redacção do sumário da aula no quadro, estabilizar os alunos, de modo a que todos estivessem em condições de se iniciar a aula (o que é uma tarefa mais complicada após o 24 Ver Anexo H. 18 almoço) e leccionar os conteúdos. De uma forma geral conseguimos fazer sempre tudo dentro dos 90 minutos previstos, mas ficam aqui registados os obstáculos que algumas vezes se nos depararam. 1.9. Actividades extracurriculares. Um dos projectos em que estivemos fortemente envolvidos, para o qual fomos convidados a participar, foi a quinta edição do “Colóquio dos jovens Filósofos”, um projecto inovador e potenciador do pensamento crítico essencial à sociedade actual, organizado pelo grupo de Filosofia da Escola Secundária dos Casquilhos e pelo Projecto Filosofia para Todos do Agrupamento de Escolas Padre Abílio Mendes - Escola Secundária Augusto Cabrita e que teve a sua génese em 2007. Acompanhámos de perto 14 alunos que escolheram as obras “A Apologia de Sócrates”, de Platão, “O Príncipe”, de Maquiavel e “A Metamorfose”, de Kafka. Além das várias reuniões que tivemos na escola (estão referenciadas nas actas do dossier de estágio), comunicámos por correio electrónico e reunimos algumas vezes num café perto da Escola. O Projecto Colóquio dos Jovens Filósofos veio incrementar, na agenda cultural local, a discussão sobre a importância e sentido da reflexão sobre o papel da filosofia na formação dos jovens no contexto da sociedade contemporânea. É um evento reconhecido e prestigiado e que só dignifica a filosofia. Neste sentido, os alunos de filosofia, ao participarem neste projecto, estão a adquirir e exercitar competências: desenvolver um pensamento autónomo e emancipado; desenvolver uma sensibilidade ética, estética, social e política; reconhecer a filosofia como espaço de reflexão interdisciplinar; construir textos críticos e argumentativos sobre os temas da actualidade com a sua consequente exposição em espaço público. Educar não é “fabricar adultos segundo um modelo, é libertar em cada homem o que o impede de ser ele mesmo e lhe permite realizar-se segundo o seu génio singular”.25Foi sem dúvida um momento de grande crescimento dos alunos que participaram neste evento. Foi também um enorme motivo de 25 Olivier Reboul, A filosofia da educação, p. 22. 19 orgulho para nós o termos podido a ele nos associarmos, orientando-os durante a realização do trabalho escrito e preparando-os para a sua apresentação num auditório alargado. A maior parte dos alunos nunca tinha sequer realizado um texto escrito com as formalidades que este requeria e muito menos possuía a experiência de o apresentar em público. Este evento permitiu ainda que nos aproximássemos deles e com isso a relação entre todos saiu claramente beneficiada. Considero que a forma como o Colóquio está estruturado é excelente para dinamizar e motivar os alunos para a prática da reflexão crítica e séria sobre as várias questões que assolam a sociedade actual.26 26 Ver Anexo I 20 Parte Reflexiva Capítulo II: Os agenciamentos27 da filosofia 2.1. As expectativas que envolvem a filosofia: Para quê ensinar filosofia? Perante as expectativas que envolvem a filosofia, como disciplina cultural que retém o essencial do pensamento ocidental, tudo aquilo que pode dar sentido às coisas, ao mundo, à vida, acaba também por ter repercussões no seu ensino, e é devido a isso que este acaba por ser alvo de uma demanda muito ampla. A sua inserção no curriculum deve-se, ao que parece, à circunstância de se tentar, através do ensino secundário, suprir uma série de lacunas. Não são bem deficiências, mas acima de tudo afigura-se que as diversas mutações culturais, tecnológicas, comportamentais, como um todo, produzem resíduo e que esse resíduo é insanável pelos recursos próprios das tecnologias, dos saberes em geral, e principalmente da ciência. O historiador inglês E. Burnet Taylor, na sua obra A cultura primitiva, refere que os deuses foram o primeiro pensamento dos primatas desde que se hominizaram. E mais analítica e profundamente, opina este autor que as divindades surgiram na consciência humana quando o homem pré-histórico aprendeu e apreendeu que ia morrer; que não havia maneira de evitar a morte.28 Segundo Jean Claude Barreau, escritor que tratou em vários livros da problemática da existência humana, quando o Homem “descobre” a sua impotência para 27 Para Deleuze, os agenciamentos são criações, culturas, épocas da história, quadros, músicas, livros, ligações, encontros. O agenciamento assimila a diversidade de um conceito. É a construção de uma região que “implica estilos de enunciação. Implica territórios, cada um com o seu território, há territórios. Mesmo numa sala, escolhemos um território. Entro numa sala que não conheço procuro o território, lugar onde me sentirei melhor.” Ideia retirada do documentário legendado em português: O Abecedário de Gilles Deleuze. (letra D) Realizado por Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. Tradução e Legendas: Raccord. Ver site: http://www.oestrangeiro.net/esquizoanalise/67-o-abecedario-de-gilles-deleuze 28 Edward Taylor, Cultura Primitiva, Vol. 2: La Religión en la Cultura Primitiva. p. 53. 21 dominar as forças terríveis da natureza e a morte, “ enlouquece”.29 Para este pensador contemporâneo, a nevrose é a marca própria do ser humano e é ela que explica a “invenção” das religiões. A sucessão dos dias e das noites, as cheias, a seca, os relâmpagos, o movimento dos astros, a reprodução, a experiência da morte, são tudo exemplos de acontecimentos que sempre impressionaram o Homem. A consciência que este tem de que é finito, limitado, insuficiente, que não encontra um sentido para a Existência, que vê na vida o absurdo de que falava Camus, está subjacente à atitude religiosa. É esta consciência da sua indigência que o faz buscar ansiosamente um sentido, o horizonte donde lhe parece ouvir uma voz, um chamamento que lhe oferece a elevação para além das suas possibilidades. A opção do Homem reside em deixar-se cair ante esse chamamento ou em aproximar-se dele. Sobre esta temática, Ismael Quiles expressa que “metafisicamente existe um termo escolástico para definir esta essencial limitação do ser humano: contingência”30. Jean Claude Barreau partilha desta ideia: pelo facto de sermos contingentes, somos quase forçados a depender do absoluto, ou seja, daquilo que não é contingente. O núcleo essencial da moderna filosofia existencialista nasce desta espécie de angústia frente ao nada, ao não-ser, ao perigo da Existência. A contingência humana, na sua opinião, é a explicação mais óbvia para o Homem sentir “ a inexorável necessidade de recorrer a um princípio superior” e para se transformar num ser religioso.31 A questão é que não é possível fazer de uma disciplina um centro tão rigoroso e definitivo. O recurso à filosofia aparece como aquilo que poderia fazer frente à multiplicidade contemporânea: novamente acenar para uma explicação totalizante, para o sentido que as coisas encerram. Quando se pensa a filosofia como uma prática escolar ou 29 30 31 Jean Barreau, Nem todos os Deuses são iguais, p. 19. Ismael Quiles, La Persona Humana: fundamentos psicologicos y metafisicos. Aplicaciones sociales, p.197. Jean Barreau, Nem todos os Deuses são iguais, p. 16. 22 disciplina educativa, entende-se que ela poderia fornecer aquilo que é ideal para a educação. A educação como formação não só do espírito, mas da personalidade como um todo, permite a possibilidade da crítica dos valores, fornece direcções para as opções em geral e faz dos alunos personagens com sentido do social. Quando tudo isto é objecto de reflexão, percebemos que a filosofia poderia ser aquele ponto apropriado para fazer convergir todos os ideais e os objectivos formadores da educação. 2.2. A necessidade da presença da filosofia no programa do ensino secundário. Defender que a filosofia é necessária no programa do ensino secundário, porque garante a formação do pensamento ou do espírito crítico do estudante, é um argumento que incorre num problema sério, porque é perfeitamente sabido que nem toda ela é crítica por si mesma. Com efeito, tanto pode ter esta perspectiva, como pode ter a de ponto de vista de afirmação de uma determinada sociedade. Sendo um objectivo importante do processo educativo o desenvolver a capacidade crítica do aluno, essa função deve, contudo, ser exercida pelas diversas disciplinas. Na verdade, defender que somente a filosofia, devido às suas características intrínsecas, o deve fazer, é nocivo para ela própria e para o processo de educação encarado como um todo. Acresce que tal escopo (garantir o espírito crítico do estudante) não deverá ser tomado como o fundamental. Mais do que preocuparmo-nos em que o aluno seja crítico, é essencial ensinar-lhe a elaborar problemas, a desenvolver argumentação e a conseguir trabalhar com conceitos. O aluno deve aprender conceitos; se possível, deve ser capaz de criar conceitos originais. Se o ensino der enfoque a este ponto, necessariamente será mais fundado em critérios, conduzindo-o a reflectir, apoiado no pensamento e textos filosóficos, bem como 23 na história da filosofia. Só assim poderá levar a cabo um juízo crítico, forçosamente fundamentado. 2.3. A ligação da filosofia ao pensar A filosofia tem uma ligação muito forte com o exercício do pensar. Uma das formas mais interessantes de a encarar desta forma reside na sua dimensão de experiência. A experiência traz uma certa abertura ao pensar, uma relativa imprevisibilidade e impossibilidade de antecipar o que vai ser pensado. É uma reflexão viva, que não se conforma com aquilo que já foi meditado, que coloca novas eventualidades e que sobretudo tem duas estratégias principais. A primeira estratégia passa por um tipo de questões susceptíveis de impedir que o Homem se feche/acomode, se situe tranquilamente em pontos fixos. A segunda estratégia está ligada à criação, à força que faz dilatar esse pensar, no sentido de ocupar outros lugares no próprio pensamento. A filosofia tem esta possibilidade/força de direccionar os jovens a explorarem aquilo que nunca pensaram, a desvulgarizarem o vulgar, a expandirem o que reflexionam para outras alternativas, outros modos ou escolhas. Os alunos são colocados a observar aquilo que todos olham, de forma a não se contentarem passivamente com aquilo que quotidianamente vêem. A sentirem-se provocados e espantados com o vulgar. Este espanto tem o seu lado assustador, porque «arranca o Homem ao compromisso, à familiaridade e à certeza»32, retirando-o da zona de conforto e de apatia em que vive. Mesmo diante daquilo que a todos parece unânime e inquestionável ele pergunta: “mas porque não pode ser de outra forma?”; “e se fosse de outra forma não poderia ser melhor?”. O ensino da filosofia deve ter esta função de abrir 32 Eugene Fink, De la phénoménologie, p. 202-204. 24 clareiras na floresta do pensamento dos alunos, arranjar as bases para que eles também possam percepcionar, com o tal espanto, aquilo que à partida, sem se pasmarem, diariamente observam. Pode dar uma nova cor, uma nova forma à banalidade observada, de tal forma que o usual pode deixar de o ser; aquilo que parecia certo começa a ganhar novos contornos e a exigir uma ponderação mais apurada. É urgente e necessário raciocinar de outra forma. A frase “quando todos pensam igual é porque ninguém está a pensar”, comummente atribuída ao jornalista e filósofo alemão Walter Lippman, é disto um bom exemplo. 2.4. Do que trata a filosofia. A perspectiva filosófica como a experiência do conceito. O que é a filosofia? Cada filósofo parece que recoloca para si esta pergunta. É fundamental que o professor se questione sobre ela, para que possa organizar um curso, o material didáctico, o programa de ensino. A filosofia não pode ser ensinada de forma ingénua. É preciso responder com clareza a esta dúvida, que é fulcral e que abre um conjunto de novas e interessantes questões. O filósofo não é o único a questionar a realidade tal como ela é, nem o homem vulgar, o teólogo, o artista, o político ou o cientista vivem enganados num mundo ilusório e de falsos ideais; tão pouco o primeiro segue a via dos que se julgam sabedores e superiores e que atribuem à filosofia o tal trabalho de “arrancar o véu”, o tal “abre olhos” a todos os seres inferiores que estão amarrados a formas de pensar muito ingénuas e prosaicas. Esta atitude filosófica não o põe num pedestal, nem lhe coloca nas mãos o ceptro do poder. Também não faz dele um opinion maker vanguardista. Deleuze e Guattari afirmam que «vivemos sob o império da opinião. Assim como na época de Platão os gregos eram dominados pela doxa, pelas aparências sensíveis, e só a filosofia poderia mostrar o verdadeiro mundo, também nós, dominados pelos media e pela literatura best-seller, estamos condenados às opiniões e às certezas fáceis daqueles 25 que “tudo sabem”. A opinião luta contra o caos que é a multiplicidade de hipóteses, eventualidades; incapaz de viver com a desordem, sentindo-se tragada por ela, a opinião tenta vencê-la, fugir dela, furtar-se a um “pensamento único”. No entanto, essa fuga “é apenas aparente; o caos continua aí, sub-repticiamente jogando dados com as nossas vidas. O que importa não é vencer o caos nem fugir dele, mas conviver com ele e dele tirar possibilidades criativas.”33 São várias as formas de conceber a filosofia e isso reflecte-se na forma como decorrem as aulas. É comum encontrar professores de filosofia que compreendem as aulas como uma espécie de discussão/comunicação de problemas, defendendo a estratégia didáctica de “agarrar” num assunto polémico, de preferência, bem actual, a que os estudantes tenham acesso, seja pela televisão, seja por revistas ou por jornais. A partir desse assunto/notícia, colocam a turma a discutir em torno do respectivo tema, pondo questões. É um modelo imperfeito, na medida em que não instala os alunos no centro da experiência do pensamento. O resultado de levar-se para a sala de aula certa notícia e discuti-la, resume-se a um conjunto variado de pontos de vista, e a impossibilidade de chegar-se, no final, a uma conclusão. Os alunos são motivados a colocar a sua opinião sobre determinado problema; alguns deles questionam a dos outros, mas, como é sabido, numa questão de opinião, é difícil alguém estar disposto a abrir mão da sua, sejam quais forem os argumentos utilizados pela contraparte. Uma forma diferente e eficaz de mudar significativamente a nossa perspectiva acerca de como leccionar é enfrentar a problematização, através da experiência do pensamento por conceitos. Para isso, é necessário não nos limitarmos ao trivial debate de opiniões e partir para a discussão dos problemas, organizando-os de maneira a que possamos a partir deles chegar ao conceito. No entanto, para que esta nossa perspectiva acerca de como leccionar se materialize, é necessário superar algumas dificuldades. O ensino português, que tal como 33 Gilles Deleuze, Diálogos, p.19. 26 o existente noutros países, debate-se com algumas complexidades. Com efeito, precisa de soluções que proporcionem suprir certas carências básicas. Não se apresenta fácil a perspectiva do professor. São vários os problemas que enfrentamos nas escolas, nomeadamente estruturais e materiais. Algumas delas não possuem salas de aulas com condições, não têm bibliotecas disponíveis, não têm recursos audiovisuais ou vivem uma situação social complicada, com violência à porta e dentro da escola. Tudo isto não nos parece ser motivo para não se conseguir dar uma boa aula de filosofia. Se defendemos que esta deve viabilizar a experiência do conceito, não devemos encarar os obstáculos que se vivem nas escolas e na sociedade actual, como algo que nos faça baixar os braços, ou seja, desistir de leccionar. É que o professor de filosofia pode sempre proporcionar determinadas perspectivas que permitam suprir um pouco essas carências; que permitam avançar em direcção a essa experiência com o conceito. Nesse sentido uma aula de filosofia deve ser encarada como um acontecimento, como um exercício do poder de começo.34 Ao longo da história, cada filósofo recomeçou a filosofia. O exemplo clássico reside na relação de Platão com Sócrates. Platão, discípulo, pensava com Sócrates e como Sócrates. É só após a morte deste, que Platão se faz Platão enquanto pensamento. Deste modo, de certa forma reprincipia a filosofia; aprende com o mestre, mas afasta-se dele, inventando o seu próprio modo de filosofar. Este sistema, de certa maneira, é retomado por cada um dos filósofos ao longo do tempo. Parece-nos importante que um professor reflicta sobre isto quando planifica as suas aulas. É imperioso perceber em que medida estamos a produzir uma aula de filosofia, a qual tem este poder de incessante primórdio. Isso permitirá que o aluno, a partir da relação com o professor, com os textos de filosofia, com o conhecimento dos clássicos e dos conceitos que foram produzidos ao longo da história, consiga despertar para uma experiência com significado para si mesmo. 34 Ideia retirada do conceito deleuziano de acontecimento possível de encontrar em várias das suas obras como por exemplo: Diferença e Repetição, p. 146. Para o filósofo francês um acontecimento é improviso, espanto. O futuro e o passado anulam-se perante o acontecimento. Neste sentido, a ausência deste exercício do poder de começo na educação impede o surgimento de um novo pensamento e também impossibilita a formulação de um pensamento que não esteja previamente determinado nos métodos anteriormente formulados. 27 Capítulo III: O contributo de Deleuze para o ensino Um dia talvez o século seja deleuziano Foucault Para nos auxiliar nesta ideia de que o ensino da filosofia é “um exercício do poder de começo” e porque hoje, mais do que nunca, precisamos do inusitado, do díspar e do inconformismo, recorremos, neste trabalho, ao filósofo contemporâneo francês Gilles Deleuze, que tem em si bem presentes todos estes atributos. Para Deleuze, a filosofia não é apenas uma reflexão da realidade histórica; ela é também criativa. Cria conceitos. Na sua obra, O que é a filosofia? refere que a filosofia consiste na criação de conceitos e que um filósofo “está constantemente a refazê-los e até mesmo a mudá-los; basta, por vezes, que um pormenor aumente e produza uma nova condensação, acrescente ou retire componentes. O filósofo apresenta às vezes uma amnésia que quase o transforma num doente (…).35 Esta é uma inflexão forte à tradição que desde os gregos é pensada como uma espécie de contemplação. Aristóteles separava a vida activa (política) da vida contemplativa (filosofia), defendendo que ambas se contrapunham à vida do sujeito comum. A boa vida seria a união da vida activa à contemplativa. Para Deleuze, diferentemente, a filosofia é unicamente a vida activa e a acção do filósofo é uma acção de criação.36 Se hoje podemos “ continuar a ser platónicos, cartesianos ou kantianos, é porque temos o direito de pensar que os seus conceitos podem ser reactivados nos nossos problemas e inspirar esses conceitos que é preciso criar”.37 35 Gilles Deleuze, O que é a filosofia, p. 26. 36 Gilles Deleuze, Conversações, p. 186. 37 Gilles Deleuze, O que é a filosofia, p. 31. 28 São três as potências do pensamento, para este filósofo francês: a filosofia, que cria conceitos, a ciência, que cria funções, e a arte, que cria perceptos e afectos. Tanto o filósofo como o artista ou o cientista são criadores; no entanto, cada um deles cria um produto distinto. Comummente quando pensamos em conceitos, pensamos em definições científicas. O conceito de cadeira é a sua definição, é aquilo que faz com que a cadeira seja cadeira, quer dizer, a sua essência, em termos filosóficos. Deleuze tenta desmontar esta ideia. Procura explicar o que é o conceito sem produzir uma definição dele, por considerar que, ao fazê-lo, estaria a eliminar a sua própria potência criativa. Defende, portanto, que o conceito é sempre imanente e, assim, acaba por romper com a tradição filosófica. Imanente, significa que existe sempre, num dado objecto, e que é inseparável dele; que está contido em ou que provém de um ou mais seres independentemente de acção exterior. Na realidade, desde Platão que pensamos o conceito como um ente transcendente, algo que está além do pensamento, ao qual só chegamos através da contemplação. Platão concebia dois mundos: o mundo das experiências quotidianas, feito de mudança e transformação, mundo da temporalidade, e que apreendemos pelos sentidos, marcado pela incerteza e pelo questionamento; o mundo inteligível, onde apenas ascendemos pelo uso da razão, da inteligência. Aqui reside a ideia, o conceito, a forma perfeita das coisas, a estabilidade, a verdade. Desta concepção platónica decorre uma filosofia educacional, um modo de se trabalhar a formação das pessoas. De acordo com ela, o aluno necessita de aceder a este mundo de verdades já definidas, as quais não se transformam. Neste entendimento decorrente da filosofia de Platão, aquele que tem mais saber, está mais próximo da verdade. Tem todo o poder em relação àquele que não sabe. Deste modo, o professor surge, na concepção platónica, como a figura central, a figura que detém o poder, porque possui o saber. E alcançou o saber porque chegou àquele mundo racional, inteligível - o mundo da verdade. 29 A relação pedagógica, nesta visão, surge como unidireccional: do professor para o aluno. Este aparece simplesmente como um receptáculo da verdade. Os conteúdos (saberes) escolares ganham aqui uma enorme força, pois (supostamente) contêm a verdade e são ensinados ao aluno, sendo este uma espécie de mero depósito do conhecimento. Pensar assim seria contemplar, colocarmo-nos em busca das ideias que existem independentemente de nós. Inversamente, para Deleuze pensar é criar. Os conceitos não estão aí para serem encontrados/descobertos pelos filósofos. São inventados e fabricados; para serem produzidos, é necessário um plano de imanência, um contexto que contenha tudo aquilo que nos é dado experimentar. Os conceitos nascem neste plano e do choque, das colisões, das experiências que nele vamos tendo. Cada filósofo tem os seus, a partir dos quais experimenta problemas, e recolhe uma série de elementos presentes nesse plano. A composição e o arranjo desses constituintes são o conceito. O conceito é o acto do pensamento que reúne uma série de elementos que estavam predispostos. Organizando-os de uma certa forma, isso permite-nos fazer frente ao problema que nos mobilizava. O conceito não é uma resposta, é uma maneira de organizar o pensamento para enfrentar o problema e posteriormente construir respostas. Deleuze, na sua obra Diferença e Repetição, defende que o problema é o motor do pensamento. Não pensamos de forma natural, como dizia Aristóteles; o pensamento é algo violento, ou seja, pensamos porque somos obrigados a pensar. É importante criar problemas e não os submeter apenas à possibilidade de serem solucionados porque se “não nos deixam fabricar as nossas questões, com elementos vindos de toda a parte, não importa de onde, se apenas nos são colocadas, não temos grande coisa a dizer”.38 Para este filósofo, a actividade do pensar começa na procura de soluções, na participação nos problemas, no direito a eles, no geri-los. Neste sentido, o professor e os alunos têm de ser capazes de desbravar o campo problemático que os afecta: “A arte de construir os problemas é muito importante: 38 Gilles Deleuze, Diálogos, p. 11. 30 inventa-se um problema, uma posição do problema, antes de se encontrar uma solução”.39A educação só ocorre se os estudantes se conseguirem despir das noções preconcebidas, das opiniões, da doxa, que lhes limita o pensamento. É necessário pensar a aprendizagem não apenas como um processo de solução de questões, mas também como um processo de invenção das mesmas e, neste sentido, devemos ter direito às nossas, as quais não são, para Deleuze, algo que sintamos racionalmente. São da ordem do sensível. São sentidas antes de serem construídas racionalmente. É a sensibilidade que nos mobiliza a pensar, é o problema sensível que nos leva a criar o conceito. O professor deve leccionar as suas aulas em torno daquilo que o afecta verdadeiramente e não apenas ater-se ao que já sabe. Quanto ao aluno, deve primeiramente ser sensibilizado para determinado tema, para depois conseguir problematizá-lo. 3.1. Como realizar a aprendizagem. Deleuze defende também que há sempre alguém que ensina, mas que o que alguém aprende é impossível de ser controlado: “Não há métodos para encontrar tesouros nem métodos para se aprender”.40 Recusa, assim, a aprendizagem ligada à inteligência, mostrando a importância da percepção do aprender a perceber, a relevância da aprendizagem da sensibilidade, da atenção aos signos da problematização. Não conseguimos saber como alguém aprende certo assunto ou tema. São forças sensíveis, relações de signos que se estabelecem e que movem uma pessoa em direcção ao aprendizado: “Aprender a nadar, aprender uma língua estrangeira, significa compor os pontos singulares de seu próprio corpo ou de sua própria língua com os de uma outra figura, de um outro elemento que nos desmembra, que nos leva a penetrar num mundo de 39 Ibidem. 40 Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, p. 159. 31 problemas até então desconhecidos, inauditos”.41 Quando aprendemos a nadar há alguém que nos ensina, no entanto só aprendo a nadar quando o meu corpo se encontra com a água da piscina. O aprender a nadar é aprender a habitar esse outro elemento (água) e a relação que o meu corpo estabelece com esse tal elemento. O facto de ter alguém a ensinar é importante, pois a aprendizagem não é automática, não podemos simplesmente lançarnos à água. Somos mediados por alguém (professor), mas a aprendizagem só ocorre quando o aluno se coloca na relação com aquele signo, com aquela materialidade. O professor é essencial, mas a aprendizagem só se efectua quando o estudante participa e se estabelece nesse conjunto de signos. Por vezes, no decurso de uma aula, pode ocorrer que um aluno esteja ensonado e que, de repente, ao ouvir algo que lhe anima a atenção, desperte. Para Deleuze, é necessário um grande esforço do professor para dar uma lição; para desencadear aquele despertar. Ele tem de prepará-la e preparar-se para ela como um artista para o seu espectáculo42. Cada aula deve ser um evento, um acontecimento. Um processo de experimentação. Nos dias de hoje, os docentes parecem impotentes para lidar com todo o conjunto de dilemas que afectam as nossas escolas. Deste modo, quase parece que do que precisamos é de uma espécie de super-professor. Com efeito, por mais frágil ou impotente que um professor se possa sentir na máquina educacional, ele tem sempre a hipótese de criar um pequeno acontecimento, seja levando algum aluno a estudar certo tópico, seja a fazê-lo sair do seu estado precário de conhecimento ou interrogação. Basta que o aluno se agite para que o professor já se sinta salvo como professor. A aula é um espaço de criação, um espaço do docente que é compartilhado. Não há como abdicar da sua autoria. E esta autoria passa sempre pela persona única do professor. Ele tem de ser um pouco actor e os alunos a sua plateia activa. 41 Idem, p. 182. 42 O Abecedário de Gilles Deleuze. Realizado por Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. Tradução e Legendas: Raccord. Ver site: http://www.oestrangeiro.net/esquizoanalise/67-o-abecedario-de-gilles-deleuze 32 Existem muitos jovens que passam o tempo livre a ler filosofia, a discuti-la, a escrever e a pensar sobre o assunto. Todavia, como alunos, a disciplina não lhes agrada. É preciso perceber o que é que os motiva a devotarem tanto tempo aos estudos. O modelo afectivo de sensibilização parece-nos o melhor, aquele que oferece uma maneira distinta de pensar sobre o ensino, um modo que pode abranger tanto o benefício presente como o futuro. A aprendizagem é fruto de uma intensa multiplicidade, de um encontro repentino e sem a finalidade com o heterogéneo: “nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objectivos”43 No modelo pedagógico afectivo de sensibilização, as muitas horas que passamos a ler, a pesquisar, a pensar e a escrever, podem ser vistas como preliminares, num longo caminho que deverá ser percorrido com satisfação, até alcançarmos a desejável meta final. Assegurar que o processo de aprendizagem seja agradável em si é, em parte, da responsabilidade de cada aluno. Tal desígnio alcança-se com maior facilidade na faculdade, na medida em que, nessa fase de estudos, o estudante possui maior independência. 3.2. A aula-acontecimento: o ensino da filosofia como um exercício do poder de começo Para isto poder acontecer, pensando de uma forma didáctica e em como planear e realizar uma aula de filosofia como um exercício do poder de começo, precisamos de ter em atenção cinco pontos que consideramos essenciais: sensibilizar, problematizar, investigar, argumentar e conceptualizar. 43 Gilles Deleuze, Proust e os signos, p. 21. 33 3.2.1. Sensibilização Apesar de entendermos que tudo deve começar com o problema, todos os quatro pontos estão interligados. Primeiramente é fundamental sensibilizar o aluno, comprometê-lo afectivamente com o tema que se vai trabalhar. Este método parece-nos diferente da ideia de motivação que muitos defendem, o qual tem na figura do professor o eixo motivador do aluno (algo que está muito na moda em pedagogia). Na nossa opinião, é difícil conseguir perceber como se consegue motivar alguém para algo, de forma determinante. A motivação parece ser algo interno, de cada um, que não pode ser adquirido de fora para dentro. Um professor não consegue motivar um aluno para aprender; o que pode é estimular o seu interesse para aprender de forma intencional/planeada, a partir de uma série de recursos e acções.44 Ao afirmarmos que o professor tem de sensibilizar o aluno para o problema que vai introduzir, quer dizer, que tem de fazer com que aquele o assimile como se fosse seu, é importante recorrer a elementos não-filosóficos, de que são exemplos a utilização de um filme ou de outro qualquer meio audiovisual. Nesse sentido, em algumas aulas, durante o estágio, procurámos sensibilizar os alunos para certos assuntos que íamos abordar a partir do visionamento de um filme previamente pensado. Posto isto, foi-lhes pedido que falassem sobre o que mais os intrigou no filme. O problema que uma aluna do 11º Ano levantou, sobre o filme que passámos Uma mente brilhante no âmbito da Unidade: III- Racionalidade argumentativa e Filosofia, é um exemplo: “Após o visionamento do filme Uma mente brilhante fiquei com uma dúvida na minha cabeça sobre a realidade e a representação do real. 44 Normalmente quando se interroga os alunos sobre qual a disciplina que mais gostam e qual a razão da sua escolha a resposta invariavelmente que obtemos é que gostam da disciplina tal porque o professor explica bem ou porque consegue tornar o conteúdo perceptível ou porque empolga os alunos devido a ser um professor vibrante. Um professor que manifeste uma certa apatia e indiferença nas matérias que expõe não consegue captar o interesse dos alunos. 34 Nem tudo o que Nash observa e acredita que faz é real. Muitas das pessoas e acontecimentos que a personagem vê são fruto da sua imaginação, e o não conseguir distinguir o real da ficção provoca-lhe sofrimento. Nash vive um conflito com a sua própria mente. Mais tarde, descobre e aceita o facto de que algumas pessoas que lhe são queridas não passam de alucinações. Nash passa a confrontar as suas próprias fantasias, de modo a conseguir distinguir o delírio da realidade. Apesar da doença, o matemático tenta abstrair-se da presença das personagens fictícias, procurando viver de uma forma normal. Nash, para além das suas brilhantes capacidades intelectuais, é um exemplo de coragem ao superar os problemas inerentes à esquizofrenia. Revela uma constante luta pela lucidez da sua mente. Então, John Forbes conhecerá uma realidade distinta e separada dele, ou apenas representações por ele criadas a partir do real?” Abordar um assunto a partir de imagens, pode ser uma boa forma de sensibilizar os alunos para o tema que estamos a introduzir. Hoje em dia, para os jovens, a imagem é fundamental e muito apelativa. Um filme ou um quadro podem, por isso, ser bons pontos de partida. Quando referimos a utilização de um filme, é importante ter em atenção que ele deve estar inserido no universo cultural dos alunos. Por vezes, temos a tendência de levar para a aula filmes que não fazem parte desse seu universo; isso pode ser contraproducente. Neste sentido, é preferível utilizar películas que assegurem essa pertença, para conseguirmos estabelecer a mencionada sensibilização, a qual tem o problematizar como objectivo. Posteriormente e de forma gradativa, podemos e devemos começar a utilizar outros filmes, desta feita, que consigam ampliar o universo cultural atrás aludido. Além dos meios audiovisuais, poderão ser coadjuvantes elementos linguísticos e artísticos, tais como poemas, contos, romances, melodias. A música, nos dias de hoje, talvez seja um dos elementos mais interessantes para se conseguir impressionar, tornar perceptível aos alunos, um assunto que desejamos introduzir na aula. Também aqui é fundamental conhecer e utilizar melodias do respectivo agrado. Só assim é possível realizar um movimento de aproximação. Temos de 35 conhecer o tipo de música que eles ouvem (a do seu dia-a-dia) e perceber se a mesma potencia a colocação de determinados problemas de natureza filosófica, maxime, se permite aceder ao problema concreto que queremos trabalhar. 3.2.2 Problematização À sensibilização, segue-se a etapa da problematização: a fase em que colocamos o problema enquanto tal. Partindo de um certo tema, elaboramo-lo na forma de um problema. É o momento em que mostramos ao aluno que o assunto que estamos a abordar desperta-nos interesse e nos coloca perante uma ou várias grandes interrogações. Merleau Ponty, na sua obra Fenomenologia da percepção, diz que “a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo”45, ou seja, é preciso reaprendermos a ver o que está disposto ao nosso olhar. Esta etapa de problematização faz mover a experiência filosófica, propriamente dita. A partir do momento em que conseguimos sair de um tema, e o transformamos num problema, há que prosseguir em direcção ao pensar (esse problema). Cada problema contém sempre uma pluralidade de soluções possíveis e uma confluência de respostas anteriores. É assim fundamental tomar consciência que um mesmo objecto suscita diferentes teses das quais nenhuma é mais verdadeira que outra. Este movimento é que nos possibilita chegar ao conceito, à meta do processo da experiência filosófica. Deste modo, podemos considerar que a etapa da problematização é uma das mais importantes. Não basta sensibilizar. Apesar de os alunos bem sensibilizados conseguirem dar o passo de perceber o problema, e os não sensibilizados dificilmente o conseguirem, sem a percepção daquele, não existe viabilidade do processo filosófico. Seria muito negativo, no âmbito de uma aula de filosofia, discutir um poema, um filme, um quadro, sem que, no final, tal não tivesse ocasionado, de alguma forma, um pensamento filosófico. A tarefa essencial do professor reside em conseguir que o aluno dê o salto da sensibilização em 45 Marleau Ponty, Fenomenologia da percepção, p.16 36 relação a um tema, e vá ao encontro, dentro desse tema, de um problema que motive o pensamento. Uma barreira comum com que os professores de filosofia se debatem, é a questão que se prende com o interesse do aluno pelas aulas. Muitas vezes, perante o seu visível desinteresse, dizemos que se trata de desconhecimento da importância do pensamento filosófico. Contudo, se entendermos a aula de filosofia como algo que vai fazer o aluno adquirir a disciplina filosófica no seu próprio pensamento, passando por uma experiência filosófica, isso pode ser desafiante. No decorrer deste processo de experiência filosófica, que começa com o ensino da formulação de um problema filosófico, para se direccionar no sentido de uma investigação filosófica e acabar numa possível criação de um conceito filosófico, ou numa apreensão de conceitos filosóficos, a experiência, para ter significado para o aluno, deve partir dos seus próprios problemas. É necessário, portanto, deixá-lo dizer quais são as suas questões dentro da filosofia. Ele sofre no seu quotidiano dilemas relacionados com a liberdade, a justiça, a realidade, o belo, mas a maior parte das vezes não sabe que existe a possibilidade de tratá-los de forma filosófica. Hegel, que teve toda a sua vida marcada pela actividade docente, na sua Propedêutica Filosófica defende que é próprio da filosofia “investigar aquilo que se supõe como conhecido e o que cada um pensa que sabe já bastante.”46 O primeiro passo deverá, desta forma, ser dado através das questões que os alunos já têm na sua vida; sensibilizá-los para essas questões, deixar que eles falem delas. Depois é necessário trabalhá-las, problematizando em cima disso. O problema filosófico pode, inclusive, em alguns cenários, não ser apresentado pelo professor, mas pelos estudantes, a partir dos seus interesses. Isto não significa que basta elaborar uma lista dos problemas que preocupam os alunos (adolescentes), como a questão das drogas, a gravidez na adolescência ou a injustiça no país, e daí partir para uma discussão. A ser levado este tipo de matérias para a sala de aula, temos sempre de ter em vista a sua transformação em algo filosófico. É fundamental, pois, garantir a presença do teor 46 Hegel, Propedêutica Filosófica, p. 52. 37 filosófico em todas as etapas, seja na criação de problemas e argumentos, seja no desenvolvimento da investigação filosófica ou na conceptualização. Por exemplo, podemos perguntar aos estudantes quais são os seus interesses ou questões, para decidirmos como podemos trabalhá-los filosoficamente. Nesse contexto, pode surgir, de uma forma activa, a questão da droga. Essa questão, não a podemos trabalhar, sem mais. Talvez a biologia o possa fazer, referindo-se ao conjunto de reacções químicas que os tóxicos provocam no organismo. Em filosofia, uma forma praticável de abordar este tema, seria explicar aos alunos que se alguém toma uma droga, ela vai alterar a sua percepção da realidade. Consequentemente surge aqui a questão da realidade e outras que lhe são conexas: como é que percebemos a realidade? Percebo a realidade como as outras pessoas? Se estou sob o efeito de uma droga eu entendo a realidade de maneira diferente? A realidade é a mesma para todos? Como é esta apreendida, através dos cinco sentidos ou do que se pensa sobre ela? Desta forma, entramos em várias questões filosóficas, e podemos trabalhar textos de alguns filósofos. A admiração, o espanto foi no entender de Aristóteles o que estimulou os primeiros pensadores às especulações filosóficas. Para o filósofo Grego “no início, o espanto recai sobre as dificuldades que se apresentam em primeiro lugar ao espírito; depois, avançando, pouco a pouco, eles estenderão a sua exploração a problemas mais importantes […].”47 Outra forma de laborar a questão da toxicodependência nas aulas de filosofia, pode ser direccioná-la para a ética. Talvez o interesse dos alunos, ao colocar o assunto das drogas, se prenda com os valores éticos e morais, aquilo que é certo ou errado, ou que é legal ou não é, proibido ou permitido. Assim sendo, também aqui abrimos um vasto espaço para a discussão filosófica. Durante as aulas, no âmbito da unidade III- Dimensões da acção humana e dos valores, recorremos a Maquiavel para interrogar os alunos sobre o conceito de justiça: Se é justo utilizar todos os meios para se entrar numa faculdade ou num emprego. Se os meios justificam os fins, se a justiça, de facto, compensa e como decidir se o que fazemos é bom para todos? 47 Aristóteles, Metafísica, A982b. 38 Qualquer filósofo da história da filosofia só filosofou porque a dada altura da sua vida teve de enfrentar problemas. Qualquer perspectiva que possamos ter de um ensino da filosofia activo e contextualizado, que garanta ao aluno o desenvolvimento da experiência do pensamento filosófico, tem de forçosamente partir de problemas. Se o conceito é o ponto final da experiência filosófica, o problema é o ponto de partida. Partimos necessariamente do problema para chegar ao conceito. Este não se dá imediatamente numa aula de filosofia. É preciso percorrer uma série de fases e levar a cabo um longo processo de trabalho. É necessário que o professor crie na aula o acesso à problematização de questões, as quais devem poder ser compreendidas pelos estudantes como problemas. Não é suficiente que um certo assunto seja problematizado pelo professor, se os alunos não o viverem realmente como tal. Dizer que no processo didáctico do ensino da filosofia se deve partir de problemas, é muito mais do que uma estratégia retórica; tê-los como ponto de partida é uma questão essencial no ensino da filosofia, tal como o é no processo de construção deste ramo do saber. 3.2.3. Investigação Após a elaboração do problema filosófico deverá partir-se para a investigação e aprofundamento filosóficos. Se existe um problema urge então investigá-lo. E a melhor forma de o fazer é através do texto filosófico. Se queremos chegar ao conceito, temos de reactivar e reutilizar conceitos da história da filosofia, pois “os conceitos (…) pertencem de pleno direito à filosofia, porque é ela que os cria e não cessa de criá-los.”48 Depois de sensibilizar os alunos para um certo tema e de chegarmos a um determinado problema, é forçoso encontrar-lhe uma solução, uma forma de ser racionalmente compreendido. Para isso ser alcançado, é essencial recorrer à história da 48 Gilles Deleuze, O que é a filosofia, p. 34. 39 filosofia e o ideal é o professor possuir a sua própria antologia de textos de vários filósofos, que foi recolhendo ao longo dos seus anos de pesquisa.49 Após todo este processo, os textos filosóficos acabam por surgir de uma forma natural, no contexto das aulas, para os alunos. Estes encontrarão sentido na sua utilização, porque serão encarados como hipóteses de pensamento e de conceitos, os quais foram produzidos por vários filósofos, para responder a problemas semelhantes aos que estão igualmente a tentar resolver. Esta nossa proposta de organização didáctica da aula de filosofia implica que façamos um certo percurso, para que os textos acima mencionados não surjam aos olhos dos alunos como uma imposição. 3.2.4. Argumentação Posto isto, é o momento de se aprender a argumentar de forma filosófica, para se poder chegar ao conceito filosófico. A argumentação não é algo que se constrói da mesma forma que se fabrica um objecto numa fábrica, onde os vários componentes, na linha de fabricação, vão construindo peça a peça o produto final, que é sempre o mesmo: o tal objecto previamente pensado/desenhado/arquitectado. A argumentação é sempre um trabalho do pensamento e de autoria, porque é em si, um trabalho de criação. A argumentação é a construção de um discurso; neste sentido, é logos. É como uma escultura, em que temos a matéria-prima e lentamente temos de a ir esculpindo pedaço a pedaço, primeiramente uma orelha, a seguir os lábios, depois o contorno do queixo… Por vezes verificamos que não ficou proporcional e emendamos. Podemos transpor esta imagem para a análise de um texto filosófico, perante o qual o aluno vai igualmente, frase a frase, parágrafo a parágrafo, relacionar-se com o pensamento e com a argumentação do autor, de forma a conseguir decifrá-lo, de forma a compreendê-lo no seu funcionamento orgânico, quer dizer, como um todo. Aí, quem sabe, poderá conseguir construir um conceito. 49 Ver Anexo J. (Antologia de textos para o 10º ano C) 40 3.2.5. Conceptualização “As palavras e a linguagem não constituem cápsulas, em que as coisas são empacotadas para comércio de quem fala e escreve. É na palavra, na linguagem, que as coisas chegam a ser o que são”50 Podemos pensar o que é a injustiça, mas é difícil defini-la. Inventar, fabricar, construir, criar o conceito é pensar vitalmente num problema. Este, após ser trabalhado com os educandos, e depois de se ter lido um texto de determinado filósofo, pode ser o ponto de partida para a “descoberta” de um conceito que lhe diga respeito. Ao deslocarmos esse conceito do texto do filósofo para a nossa experiência de pensamento, recriámo-lo, reinventámo-lo, transformamo-lo: “roubar não é copiar. O que se rouba transforma-se”.51 O conceito que estava na obra do filósofo é resultado de uma lógica e de um processo argumentativo (plano de imanência) que é próprio dessa obra. Quando o deslocamos desta e o trazemos para o nosso próprio processo de pensamento e argumentação, deixa de ser o mesmo. Passa a ser um conceito recriado. Se o aluno conseguir dar este passo, se, a partir de um problema que vive, consultar obras da história da filosofia, e nelas encontrar conceitos que lhe permitam pensar a questão que está a viver, se for capaz de os interiorizar, nos moldes em que os encontrou plasmados num texto de Platão ou de Kant, participa numa experiência filosófica, desenvolve-a. O trabalho de aprender a ler um escrito filosófico, desmontando-o e percebendo como se efectua a argumentação de um filósofo, tem o objectivo de fazer com que o aluno, aos poucos, apreenda os conceitos da tradição filosófica. Se estivermos a trabalhar o tema da liberdade, devemos levar para a aula um texto, por exemplo, da Grécia antiga, contextualizá-lo no seu plano de imanência e labutá-lo argumentativamente, ou seja, explicar quais são os argumentos que constituem 50 Martin Heidegger, Carta sobre o humanismo, p. 42 51 Gilles Deleuze, Diálogos, p. 19. 41 aquele discurso e como é que aquele conceito foi construído naquele momento. Depois, devemos passar para outro plano de imanência, outro momento histórico, e utilizar, por exemplo, um texto do século XVII. Desmontando-o, devemos novamente explicar qual a questão da liberdade que ali está a ser discutida, quais são os pressupostos das ideias subjacentes ao mesmo, que exemplo usa o filósofo, o que pretende afirmar, que argumento apresenta para chegar a um determinado conceito. Deste modo, o aluno vai aprendendo conceitos sobre a liberdade dentro da história da filosofia. Isso pode tornar-se essencial para poder fazer os seus ensaios de construção de conceitos. Eles não nascem pura e simplesmente de uma inspiração, mas de um trabalho árduo, que exige muita disciplina e que vai sendo, aos poucos, absorvido ao longo das várias lições. Depois da experiência com os conceitos dos vários filósofos, o aluno pode começar a arriscar a sua criatividade (de conceitos filosóficos). Assim, podemos afirmar que esta criação é algo que acontece após termos descoberto, na história da filosofia, um determinado conceito, que nos ajude a equacionar o nosso problema e a deslocá-lo para o nosso próprio contexto e referencial. Para Schopenhauer, a filosofia devia “espelhar limpidamente a essência do mundo e como imagem reflexa depô-la nos conceitos permanentes e sempre bem-dispostos do pensamento: esta e não outra é a filosofia”52 Pode ainda ocorrer que nesta fase de investigação não consigamos encontrar nenhum conceito relacionado com o problema que temos em mãos, mas podemos encontrar algum ou alguns que parcialmente se relacione (m) com a nossa questão. Nesta fase, o aluno deve partir desses conceitos que parcialmente se relacionam com o problema a tratar, e deslocá-los para a sua própria experiência, (re)trabalhá-los numa perspectiva fecunda. A filosofia tem uma especificidade própria, que faz com que seja o próprio pensar que está em jogo, o pensamento enquanto pensamento, e não apenas uma dimensão histórica ou matemática. Porque pensamos o que pensamos, é importante descortinar qual o sentido de pensar uma coisa e não outra. O conceito, para a filosofia, é diferente da 52 Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, Livro I, p. 68. 42 designação de conceito para as ciências ou outras áreas do saber. Designamo-lo, de uma forma geral, como sendo uma espécie de categoria. Na filosofia, ele é uma experiência fundamental do pensamento, um golpe do pensamento que nos permite equacionar um determinado problema. O conceito é um todo, mas um todo com fissuras. É nessas fissuras que penetra a multiplicidade. É nas fissuras que encontramos pedaços de outros conceitos (a história) que, unidos, produzem derivações, o devir. Cada conceito provoca um novo agenciamento porque “quando um filósofo critica outro, é a partir de problemas e num plano que não era o do outro, e que faz derreterem-se os antigos conceitos como se pode derreter um canhão para fazer novas armas. Nunca se está no mesmo plano. Criticar é apenas verificar que um conceito desaparece, perde as suas componentes ou adquire outras que o transformam, quando está mergulhado num meio novo. Mas os que criticam sem criar, os que se contentam em defender o desaparecido sem lhe saber dar a força para voltar à vida, esses são a praga da filosofia.” 53 53 Gilles Deleuze, O que é a Filosofia, p.31-32. 43 Conclusão Durante as aulas que leccionámos percebemos fundamentalmente que o educador, mais do que transmitir um saber do exterior ou princípios absolutos, deve conceder aos alunos, através de várias experiências do pensamento, oportunidades/possibilidades que lhes agucem o interesse em conhecer e agir. O que fazer com as perguntas-máquinas?54 Responder-lhes? Fazer com que se multipliquem através de diálogos filosóficos? Mas e de que forma conseguimos sair dos diálogos em grupo para experimentar outras hipóteses do pensar? A filosofia de Deleuze “trata de ligações; num certo sentido, ela é uma arte de agregar coisas múltiplas por meio de sínteses disjuntivas, de conjunções lógicas anteriores e irredutíveis à predicação ou à identificação”.55 Os vários conteúdos transmitidos estabelecem múltiplas ligações com outras áreas do conhecimento. Não existe apenas uma resposta, uma verdade que explique os acontecimentos, “é preciso fabricar intercessores.”56A ciência, a matemática, a religião, as artes, o próprio senso comum dialogam entre si, estabelecendo intercessões com saberes de outros campos, nomeadamente com a filosofia. Quando procuramos a diferença naquilo que é comum, repetitivo, aproximamonos da aula-acontecimento. Uma aula sem categorias fixas, onde não se criam modelos nem se indicam caminhos ou se impõem soluções, mas onde se fazem intercessões, intermezzos, devires, encontros. 54 Termo utilizado por Deleuze na obra Mil Planaltos: Capitalismo e Esquizofrenia 2, p. 327, quando se reporta às perguntas formuladas pelos alunos, as quais se desdobram em problemas tendo em vista uma pergunta fundamental. 55 John Rijchman, As ligações de Deleuze, p, 11. 56 Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, p. 156. 44 Estes encontros/intercessões/intermezzos/devires são linhas de fuga, modos de gerar novas experiências e de produzir o novo. Formas de arrancar maneiras de viver que fujam à regra, que não sejam dominantes na sua forma de existir, que não abusem de chavões e de dualismos, que delineiem novos territórios, novas linhas de fuga. A aula-acontecimento está, pois, condicionada pela actividade filosófica que for capaz de desencadear e a aprendizagem do aluno está dependente de uma variedade de signos, de ligações de sentidos que ele faz com inúmeros agenciamentos/devires, que não estão forçosamente próximos daquele que é o discurso do professor. 45 BIBLIOGRAFIA ARENDS, R. I. (1995). Aprender a Ensinar. Amadora: McGraw-Hill. BARREAU, J. C. (2003). Nem todos os deuses são iguais, Publicações Europa-América, Lda. BOAVIDA, J. (2010). Educação Filosófica. Imprensa da Universidade de Coimbra. CANDEIAS, A. (2009). Educação, Estado e Mercado no Século XX. Apontamentos sobre o caso português numa perspectiva comparada. Lisboa: Edições Colibri/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. DELEUZE, G. (1988-89). O Abecedário de Gilles Deleuze. Paris: Montparnasse, (Transcrição disponível: http://www.oestrangeiro.net/esquizoanalise/67-o-abecedario-degilles-deleuze). DELEUZE, G. e GUATTARI, F. (1992). O que é a Filosofia? Editorial Presença. DELEUZE, G. (2003). Conversações. Fim de Século. DELEUZE, G. e PARNET (2004). Diálogos. Relógio d´Água. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. (2007). Mil Planaltos: Capitalismo e Esquizofrenia 2. Assírio e Alvim. DEWEY, J. (1959). Democracia e Educação. (4ª Edição) São Paulo: Companhia Editora Nacional. EINSTEIN, A. (1981). Como vejo o mundo. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. FINK, E.(1974). De la phénoménologie, Minuit. GOLEMAN, D. (1995). Emotional Intelligence. Bentham Books. HEIDEGGER, M. (1980). Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães & Cª.Editores. HEGEL. (1989). Propedêutica Filosófica. Lisboa: Edições 70. HENRIQUES, F., NEVES, J., MARIA DO ROSÁRIO BARRO, V. (2001). Programa de filosofia do 10º e 11º Anos. Ministério da Educação. Departamento do Ensino Secundário. PONTY, M. (2002) Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes. 46 QUILES, I. (1942). La Persona Humana: fundamentos psicologicos y metafisicos. Aplicaciones sociales, Buenos Aires: Espasa-Calpe. RAJCHMAN, J. (2002). As ligações de Deleuze, Lisboa: Temas e Debates. REBOUL, O.(2000). A Filosofia da Educação. Lisboa: Edições 70. SAVATER, F. (1997). O Valor de Educar. Lisboa: Editorial Presença. TYLOR, E. (1981). Cultura Primitiva, Vol. 2: La Religión en la Cultura Primitiva. Madrid: Ayuso. Manuais Escolares: ALVES, F., ARÊDES, J. e CARVALHO, J. (2009). Pensar Azul – Filosofia 10ºano. (1ºEdição) Texto Editores. RODRIGUES, L. (2010). Filosofia 11ºano. (4ºEdição). Plátano Editora. Textos Electrónicos: Www.esec-casquilhos.rcts.pt www.prof2000.pt/users/folhalcino/formar/.../planifica.htm 47